sexta-feira, 26 de setembro de 2014

14 – O Contrabandista – J. Simões Lopes Neto

“O Contrabandista” um dos Contos Gauchescos de João Simões Lopes Neto, escritor gaúcho (1865-1916). Sua obra literária não foi extensa, mas traz a força da linguagem regional, que infelizmente o tempo e a modernidade gradativamente nos fazem esquecer.

Contrabandista
João Simões Lopes Neto
— Batia nos noventa anos o corpo magro mas sempre teso do Jango Jorge, um que foi capitão duma maloca de contrabandistas que fez cancha nos banhados do Ibirocaí.
Esse gaúcho desabotinado levou a existência inteira a cruzar os campos da fronteira: à luz do sol, no desmaiado da lua, na escuridão das noites, na cerração das madrugadas...; ainda que chovesse reiunos acolherados ou que ventasse como por alma de padre, nunca errou vau, nunca perdeu atalho, nunca desandou cruzada!...
Conhecia as querências, pelo faro: aqui era o cheiro do açouta-cavalo florescido, lá́ o dos trevais, o das guabirobas rasteiras, do capim-limão; pelo ouvido: aqui, cancha de graxains, lá os pastos que ensurdecem ou estalam no casco do cavalo; adiante, o chape-chape, noutro ponto, o areão. Até pelo gosto ele dizia a parada, porque sabia onde estavam águas salobres e águas leves, com sabor de barro ou sabendo a limo.
Tinha vindo das guerras do outro tempo; foi um dos que peleou na batalha de Ituzaingo; foi do esquadrão do general José de Abreu. E sempre que falava no Anjo da Vitória ainda tirava o chapéu, numa braçada larga, como se cumprimentasse alguém de muito respeito, numa distância muito longe.
Foi sempre um gaúcho quebralhão, e despilchado sempre, por ser muito de mãos abertas.
Se numa mesa de primeira ganhava uma ponchada de balastracas, reunia a gurizada da casa, fazia — pi! pi! pi! pi! — como pra galinhas e semeava as moedas, rindo-se do formigueiro que a miuçalha formava, catando as pratas no terreiro.
Gostava de sentar um laçaço num cachorro, mas desses laçaços de apanhar da paleta à virilha, e puxado a valer, tanto, que o bicho que o tomava, ficando entupido de dor, e lombeando-se, depois de disparar um pouco é que gritava, num — caim! caim! caim! — de desespero.
Outras vezes dava-me para armar uma jantarola, e sobre o fim do festo, quando já estava tudo meio entropigaitado, puxava por uma ponta da toalha e lá vinha, de tirão seco, toda a traquitanda dos pratos e copos e garrafas e restos de comidas e caldas dos doces!...
Depois garganteava a chuspa e largava as onças pras unhas do bolicheiro, que aproveitava o vento e le echaba cuentas de gran capitán...
Era um pagodista!
Aqui há poucos anos — coitado! — pousei no arranchamento dele. Casado ou doutro jeito, estava afamilhado. Não nos víamos desde muito tempo.
A dona da casa era uma mulher mocetona ainda, bem parecida e mui prazenteira; de filhos, uns três matalotes já emplumados e uma mocinha — pro caso, uma moça —, que era o — santo- antoninho-onde-te-porei! — daquela gente toda.
E era mesmo uma formosura; e prendada, mui habilidosa; tinha andado na escola e sabia botar os vestidos esquisitos das cidadãs da vila.
E noiva, casadeira, já era.
E deu o caso, que quando eu pousei, foi justo pelas vésperas do casamento; estavam esperando o noivo e o resto do enxoval dela.
O noivo chegou no outro dia; grande alegria; começaram os aprontamentos, e como me convidaram com gosto, fiquei pro festo.
O Jango Jorge saiu na madrugada seguinte, para ir buscar o tal enxoval da filha.
Aonde, não sei; parecia-me que aquilo devia ser feito em casa, à moda antiga, mas, como cada um manda no que é seu...
Fiquei verdeando, à espera, e fui dando um ajutório na matança dos leitões e no tiramento dos assados com couro.
Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde em antes da tomada das Missões.
Naqueles tempos o que se fazia era sem malícia, e mais por divertir e acoquinar as guardas do inimigo: uma partida de guascas montava a cavalo, entrava na Banda Oriental e arrebanhava uma ponta grande de eguariços, abanava o poncho e vinha a meia rédea; apartava-se a potrada e largava-se o resto; os de lá faziam conosco a mesma cousa; depois era com gados, que se tocava a trote e galope, abandonando os assoleados.
Isto se fazia por despique dos espanhóis e eles se pagavam desquitando-se do mesmo jeito.
Só se cuidava de negacear as guardas do Cerro Largo, em Santa Tecla, do Haedo... O mais, era várzea!
Depois veio a guerra das Missões; o governo começou a dar sesmarias e uns quantíssimos pesados foram-se arranchando por essas campanhas desertas. E cada um tinha que ser um rei pequeno... e aguentar-se com as balas, as lunares e os chifarotes que tinha em casa!...
Foi o tempo do manda-quem-pode!... E foi o tempo que o gaúcho, o seu cavalo e o seu facão, sozinhos, conquistaram e defenderam estes pagos!.
Quem governava aqui o continente era um chefe que se chamava o capitão-general; ele dava as sesmarias mas não garantia o pelego dos sesmeiros...
Vancê tome tenência e vá vendo como as cousas, por si mesmas, se explicam.
Naquela era, a pólvora era do el-rei nosso senhor e só por sua licença é que algum particular graúdo podia ter em casa um polvarim...
Também só na vila de Porto Alegre é que havia baralho de jogar, que eram feitos só na fábrica do rei nosso senhor, e havia fiscal, sim senhor, das cartas de jogar, e ninguém podia comprar senão dessas!
Por esses tempos antigos também o tal rei nosso senhor mandou botar pra fora os ourives da vila do Rio Grande e acabar com os lavrantes e prendistas dos outros lugares desta terra, só pra dar flux aos reinóis...
Agora imagine vancê se a gente lá de dentro podia andar com tantas etiquetas e pedindo louvado pra se defender, pra se divertir e pra luxar!... O tal rei nosso senhor, não se enxergava, mesmo!...
E logo com quem!... Com a gauchada!...
Vai então, os estancieiros iam em pessoa ou mandavam ao outro lado, nos espanhóis, buscar pólvora e balas, pras pederneiras, cartas de jogo e prendas de ouro pras mulheres e preparos de prata pros arreios... e ninguém pagava dízimos dessas cousas.
Às vezes lá voava pelos ares um cargueiro, com cangalhas e tudo, numa explosão da pólvora; doutras uma partida de milicianos saia de atravessado e tomava conta de tudo, a couce d’arma: isto foi ensinando a escaramuçar com os golas-de-couro.
Nesse serviço foram-se aficionando alguns gaúchos: recebiam as encomendas e pra aproveitar a monção e não ir com os cargueiros debalde, levavam baeta, que vinha do reino, e fumo em corda, que vinha da Baía, e algum porrão de canha. E faziam trocas, de elas por elas, quase.
Os paisanos das duas terras brigavam, mas os mercadores sempre se entendiam...
Isto veio mais ou menos assim até a guerra dos Farrapos; depois vieram as califórnias do Chico Pedro; depois a guerra do Rosas.
Aí inundou-se a fronteira da província de espanhóis e gringos emigrados.
A cousa então mudou de figura. A estrangeirada era mitrada, na regra, e foi quem ensinou a gente de cá a mergulhar e ficar de cabeça enxuta...; entrou nos homens a sedução de ganhar barato: bastava ser campeiro e destorcido. Depois, andava-se empandilhado, bem armado; podia-se às vezes dar um vareio nos milicos, ajustar contas com algum devedor de desaforos, aporrear algum subdelegado abelhudo...
Não se lidava com papéis nem contas de cousas: era só levantar os volumes, encangalhar, tocar e entregar!...
Quanta gauchagem leviana aparecia, encostava-se.
Rompeu a guerra do Paraguai.
O dinheiro do Brasil ficou muito caro: uma onça de ouro, que corria por trinta e dois, chegou a valer quarenta e seis mil réis!... Imagine o que a estrangeirada bolou nas contas!...
Começou-se a cargueirear de um tudo: panos, águas de cheiro, armas, minigâncias, remédios, o diabo a quatro!... Era só pedir por boca!
Apareceram também os mascates de campanha, com baús encangalhados e canastras, que passavam pra lá vazios e voltavam cheios, desovar aqui...
Polícia pouca, fronteira aberta, direitos de levar couro e cabelo e nas coletarias umas papeladas cheias de benzeduras e rabioscas...
Ora... ora!... Passar bem, paisano!... A semente grelou e está a árvore ramalhuda, que vancê sabe, do contrabando de hoje.
O Jango Jorge foi maioral nesses estropícios. Desde moço. Até a hora da morte. Eu vi.
Como disse, na madrugada véspera do casamento o Jango Jorge saiu para ir buscar o enxoval da filha.
Passou o dia; passou a noite.
No outro dia, que era o do casamento, até de tarde, nada.
Havia na casa uma gentama convidada; da vila, vizinhos, os padrinhos, autoridades, moçada. Havia de se dançar três dias!... Corria o amargo e copinhos de licor de butiá.
Roncavam cordeonas no fogão, violas na ramada, uma caixa de música na sala.
Quase ao entrar do sol a mesa estava posta, vergando ao peso dos pratos enfeitados.
A dona da casa, por certo traquejada nessas bolandinas do marido, estava sossegada, ao menos ao parecer.
Às vezes mandava um dos filhos ver se o pai aparecia, na volta da estrada, encoberta por uma restinga fechada de arvoredo.
Surgiu dum quarto o noivo, todo no trinque, de colarinho duro e casaco de rabo. Houve caçoadas, ditérios, elogios.
Só faltava a noiva; mas essa não podia aparecer, por falta do seu vestido branco, dos seus sapatos brancos, do seu véu branco, das suas flores de laranjeira, que o pai fora buscar e ainda não trouxera.
As moças riam-se; as senhoras velhas cochichavam.
Entardeceu.
Nisto correu voz que a noiva estava chorando: fizemos uma algazarra e ela — tão boazinha! — veio à porta do quarto, bem penteada, ainda num vestidinho de chita de andar em casa, e pôs-se a rir pra nós, pra mostrar que estava contente.
A rir, sim, rindo na boca, mas também a chorar lágrimas grandes, que rolavam devagar dos olhos pestanudos...
E rindo e chorando estava, sem saber porque... sem saber porquê, rindo e chorando, quando alguém gritou do terreiro:
— Aí vem o Jango Jorge, com mais gente!...
Foi um vozerio geral; a moça porém ficou, como estava, no quadro da porta, rindo e chorando, cada vez menos sem saber porquê... pois o pai estava chegando e o seu vestido branco, o seu véu, as suas flores de noiva...
Era já lusco-fusco. Pegaram a acender as luzes.
E nesse mesmo tempo parava no terreiro a comitiva; mas num silêncio, tudo.
E o mesmo silêncio foi fechando todas as bocas e abrindo todos os olhos.
Então vimos os da comitiva descerem de um cavalo o corpo entregue de um homem, ainda de pala enfiado...
Ninguém perguntou nada, ninguém informou de nada; todos entenderam tudo...; que a festa estava acabada e a tristeza começada...
Levou-se o corpo pra sala da mesa, para o sofá enjeitado, que ia ser o trono dos noivos. Então um dos chegados disse:
— A guarda nos deu em cima... tomou os cargueiros... E mataram o capitão, porque ele avançou sozinho pra mula ponteira e suspendeu um pacote que vinha solto... e ainda o amarrou no corpo... Aí foi que o crivaram de bala.... parado... Os ordinários!... Tivemos que brigar, pra tomar o corpo!
A sia-dona mãe da noiva levantou o balandrau do Jango Jorge e desamarrou o embrulho; e abriu-o.
Era o vestido branco da filha, os sapatos brancos, o véu branco, as flores de laranjeira...
Tudo numa plastada de sangue... tudo manchado de vermelho, toda a alvura daquelas cousas bonitas como que bordada de cobrado, num padrão esquisito, de feitios estrambólicos... como flores de cardo solferim esmagadas a casco de bagual!...

