sábado, 23 de agosto de 2014

09 – O rouxinol e a rosa – O. Wilde

Neste conto, Oscar Wilde, escritor irlandês que viveu entre 1854 e 1900, descreve, em tom de fabula, a força do amor .. e ironiza sobre os seus limites. Foi publicado em 1988 como parte do primeiro livro publicado por O. Wilde, “O príncipe feliz e outras estórias”

O Rouxinol e a Rosa
Oscar Wilde

– Ela disse que dançaria comigo se eu lhe levasse rosas vermelhas – exclamou o Estudante – mas não vejo nenhuma rosa vermelha no jardim.
Por entre as folhas, do seu ninho, no carvalho, o Rouxinol o ouviu e, vendo-o ficou admirado...
– Não há nenhuma rosa vermelha no jardim! – repetiu o Estudante, com os lindos olhos cheios de lagrimas. – Ah! Como depende a felicidade de pequeninas coisas! Já li tudo quanto os sábios escreveram. A filosofia não tem segredos para mim e, contudo, a falta de uma rosa vermelha é a desgraça da minha vida.
E eis, afinal, um verdadeiro apaixonado! – disse o Rouxinol. Gorjeei-o noite após noite, sem conhecê-lo no entanto; noite após noite falei dele às estrelas, e agora o vejo... O cabelo é negro como a flor do jacinto e os lábios vermelhos como a rosa que deseja; mas o amor pôs-lhe na face a palidez do marfim e o sofrimento marcou-lhe a fronte.
– Amanhã à noite o Príncipe dá um baile, murmurou o Estudante, e a minha amada se encontrará entre os convidados. Se levar uma rosa vermelha, dançará́ comigo até a madrugada. Se levar-lhe uma rosa vermelha, hei de tê-la nos braços, sentir-lhe a cabeça no meu ombro e a sua mão presa a minha. Não há rosa vermelha em meu jardim... e ficarei só́; ela apenas passará por mim... Passará por mim... e meu coração se despedaçará́.
– Eis, na verdade, um apaixonado... – pensou o Rouxinol. – Do que eu canto, ele sofre. Aflige-o o que me alegra. Grande maravilha, na verdade, o Amar! Mais precioso que esmeraldas e mais caro que opalas finas. Pérolas e granada não podem comprá-lo, nem se oferece nos mercados. Mercadores não o vendem, nem o conferem em balanças a peso de ouro.
– Os músicos da galeria – prosseguiu o Estudante – tocarão nos seus instrumentos de corda e, ao som de harpas e violinos, minha amada dançará́. Dançará́ tão leve, tão ágil, que seus pés mal tocarão o assoalho e os cortezões, com suas roupas de cores vivas, reunir-se-ão em torno dela. Mas comigo não bailará, porque não tenho uma rosa vermelha para dar-lhe... – e atirando-se à relva, ocultou nas mãos o rosto e chorou.
– Por que está chorando? – perguntou um pequeno lagarto ao passar por ele, correndo, de rabinho levantado. – É mesmo!
Por que será́? – Indagou uma borboleta que perseguia um raio de sol.
– Por quê? – sussurrou uma linda margarida à sua vizinha.
– Chora por causa de uma rosa vermelha, - informou o Rouxinol. –
Por causa de uma rosa vermelha? – exclamaram – Que coisa ridícula! E o lagarto, que era um tanto irônico, riu à vontade.
Mas o Rouxinol compreendeu a angustia do Estudante e, silencioso, no carvalho, pôs-se a meditar sobre o mistério do Amor.
Subitamente, abriu as asas pardas e voou. Cortou, como uma sombra, a alameda, e como uma sombra, atravessou o jardim.
Ao centro do relvado, erguia-se uma roseira. Ele a viu. Voou para ela e posou num galho.
– Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu cantarei para ti a minha mais bela canção!
– Minhas rosas são brancas; tão brancas quanto a espuma do mar, mais brancas que a neve das montanhas. Procura minha irmã̃, a que enlaça o velho relógio-de-sol. Talvez te ceda o que desejas.
Então o Rouxinol voou para a roseira, que enlaçava o velho relógio-de-sol.
– Dá-me uma rosa vermelha – pediu – e eu te cantarei minha canção mais linda.
A roseira sacudiu-se levemente.
– Minhas rosas são amarelas como a cabeleira dourada das sereias que repousam em tronos de âmbar, e mais amarelas que o trigo que cobre os campos antes da chegada de quem o vai ceifar. Procura a minha irmã, a que vive sob a janela do Estudante. Talvez te possa ajudar.
O Rouxinol então, dirigiu o voo para a roseira que crescia sob a janela do Estudante.
– Dá-me uma rosa vermelha – pediu - e eu te cantarei minha canção mais linda.
A roseira sacudiu-se levemente.
 Minhas rosas são vermelhas, tão vermelhas quanto os pés das pombas, mais vermelhas que os grandes leques de coral que oscilam nos abismos profundos do oceano. Contudo, o inverno regelou-me até as veias, a geada queimou-me os botões e a tempestade quebrou-me os galhos. Não darei rosas este ano.
– Eu só quero uma rosa vermelha, repetiu o Rouxinol, – uma só rosa vermelha. Não haverá meio de obtê-la?
 Há, respondeu a Roseira, mas é meio tão terrível que não ouso revelar-te.
  Dize. Não tenho medo.
 Se queres uma rosa vermelha, explicou a roseira, hás de fazê-la de musica, ao luar, tingi-la com o sangue de teu coração. Tens de cantar para mim com o peito junto a um espinho. Cantarás toda a noite para mim e o espinho deve ferir teu coração e teu sangue de vida deve infiltrar-se em minhas veias e tornar-se meu.
– A morte é um preço exagerado para uma rosa vermelha – exclamou o Rouxinol – e a Vida é preciosa... É tão bom voar, através da mata verde e contemplar o sol em seu esplendor dourado e a lua em seu carro de pérola... O aroma do espinheiro é suave, e suaves são as campanulas ocultas no vale, e as urzes tremulantes na colina. Mas o Amor é melhor que a Vida. E que vale o coração de um pássaro comparado ao coração de um homem?
Abriu as asas pardas para o voo e ergueu-se no ar. Passou pelo jardim como uma sombra e, como uma sombra, atravessou a alameda.
O Estudante estava deitado na relva, no mesmo ponto em que o deixara, com os lindos olhos inundados de lagrimas.
 Rejubila-te – gritou-lhe o Rouxinol – Rejubila-te; terás a tua rosa vermelha. Vou fazê-la de musica, ao luar. O sangue de meu coração a tingirá. Em consequência só te peço que sejas sempre verdadeiro amante, porque o Amor é mais sábio do que a Filosofia, embora sabia; mais poderoso que o poder, embora poderosa. Tens as asas da cor da chama e da cor da chama tem o corpo. Há doçura de mel em teus braços e seu hálito lembra o incenso.
O Estudante ergueu a cabeça e escutou. Nada pode entender, porem, do que dizia o Rouxinol, pois sabia apenas o que está escrito nos livros.
Mas o Carvalho entendeu e ficou melancólico, porque amava muito o pássaro que construíra ninho em seus ramos.
– Canta-me um derradeiro canto – segredou-lhe – sentir-me-ei tão só depois da tua partida.
Então o Rouxinol cantou para o Carvalho, e sua voz fazia lembrar a água a borbulhar de uma jarra de prata.
Quando o canto finalizou, o Estudante levantou-se, tirando do bolso um caderninho de notas e um lápis.
– Tem classe, não se pode negar – disse consigo – atravessando a alameda. Mas terá sentimento? Não creio. É igual a maioria dos artistas. Só estilo, sinceridade nenhuma. Incapaz de sacrificar-se por outrem. Só pensa e cantar e bem sabemos quanto a Arte é egoísta. No entanto, é forçoso confessar, possui maravilhosas notas na voz. Que pena não terem significação alguma, nem realizarem nada realmente bom!
Foi para o quarto, deitou-se e, pensando na amada, adormeceu.