Então rompeu o choro na casa toda.


sexta-feira, 19 de setembro de 2014

13 – Os Mortos – J. Joyce

Neste conto Joyce descreve com extraordinária riqueza de detalhes a superfície de um encontro na sociedade de Dublin – e ao mesmo tempo provoca no leitor uma profunda reflexão sobre os vivos que agem como se estivessem mortos e alguns mortos que parecem nunca ter morrido.
Os mortos

James Joyce
Tradução: Hamilton Trevisan
Lily, a filha do zelador, estava literalmente esgotada. Mal acabava de conduzir um convidado à saleta atrás do escritório, ajudando-o a tirar o casaco, e a impaciente sineta da entrada tornava a soar, obrigando-a a precipitar-se pelo corredor vazio para receber um novo hóspede. Ainda bem que não precisava atender as mulheres. Senhorita Kate e senhorita Júlia tinham pensado nisso e convertido em vestiário o banheiro de cima. As duas, em grande agitação, riam e tagarelavam sem parar, revezando-se a todo momento no topo da escada, de onde perscrutavam a entrada e perguntavam a Lily quem havia chegado.
O baile anual organizado pelas Morkans era sempre um grande acontecimento. Todos os seus conhecidos compareciam: parentes, velhos amigos da família, membros do coro dirigido por Júlia, os alunos de Kate com idade suficiente e mesmo alguns alunos de Mary Jane. O baile nunca fracassara. Ano após ano, o mais remotamente que se pudesse recordar, realizava-se de forma esplêndida: a época em que Kate e Júlia, após a morte do irmão Pat, haviam deixado a casa de Stoney Battere levado Mary Jane, sua única sobrinha, para morar com elas no enorme e lúgubre sobrado na ilha de Usher, cujo andar superior alugaram do senhor Fulham, dono da casa de cereais do andar térreo. Isto se dera há mais de trinta anos. Mary Jane, naquele tempo uma garotinha, sustenta agora a casa como organista em Haddington Road. Estudara no Conservatório e, todos os anos, apresentava um concerto de seus alunos no Ancient Concert Rooms. A maioria deles provinha das melhores famílias que viviam em Kingstown e Dalkey. Apesar de idosas, as tias contribuíam com seu quinhão. Júlia, embora com os cabelos quase brancos, ainda era primeiro soprano da Igreja Adam and Eve e Kate, fraca demais para sair todo dia de casa, dava lições de música a principiantes, no velho piano quadrado da sala dos fundos. Lily cuidava da casa. Não obstante levassem vida modesta, gostavam de comer bem, de ter na mesa o que havia de melhor: lombo, chá de três xelins o pacote, e cerveja engarrafada de primeira qualidade. Lily raramente cometia erros e por isso vivia bem com as três patroas. Elas eram um pouco rabugentas, apenas isso. Contudo, uma coisa não admitiam: serem contestadas.
Tinham realmente muitas razões para estar agitadas naquela noite. Passava das nove e nem sinal de Gabriel com a esposa. Por outro lado, sentiam um medo terrível de que Freddy Malins aparecesse embriagado. Não queriam, por nada neste mundo, que as alunas de Mary Jane o vissem nesse estado, pois às vezes era difícil controlá-lo. Freddy sempre chegava tarde, mas não compreendiam por que Gabriel se atrasava. E era isso que as trazia à escada de dois em dois minutos para perguntar a Lily se Gabriel ou Freddy haviam chegado.
— Ó, senhor Conroy, boa-noite — disse Lily a Gabriel, ao abrir-lhe a porta. — A senhorita Kate e a senhorita Júlia pensavam que o senhor não viria mais.
Boa-noite, senhora Conroy.
— Compreendo que tenham se preocupado — disse Gabriel. — Mas elas esquecem que minha esposa leva três longas horas para se arrumar. Demorou-se sobre o capacho, limpando a neve das galochas, enquanto Lily acompanhava sua esposa até a escada, de onde gritou:
— Senhorita Kate, o senhor Conroy chegou.
Kate e Júlia desceram, hesitando nos degraus. Ambas beijaram a esposa de Gabriel, disseram que ela não morreria mais e perguntaram se Gabriel também viera.
— Estou aqui, tia Kate, pontual como o Correio — gritou este no escuro vestíbulo. — Podem subir, eu irei depois.
Continuou a rascar vigorosamente os pés, enquanto as três mulheres subiam a escada em direção ao quarto de vestir. A neve estendera delgado manto nos ombros de seu sobretudo e cobrira com brancas biqueiras a ponta de suas galochas. Ao abrir o casaco, os botões rangeram no pano endurecido pelo frio e o sopro gélido das ruas escapou das dobras e fendas de suas vestes.
— Está nevando outra vez, senhor Conroy? — perguntou Lily.
Ela precedeu-o a caminho da saleta, a fim de ajudá-lo a tirar o sobretudo. Gabriel sorriu ao ouvi-la pronunciar errado o seu nome e olhou para ela. Era uma jovem esbelta, em pleno amadurecimento, de rosto claro e cabelos cor de feno. A luz de gás tornava-a ainda mais pálida. Gabriel conhecera-a quando era apenas uma criança e costumava sentar-se no primeiro degrau da escada, embalando uma boneca de pano.
— Sim, Lily. E creio que vamos ter neve a noite inteira.
Gabriel olhou para o teto que tremia com o arrastar e bater de pés no andar de cima. Ouviu por um momento o som do piano e voltou-se novamente para a jovem que, com muito cuidado, dobrava e guardava o seu casaco no alto de uma prateleira.
— Diga-me Lily — perguntou em tom amável — você ainda vai à escola? — Ó, não, senhor! Deixei de estudar há mais de um ano.
— Suponho então — acrescentou Gabriel, brincando — que um dia desses iremos ao seu casamento?
A jovem olhou-o por sobre os ombros e respondeu com azedume:
— Os homens de hoje são todos uns aproveitadores bons de conversa.
Gabriel enrubesceu como se tivesse cometido um deslize e, sem olhar para ela, tirou as galochas e esfregou vigorosamente o cachecol nos sapatos de verniz.
Era um rapaz forte, bastante alto. O acentuado rubor de suas faces subia até a testa onde se atenuava em manchas informes e rosadas. Em seu rosto liso, cintilavam sem descanso as lentes e os aros dourados dos óculos que lhe cobriam os olhos delicados e inquietos. Os cabelos, negros e lustrosos, eram repartidos no meio e penteados numa longa curva atrás das orelhas, onde se enrolavam levemente no sulco deixado pelo chapéu.
Quando terminou de lustrar os sapatos, endireitou-se, ajustou o paletó em seu corpo robusto e, afobadamente, tirou uma moeda do bolso:
— Lily — disse ele, colocando a moeda em sua mão. — Estamos no Natal, não é? Tome... uma pequena...
Apressou-se em direção à porta.
— Oh não! — exclamou a moça, saindo atrás dele — Não posso aceitar.
— É Natal! É Natal! — disse Gabriel, quase correndo para a escada e agitando a mão num gesto de desculpa. Vendo-o subir a escada, Lily gritou:
— Então muito obrigada, senhor Conroy.
Gabriel esperou, junto à porta do salão, que a valsa terminasse, ouvindo vestidos roçarem contra ela e o rumor de pés que se arrastavam no assoalho. Estava ainda perturbado pela resposta brusca e rude da jovem. O incidente lançara uma sombra sobre ele, que agora tentava dissipá-la ajustando os punhos da camisa e o nó da gravata. Tirou um pedaço de papel do bolso do colete e leu os tópicos que anotara para o seu discurso. Continuava indeciso quanto à citação dos versos de Robert Browning, pois temia que estivesse acima da compreensão dos ouvintes. Talvez fossem melhor alguns versos de Shakespeare ou das Melodias de Thomas Moore. A forma grosseira como os homens batiam os pés e arrastavam os sapatos no chão recordou-lhe a diferença de cultura que os separava. Faria um papel ridículo, citando-lhes poesia que não podiam compreender. Pensariam que fazia alarde de sua superioridade. Erraria com eles como errara com a jovem lá embaixo. Escolhera um tom falso. O discurso todo era um equívoco, um completo fracasso.
Nesse instante, suas tias e sua esposa saíram do quarto de vestir. As duas velhotas, pequeninas, estavam vestidas com simplicidade. Tia Júlia era duas polegadas mais alta que a irmã. Seus cabelos, que cobriam a ponta das orelhas, eram grisalhos e seu rosto, largo e flácido, de um cinzento carregado de sombras.
Embora de compleição robusta e ereta, o olhar vago e a boca entreaberta davam-lhe a aparência de uma mulher que não sabia onde estava nem para onde ia.
Tia Kate era mais vivaz. Seu rosto, mais saudável que o da irmã, era só rugas e sulcos, lembrando uma maçã seca e murcha. Mas os cabelos, penteados deforma antiga, conservavam a cor de nozes maduras. As duas beijaram-no efusivamente. Ele era o sobrinho preferido, filho da falecida irmã mais velha, Ellen, que se casara com T. J. Conroy do Porto e das Docas.
— Gretta falou que você pretende não voltar a Monkstown esta noite — disse tia Kate.
— É verdade — respondeu Gabriel voltando-se para a esposa — Basta o que nos aconteceu no ano passado, não é? Tia Kate não se lembra do resfriado que Gretta apanhou? As janelas batendo o tempo todo e o vento oeste soprando dentro do carro, depois que passamos Merrion. Não foi nada divertido. Gretta apanhou um terrível resfriado. Tia Kate franzia a testa e balançava a cabeça a cada palavra:
— Tem razão, Gabriel. Tem razão. Todo cuidado é pouco. — Ela não pensa assim — disse Gabriel.
— Iria para casa a pé no meio da neve se a deixassem. Gretta sorriu.
— Não acredite no que ele diz, tia Kate. É um terrível maçante: abajur verde para proteger os olhos de Tom à noite, ginástica com halteres pela manhã, sopa de aveia para Eva. Pobre menina! Já não pode nem ver essa comida... E vocês não imaginam o que ele me obriga usar agora! Rompeu num riso sonoro e fitou o marido, cujos olhos admirados e felizes percorreram-lhe o corpo e fixaram-se em seu rosto. As duas velhas riram gostosamente, pois a solicitude de Gabriel era velho motivo de brincadeira entre elas.
— Galochas! — exclamou Gretta — É a última moda. Sempre que o chão estiver úmido tenho de calçar galochas. Queria que eu as pusesse esta noite! Mas isso ele não conseguiria. Logo vai me comprar um escafandro...
Gabriel sorriu contrafeito e alisou a gravata para reassegurar-se, enquanto tia Kate quase se dobrava ao meio de tanto rir. Mas tia Júlia logo ficou séria e seus olhos tristonhos voltaram- se para o rosto do sobrinho.
— Que são galochas, Gabriel? — perguntou ela.
— Galochas! — exclamou a irmã. — Meu Deus, não sabe o que são galochas? É para calçar sobre... sobre os sapatos, não é, Gretta?
— Isso mesmo, tia Kate. Uma espécie de guta-percha. Por enquanto temos dois pares. Gabriel diz que todo mundo está usando no Continente.
— Oh, no Continente — murmurou tia Júlia, meneando a cabeça. Gabriel enrugou a testa e disse, como se estivesse um pouco agastado:
— Não é nada de extraordinário. Gretta acha engraçado porque a palavra a faz lembrar-se dos bufões.
— Diga-me, Gabriel — interveio tia Kate com muito tato — Por certo já arranjou acomodação. Gretta estava dizendo...
— Tudo está arrumado — respondeu Gabriel. — Reservei um quarto no Gresham.

— Ótimo. É o melhor que podia fazer. E as crianças? Gretta não fica preocupada?

— Ora, tia Kate — disse Gretta — só por uma noite! Além disso Bessie cuidará delas.
— Ótimo — repetia tia Kate. — É um sossego a gente ter uma moça como ela em quem se pode confiar! Lily, por exemplo, não sei o que está acontecendo com ela. Não é a mesma menina de antes.
Gabriel ia arriscar algumas perguntas a esse respeito, mas tia Kate calara-se repentinamente para olhar a irmã que descera alguns degraus na escada e curvava-se na balaustrada.
— Mas onde é que Júlia vai? Exclamou, em tom quase irritado. — Júlia! Júlia! Onde é que você vai?
Júlia que descera quase um lance de escada, retornou e anunciou calmamente:
— Freddy chegou. Nesse momento, o rumor de aplausos e o floreio final do pianista anunciaram que a valsa terminara. A porta do salão abriu-se e alguns pares saíram. Tia Kate puxou apressadamente Gabriel para o lado e murmurou-lhe ao ouvido:
— Por favor, corra lá embaixo e veja se Freddy está bem. Não o deixe subir se estiver embriagado. Tenho certeza de que está bêbado, tenho certeza.
Gabriel aproximou-se da escada e ficou escutando. Duas conversavam na saleta. Reconheceu então a risada de Freddy Malins. Desceu a escada ruidosamente.
— É um alívio tê-lo conosco — disse tia Kate à senhora Conroy. — Sinto-me sempre mais tranquila quando Gabriel está aqui... Júlia, a senhorita Daly e a senhorita Power gostariam de tomar um refresco. Obrigada pela linda valsa, senhorita Daly. A execução foi maravilhosa.
Um homem alto e moreno, de rosto enrugado, bigode rijo e grisalho, que passava por ali com seu par, perguntou:
— E nós, senhorita Morkan, podemos também nos refrescar?

— Júlia — disse Kate prontamente — leve também o senhor Browne e a senhorita Furlong.
— Sou o servo dessas damas — disse Browne, sorrindo com todas as rugas, até eriçar os pelos do bigode. — Sabe por que elas gostam tanto de mim, senhorita Morkan...
Não terminou a frase. Vendo que tia Kate estava longe demais para ouvi-lo, conduziu as três jovens para a sala dos fundos. O meio da sala estava ocupado por duas mesas unidas, sobre as quais tia Júlia e o zelador estendiam uma larga toalha. No guarda-louças empilhavam-se pratos, travessas, copos e talheres.
O piano quadrado servia de prateleira para os doces e salgados. No canto, em pé junto a um pequeno bufê, dois rapazes tomavam refrescos.
Browne dirigiu para lá o seu séquito e convidou-as a beberem um ponche, especial para senhoras, quente, forte e açucarado. Como responderam que não tomavam nada forte, abriu três garrafas de limonada. Pediu então a um dos rapazes que se afastasse e, apanhando a garrafa de uísque, despejou uma dose reforçada.
Os rapazes olhavam-no com respeito, enquanto ele provava a bebida.
— Que Deus me proteja — comentou sorrindo. — São ordens do médico.
Seu rosto encarquilhado abriu-se num sorriso mais amplo e as três jovens responderam ao gracejo com um riso musical, sacudindo nervosamente os ombros e balançando o corpo para a frente e para trás. A mais arrojada disse-lhe:
— Ora, senhor Browne, estou certa de que o médico nunca lhe receitou tal coisa. Browne tomou outro gole e respondeu com desajeitada mímica:
— Bem, você sabe. Sou como a famosa Madame Cassidy, que afirmam ter dito o seguinte: Por favor, Mary Grimes, se eu não tomar, faça-me tomar, pois sinto que quero tomar.
Seu rosto vermelho aproximara-se com excessiva intimidade e a voz descambara para o rude sotaque de Dublin, de forma que as moças, instintivamente, receberam em silêncio suas palavras. Senhorita Furlong, aluna de Mary Jane, perguntou à senhorita Daly qual o nome da linda valsa que ela tocara e Browne, vendo-se ignorado, voltou-se para os rapazes que se mostravam mais atenciosos. Uma jovem muito corada, de vestido lilás, entrou na sala batendo freneticamente as mãos e gritando:
— Quadrilha! Quadrilha!
Logo atrás, apareceu tia Kate:
— Dois cavalheiros e três damas, Mary Jane!
— Oh! Aqui estão o senhor Bergin e o senhor Kerrigan — disse Mary Jane. — Senhor Kerrigan, quer acompanhar a senhorita Power? Senhorita Furlong, posso arranjar-lhe um par? Senhor Bergin. Pronto, agora está completo.
— Três damas, Mary Jane — insistiu tia Kate.
Os dois rapazes perguntaram às moças se podiam ter a honra e Mary Jane voltou-se para a senhorita Daly.
— Senhorita Daly! Você está sendo muito gentil. Depois de tocar duas valsas! Mas há tão poucas mulheres esta noite.

— Não estou cansada, senhorita Morkan. Não se preocupe.
— Mas tenho um par encantador para você. Senhor Bartell D'Arcy, o tenor. Mais tarde, eu o farei cantar para nós. Toda Dublin está delirando por ele.
— Uma voz maravilhosa, maravilhosa — disse tia Kate.
O piano começara duas vezes o prelúdio para a primeira figura e Mary Jane apressou-se em levar os pares. Mal haviam saído e tia Júlia entrou preocupada na sala, olhando para trás.
— Que aconteceu? — perguntou tia Kate preocupada — Quem está aí?
Júlia, que carregava uma pilha de guardanapos, voltou-se para a irmã e disse, como se a pergunta a tivesse surpreendido:
— É Freddy, Gabriel está com ele.
Com efeito, logo atrás dela vinha Gabriel dirigindo Freddy Malins. Este último, um jovem de quase quarenta anos, da mesma altura e tamanho de Gabriel, tinha ombros bastante largos. Seu rosto era gordo e pálido, corado apenas nos lobos carnudos da orelha e nas largas narinas. Tinha feições grosseiras: nariz chato, testa curva e lugidia, lábios grossos e úmidos. Seu olhar pesado e os cabelos em desordem davam-lhe um ar sonolento. Ria alto e francamente da história que acabara de contar na escada a Gabriel, esfregando o olho esquerdo com o punho.
— Boa noite, Freddy — disse tia Kate.

Freddy respondeu ao cumprimento de um modo que pareceu pouco cerimonioso devido sua crônica rouquidão e, vendo que Browne lhe arreganhava os dentes lá no canto, atravessou a sala com passos incertos e começou a repetir em voz baixa a história que contara a Gabriel.
— Ele não está muito ruim, está? — perguntou tia Kate.