Quando a lua refulgia no céu, o Rouxinol voou para a Roseira e apoiou o peito contra o espinho. Cantou a noite inteira e o espinho mais e mais enterrou-se- lhe no peito, e o sangue de sua vida lentamente se escoou...
Primeiro descreveu o nascimento do amor no coração de um menino e uma menina; e, no mais alto galho da Roseira, uma flor desabrochou, extraordinária, pétala por pétala, acompanhando um canto e outro canto.
Era pálida, a principio, qual a nevoa que esconde o rio, pálida qual os pés da manhã e as asas da alvorada. Como sombra de rosa num espelho de prata, como sombra de rosa em água de lagoa era a rosa que apareceu no mais alto galho da Roseira.
Mas a Roseira pediu ao Rouxinol que se unisse mais ao espinho. – Mais ainda, Rouxinol, – exigiu a Roseira, – senão o dia raia antes que eu acabe a rosa. O Rouxinol então apertou ainda mais o espinho junto ao peito, e cada vez mais profundo lhe saía o canto porque ele cantava o nascer da paixão na alma do homem e da mulher. E tênue nuance rosa nacarou as pétalas, igual ao rubor que invade a face do noivo quando beija a noiva nos lábios.
Mas o espinho não lhe alcançava ainda o coração e o coração da flor continuava branco – pois somente o coração de um Rouxinol pode avermelhar o coração de rosa.
– Mais ainda, Rouxinol, – clamou a Roseira – ou o dia vai raiar antes que eu finalize a rosa.
E o Rouxinol, desesperado, calcou-se mais forte no espinho, e o espinho lhe feriu o coração, e uma punhalada de dor o traspassou. Amarga, amarga lhe foi a angustia e cada vez mais fremente foi o canto, porque ele cantava o amor que a morte aperfeiçoa, o amor que não morre nem no túmulo.
E a rosa maravilhosa tornou-se purpurina como a rosa do céu oriental. Suas pétalas ficaram rubras e, vermelho como um rubi, seu coração.
Mas a voz do Rouxinol se foi enfraquecendo, as pequeninas asas começaram a estremecer e uma névoa cobriu-lhe o olhar, o canto tornou-se débil e ele sentiu qualquer coisa apertar-lhe a garganta.
Então, arrancou do peito o derradeiro grito musical.
Ouviu-o a lua branca, esqueceu-se da Aurora e permaneceu no céu. A rosa vermelha o ouviu, e tremula de emoção, abriu-se à aragem fria da manhã. Transportou-o o Eco, à sua caverna purpurina, nos montes, despertando os pastores de seus sonhos. E ele levou-os através dos caniços dos rios e eles transmitiram sua mensagem ao mar.
– Olha! Olha! Exclamou a Roseira. – A rosa está pronta, agora. Ao meio dia o Estudante abriu a janela e olhou. – Que sorte! – disse – Uma rosa vermelha! Nunca vi rosa igual em toda a minha vida. É tão linda que tem certamente um nome complicado em latim. E curvou-se para colhê-la.
Depois, pondo o chapéu, correu à casa do professor.
Disseste que dançarias comigo se eu te trouxesse uma rosa vermelha, - lembrou-se o Estudante. – Aqui tens a rosa mais vermelha de todo o mundo. Hás de usá-la, hoje a noite, sobre ao coração, e quando dançarmos juntos ela te dirá quanto te amo.
Mas a moça franziu a testa.
 Talvez não combine bem com o meu vestido, disse. Ademais, o sobrinho do Camareiro mandou-me joias verdadeiras, e joias, todos sabem, custam muito mais do que flores...
 És muito ingrata! – exclamou o Estudante, zangado. E atirou a rosa a sarjeta, onde a roda de um carro a esmagou.
 Sou ingrata? E o senhor não passa de um grosseirão. E, afinal de contas, quem és? Um simples estudante... não acredito que tenhas fivelas de prata, nos sapatos, como as tem o sobrinho do camareiro... – e a moça levantou-se e entrou em casa.

– Que coisa imbecil, o Amor! – Resmungou o estudante, afastando-se. – Nem vale a utilidade da Logica, porque não prova nada, está sempre prometendo o que não cumpre e fazendo acreditar em mentiras. Nada tem de prático e como neste século o que vale é a prática, volto à Filosofia e vou estudar metafísica. Retornou ao quarto, tirou da estante um livro empoeirado e pôs-se a ler...

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

08 – Para Esmé com amor e sordidez – J. D. Salinger

Este é – na minha opinião – um dos melhores contos de todos os tempos. Escrito pelo autor americano J. D. Salinger (1919 – 2010) foi publicado em 1950 pela revista New Yorker. Para comprender o texto três datas são importantes: abril de 1950 – data em que o narrador recebe o convite descrito nos dois primeiros parágrafos; abril de 1944 (semanas antes do 6 de Junho Dia D) – data do encontro com Esmé e; abril de 1945 – depois do fim da guerra, quando o texto descreve o Sargento X. Lembrando ainda que entre Abril de 1944 e Abril de 1945 Salinger, então sargento de infantaria encarregado de interrogar prisioneiros, participou do desembarque na praia de Utah, da Batalha de Bulge (onde morreram 19 mil soldados americanos) e das batalhas na Floresta de Hürtgen onde outros 33 mil soldados  norte americanos morreram. Interessante também notar que a falta de sensibilidade do narrador nos dois primeiros parágrafos, contrasta com a profunda sensibilidade do personagem em 1944 e 1945, o que parece indicar que suas “faculdades mentais” ainda não tinham sido completamente reestabelecidas. (Como o livro está esgotado e não encontrei o texto na internet, eu mesmo digitei a magnifica tradução abaixo – desculpem pelos equívocos)   

Para Esmé, com amor e sordidez

J. D. Salinger
Publicado no Brasil por Editora do Autor com tradução  de Jório Dauster Magalhães e Silva e Álvaro Gurgel Alencar

Outro dia recebi, por via aérea, um convite para um casamento que se vai realizar na Inglaterra, no dia 18 de abril. Acontece que eu gostaria muito de assistir a esse casamento e, quando o convite chegou, pensei em dar um jeito qualquer de fazer a viagem. Pegava um avião... e as despesas que se danassem. Mas desde então discuti exaustivamente o problema com minha mulher, que é uma moça espantosamente sensata, e nos decidimos contra a ideia: entre outras razões, tinha esquecido por completo que minha sogra esta planejando passar conosco as duas ultimas semanas de abril. Na verdade quase nunca vejo a mamãe Grencher, e os anos já lhe vão pesando. Esta com cinquenta e oito (como seria a primeira a admitir).
Seja como for, quer eu afinal vá ou não, nunca fui dessas pessoas que, por mera preguiça, deixam que um casamento transcorra em meio à maior chatice. Por isso, pus mãos à obra e passei para o papel algumas observações reveladoras sobre a noiva, tal como conheci há quase seis anos. Se minhas notas causarem um ou outro momento de embaraço ao noivo, a quem nunca vi, tanto melhor. Ninguém aqui esta interessado em ser simpático. A intenção é, isto sim, educar, instruir.
Em abril de 1944 eu integrava um grupo de cerca de sessenta soldados americanos submetidos a um curso de treinamento pré-invasão, bastante especializado, ministrado pelo serviço inglês de espionagem em Devon, na Inglaterra. Quando relembro aqueles dias, acho que o traço característico de nosso grupo estava em que dentre os sessenta, não havia um único sujeito capaz de fazer camaradagem com facilidade. Éramos todos essencialmente do tipo que escreve cartas e, quando nos falávamos fora das horas de serviço, era quase sempre para pedir emprestado um pouco de tinta. Quando não estávamos escrevendo cartas ou assistindo às aulas, cada qual tratava de seguir seu próprio caminho. De minha parte, quando fazia sol eu ia passear pelo campo, olhando a paisagem. Em dias de chuva, geralmente sentava-me em algum lugar seco e lia um livro, frequentemente a dois passos de uma inútil mesa de pingue-pongue.