Gabriel tinha o semblante carregado, mas recompôs-se imediatamente e respondeu: — Oh, não! Quase nem se nota.
— Ele não é mesmo terrível? — disse ela. — Pensar que a mãe o fez jurar que não iria beber na passagem de ano. Venha, Gabriel. Vamos para o salão.
Antes de deixar a sala em companhia de Gabriel, fez um sinal com o dedo para Browne, que balançou a cabeça em resposta e disse para Freddy, quando a viu sair:
— Agora, Freddy, vou preparar-lhe um bom copo de limonada, para reanimá-lo.
— Freddy, que chegava ao clímax da história, recusou o oferecimento com certa irritação. Browne, porém, distraindo-lhe a atenção para um desarranjo na roupa, encheu o copo de limonada e entregou-o a Freddy. Sua mão esquerda aceitou-o mecanicamente, enquanto a direita, também mecanicamente, ocupava-se em ajustar a roupa. Browne, cujo rosto mais uma vez se contraíra numa expressão divertida, preparou para si um copo de uísque, enquanto Freddy, antes mesmo de atingir o desfecho da história, explodia num acesso de riso e, colocando o copo de limonada, intacto e transbordante, sobre o bufê, começou a esfregar o olho esquerdo, repetindo a última frase, tanto quanto a tosse e o riso lhe permitiam.
Gabriel não conseguia prestar atenção à peça clássica que Mary Jane executava, cheia de escalas e passagens difíceis, para a sala silenciosa. Gostava de música, mas a peça não tinha melodia para ele e duvidava que tivesse para os outros, embora todos houvessem implorado a Mary Jane que tocasse alguma coisa.
Quatro rapazes, que ao som do piano tinham vindo do bufê até a porta, afastaram-se silenciosamente, dois de cada vez, após alguns minutos. As únicas que pareciam interessadas eram a própria Mary Jane, cujas mãos corriam pelo teclado ou erguiam-se dele num gesto de sacerdotisa em súbita imprecação, e tia Kate, sentada a seu lado para virar as páginas.
Os olhos de Gabriel, feridos pelo reflexo do lustre no assoalho encerado, desviaram-se para a parede atrás do piano. Havia ali uma gravura da cena do balcão de Romeu e Julieta e, ao lado dela, um quadro com os dois principezinhos assassinados na Torre, que tia Júlia bordara com lã vermelha, azul e marrom, em seu tempo de menina. Elas certamente haviam aprendido esse gênero de trabalho durante um ano inteiro, na escola que frequentaram. Sua mãe também bordara, como presente de aniversário pequenas cabeças de raposa, num colete de moire púrpura, forrado de cetim marrom e com botões em forma de amor. Era estranho que ela não tivesse talento para música, embora tia Kate costumasse chamá-la o cérebro da família Morkan. Tanto Kate quanto Júlia haviam sempre deixado transparecer certo orgulho pela irmã grave e imponente. Havia um retrato dela diante do espelho do aparador. Estava com um livro aberto sobre os joelhos e mostrava alguma coisa a Constantine que, vestido à marinheira, sentara-se aos seus pés. Ela mesma escolhera os nomes dos filhos, pois era muito ciosa do decoro da vida familiar. Graças a ela, Constantine era hoje pároco de Balbriggan e Gabriel diplomara-se na Universidade Real. Uma sombra percorreu-lhe o rosto ao lembra-se da obstinada oposição que a mãe fizera ao seu casamento. Certas frases ferinas machucavam-no ainda na memória. Ela afirmara, certa vez, ser Gretta uma provinciana interesseira e isso não era verdade. Gretta é quem cuidara dela durante a longa e fatal enfermidade, em Monkstown.
Sabia que Mary Jane estava para terminar, pois tocava novamente a melodia inicial, com longos floreios entre os compassos e, enquanto esperava pelo fim, sentiu que o ressentimento deixava seu coração. A peça terminou com harpejo de oitavas agudas e uma fortíssima oitava final no grave.
Estrondosos aplausos felicitaram Mary Jane que, envergonhada, enrolou nervosamente a partitura e fugiu da sala. Os aplausos mais vigorosos vinham dos rapazes que tinham se afastado da porta no início da peça e retornado quando o piano silenciara.
Organizou-se nova dança. Gabriel encontrou-se ao lado de Molly Ivors, jovem loquaz e desembaraçada, de rosto sardento e olhos castanhos. Seu vestido não era decotado e o largo broche espetado no colo continha o emblema e a divisa irlandesa. Ao tomarem seus lugares, para a dança, ela afirmou inopinadamente:
— Tenho uma conta a ajustar com você.
— Comigo?
Ela balançou a cabeça com ar grave.
— O que é? — perguntou Gabriel, sorrindo de seus modos solenes.
— Quem é G. C.? — indagou a jovem encarando-o de frente.
Gabriel enrubesceu e ia franzir a testa corno se não tivesse compreendido, quando ela prosseguiu:
— Oh, meu ingênuo farsante! Descobri que você escreve para o Daily Express. Não se envergonha disso?
— Por que haveria de me envergonhar? — perguntou Gabriel, piscando os olhos e tentando sorrir.
— Bem. Estou envergonhada de você — disse ela com franqueza. — Pensar que escreve para um jornal como esse. Não sabia que era anglófilo.
Gabriel estava perplexo. Era verdade que escrevia a resenha literária semanal do Daily Express, recebendo para isso quinze xelins. Mas, por certo, isso não fazia dele um traidor. Os livros que recebia para comentar davam-lhe muito mais prazer que o ínfimo cheque. Gostava de sentir as capas e virar as páginas dos livros acabados de imprimir. Quase todo dia, após as aulas que dava no colégio, costumava visitar os vendedores de livros usados da zona do cais: o Hickey, em Barchelor's Walk; o Webb's ou o Massey no Aston's Quay; o O'Clohissey's, numa travessa. Não sabia como enfrentar aquele ataque. Queria dizer que a literatura estava acima da política, mas eram amigos há muitos e muitos anos e suas carreiras — primeiro na Universidade, depois como professores— tinham sido paralelas: não poderia arriscar uma frase grandiosa com ela. Continuou a piscar os olhos, esforçando-se em sorrir e murmurou desajeitadamente que não via nada de político no fato de escrever resenhas literárias.
Ao chegar o momento de trocarem de par, Gabriel ainda estava confuso e distante. Ela apertou calidamente sua mão e sussurrou-lhe em tom suave e amistoso:
— Eu estava brincando. Vamos, é nossa vez.
Quando tornaram a ficar juntos, Molly começou a falar sobre a questão da Universidade e Gabriel sentiu-se mais à vontade. Um amigo mostrara-lhe o artigo sobre Browning. Eis como o segredo fora descoberto. Mas apreciara muito o que ele escrevera. Depois, bruscamente perguntou:
Não gostaria de participar de uma excursão às ilhas de Aran, no próximo verão, senhor Conroy?
Vamos passar lá um mês inteiro. Será magnífico sentir-se em pleno Atlântico. Você deve ir. O senhor Cancy irá. O senhor Kilkelly e Kathleen Kearney também.
Seria ótimo para Gretta, se ela também fosse. Ela é de Connacht, não?
— A família dela é — respondeu Gabriel secamente.
— Você virá, não? — insistiu Molly, pousando a mão tépida em seu braço.
— Acontece que combinei ir...
— Para onde?
— Bem, você sabe, todo ano faço uma viagem de bicicleta com alguns amigos e...
— Mas para onde? — repetiu Molly.
— Geralmente vamos à França ou à Bélgica... ou então à Alemanha — disse Gabriel embaraçado.
— E por que para a França ou para a Bélgica, em vez de visitar a nossa pátria?
— Bem, em parte para manter contato com as outras línguas, em parte para mudar de ambiente.
— E não precisa manter contato com sua própria língua, o irlandês?
— Bem, se o motivo é esse — respondeu Gabriel — o irlandês não é a minha língua.
Os pares mais próximos tinham se voltado para ouvir o interrogatório. Gabriel olhava preocupado para os lados, tentando conservar o bom humor sob aquela provação, que fazia o rubor invadir-lhe a testa.
— E não tem sua própria terra para visitar — prosseguiu Molly — da qual não conhece nada? Seu próprio povo, seu próprio país?
— Para ser franco — respondeu Gabriel — estou farto de meu país. Farto!
— Por quê?
Gabriel não respondeu. A última frase deixara-o exaltado. Chegara a vez deles fazerem "a visita" e como Gabriel permanecia em silêncio, Molly disse energicamente:
— Claro. Não tem resposta.
Gabriel procurou disfarçar sua agitação participando da dança com grande entusiasmo. Evitava o olhar de Molly, pois percebera uma expressão amarga em seu rosto. Mas quando suas fileiras tornaram a se encontrar, Gabriel, surpreso, sentiu que lhe apertavam firmemente a mão. Molly fitou-o zombeteiramente até fazê-lo sorrir. Ao reiniciarem os movimentos, ela ergueu-se na ponta dos pés e sussurrou:
— Inglês!
Quando a quadrilha terminou, Gabriel retirou-se para um canto afastado da sala, onde a mãe de Malins estava sentada. Era uma mulher gorda e doente, de cabelos brancos. Tinha voz rouca como a do filho e gaguejava ligeiramente. Haviam-lhe dito que Freddy chegara e que estava quase sóbrio, Gabriel perguntou-lhe se fizera boa travessia. Ela morava em Glasgow, com a filha casada e visitava Dublin uma vez por ano. Respondeu sossegadamente que fizera ótima viagem e que o capitão do barco fora muito gentil. Falou também da bela casa que a filha possuía e de todos os amigos que tinham em Glasgow. Enquanto ela tagarelava, Gabriel procurava banir da mente o incidente com a senhorita Ivors. A jovem, ou mulher, ou o que quer que fosse, era sem dúvida uma exaltada. Afinal, para tudo existe momento adequado. Talvez não devesse ter respondido daquela maneira. Mas não tinha direito de chamá-lo de inglês diante dos outros, nem mesmo brincando. Tentara ridicularizá-lo na presença de todo mundo, provocando-o e encarando-o com seus olhos de coelho.
Viu sua esposa aproximar-se por entre os pares que dançavam uma valsa. Quando o alcançou, ela murmurou ao seu ouvido:
— Tia Kate quer saber se você vai trinchar o ganso como sempre. A senhorita Daly cortará o pernil e eu cuidarei do pudim.
— Está bem — disse Gabriel.
— Logo que terminar a valsa, ela mandará os mais jovens entrarem. Assim teremos a mesa só para nós.
— Esteve dançando?