O curso de treinamento durou três semanas, terminando num sábado muito chuvoso. Nessa noite, as sete horas, o grupo todo devia tomar um trem para Londres, onde, segundo se dizia, seriamos designados para divisões de infantaria e de paraquedistas expressamente organizadas para os desembarques do Dia D. Por volta das três da tarde já tinha arrumado todas as minhas coisas no saco de campanha, inclusive a caixa que deveria conter a máscara contra-gás – cheia de livros que eu trouxera do Outro Lado. (Algumas semanas antes eu havia atirado a máscara por uma escotilha do Mauritânia, perfeitamente cônscio de que, se o inimigo realmente resolvesse fazer uso do gás, eu jamais conseguiria colocar a droga da máscara em tempo.) Lembro-me de ter ficado um tempão diante da janela dos fundos de nossa barraca, vendo a chuva cair de forma obliqua e tediosa. Meu dedo do gatilho coçava de maneira quase imperceptível, se tanto. Atrás de mim podia ouvir o som pouco amistoso de muitas canetas escrevendo sobre muitas folhas de papel de carta aérea. De repente, sem qualquer proposito definido, afastei-me da janela e vesti a capa de chuva, o cachecol de cachemira, as galochas, as luvas de lã e o quepe (que, segundo me diziam, eu usava num angulo todo especial – ligeiramente caído sobre as orelhas). Aí, depois de acertar meu relógio de pulso pelo relógio do banheiro, desci a colina em direção à cidade, pelo longo e escorregadio caminho de paralelepípedos. Tratei de ignorar os relâmpagos que caiam a minha volta: ou bem eles trazem o endereço da gente ou não trazem.
No centro da cidade, provavelmente o lugar mais alagado da região, parei em frente a uma igreja para ler o quadro de avisos, principalmente porque os números, pintados de branco sobre o fundo preto, tinham atraído minha atenção, mas em parte também porque, depois de três anos no exército, eu já estava viciado em ler quadros de aviso. Às três e quinze, segundo o quadro, haveria um ensaio do coro infantil. Olhei para meu relógio e outra vez para o quadro. Numa folha de papel estavam relacionadas as crianças que deveriam participar do ensaio. Li todos os nomes ali em pé, na chuva, e depois entrei na igreja.
Uns dez adultos se achavam espalhados pelos bancos, alguns deles segurando no colo pequenas galochas, as solas voltadas para cima. Passei por eles e fui instalar-me na primeira fila. Sobre uma plataforma, sentadas em três filas cerradas de cadeiras de auditório, havia umas vinte crianças, na maioria meninas, variando em idade dos sete aos treze anos. Naquele momento, a regente do coro – uma mulher enorme, com um vestido de tweed – estava aconselhando as crianças a abrirem mais a boca ao cantar. Alguém já ouviu falar, perguntou ela, de algum passarinhozinho que ouse cantar sua linda canção sem antes abrir o biquinho bem aberto? Aparentemente ninguém jamais ouvira: as crianças responderam-lhe com um olhar imóvel e opaco. Ela prosseguiu, dizendo que queria que todas as suas criancinhas absorvessem o significado das palavras que cantassem, não se contentando simplesmente em repeti-las como uns papagaios. Soprou então uma nota no diapasão e as crianças, qual halterofilistas precoces, ergueram seus hinários.
Cantaram sem acompanhamento instrumental – ou mais precisamente no caso, sem qualquer interferência. Suas vozes eram melodiosas e em nada afetadas, a tal ponto que alguém dotado de maior religiosidade do que eu poderia ter levitado sem o menor esforço. Uma ou duas crianças menores atrasavam um pouquinho, mas de um modo que só a mãe do compositor poderia criticar. Eu nunca tinha ouvido aquele hino e fiquei torcendo para que tivesse umas doze estrofes ou mais. Enquanto ouvia, fui examinando os rostos de todas as crianças, mas observei um em particular, o da menina que estava sentada mais próximo de mim, na ultima cadeira da fila da frente. Devia ter uns treze anos, cabelos de um louro acinzentado que caiam até a altura dos lóbulos das orelhas, uma testa perfeita e uns olhos blasé que, pensei comigo, muito possivelmente já teriam registrado o numero de espectadores presentes. Sua voz destacava-se claramente das demais, não apenas porque ela estivesse mais perto de mim. Tinha o registro mais alto, era a que soava mais doce, a mais firme, e automaticamente liderava as outras vozes. A mocinha, no entanto, parecia ligeiramente entediada com sua própria habilidade vocal, ou talvez apenas com as circunstancias de tempo e lugar; duas vezes, entre uma e outra estrofe, eu a vi bocejar. Era um bocejo muito bem educado, um bocejo de boca fechada, mas dava para se notar: as narinas a traiam.
Mal o hino chegara ao fim, a regente do coro começou a dissertar longamente sobre as pessoas que não sabem manter os pés parados e a boca hermeticamente fechada durante o sermão. Concluí que a parte cantada do ensaio havia terminado e, antes que a voz dissonante da regente quebrasse todo o encantamento criado pela musica das crianças, levantei-me e saí da igreja.
A chuva tinha aumentado. Desci a rua e, através da janela. dei uma olhada no salão de diversões da Cruz Vermelha, mas havia um monte de soldados diante do balcão de café e mesmo através do vidro dava para ouvir o som de bolas e pingue-pongue na sala ao lado. Atravessei a rua e entrei numa casa de chá comum, inteiramente deserta a não ser pela garçonete, mulher de meia idade que parecia preferir um freguês com uma capa de chuva menos encharcada. Pendurei a capa com maior cuidado possível, sentei-me a uma mesa e pedi chá com torradas. Era a primeira vez que eu falava com alguém naquele dia. Dei então uma batida por todos os meus bolsos, inclusive os da capa, e acabei encontrando algumas cartas antigas para reler; uma, de minha mulher, contava como havia piorado o serviço no Restaurante Schrafft da rua Oitenta e Oito; outra, de minha sogra, pedia-me o obsequio de lhe mandar novelos de cachemira, na primeira ocasião em que escapulisse do “acampamento”.
Enquanto eu ainda estava na primeira xicara de chá, entrou na sala a mocinha que eu ficara olhando e ouvindo durante o ensaio do coro. Seu cabelo estava empapado, deixando aparecer as bordas das orelhas. Com ela vinha um garoto bem pequenininho, certamente seu irmão, cujo boné ela removeu com dois dedos, como se fosse um espécime de laboratório. Fechando a fila entrou uma mulher de jeitão eficiente, com um chapéu de feltro mole, presumivelmente a governanta dos dois. A participante do coro, desvencilhando-se do casaco enquanto andava, escolheu a mesa – uma boa mesa, de meu ponto de vista, pois ficava a uns três metros de distancia, bem a minha frente. Ela e a governanta se sentaram. O garotinho , que devia ter uns cinco anos, ainda não estava pronto para se sentar. Esgueirou-se para fora do casaco e, com expressão imperturbável de quem já nasceu fazendo alguma travessura, começou a chatear a governanta metodicamente, empurrando varias vezes a cadeira para frente e para trás, olhando para ela o tempo todo. A governanta, esforçando-se por falar baixo, deu umas duas ou três ordens para que ele se sentasse e, afinal, parasse com a gracinha. Mas só quando a irmãlhe falou é que ele resolveu acalmar-se e repousar o traseiro no assento. Imediatamente apanhou o guardanapo e o pôs em cima da cabeça. A mocinha removeu o guardanapo, abriu –o e colocou no colo dele.
Mais ou menos na hora em que lhes era servido o chá, a participante do coro, apanhou-me espiando sua mesa. Encarou-me de volta, com aqueles olhos de quem calcula o numero de espectadores, e aí, de repente, deu-me um sorriso breve e condicional. Estranhamente radiante, como são, as vezes, alguns sorrisos breves e condicionais. Sorri em resposta, de maneira muito menos radiante, mantendo o lábio superior firmemente plantado sobre uma obturação provisória que me haviam feito no exército, negra como carvão, bem visível entre dois de meus dentes da frente. Quando dei por mim a mocinha se encontrava de pé, com invejável pose, ao lado da minha mesa. Estava com um vestido de tecido escocês – com o padrão do clã de Campbell, se não me engano. Pareceu-me o tipo de vestido ideal para ser usado por uma mocinha num dia assim tão chuvoso.
– Eu pensava que os americanos detestassem chá – ela falou.
Não disse isso pata se fazer de engraçadinha, mas antes como alguém interessado na verdade ou em informações estatísticas. Respondi que alguns de nós tomávamos chá. Convidei-a para sentar-se comigo.
– Obrigada – respondeu – Talvez por um segundinho.
Levantei-me e afastei a cadeira para ela, a que ficava na minha frente; sentou-se na beirada do assento, mantendo o corpo ereto, com graça e leveza. Voltei para minha cadeira, quase correndo, mais do que disposto a estimular a conversa. Mas, quando me vi sentado. não consegui pensar em nada para dizer. Sorri outra vez, mantendo ainda escondida minha negra obturação. Comentei que estava fazendo um tempo horrível lá fora.
– É, péssimo – retrucou minha convidada com a entonação significativa de quem odeia esse tipo de conversinha fiada. Pousou os dedos firmemente sobre a borda da mesa, como se estivesse numa sessão espirita, e logo em seguida – quase instantaneamente – fechou as mãos: suas unhas estavam roídas até o sabugo. Usava um relógio de pulso de feitio militar, mais parecendo o cronômetro de algum comandante de navio, grande demais para pulso tão fino.
– Você assistiu ao ensaio do coro – ela comentou, em tom desinteressado. – Eu te vi lá.
Confirmei que havia estado lá e notara como a voz dela se destacava das demais. Disse que tinha achado sua voz magnífica.
Concordou com a cabeça e falou – Eu sei. Vou ser cantora profissional.
– É mesmo? Opera?
– Não pelo amor de Deus. Vou cantar jazz no radio e ganhar um monte de dinheiro. Aí, quando tiver trinta anos, me aposento e vou viver numa fazenda, em Ohio.
Tocou o alto da cabeça encharcada com a palma da mão.
– Você conhece Ohio? – perguntou.
Respondi que já havia atravessado o Estado algumas vezes, de trem, mas que não conhecia direito aquela região. Ofereci-lhe uma torrada.
– Não obrigada. Para dizer a verdade, eu como muito pouco.
Mordi uma fatia de torrada e comentei que, em Ohio, havia lugares onde a vida era bem dura.
Eu sei disso. Um americano que eu conheci me disse isso. Você é o decimo-primeiro americano que eu encontro.
A essa altura a governanta estava fazendo sinais insistentes em sua direção, para que voltasse à mesa – ou seja, para que deixasse de incomodar o rapaz. Minha convidada, entretanto, ajeitou calmamente a cadeira de modo a que suas costas impedissem qualquer possibilidade futura de comunicação com a mesa de origem.
– Você esta frequentando aquela escola do serviço secreto no alto do morro, não é? – indagou-me firmemente.
Por dever de ofício, respondi-lhe que estava visitando Devonshire por motivos de saúde.
– Pois sim – respondeu – Eu não nasci ontem, sabe?
Respondi que, quanto a isso, não tinha a menor duvida. Tomei meu chá por alguns momentos. Estava começando a ficar ligeiramente preocupado com minha postura, por isso sentei-me mais empertigado na cadeira.
– Para um americano, você parece muito inteligente – minha convidada ponderou.
Respondi-lhe que, pensando bem, aquilo era o tipo da coisa esnobe de se dizer, além de não se uma observação digna de uma pessoa como ela.
Ela corou, outorgando-me automaticamente a afirmação social que me vinha faltando.
– Bem, a maioria dos americanos que eu vi agem como uns animais. Estão sempre se socando e xingando todo mundo, e ... você sabe o que um deles fez?
Fiz que não com a cabeça.
– Jogou uma garrafa de uísque vazia pela janela de minha tia. Felizmente a janela estava aberta. Você acha isso muito inteligente?
Não me pareceu particularmente inteligente, mas não disse isso. Expliquei que, pelo mundo afora, muitos soldados estavam longe de suas casas e poucos deles haviam sido bem tratados pela vida. Pensava mesmo que qualquer pessoa era capaz de compreender isto sozinha.
– Talvez – respondeu minha convidada sem convicção. Levantou outra vez a mão até a cabeça molhada e ajeitou alguns fios soltos de cabelo louro, tentando encobrir as orelhas.
– Meu cabelo está encharcado. Devo estar horrorosa –falou, olhando para mim – Meu cabelo é bem ondulado quando está seco.
– Dá para perceber, eu já tinha notado.
 – Não chega a ser crespo, mas é bem ondulado. Você é casado?
Respondi que era.
Ela sacudiu a cabeça… – Você é apaixonado por sua mulher? Ou estou sendo muito indiscreta?
Respondi que, quando ela se tornasse indiscreta, eu o diria.
Ela moveu as mãos e os pulsos mais para o centro da mesa – e lembro-me de ter desejado fazer alguma coisa com aquele enorme relógio de pulso, talvez sugerir que ela usasse em volta da cintura.
– Em geral eu não sou exageradamente gregária – ela disse olhou para mim, como querendo ver se eu compreendera ou não o significado da palavra. Mas nada fiz que pudesse indicar uma coisa ou outra. – Só vim até sua mesa porque achei que você parecia extremamente solitário. Você tem um rosto muito sensível.
Falei que ela tinha razão, que eu de fato estava me sentindo solitário e ficara muito satisfeito por ela ter vindo até minha mesa.
– Estou me esforçando para ser mais compassiva. Minha tia diz que eu sou uma pessoa terrivelmente fria – falou, levando novamente a mão até o alto da cabeça. – Eu vivo com minha tia. Ela é uma pessoa extremamente bondosa. Desde a morte de minha mãe ela tem feito todo o possível para que eu e Charles nos sintamos ajustados.
– Que bom...
– Mamãe era muitíssimo inteligente. Muito sensual, em vários sentidos.
Olhou-me com uma espécie de renovada intensidade.
– Você me acha terrivelmente fria?
Respondi que absolutamente não achava – na verdade, muito pelo contrario. Disse meu nome e perguntei pelo dela.
Hesitou: – Meu primeiro nome é Esmé. Acho que, por enquanto não lhe devo dizer todo o meu nome. Eu tenho um titulo de nobreza e pode ser que você se impressione com títulos. Os americanos se impressionam com esse tipo de coisa, você sabe.
Falei que não achava que fosse ficar impressionado, mas não era má ideia ela deixar para revelar seu titulo mais tarde.
Nesse justo instante senti o bafo quente de alguém respirando bem atrás do meu pescoço. Virei-me e, por um triz, não rocei meu nariz no irmãozinho de Esmé. Como se eu não existisse, dirigiu-se a irmã, em voz aguda e cortante.
– Miss Megley disse pra você ir acabar de tomar o chá!
Transmitida a mensagem, retirou –se para a cadeira que ficava à minha direita, entre mim e sua irmã. Olhei-o com grande interesse. Ele estava elegantíssimo, de calças marrons, casaco azul-marinho, camisa branca e gravata listrada. Encarou-me de volta, com uns imensos olhos verdes.
– Por quê as pessoas nos filmes se beijam sempre de lado? – inquiriu-me
– De lado? – Perguntei. Esse problema também me havia preocupado quando eu era criança. Respondi que achava que era porque os narizes dos artistas eram grande demais para eles se poderem beijar de frente.
– Ele se chama Charles – disse Esmé. – É extremamente brilhante para a idade.
– Os olhos dele são um bocado verdes, não é Charles?
Charles respondeu-me com um olhar enjoado que minha pergunta merecia e escorregou para a frente da cadeira, até que seu corpo todo foi parar debaixo da mesa, com exceção da cabeça, que ele deixou ficar sobre o assento.
– Eles são alaranjados – falou em voz forçada, dirigindo-se ao teto. Apanhou uma beirada de toalha e cobriu seu rosto bonito e impassível.
– As vezes ele é brilhante e outras vezes não é – disse Esmé – Charles, senta direito!
Charles continuou onde estava. Parecia estar prendendo a respiração.