— Claro. Não me viu? Que discussão foi aquela com Molly?
— Nada. Por quê? Ela falou alguma coisa?
— Por alto. Estou tentando conseguir que o senhor D'Arcy cante. Ele é muito convencido, me parece.
— Não foi discussão — disse Gabriel irritado. — Apenas queria que eu fosse a uma viagem pelo oeste da Irlanda e respondi que não iria.
Gretta deu um pequeno salto para trás e bateu as mãos entusiasmada:
— Ô, vamos, Gabriel! Adoraria rever Galway.

— Você poderá ir, se quiser —
respondeu Gabriel friamente.
Ela fitou-o por um momento e, voltando-se para a mãe de Freddy, disse:
— Eis um marido gentil, senhora Malins.
Afastou-se em seguida, abrindo caminho através do salão e a senhora Malins, sem se dar conta da interrupção, voltou a falar das belas paisagens e dos lugares pitorescos que havia na Escócia. O genro levava-as todos os anos aos lagos e costumavam pescar. O genro era um magnífico pescador. Certa vez apanhara um peixe enorme e o dono do hotel preparara-o para o jantar.
Gabriel não a ouvia. Aproximava-se o momento da ceia e novamente o preocupavam as citações do discurso. Ao perceber Freddy Malins atravessando o salão para falar com a mãe, cedeu-lhe a cadeira e retirou-se para perto da janela O salão estava quase vazio e da sala dos fundos vinha o tilintar de pratos e talheres.
Os que permaneciam no salão pareciam fatigados pela dança e conversavam calmamente em pequenos grupos. Gabriel tamborilou os dedos trêmulos na vidraça gelada. Como seria agradável caminhar sozinho à beira do rio e depois atravessar o parque! A neve devia ter coberto os galhos das árvores e formado uma capa cintilante sobre o monumento de Wellington. Seria muito melhor estar lá fora do que naquele jantar.
Relembrou os tópicos do discurso: hospitalidade irlandesa, tristes recordações, as três Graças, Paris, a citação de Browning. Repetiu consigo mesmo a frase que escrevera no artigo: "Sente-se estar ouvindo uma música torturada pelo pensamento". Molly Ivors elogiara-o.
Teria sido sincera? Será que apesar de todo seu proselitismo, ela teria uma verdadeira vida interior? Até aquela noite, nunca existira animosidade entre eles. Irritava-o pensar que iria encontrá-la à mesa do jantar e que ela o estaria observando com seu olhar crítico e zombeteiro, enquanto discursasse.
Talvez nem se importasse em vê-lo fracassar. Mas uma ideia devolveu-lhe a coragem. Iria dizer, referindo-se à tia Kate e tia Júlia: "Senhoras e senhores. A geração que agora declina pode ter tido defeitos, mas de minha parte penso que foi pródiga em hospitalidade, bom humor e compreensão humana, qualidades que à nova geração, muito séria e intelectualizada, parecem faltar". Muito bem. Esta seria para Molly Ivors, Não importava que as tias fossem duas velhotas ignorantes.
Um rumor de vozes chamou-lhe a atenção. Browne entrava no salão, escoltando galantemente tia Júlia que, apoiada em seu braço, sorria e baixava a cabeça envergonhada. Aplausos irregulares acompanharam-na até o piano, cessando pouco a pouco quando Mary Jane sentou-se na banqueta e ela voltou-se para os convidados, a fim de melhor dirigir-lhes a voz. Gabriel reconheceu o prelúdio. Era uma velha canção de tia Júlia — Pronta para as Bodas. A voz, de tom forte e claro, interpretou com grande talento os trinados que enfeitavam a melodia e, embora cantasse muito rápido, ela não perdia uma única variação tonal. Acompanhar a voz, sem olhar para a cantora, era deixar-se levar num voo leve e seguro. Ao fim da canção, Gabriel juntou-se entusiasticamente aos aplausos que irromperam sonoros, inclusive da sala dos fundos. Soaram tão sinceros que um rubor se apossou do rosto de tia Júlia enquanto ela se curvava para guardar na estante o velho livro de partituras, encadernado em couro e com suas iniciais gravadas na capa. Freddy Malins, que pendera a cabeça para o lado, a fim de ouvi-la melhor, continuou a aplaudir quando todos haviam cessado e falava animadamente com a mãe, que meneava a cabeça em aprovação. Finalmente, quando já não podia mais aplaudir, levantou-se e correu ao encontro de tia Júlia, agarrando-lhe a mão e agitando-a quando as palavras lhe faltavam ou a rouquidão o impedia de falar.
— Estava justamente dizendo à mamãe que nunca a vi cantar tão bem. Nunca! Não! Nunca sua voz me pareceu tão boa quanto esta noite. Acredita em mim? É a verdade. Palavra que é verdade. Nunca ouvi sua voz tão fresca, tão clara... Nunca! Tua Júlia sorriu satisfeita e murmurou alguma coisa sobre elogios, desvencilhando-se das mãos de Freddy. Browne apontou-a com um gesto largo e disse aos que estavam por perto, à maneira de empresário apresentando um prodígio à plateia:
— Senhorita Júlia Morkan. Minha última descoberta.
Ria gostosamente de sua própria tirada, quando Freddy voltou-se para ele:
— Bem, Browne, não sei se está falando sério, mas sua descoberta não poderia ser melhor. O que posso dizer é que nunca a ouvi cantar tão bem desde que venho aqui. E isto é a pura verdade.
— Nem eu — concordou Browne. — Acho que sua voz melhorou muito. Tia Júlia encolheu os ombros e disse com tímido orgulho:
— Há trinta anos minha voz já não era tão má.
Adverti muitas vezes — interveio tia Kate — que ela estava se perdendo naquele coral. Mas nunca ouvia meus conselhos.
Olhou em volta, como que apelando ao bom senso de todos contra a criança desobediente, enquanto tia Júlia fitava o ar, um vago sorriso de recordação brincando em seu rosto.
— Não — prosseguiu tia Kate. — Nunca atendeu a ninguém. Matando-se naquele coral, dia e noite, noite e dia. Às seis da manhã em pleno dia de Natal! E para quê?
— Para louvar a Deus, não é, tia Kate? — perguntou Mary Jane sorrindo e fazendo girar a banqueta do piano.
Tia Kate virou-se indignada para ela:
— Sei perfeitamente que se deve louvar a Deus, Mary Jane, mas não acho muito louvável para o Papa despedir as mulheres que devotaram a vida inteira ao coral e substituí-las por molecotes insignificantes Creio que fez isso para o bem da Igreja. Mas não é justo, Mary Jane, não é direito.
Tinha se exaltado e prosseguiria na defesa da irmã, pois o assunto lhe era caro, mas Mary Jane, vendo que as moças e rapazes voltavam ao salão, procurou acalmá-la.
— Vamos, titia, a senhora está criticando a Igreja perante o senhor Browne que é de outra religião.
Tia Kate voltou-se para Browne, que sorria da alusão feita à sua crença e disse precipitadamente:
— Não estou dizendo que o Papa esteja errado. Sou apenas uma velha tola e não ousaria fazer tal coisa. Mas existem a polidez e a gratidão. Se eu estivesse no lugar de Júlia, teria dito ao próprio Padre Heakey...
— E além do mais, titia — acrescentou Mary Jane — estamos todos famintos e a fome nos torna briguentos.
— A sede também — emendou Browne.
Diante da porta do salão, no patamar, Gabriel encontrou sua esposa e Mary Jane tentando persuadir Molly Ivors a ficar para a ceia. Mas a senhorita Ivors, que pusera o chapéu e abotoava o casaco, não se deixava convencer. Não tinha fome alguma e passara da hora de voltar para casa.
— Mas será apenas por dez minutos, Molly — disse Gretta. — Não irá atrasá-la muito.
— Um pratinho só — disse Mary
Jane. — Para se refazer da dança.