– Ele sente muito a falta de meu pai. Papai foi m-o-r-t-o no Norte da África – ela soletrou.
Expressei meu pesar pelo fato. Esmé sacudiu a cabeça e disse.
– Papai adorava Charles.
Mordeu pensativamente a cutícula do polegar.
– Charles se parece muito com minha mãe. Eu sou exatamente igual ao meu pai.
Continuou mordendo a cutícula.
– Minha mãe era uma mulher muito emotiva. Ela era extrovertida, meu pai era introvertido. Mas eles combinavam muito bem, de um modo superficial. Para ser franca, papai realmente precisava de uma companheira mais intelectual do que mamãe. Ele era um verdadeiro gênio.
Esperei receptivamente por informações adicionais, mas Esmé ficou nisso. Olhei para baixo, na direção de Charles, que estava agora com o lado do rosto deitado no assento da cadeira. Quando notou que estava sendo observado, fechou os olhos mansamente, angelicamente, e aí pôs a língua de fora – uma peça de  surpreendentes dimensões – deixando escapar um som que, no meu país, teria sido um glorioso tributo a um juiz de beisebol míope. O barulho fez virtualmente tremer a casa de chá.
– Para com isso – disse Esmé, nitidamente inabalada. – Ele viu um americano fazer isso na fila do restaurante e agora repete sempre que esta chateado. Para com isso agora, senão eu te mando diretamente para Miss Megley.
Charles abriu os olhos enormes, sinal de que tinha ouvido a ameaça da irmã, mas, afora isso, não demonstrou maiores cuidados. Fechou os olhos novamente e continuou com o rosto deitado no assento.
Comentei que talvez ele devesse guardar aquele truque – isto é, a vaia do Bronx – para quando começasse a usar normalmente seu titulo nobiliárquico. Isto é, caso ele também tivesse algum titulo.
Esmé lançou-me um olhar demorado, vagamente clínico.
– Você tem um senso de humor muito apurado, não é? – falou, suspirosa. – Papai dizia que eu não tinha nem um pouco de senso de humor. Que eu estava despreparada para enfrentar a vida porque não tinha senso de humor.
Encarando-a, acendi um cigarro e disse-lhe não acreditar que o senso de humor tivesse qualquer utilidade numa hora de aperto.
– Papai disse que tinha.
Tratava-se de uma afirmação de fé, não de um contra-argumento, por isso resolvi bater rapidamente em retirada. Balancei afirmativamente a cabeça e disse que o pai dela provavelmente encarara a questão sob uma perspectiva de longo prazo, enquanto eu a havia considerado em sua projeção de curto prazo (embora até hoje eu não tenha a menor ideia do que isso signifique).
– O Charles sente uma enorme falta dele – Esmé falou alguns momentos depois. – Ele era um homem extremamente bom. E muito bonito também. Não que a aparência de uma pessoa seja muito importante, mas ele era bonito de verdade. Tinha uns olhos incrivelmente penetrantes, para um homem que era intrinsecamente bondoso.
Concordei com a cabeça. Disse que imaginava que o pai dela tinha um vocabulário riquíssimo.
– Ah, tinha! Fabuloso! – confirmou. – Ele era um colecionador de documentos históricos... amador, naturalmente.
Nesse instante eu senti um tapa impertinente, quase um soco, no meu braço direito, vindo do lado de Charles. Voltei-me para ele. Estava sentado agora na cadeira, em posição bastante normal não fosse pela circunstancia de ter uma perna dobrada por baixo do corpo.
– O que uma parede disse pra outra? – perguntou, com aquela voz aguda. – É uma charada.
Levantei os olhos para o teto, pensativo, e repeti alto a pergunta. Ai então olhei para Charles com ar de perplexidade e confessei que desistia.
– Te encontro na esquina! – veio a solução, em volume máximo.
A maior reação partiu do próprio Charles, que achou a piada insuportavelmente engraçada. Na verdade, Esmé teve de levantar-se para ir bater nas costas dele, como se estivesse com um aceso de tosse.
– Agora para como isso – ela disse, voltando a seu lugar. – Ele conta essa charada a todo mundo e sempre tem um ataque. Normalmente ele se baba todo quando ri. Agora para, por favor.
– Mas é uma das melhores charadas que eu já ouvi – falei, olhando para Charles, que começava a recuperar-se do ataque. Em resposta ao elogio, escorregou ainda mais para baixo da cadeira e voltou a cobrir o rosto, até a altura dos olhos, com uma ponta da toalha. Aí então encarou-me com os olhos descoberetos, carregados de uma alegria que se dissolvia lentamente, com o orgulho de quem sabe umas charadas boas de verdade.
– Posso saber qual era a sua profissão antes da guerra? – Esmé perguntou-me.
Respondi que não tinha emprego nenhum, que havia terminado a universidade um ano antes de começar a guerra, embora gostasse de me considerar um contista profissional.
Ela balançou a cabeça polidamente. – E seus contos já foram publicados.
Tratava-se de uma pergunta familiar, embora sempre embaraçosa, à qual eu não costumava responder com exagerada facilidade. Comecei a explicar que a maioria dos editores dos Estados Unidos eram um bando de...
– Meu pai escrevia muito bem – Esmé interrompeu. – Estou guardando varias cartas dele para a posteridade.
Falei que isso me parecia uma boa ideia. Por acaso dei com os olhos outra vez sobre seu relógio de pulso com jeito de cronómetro, com aquele mostrador enorme. Perguntei se havia pertencido a seu pai.
Ela examinou longamente o relógio, com toda  a solenidade.
– É era dele. Me deu de presente pouco antes de eu e o Charles sermos evacuados – respondeu, enquanto escondia as mãos sob a mesa. – Apenas como recordação é claro.
Ela mesma conduziu a conversa para outro assunto.
– Eu ficaria muito grata se você algum dia escrevesse um conto exclusivamente para mim. Sou ávida por leitura.
Disse-lhe que certamente o faria, se pudesse. Expliquei que não era terrivelmente prolífico.
– Não precisa ser terrivelmente prolífico! Basta que não seja um conto bobo e infantil – ela disse, e depois se calou, pensativa. – Eu prefiro estórias sobre sordidez e sofrimento.
– Sobre o quê? – perguntei , inclinando-me para a frente.
– Miséria e sofrimento. Eu me interesso muito pela sordidez e pelo sofrimento.
Eu já ia começar a solicitar-lhe maiores esclarecimentos, mas senti um beliscão forte de Charles em meu braço. Voltei-me para seu lado, com uma ligeira careta de dor. Ele estava novamente de pé, a meu lado.
– O que é que uma parede disse para a outra? – perguntou, de modo algop familiar.
– Você já perguntou isso a ele , Charles – Esmé disse. – Agora para com isso.
Sem prestar atenção à irmã, e pisando sobree um dos meus pés, Charles repetiu a pergunta-chave, Reparei que o laço de sua gravata não estava no lugar devido. Apertei o nó, encarando-o, e aí, arrisquei: – Te encontro na esquina!
Mal acabei de falar, arrependi-me inteiramente. A boca do menino se abriu. Senti-me como se eu mesmo a tivesse aberto. Ele desceu de cima de meu pé e, com furiosa dignidade, voltou para a sua mesa, sem olhar para atrás.
– Ele esta fulo de raiva – Esmé disse. – Tem um temperamento muito violento. Minha mãe costumava mimá-lo demais. Meu pai era o único que não o mimava.
Continuei olhando para Charles, que se havia sentado e começava a tomar o chá, segurando a xícara com as duas mãos. Tinha a esperança de que ele se voltasse na minha direção, mas nem se mexeu.
Esmé levantou-se
Il faut que je parte aussi – ela disse com um suspiro. – Você fala francês?
Levantei-me da cadeira com um misto de pesar e confusão. Trocamos um aperto de mãos; sua mão, como eu suspeitava, era nervosa, a palma úmida. Disse-lhe, em inglês, o quanto me fora agradável sua presença.