— Não, não posso mesmo.
— Temo que não tenha se divertido — disse Mary Jane desapontada.
— Claro que me diverti — respondeu Molly. — Mas realmente preciso ir embora.
— E como vai para casa? — perguntou-lhe a esposa de Gabriel.
— Oh, são apenas dois passos daqui.
Gabriel hesitou um momento.
— Se me permite, senhorita Ivors, acompanhá-la-ei até sua casa. Se é que precisa mesmo ir.
Ela porém afastou-se, dizendo:
— De forma alguma! Pelo amor de Deus, vão para o seu jantar e não se importem comigo. Sei muito bem cuidar de mim mesma.
— Mas que ridícula você está sendo, Molly — disse Gretta com franqueza.
— Beannacht libh! — gritou Molly lvors, rindo, enquanto descia a escada correndo.
Mary Jane seguiu-a com o olhar espantado e Gretta curvou-se na balaustrada para certificar-se de que ela se fora. Gabriel perguntava-se se não teria sido ele a causa daquela repentina saída. Entretanto, Molly não parecia mal-humorada; saíra rindo. Ficou olhando pensativo para a escada. Nesse instante, tia Kate surgiu da sala-de-jantar, torcendo as mãos em desespero.
— Onde está Gabriel? Onde está ele afinal? Todo mundo esperando lá dentro e ninguém para trinchar o ganso.
— Estou aqui, tia Kate! Pronto para trinchar um bando de gansos se for preciso.
Um ganso gordo e tostado jazia numa ponta da mesa e, na extremidade oposta, num leito de papel enrugado e enfeitado com ramos de salsa, jazia um enorme pernil sem pele, polvilhado com farinha de rosca. O osso estava cuidadosamente envolto com papel. Ao lado do pernil havia uma peça de carne assada. Entre esses dois rivais, estendia-se dupla linha de pratos auxiliares: duas catedrais de geleia, uma vermelha, outra amarela; um prato raso cheio de blocos de manjar branco e compota vermelha; uma grande travessa em forma de folha (o cabo imitando caule), com rubros cachos de passas e amêndoas descascadas; outra travessa igual, com um sólido retângulo de figos de Smirna; um prato de creme de leite coberto de noz moscada em pó; uma tigela com chocolates e doces embrulhados em papel prateado dourado, e um copo de cristal com longos talos de aipo. No centro da mesa, como sentinelas da fruteira que sustentava uma pirâmide de laranjas e maçãs americanas, havia dois bojudos garrafões de vinho trabalhado, um com vinho do Porto e outro com xerez. Sobre o piano, em imensa travessa amarela, um pudim esperava. Atrás dele, alinhados segundo a cor dos rótulos, havia três esquadrões de garrafas de cerveja e água mineral: as primeiras de rótulos marrons e vermelhos e as últimas, garrafas menores, com rótulos brancos cruzados por uma faixa verde.
Gabriel ocupou resolutamente o lugar à cabeceira da mesa e após examinar o corte da faca de trinchar, enterrou com firmeza o garfo na carne do ganso. Sentia-se inteiramente à vontade. Era especialista em trinchar e não havia nada mais agradável para ele que se achar à cabeceira de uma mesa farta.
— Senhorita Furlong, que devo lhe dar? — perguntou — Uma asa ou um pedaço do peito? — Um pedacinho do peito. — Senhorita Higgins?
Ó, não tenho preferências, senhor Conroy.
Enquanto Gabriel e a senhorita Daly serviam os pratos com fatias de ganso, carne assada ou pernil, Lily ia de convidado a convidado, com uma travessa de batatas dorée quentes, embrulhadas em guardanapos brancos. Fora ideia de Mary Jane que também sugerira molho de maçã para o ganso. Contudo, tia Kate dissera que o ganso simples sempre fora suficiente e que pedia a Deus nunca comer pior. Mary Jane servia seus alunos, cuidando que recebessem os melhores pedaços, enquanto tia Kate e tia Júlia abriam e traziam do piano garrafas de cerveja para os homens e de água mineral para as mulheres. Havia muita confusão, risos e alarido: alarido de ordens e contraordens, de facas e garfos, de rolhas saltando. Assim que terminou a primeira rodada, Gabriel começou a trinchar novas porções, antes mesmo de ter se servido. Todos protestaram e ele acedeu em tomar um bom trago de cerveja, pois o trabalho o deixara com sede. Mary Jane sentara-se para jantar, mas tia Kate e tia Júlia continuavam a correr em volta da mesa, uma nos calcanhares da outra, atrapalhando-se, trocando ordens que nenhuma delas executava. Browne e Gabriel insistiram para que se sentassem, mas elas afirmavam que havia tempo de sobra, de forma que Freddy Malins acabou por se levantar e, capturando tia Kate, depositou-a na cadeira que lhe estava reservada, em meio ao divertimento geral.
Quando todos haviam sido servidos, Gabriel anunciou sorrindo:
— Se alguém quer um pouco mais daquilo que o vulgo chama de estofo, que ele ou ela se pronuncie.
Um coro de vozes convidou-o a iniciar seu próprio jantar e Lily aproximou-se com três batatas que lhe reservara.
— Muito bem — disse Gabriel em tom amável, tomando outro gole de cerveja. — Peço, então, senhoras e senhores, que esqueçam de mim por alguns minutos.
Começou a comer sem tomar parte na conversa que encobria o ruído dos pratos que Lily recolhia. O assunto era a companhia de ópera que se apresentava no Teatro Royal. Bartell D'Arcy, o tenor, um jovem moreno com elegante bigode, elogiou enormemente o primeiro contralto. Todavia, a senhorita Furlong achara seu estilo um tanto vulgar. Freddy disse que havia um cantor negro na segunda parte da pantomima Gaiety, que possuía uma das melhores vozes que ele já ouvira.
— Você já o ouviu? — perguntou a Bartell D'Arcy, que se achava à sua frente. — Não — respondeu o outro, o tenor, enfastiado.
— Gostaria de saber sua opinião sobre ele — continuou Freddy. — Acho que tem uma grande voz.
— É sempre Freddy quem faz as grandes descobertas — disse Browne com familiaridade.
— E por que não pode ter boa voz? — retrucou Freddy secamente. — Só por que ele é negro?
Ninguém respondeu e Mary Jane procurou levar a conversa para a "legítima" ópera. Uma de suas alunas dera-lhe uma entrada para a representação de Mignon.
Sem dúvida fora magnífica, disse ela, mas fizera-a recordar-se da pobre Georgina Burns. Browne lembrava-se de tempos ainda mais remotos; das velhas companhias italianas que costumavam vir a Dublin: Tietjens, Ilma de Murzka, Campanini, o grande Trebelli, Giullini, Ravelli, Aramburo. Naqueles tempos, disse ele, podia-se ouvir em Dublin o que se chama arte de cantar. Contou como a galeria do velho Royal ficava repleta em todas as apresentações e como, certa noite, um tenor italiano bisara cinco vezes o "Deixe-me morrer como um soldado", subindo sempre na escala, e ainda como os rapazes da galeria demonstravam, por vezes, seu entusiasmo, desatrelando os cavalos da carruagem de alguma primma donna e puxando-a eles mesmos pelas ruas até o hotel. "Por que não apresentam mais as grandes óperas antigas?"; perguntou ele. "Dinorah, Lucrezia Borgia? Porque não encontram vozes para interpretá-las. Eis a razão".
— Ora — replicou Bartell D'Arcy. — Creio que existem hoje cantores tão bons quanto os de antigamente.
— Onde estão? — perguntou Browne em tom de desafio.
— Em Londres, Paris, Milão — respondeu o outro com ardor. — Caruso, por exemplo. Considero-o tão bom, se não melhor, do que todos esses que mencionou.
— É possível — disse Browne. — Porém, ouso afirmar que duvido muito.
— Oh, daria tudo para ouvir Caruso cantar! — exclamou Mary Jane.
— Para mim — disse tia Kate, que estivera às voltas com um pedaço de osso — só existiu um tenor. Do meu gosto, quero dizer. Mas suponho que nenhum de vocês o conheceu.
— Quem foi, senhorita Morkan? — perguntou Bartell D'Arcy.
— Seu nome era Parkinson. Ouvi-o quando se encontrava em plena glória e penso que possuía a mais pura voz de tenor jamais colocada na garganta de um homem.
— Estranho — disse Bartell D'Arcy — nunca ouvi falar dele.
— Sim, sim, a senhorita Morkan tem razão — disse Browne.
— Recordo-me de ter ouvido o velho Parkinson, mas é uma época muito remota para mim. — Um belo, puro, doce e melodioso tenor inglês — disse tia Kate num arrebatamento.
Quando Gabriel terminou, o enorme pudim foi transferido para a mesa. O tilintar de facas e garfos recomeçou. Gretta cortava grandes fatias do pudim e distribuí aos pratos. A meio caminho, eram retidos por Mary Jane que os completava com geleia de framboesa ou de laranja ou com manjar branco e compota. O pudim erada autoria de tia Júlia, que recebia elogios de todos os cantos da mesa. Ela própria, entretanto, achava que não ficara bem dourado.
— Ora, senhorita Morkan — disse Browne — espero que eu pelo menos seja bem dourado para a senhora, pois, como sabe, sou todo Brown.
— Ora, senhorita Morkan — disse Browne — espero que eu pelo menos seja bem dourado para a senhora, pois, como sabe, sou todo Brown.
Todos os homens, exceto Gabriel, experimentaram o pudim em homenagem à tia Júlia. Como Gabriel não gostava de doces, o aipo fora deixado para ele. Freddy Malins também pegou um talo de aipo e comeu-o junto com o pudim. Tinham-lhe dito que aipo era excelente para o sangue e ele encontrava-se sob cuidados médicos. Sua mãe, que se mantivera calada durante todo o jantar, disse que ele iria passar um mês em Mount Melleray. A conversa, então, passou a girarem torno desse novo assunto. Como era estimulante o clima de Mount Melleray e hospitaleiros os monges que não exigiam um centavo dos hóspedes.