Ela concordou, sacudindo a cabeça. – Achei que você gostaria. Eu sou muito comunicativa para a minha idade – falou, dando mais um toque exploratório no cabelo. – Desculpe o jeito que está meu cabelo. – Eu provavelmente estou com uma cara horrorosa de se olhar.
– Nada disso! Para dizer a verdade, acho que as ondas já estão começando a aparecer.
Ela rapidamente levou a mão outra vez ao cabelo.
– Você acha que voltará por aqui num futuro próximo? – Perguntou. – Todo sábado nós costumamos vir aqui, depois do ensaio do coro.
Respondi que gostaria muitíssimo de poder voltar, mas que infelizmente tinha a certeza de que isso não seria possível.
– Em outras palavras, você não pode falar sobre os movimentos da tropa – Esmé disse. Não fez qualquer menção de abandonar as proximidades da mesa. Cruzou mesmo um pé sobre o outro e, olhando para baixo, alinhou os bicos dos sapatos. Era uma exibiçãozinha digna de nota, porque ela estava de meias brancas e seus pés e tornozelos eram muito bem feitos. Olhou-me repentinamente.
– Você gostaria que eu escrevesse para você – perguntou, seu rosto ganhando um colorido peculiar. – Eu escrevo umas cartas muito maduras para uma pessoa de...
– Gostaria muito – respondi. Tirei do bolso papel e lápis, e escrevi meu nome, posto, numero de serie e numero postal.
– Eu escrevo primeiro – ela disse, aceitando o pedaço de papel e guardando-o num bolso do vestido. – Não quero que você se sinta constrangido a escrever de modo algum. Adeus – falou, e voltou para sua mesa.
Pedi mais um bule de chá e fiquei olhando para eles, até que os dois – e a afobada governanta – se levantassem para ir embora. Charles seguia na frente, capengando tragicamente, como se tivesse uma perna muito mais curta do que a outra. Não olhou para mim. A governanta vinha depois e, por ultimo, Esmé, que acenou na minha direção. Respondi também com um aceno, levantando-me ligeiramente da cadeira. Foi um momento estranhamente comovedor para mim.
*  *  *
Menos de um minuto depois Esmé voltou a entrar na casa de chá, puxando Charles pela manga do casaco.
– O Charles quer te dar um beijo de despedida.
Descansei imediatamente a xícara e disse que era muito gentil da parte dele mas... será que ela tinha certeza?
– Tenho – respondeu, com uma ponta de severidade. Soltou a manga de Charles e deu-lhe um empurrão bastante vigoroso em minha direção. Ele avançou, a face lívida, e deu-me um beijo estalado, molhado, bem embaixo da ponta da orelha direita. Terminada a provação, fez menção de partir em linha reta rumo à porta, em busca de uma existência menos sentimental, mas peguei-o pelo cinto falso, nas costas do paletó; prendi-o firmemente e perguntei:
– O que é que uma parede disse para outra?
Seu rosto iluminou-se – Te encontro na esquina! – respondeu num guincho, e saiu correndo da sala, possivelmente em meio a um ataque histérico.
Esmé continuava de pé, novamente com um tornozelo cruzado sobre o outro.
– Você tem certeza de que não vai esquecer de escrever aquele conto para mim? Não precisa ser exclusivamente para mim. Pode...
Falei que não havia a menor possibilidade de que eu esquecesse. Disse-lhe que nunca tinha escrito um conto para ninguém, mas parecia exatamente o momento oportuno para começar.
Ela concordou com a cabeça.
Procure escrever uma estória, extremamente sórdida e comovente – sugeriu – Você tem alguma experiência pessoal de miséria humana?
Respondi que, a bem dizer, não tinha experiência própria do assunto, mas que, de uma forma ou de outra, estava ficando cada dia mais familiarizado com ela – e faria o possível para corresponder às especificações. Trocamos um aperto de mãos.
– Não é uma pena que nós nos tenhamos encontrado em condições tão desfavoráveis?
Respondi que sim, que certamente era uma pena.
– Adeus – Esmé disse – Espero que você saia da guerra com suas faculdades mentais intactas.
Agradeci, disse mais algumas palavras e a acompanhei com o olhar. Foi embora vagarosamente, pensativamente, tocando a ponta dos cabelos para ver se já estavam secos.
*  *  *
Esta é a parte sórdida ou comovente da historia, e o cenário se modifica. Os atores também se modificam. Eu ainda estou nas imediações mas daqui por diante, por razões que não estou autorizado a revelar, disfarcei-me tão astuciosamente que nem mesmo o leitor mais atilado conseguira reconhecer-me.
Deviam ser umas dez e meia da noite em Gaufurt, na Bavária, algumas semanas depois do Dia da Vitoria. O Sargento X achava-se em seu quarto, no segundo andar da casa onde, antes mesmo do armistício, ele e outros nove soldados americanos haviam sido instalados. Estava sentado numa cadeira de armar, de madeira, diante de uma pequena escrivaninha bastante desarrumada. Lia com grande dificuldade um livro aberto à sua frente. A dificuldade corria por sua conta, e não por conta do livro. Embora os soldados que ocupavam o primeiro andar tivessem habitualmente acesso prévio aos livros enviados todo mês pelo Departamento de Serviços Especiais, X parecia sempre ficar com o livro que teria escolhido de qualquer maneira. Tratava-se, contudo, de um jovem que não saíra da guerra com todas as faculdades mentais intactas – e já há mais de uma hora vinha tendo que ler e reler cada paragrafo. Agora estava tendo que seguir o mesmo processo com cada frase. De repente fechou o livro, sem marcar a pagina. Por alguns instantes cobriu os olhos com a mão, protegendo-os do clarão rude da lâmpada descoberta que brilhava sobre a escrivaninha.
Tirou um cigarro do maço que havia em cima da mesa, acendendo-o com dedos que se entrechocaram de leve, incessantemente. Chegou o corpo um pouco para trás na cadeira e fumou sem sentir gosto algum. Ha semanas que vinha fumando um cigarro atrás do outro. Suas gengivas sangravam à mais leve pressão da ponta da língua, e ele raramente parava de repetir essa experiência; era um pequeno jogo que ele às vezes praticava durante horas a fio. Ficou sentado algum tempo, fumando e experimentando. Aí, de repente – da maneira já familiar e, como sempre, sem qualquer aviso prévio – teve a sensação de que sua mente se deslocava e ficava balançando, tal como bagagem mal assentada num porta malas de trem. Rapidamente fez o que vinha fazendo há bastante tempo para repor as coisas no lugar: apertou as mãos fortemente contra as têmporas. Manteve-se assim, teso, por alguns instantes. Seu cabelo precisava ser cortado e estava sujo. Tinha-o lavado três ou quatro vezes durante as duas semanas que passara no hospital em Frankfort-sobre-o-Meno, mas o cabelo tinha-se sujado novamente na longa e poeirenta viagem de jipe, ao voltar para Gaufurt. O Cabo Z, que fora busca-lo no hospital, ainda dirigia seu jipe como se estivesse em combate, com o para-brisas abaixado, houvesse ou não armistício. Havia milhares de soldados recém chegados na Alemanha. Dirigindo com o para-brisas arriado, Z queria mostrar que não era um deles, que de jeito nenhum era um desses filhos da mãe recém-chegados com as tropas especiais de ocupação.
Quando largou a cabeça, X começou a olhar fixamente a superfície da escrivaninha, onde se amontoavam pelo menos duas dúzias de cartas não abertas e pelo menos cinco ou seis pacotes fechados, todos endereçados a ele. Esticou o braço por cima do entulho e apanhou um livro que estava encostado à parede. Era um livro de Goebbels, intitulado Die Zeit Ohne Beispiel. Pertencera a uma mulher de trinta e oito anos, solteira, filha do casal que até algumas semanas antes vivera naquela casa. Ela fora membro do Partido nazista e, embora sua patente fosse baixa, era suficientemente alta para justificar, à luz dos regulamentos militares, sua inclusão na categoria de prisão automática. O próprio X a prendera. Agora, pela terceira vez desde que voltara do hospital naquele dia, X abriu o livro da mulher e leu a curta inscrição que havia na sobrecapa. Escritas a tinta, em alemão, numa caligrafia miúda e irremediavelmente sincera, lá estavam as palavras: “Deus meu, a vida é um inferno”. Nada as precedia ou a elas se seguia. Solitárias na página – e dentro do silencio doentio do quarto – as palavras pareciam adquirir a estatura de uma acusação incontestável, até mesmo clássica. X encarou fixamente a página durante vários minutos, tentando, contra todas as probabilidades, não se deixar absorver por ela. Então, com muito mais zelo do que empregara durante semanas em qualquer outra atividade, apanhou um toco de lápis e escreveu sobre a inscrição, em inglês:
“Pais e mestres, eu pergunto: o que é um inferno” Sustento que é a dor de não poder amar”.