— A senhora quer dizer — perguntou Browne, incrédulo — que um sujeito pode ir lá, aboletar-se como se estivesse num hotel, viver à gorda e depois sair sem pagar nada?
— Oh, a maioria das pessoas faz uma doação ao mosteiro, quando vem embora — disse Mary Jane.
— Gostaria que nossa Igreja tivesse uma instituição assim — disse Browne ingenuamente.
Ficou admirado ao saber que os monges nunca falavam, levantavam-se às duas da madrugada e dormiam em seus próprios caixões.
— Mas por que isso? — perguntou.
— É o regulamento da Ordem — explicou tia Kate.
— Sim, mas por quê? — insistiu Browne.
Tia Kate repetiu que era uma norma deles, nada mais. Browne, porém, parecia não compreender. Freddy Malins explicou-lhe então, o melhor que pôde, que os monges procuravam remir os pecados cometidos por todos os seres humanos. A explicação não foi muito convincente, pois Browne sorriu e disse:
— Aprecio muito a intenção, mas uma confortável cama de molas não teria a mesma eficiência?
— O esquife — disse Mary Jane — é para lembrar-lhes do fim inevitável.
O assunto tornava-se lúgubre e foi enterrado em repentino silêncio, durante o qual ouviu-se a senhora Malins dizer ao seu vizinho:
— São homens muito bons, os monges, muito piedosos.
Passas, amêndoas, figos, maçãs, laranjas, chocolates e doces percorriam a mesa. Tia Júlia convidou todos a beberem vinho ou xerez. A princípio, Bartell D'Arcy recusou ambos, mas alguém, que estava a seu lado, tocou-o com o braço e sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Então, consentiu que lhe enchessem o copo. Pouco a pouco, à medida que os copos iam sendo servidos, a conversa cessou. Seguiu-se uma pausa, quebrada apenas pelo borbulhar do vinho e pelo ranger de cadeiras. As três anfitriãs olhavam para a toalha. Alguém tossiu várias vezes, e então, começaram a bater de leve na mesa, pedindo silêncio. Gabriel afastou a cadeira e levantou-se.
As batidas na mesa aumentaram, como para encorajá-lo, e depois cessaram completamente. Gabriel apoiou os dedos trêmulos na mesa e sorriu nervosamente para a assistência. Encontrando uma fileira de rostos voltados para ele, ergueu os olhos para o lustre. O piano tocava uma valsa e ele ouvia o farfalhar dos vestidos roçando contra a porta do salão. Algumas pessoas talvez estivessem na neve lá fora, olhando para as janelas iluminadas e ouvindo aquela valsa.
Lá o ar era puro. Longe estendia-se o parque, com as árvores pesadas de neve. O monumento a Wellington, coberto com um manto cintilante, faiscava para o oeste sobre o alvo campo dos Quinze Acres.
Gabriel principiou:
"Senhoras e senhores:
Como nos anos anteriores, coube-me esta noite desempenhar uma agradável incumbência, para a qual, todavia, temo serem de todo insuficientes minhas pobres qualidades de orador".
— Não apoiado — exclamou Browne.
"Mas, seja como for, somente posso vos pedir que levem em conta a intenção e ouçam-me por alguns momentos, enquanto procuro traduzir em palavras tudo oque sinto nesta noite. Senhoras e senhores, não é a primeira vez que nos reunimos sob este teto acolhedor, em tomo desta mesa acolhedora. Não é a primeira vez que somos alvo — ou, talvez, melhor dizendo, vítimas da hospitalidade de certas amáveis senhoras". Traçou um circulo no ar e fez uma pausa. Todos sorriram para tia Kate, tia Júlia e Mary Jane, que haviam enrubescido de prazer. Gabriel prosseguiu com mais segurança:
"Cada ano que passa, convenço-me mais de nenhuma tradição honra tanto nosso país e deve ser zelosamente conservada como a hospitalidade. É uma tradição, pelo menos segundo minha experiência (e não foram poucos os países que visitei) sem paralelo nas nações modernas. Poderão talvez dizer que entre nós ela é antes um defeito do que motivo de orgulho. Todavia, mesmo admitindo-se isso, ela é, para mim, um defeito magnífico que, tenho certeza, será sempre cultivado por todos nós. Enquanto este teto abrigar se amáveis senhoras a quem me referi — e desejo de coração seja por muitos e muitos anos — a tradição genuína e cordial hospitalidade irlandesa, que os antepassados nos legaram e, de nossa parte, devemos legar aos nossos descendentes, continuará viva entre nós."
Um murmúrio de entusiástica aprovação percorreu a mesa. Súbito, lembrando-se que Molly Ivors não estava ali e se retirara indelicadamente, Gabriel acrescentou pleno de confiança em si mesmo:
"Senhoras e senhores, uma nova geração desenvolve-se em nosso meio. Geração animada por novas ideias e novos princípios. Ela leva a sério e entusiasma-se por essas ideias e seu entusiasmo, mesmo quando mal dirigido, parece-me totalmente sincero. Mas estamos vivendo uma época cética e, se assim posso dizer, torturada pelo pensamento. E por vezes receio que esta nova geração, educada ou super-educada como é, careça da humanidade, hospitalidade e bom humor, que constituíram o apanágio dos tempos antigos. Ouvindo o nome de todos esses grandes cantores do passado pareceu-me, devo confessar, que vivemos numa época mais pobre. Aqueles tempos podem, sem exagero, ser qualificados de espaçosos e se já não voltam mais, esperemos, pelo menos, que em reuniões como esta, recordemo-los com afeto e orgulho e acalentemos em nossos corações a memória desses grandes mortos, cuja glória o mundo não deixará perecer".
— Muito bem! — exclamou Browne, Muito bem!
"Entretanto — prosseguiu Gabriel, tomando uma inflexão mais suave — em encontros como este sempre nos ocorrem tristes recordações: lembranças do passado, da juventude, de mudanças, de rostos ausentes cuja falta sentimos. Nossa passagem pela vida é marcada por muitas dessas recordações e se tivéssemos de pensar nelas todo o tempo, não nos sobrariam forças para desempenhar corajosamente nossas tarefas entre os vivos. Todos nós temos deveres e afetos para com os vivos que, com todo direito, reclamam nossa incansável dedicação. Portanto, não me demorarei no passado. Não permitirei que um sermão melancólico venha pesar sobre nós esta noite. Estamos aqui reunidos, livres por um momento do alvoroço e da rotina cotidiana. Encontramo-nos aqui corno amigos, no espírito da verdadeira compreensão, e também, em certo sentido, como colegas no verdadeiro espírito de camaraderie e, na qualidade de hóspedes das — como chamá-las? — das Três Graças do mundo musical de Dublin".
Essa alusão provocou aplausos e risos. Em vão, tia Júlia pediu aos seus vizinhos que lhe contassem o que Gabriel havia dito.
— Ele diz que somos as Três Graças — explicou Mary Jane. Tia Júlia não compreendeu, mas sorriu para Gabriel que prosseguia no mesmo tom:
"Senhoras e senhores: Não me atreverei, nesta noite, a desempenhar a tarefa que coube a Páris em outra ocasião Não ousarei escolher entre elas. Seria incumbência terrível e acima de minhas forças. Pois quando penso em cada uma delas, seja nossa principal anfitriã, cujo bom coração, cujo coração grande demais, tornou-se proverbial para quantos a conhecem; seja sua irmã, que parece dotada de eterna juventude e cuja voz constituiu uma surpresa e uma revelação para todos esta noite; ou por último (mas não em importância) nossa mais jovem anfitriã, talentosa, alegre, dedicada ao trabalho e a melhor das sobrinhas, confesso, senhoras e senhores, não sei a qual delas atribuir o prêmio".
Gabriel olhou para as tias e vendo o imenso sorriso no rosto de tia Júlia e as lágrimas que brotavam dos olhos de tia Kate, apressou-se em concluir.
Galantemente, ergueu o copo de vinho, enquanto todos seguravam as taças em expectativa, e disse bem alto:
"Brindemos todas as três. Brindemos por sua saúde, riqueza, longa vida, felicidade e prosperidade; que possam, por muito tempo, desfrutar a invejável posição que conquistaram pelo esforço próprio em suas profissões e o lugar de honra e afeto que têm em nossos corações".
Todos se levantaram com as taças na mão e voltando-se para as três mulheres, cantaram em uníssono, liderados por Browne: Pois elas são alegres companheiras, Pois elas são alegres companheiras. Pois elas são alegres companheiras, Isso ninguém pode negar.
Tia Kate recorria ostensivamente ao lenço e mesmo tia Júlia parecia comovida. Freddy Malins batia o compasso com o garfo e os cantores olhavam um para o outro como se estivessem melodiosamente conversando, enquanto cantavam com ênfase:
Sem mentir,
Sem mentir,
Então, voltando-se novamente para as anfitriãs, repetiram:
Pois elas são alegres companheiras,
Pois elas são alegres companheiras,
Pois elas são alegres companheiras,
Isso ninguém pode negar.
A aclamação que se seguiu foi acompanhada pelos hóspedes que se encontravam no salão e recomeçada várias vezes. Freddy Malins imitava um maestro, brandindo o garfo no ar.
O ar cortante da manhã invadia o vestíbulo onde se encontravam, o que fez tia Kate pedir: — Fechem a porta. A senhora Malins vai ficar doente.