Começou a escrever o nome de Dostoievski sob a citação, mas notou – com um temor que lhe percorreu todo o corpo – que suas palavras eram quase inteiramente ilegíveis. Fechou o livro.
Apanhou rapidamente outra coisa de cima da mesa, uma carta de seu irmão mais velho, que morava em Albany. A carta já estava sobre a mesa antes mesmo de sua ida para o hospital. Abriu o envelope, vagamente disposto a ler tudo de uma só vez, mas leu apenas a metade superior da primeira página. Parou depois das palavras: “Agora que a droga de guerra acabou você provavelmente tem tempo de sobra por aí, que tal mandar para os garotos uma baionetas ou umas suásticas...” Após rasgar a carta, olhou os pedacinhos na cesta de papeis. Viu então que não tinha reparado numa fotografia que viera junto com a carta. dava para distinguir os pés de alguém sobre um gramado qualquer.
Pôs os braços em cima da mesa e descansou a cabeça sobre eles. Sentia dores da cabeça aos pés, todas as zonas de dor aparentemente interdependentes. Mais parecia uma arvore de Natal, cujas luzinhas, ligadas por um único fio, apagam-se todas se uma única lâmpada estiver defeituosa.
*  *  *
A porta foi aberta violentamente, sem qualquer aviso prévio. X levantou a cabeça, olhou para trás e viu o Cabo Z, de pê, na soleira da porta. O Cabo Z fora seu companheiro constante desde o Dia D, ao longo de cinco campanhas da guerra. Morava no primeiro andar e normalmente subia para ver X quando tinha alguns boatos ou amolações para descarregar. Era um jovem corpulento e fotogênico, de vinte e quatro anos. Durante a guerra, uma revista de circulação nacional o fotografara na Floresta de Hürtgen; ele havia posado, com um pouco mais de presteza do que o exigiria a mera boa-educação, segurando em cada mão um peru do Dia de Ação de Graças.
– Tá escrevendo alguma carta? – perguntou a X. – Pomba, isso aqui tá parecendo até casa mal-assombrada – prosseguiu. Ele preferia sempre entrar num aposento onde a lâmpada do teto estivesse acessa.
X voltou-se na cadeira e convidou-o a entrar, desde que tomasse cuidado para não pisar no cachorro.
– Pisar em quê?
– No Alvin. Ele está bem embaixo do teu pé, Clay. Que tal acender a porcaria da luz?
Clay descobriu o interruptor, acendeu a luz e aí atravessou o pequeno aposento, do tamanho de um quarto de empregada; sentou na beirada da cama, encarando o anfitrião. De seus cabelos cor-de-tijolo, recém-penteados, escorria boa parte do volume de agua que ele julgava necessário para um penteado satisfatório. Um pente, com prendedor igual ao da caneta, formava uma protuberância já familiar no bolso direito de sua camisa verde-oliva. Em cima do bolso, do lado esquerdo, estavam pregadas a Insígnia da Infantaria de Combate (que tecnicamente, ele não estava autorizado a usar) a fita do teatro Europeu, com cinco estrelas de batalha de bronze (em vez de uma única de prata, equivalente às cinco de bronze) e a fita de serviço pré-Pearl Harbor. Suspirou profundamente e disse.
–Deus meu.
Não que isso significasse alguma coisa: era apenas parte da vida no exército. Tirou um maço de cigarros do bolso da camisa, catou um, guardou o maço e abotoou novamente o bolso. Enquanto fumava, percorreu o quarto com olhar vazio. Seus olhos fixaram-se finalmente no rádio.
– Ei – falou – vai ter um show infernal no radio daqui a pouquinho. Bob Hope, todo mundo.
X abrindo um novo maço de cigarros, disse que tinha acabado de desligar o rádio.
Inabalável, Clay ficou observando X enquanto ele tentava acender o cigarro.
– Poxa – comentou, com entusiasmo de bom espectador – você precisava ver a droga das tuas mãos. Pomba você tá com a maior tremedeira, sabe disso?
X conseguiu acender o cigarro e disse que Clay tinha um espirito de observação muito apurado.
– Fora de brincadeira. Quase desmaiei quando te vi no hospital. Você tava mais parecendo uma droga dum cadáver. Quantos quilos você emagreceu? Hem?
– Sei lá. Como é que andou tua correspondência enquanto eu estava fora? teve alguma noticia da Loretta?
Loretta era a namorada de Clay. Pensavam casar-se na primeira oportunidade favorável. Ela lhe escrevia com regularidade, perdida num paraíso de pontos de exclamação triplos e observações incorretas. Ao longo de toda a guerra, Clay havia lido para X as cartas de Loretta, por mais íntimas que fossem – aliás quanto mais íntimas, melhor. Já era um habito, depois de cada leitura, pedir a X que planejasse ou retocasse a carta de resposta, ou ainda que inserisse algumas palavras imponentes em francês ou alemão.
– Tive, chegou uma carta dela ontem. Tá lá embaixo, no meu quarto, depois te mostro – Clay respondeu, com indiferença. Empertigou-se na beirada da cama, prendeu a respiração e soltou um longo e sonoro arroto. Parecendo apenas parcialmente satisfeito com a façanha, voltou a descontrair-se.
– A droga do irmão dela foi dispensado da Marinha por causa do quadril. O safado tem aquele quadril estropiado.
Empertigou-se novamente e tentou outro arroto, mas com resultados medíocres. Um leve traço de atenção aflorou em seu rosto.
– Ei, antes que eu esqueça;: amanhã a gente tem que acordar as cinco da matina e ir até Hamburgo ou coisa parecida. Apanhar umas túnicas, Eisenhower para o destacamento todo.
X, encarando-o com hostilidade, declarou que não queria nenhuma túnica Eisenhower.
Clay pareceu surpreso, quase ofendido.
– Poxa, elas são um bocado bacanas! Tem uma pinta infernal. Por quê que você não quer?
– Por nada. Pra quê que a gente tem de acordar às cinco? A guerra acabou, pomba.
– Sei lá... A gente tem que estar de volta antes do almoço. Tem ai uns formulários novos que a gente tem de preencher antes do almoço. Perguntei ao Bulling por quê que a gente não podia preencher os troços hoje de noite. Ele tá com a droga dos papeis na mesa dele. Não quer abrir os envelopes agora, o filho da puta.
Os dois ficaram calados por alguns instantes, odiando o Bulling.
Clay repentinamente olhou para X com renovado interesse, mais agudo do que antes.
– Ei! Você sabe que a porcaria da tua bochecha tá pulando pra burro?
X disse que sabia muito bem e encobriu o tique com a mão.
Clay encarou-o por um momento e enfim disse, com bastante entusiasmo, como se fosse o portador de noticias excepcionalmente agradáveis:
– Escrevi para Loretta dizendo que você teve um esgotamento nervoso.
– É?
– Foi. Ela tá um bocado interessada nesse tipo de troço. Vai se formar em psicologia.
Clay deitou-se sobre acama, incluindo os sapatos.
– Sabe o quê ela disse? Que ninguém tem um esgotamento nervoso só por causa da guerra e tudo. Disse que você provavelmente jEa era meio desequilibrado a vida toda.
X cobriu os olhos com as mãos – a lâmpada sobre a cama parecia cegá-lo – e disse que o discernimento da Loretta era sempre uma maravilha.
Clay deu uma olhadela de relance.
– Escuta seu sacana. Ela entende mil vezes mais de psicologia do que você.
– Seria muito incomodo para você tirar estes pês fedorentos de cima da minha cama – X perguntou.
Clay deixou os pés onde estavam por alguns segundos, o tempo suficiente para demonstrar que quem mandava nos pes dele era ele, e aí, num giro, sentou-se novamente.
– Tou mesmo descendo de qualquer maneira. Tem um radio ligado no quarto do Walker – falou, mas sem levantar da cama. – Ei, eu agorinha mesmo táva contando lá embaixo, àquele sacana novo, o Bernstein. Lembra aquela vez que eu e você estávamos em Valognes e fomos bombardeados umas duas horas, e aquele filho da mãe daquele gato pulou no capô do jipe e eu dei um tiro nele, quando a gemente estava deitado naquele buraco? Lembra?
– Sei... Pomba, não começa com aquele negocio do gato outra vez Clay. Não quero saber nada daquilo.
– Não, o caso é que eu contei o troço pra Loretta. Ela e a turma toda de psicologia discutiram o negocio. Na aula e tudo. Até a droga do professor.
– Ótimo. Não me interessa saber, Clay.
– Não, sabe por quê que eu dei um tiro nele? Sabe o quê que a Loretta disse? Que eu estava temporariamente maluco. Fora de brincadeira. Por causa do bombardeio e tudo.
X passou os dedos uma vez pelos cabelos sujos e voltou a proteger os olhos da luz.
– Você não estava maluco coisa nenhuma. Estava apenas cumprindo o teu dever. Considerando as circunstancias, você matou aquele gatinho da maneira mais varonil possível.
Clay olhou-o com jeito desconfiado.
– Como é que é?
_ Aquele gato era um espião. Você tinha que dar um tiro nele. Era um anãozinho alemão muito esperto, vestido com um capote de pele barata. Por isso, não tinha nada de brutal, cruel ou sujo, ou até...
– Merda! – disse Clay, os lábios apertados, formando uma linha – Será que você não consegue nunca ser sincero?
X de repente sentiu-se nauseado, girou na cadeira e agarrou a cesta de papeis – bem na horinha. Quando voltou a endireitar-se e virou na direção de seu visitante, encontrou-o de pé, sem jeito, a meio caminho entre a cama e a porta. X começou a desculpar-se, mas mudou de ideia e estendeu o braço para apanhar um cigarro.
– Ei, vem lá pra baixo ouvir o Hope no radio – Clay disse, mantendo certa reserva, embora procurasse ser simpático. – Vai te fazer bem. No duro. 
– Vai você, Clay... Vou ficar olhando minha coleção de selos.
– É? Você tem uma coleção de selos? Não sabia que você...
– Só tou brincando.
Clay deu uns dois passos vagarosos em direção à porta.
– Sou capaz de dar um pulo até Ekstadt mais tarde. Tem uma festa lá. Deve ir até às duas, mais ou menos. Quer ir comigo?
– Não, obrigado. Vou treinar uns passos de dança aqui mesmo no quarto.
– Tá bom. Té manhã. Vê se te cuida agora tá? – disse ele, fechando a porta com estrondo. A porta abriu-se novamente um segundo depois. – Ei, posso enfiar uma carta para Loretta aqui por baixo da porta? Botei uns troços em alemão. Quer conferir para mim?
– Está bem. Agora me deixa em paz, pomba.
– Tá legal. Sabe o quê que minha mãe escreveu numa carta? Disse que gostou muito que eu e você ficamos juntos a guerra toda. No mesmo jipe e tudo. Disse que minhas cartas ficaram muito mais inteligentes depois que eu comecei a andar contigo.
X Levantou os olhos para ele e disse, com grande esforço: – Obrigado. Agradece a ela por mim.
_ Agradeço sim. Té manhã!
A porta foi novamente fechada com violência, dessa vez em definitivo.
*  *  *
X ficou sentado um tempão olhando para a porta; aí girou a cadeira, pondo-se de frente para a escrivaninha, e apanhou do chão sua máquina de escrever portátil. Abriu espaço para ela em meio ao entulho que cobria a mesa, empurrando para o lado a pilha desmoronada de cartas e pacotes. Imaginou que, se escrevesse uma carta para um velho amigo de Nova York, encontraria nisso uma terapia rápida, ainda que superficial. Mas não conseguiu enfiar direito o papel na máquina, de tanto que seus dedos tremiam. Baixou os braços por um instante e então tentou novamente, mas afinal amassou o papel.
Sabia que devia tirar a cesta de papeis do quarto, mas, em vez de tomar alguma providência, pôs os braços em cima da maquina e descansou a cabeça sobre eles, fechando os olhos.
Depois de alguns minutos latejantes, entreabriu os olhos e encontrou-se fitando um pequeno pacote, embrulhado em papel verde. Provavelmente tinha-se destacado da pilha na hora em que abrira espaço para a maquina de escrever. Notou que o pacote fora reenderaçado várias vezes, reconhecendo, só de um lado do pacote, pelo menos três de seus antigos números postais.
Abriu o pacote sem nenhum interesse, sem mesmo olhar o endereço do remetente. Queimou o barbante com a chama de um fósforo. Estava mais interessado em ver o barbante queimar até o fim do que em abrir o pacote, mas afinal o fez.
Dentro de uma caixa havia uma cartinha, escrita a tinta, cobrindo um pequeno objeto embrulhado em papel fino. Apanhou a carta e leu.
Rua........................., 17
...........................Devon
7 de Junho de 1944
Caro Sargento X
Espero que você me desculpe por se terem passado 38 dias antes que eu iniciasse nossa correspondência, mas tenho andado extremamente ocupada porque minha tia contraiu uma inflamação na garganta e quase faleceu; compreensivelmente, sobre meus ombros recaiu uma responsabilidade atrás da outra. Todavia, tenho pensado frequentemente em você e na tarde agradabilíssima que passamos juntos no dia 30 de abril de 1944, entre 3:45 e 4:25, caso você tenha esquecido.
Estamos todos tremendamente emocionados e exultantes com o Dia D e esperamos somente que ele apresse o término da guerra e de uma maneira de viver que é ridícula, para não dizer coisa pior. Charles e eu estamos ambos muito preocupados com você; esperamos que você não tenha participado do primeiro assalto à Península de Cotentin. Você participou do ataque? responda por favor, o mais depressa possível. Sinceras lembranças a sua esposa.
Um abraço de
ESMÉ
Ps. Estou tomando a liberdade de enviar-lhe meu relógio de pulso, que pode ficar com você enquanto durar o conflito. Não reparei se você estava usando relógio durante nosso breve encontro, mas este é extremamente resistente, à prova de água e à prova de choque, além de ter muitas outras qualidades, dentre as quais a de permitir que a pessoa saiba a que velocidade está andando, se assim o desejar. Tenho a certeza de que, nesses dias difíceis, você poderá usa-lo com mais proveito do que eu jamais poderia, e que você o aceitará como um talismã de boa sorte.
Charles, a quem estou ensinando a ler e escrever e que se tem revelado um principiante muitíssimo inteligente, deseja acrescentar algumas palavras. Por favor, escreva tão logo encontre tempo e disposição.

COMO VAI COMO VAI COMO VAI COMO VAI
COMO VAI COMO VAI COMO VAI COMO VAI
BEIJOS E ABRAÇOS
CHALES

Muito tempo passou antes que X pudesse por de lado o papel, e muito menos apanhar de dentro da caixa o relógio de pulso do pai de Esmé. Quando afinal o fez, viu que o vidro do mostrador se quebrara no trajeto. Teve vontade de saber se aquele fora o único estrago, mas não achou coragem para dar corda no relógio e certificar-se definitivamente. Ficou só sentado com o relógio na mão, por outro longo período de tempo. Então, repentinamente, quase em êxtase, sentiu-se sonolento.

Imagine um homem realmente sonolento, Esmé, e você verá que ele tem sempre alguma chance de se tornar outra vez um homem com todas as fac... com todas as f-a-c-u-l-d-a-d-e-s intactas.