— Browne está lá fora, tia Kate — disse Mary Jane.

— Browne está em toda parte — sussurrou tia Kate.
Mary Jane riu do seu modo de falar.
— Na verdade — comentou ela maliciosamente. — Ele é muito atencioso.
— Instalou-se aqui como um poste — prosseguiu tia Kate sempre em voz baixa — durante todo o Natal.
Desta vez ela própria riu e acrescentou:
— Mas diga-lhe que entre e feche a porta. Deus queira que não tenha ouvido.
Nesse momento a porta se abriu completamente e Browne entrou, rindo com espalhafato. Vestia um comprido capote verde, com golas e punhos de imitação de astracã e trazia na cabeça um boné oval, feito de pele. Apontou para o cais coberto de neve, de onde se ouviu um assobio agudo e prolongado.
— Desse jeito Teddy conseguirá todos os carros de Dublin.
Gabriel veio da saleta, às voltas com seu sobretudo e correndo os olhos pelo vestíbulo, perguntou:
— Gretta ainda não desceu?
— Ela foi apanhar suas coisas, Gabriel — disse tia Kate.
— Quem está tocando lá em cima? indagou Gabriel.
— Ninguém. Foram todos embora.
— Oh, não, tia Kate! — disse Mary Jane — , o senhor Bartell D'Arcy e a senhorita O'Callaghan ainda não saíram.
— Em todo caso, alguém está brincando no piano — afirmou Gabriel.
Mary Jane olhou para Gabriel e para Browne e disse com um estremecimento:
— Sinto-me gelada só de vê-los assim agasalhados. Não gostaria de enfrentar a viagem de volta, numa hora desta.
— Nada me agradaria tanto neste momento — disse Browne intrépido — como uma boa caminhada pelo campo ou um passeio veloz de charrete, com um bom trotador entre os varais.
— Tínhamos antigamente um bom cavalo e uma charrete em casa — lembrou tia Júlia com tristeza.
— O inesquecível Johnny — disse Mary Jane rindo.
Tia Kate e Gabriel riram.
— Por quê? — perguntou Browne. — Que havia de tão maravilhoso em Johnny?
— O saudoso Patrick Morkan, nosso avô — explicou Gabriel — em seus últimos anos mais conhecido como "o velho", era um fabricante de cola.
— Ora, Gabriel! — disse tia Kate rindo — Ele possuía um moinho de amido.
— Bem, cola ou amido — prosseguiu Gabriel — o velho tinha um cavalo chamado Johnny. E Johnny trabalhava no moinho do velho, girando e girando o dia inteiro.
Até aí, tudo bem. Agora vem o lado trágico da história de Johnny. Um belo dia o velho resolveu ir "com a gente importante do lugar" assistir uma manobrado exército ao parque.
— Que o Senhor tenha piedade de sua alma — interveio tia Kate, com fervor.
— Amém — respondeu Gabriel. — Então, como eu dizia, o velho arreou Johnny, pôs a melhor cartola e o melhor colarinho, e saiu pomposamente de sua mansão ancestral nos arredores de Back Lane.
Todos, até mesmo a senhora Malins, riam dos modos de Gabriel. Tia Kate disse:
— Não, Gabriel. Não era em Back Lane que ele vivia. Apenas o moinho ficava lá.
— Deixando a mansão de seus antepassados — continuou Gabriel — pôs-se a caminho com Johnny. Tudo correu maravilhosamente, até que Johnny topou com a estatuado rei Billy. Ou porque tivesse se apaixonado pelo cavalo do rei Billy, ou porque pensasse que tinha voltado ao moinho, ele começou a andar em volta da estátua.
Gabriel deu uma volta pelo saguão em meio à hilaridade geral.
— E Johnny circulava sem parar. O velho, que era um velho solene, estava muito indignado. "Vamos, senhor! Que é que você pretende, senhor? Johnny! Johnny! Que conduta mais estranha! Não compreendo este cavalo!"
As risadas que seguiram a demonstração que Gabriel fizera do incidente foram interrompidas por fortes pancadas na porta. Mary Jane correu a abri-la e fez entrar Freddy Malins. Este, como chapéu tombado para trás e os ombros encolhidos de frio, fumegava, ofegante de cansaço.
— Consegui só um carro — informou ele.
— Encontraremos outro pelo cais — disse Gabriel.
— Sim. É melhor que a senhora Malins não apanhe uma corrente de ar — comentou tia Kate.
A senhora Malins foi amparada nos degraus da entrada pelo filho e por Browne e, após várias manobras, içada para dentro do carro. Freddy subiu com ela e gastou longo tempo instalando-a no banco, auxiliado pelos conselhos de Browne. Por fim, acomodaram-na confortavelmente e Freddy convidou Browne a aproveitara condução. Depois de muita conversa e confusão, Browne também entrou no carro. O cocheiro ajustou a manta sobre os joelhos e curvou-se para saber em que direção seguir. A confusão aumentou. O cocheiro recebia ordens diferentes de Freddy e de Browne, que tinham posto as cabeças fora das respectivas janelas.
O problema era decidir em que ponto do caminho deixariam Browne. Da porta, tia Kate, tia Júlia e Mary Jane participavam da discussão com sugestões contraditórias e muito riso. Freddy já não podia falar de tanto rir. Punha e tirava a cabeça da janela a todo momento, arriscando amassar o chapéu, e relatava para a mãe o que ia acontecendo, até que finalmente Browne gritou para o cocheiro desnorteado, abafando as risadas:
— Sabe onde fica o Trinity College?
— Sim, senhor — disse o cocheiro.
— Então vá direto para os portões do Trinity College. Ao chegarmos lã, direi que direção tomar. Compreendeu?
— Sim, senhor.
— Vá voando para o Trinity College.
— Certo, patrão.
Açoitou o cavalo e o carro partiu vascolejando pelo cais, em meio a um coro de risos e despedidas.
Gabriel não fora até a porta com os outros. Ficou num recanto escuro do vestíbulo olhando para o alto da escada. Perto do primeiro patamar, também na penumbra, havia uma mulher. Não podia ver-lhe o rosto, mas distinguia as faixas rosa e marrom do vestido, que a sombra transformava em branco e negro. Era sua esposa.
Estava encostada no corrimão ouvindo alguma coisa. Surpreso com aquela imobilidade, Gabriel procurou também ouvir. Mas não se escutava nada a não ser o rumor de risos e vozes na entrada, alguns acordes de piano e uma voz de homem cantando.
Deixou-se ficar na obscuridade do vestíbulo, tentando captar a ária que a voz interpretava e contemplando a mulher. Havia graça e mistério em sua atitude, como se ela fosse uma figura simbólica. Perguntou a si mesmo que simbolizaria uma mulher, imóvel na penumbra de uma escada, ouvindo uma distante melodia.
Se fosse pintor, retratá-la-ia naquela postura. O chapéu de feltro azul ressaltaria o bronze de seus cabelos contra o fundo negro e as cores claras do vestido realçariam as cores escuras. Música Distante era o nome que daria ao quadro, se fosse pintor.
A porta foi fechada e tia Kate, tia Júlia e Mary Jane entraram rindo no vestíbulo.
— Freddy não é mesmo terrível? — disse Mary Jane. — Ele é terrível!
Gabriel não respondeu e apontou para a escada, onde a esposa se encontrava. Agora, com a porta fechada, a voz e o piano eram ouvidos mais claramente. Gabriel fez um sinal pedindo silêncio. A canção parecia composta em irlandês arcaico e o cantor hesitava na voz e nas palavras. A voz, que a rouquidão do cantor e a distância tomavam plangente, floreava a cadência da ária com palavras que exprimiam tristeza:
O, the rain falls on my heavy locks
And the dew wets my skin,
My babe lies cold...
— Oh! — exclamou Mary Jane. — É Bartell d'Arcy cantando. E ele recusou-se a noite toda. Vou pedir que cante mais uma vez antes de ir embora.
— Sim, por favor, Mary Jane — disse tia Kate.
Mary Jane, deixando-as para trás, correu em direção à escada, mas antes que a alcançasse, a música cessou e o piano foi bruscamente fechado.
— Oh, que pena! — exclamou. — Ele vem descendo, Gretta? Gabriel ouviu a esposa responder que sim e mover-se em direção a eles. Logo atrás vinham Bartell D'Arcy e a senhorita O'Callaghan.
— Oh! Senhor D'Arcy — gritou Mary Jane — não foi muito correto o senhor parar de cantar quando todos nós o ouvíamos enlevados.
— Nós o perseguimos a noite toda, a senhora Conroy e eu, mas ele dizia que tivera um terrível resfriado e não podia cantar.
— Oh! Senhor D'Arcy — disse tia Kate — está provado que era uma grande mentira.
— A senhora não percebe que estou rouco como um corvo? — respondeu ele rudemente.
Dirigiu-se às pressas para a saleta e vestiu o capote. Os outros, retraídos por sua resposta indelicada, não sabiam o que dizer. Tia Kate franziu a testa e fez um sinal para que o assunto fosse esquecido. Bartell D'Arcy, carrancudo, enrolava cuidadosamente o cachecol no pescoço.
— É o tempo — ponderou tia Júlia, após breve silêncio.
— É, todo mundo se resfria — concordou tia Kate, prontamente — todo mundo.
— Dizem — interveio Mary Jane — que há trinta anos não nevava assim e li esta manhã nos jornais que a nevasca é geral em toda a Irlanda.
— Adoro olhar a neve — disse tia Kate melancólica.
— Eu também — acrescentou a senhorita O'Callaghan. — Acho que
Natal só é Natal quando há neve no chão.
— Mas o pobre senhor D'Arcy não gosta de neve — disse tia Kate sorrindo.
O senhor D' Arcy emergira da saleta todo enrolado e abotoado, e num tom de arrependimento contou-lhes a história de seu resfriado. Todos lhe deram conselhos, disse que era uma judiação, recomendando que protegesse bem a garganta do ar frio da madrugada. Gabriel observava a esposa que não se juntara à conversa.
Ela estava sob o lampião empoeirado e a luz do gás inflamava o rico tom castanho de seus cabelos, que Gabriel contemplara enquanto ela os secava ao fogo dias antes. Parecia distante do que sucedia à sua volta e ficara outra vez imóvel. Finalmente, voltou-se para ele e Gabriel viu que havia um rubor em suas faces e que seus olhos brilhavam. Súbito, uma onda de alegria transbordou o coração de Gabriel.
— The Lass of Aughrim — respondeu ele. — Mas não tenho certeza. Por quê? A senhora a conhece?
— The Lass of Aughrim — repetiu ela. — Não conseguia me lembrar.
— É uma belíssima ária — disse Mary Jane. — Lamento que o senhor não estivesse com voz esta noite.
— Ora, Mary Jane — observou tia Kate — não aborreça o senhor d'Arcy. Não quero que o aborreçam.
Vendo que todos estavam prontos para sair, ela conduziu-os até a porta, onde se despediram:
— Bem, boa-noite, tia Kate. Muito obrigado por tudo.

— Boa-noite, Gabriel. Boa-noite Gretta.

— Boa-noite, tia Kate. Muito, muito obrigada. Boa-noite, tia Júlia.
— Oh, boa-noite, Gretta! Não a tinha visto.

— Boa-noite, senhor D'Arcy. Boa-noite, senhorita O'Callaghan.
— Boa-noite, senhorita Morkan.

— Mais uma vez boa-noite.

— Boa-noite a todos. Bom retorno.

— Boa-noite. Boa-noite.
O dia ainda não clareara. Uma luz baça pairava sobre as casas e sobre o rio. O céu parecia estar caindo. Havia lama no chão e da neve restavam apenas alguns filetes e flocos nos telhados, nos parapeitos do cais, nas grades dos jardins. Os lampiões ardiam rubramente no ar brumoso e, no outro lado do rio, o Palácio da Justiça recortava-se ameaçador contra o céu sombrio. Ela ia à sua frente, ao lado do senhor D'Arcy, com os sapatos, que embrulhara num papel marrom, presos sob o braço, e erguendo com as mãos a barra do vestido para não roçar na lama. Já não havia graça em sua postura, mas os olhos de Gabriel brilhavam ainda de felicidade. O sangue acelerava-se em suas veias e os pensamentos precipitavam-se orgulhosos, ternos, alegres, intrépidos. Caminhava tão leve e tão ereta, que sentiu vontade de alcançá-la sem ruído e, agarrando-a pelos ombros, murmurar algo tolo e carinhoso ao ouvido. Parecia-lhe tão frágil que a desejou defender de um perigo qualquer e depois ficar a sós com ela. Momentos de sua vida íntima irromperam como estrelas na memória. Ao lado da xícara de café havia um envelope cor-de-rosa e ele o acariciava com a mão. Pássaros chilreavam nas folhagens e a trama ensolarada da cortina cintilava no assoalho.
Não podia comer de tão feliz. Estavam parados na plataforma repleta de gente e ele punha o bilhete na palma tépida de sua mão enluvada. Parados no frio da calçada, espiavam através de uma janela gradeada o homem que soprava garrafas diante de uma fornalha estrepitosa. O frio era intenso. Seu rosto perfumado estava colado ao dele e, subitamente, gritara ao homem da fornalha:
— O fogo está quente, amigo?
Mas o ruído impediu que o homem ouvisse. Melhor assim. Poderia ter respondido mal. Um fluxo de alegria ainda mais terna brotou-lhe do coração e expandiu-se numa cálida torrente em suas artérias. Como o brilho suave das estrelas, imagens de sua vida em comum, que ninguém conhecia nem jamais viria a conhecer, iluminaram-lhe a memória. Gostaria de recordar-lhe esses momentos, fazê-la esquecer os anos insípidos da vida conjugal e lembrar apenas dos instantes de êxtase. Sentia que nem sua alma nem a dela tinham sido aniquiladas pelos anos. Os filhos, os livros, os trabalhos domésticos não haviam extinto a delicada chama de suas almas. Numa carta que escrevera, ele dissera: "Por que razão as palavras me parecem tão tristes e frias? Será porque não existe palavra bastante suave para ser teu nome?
Como longínqua música, essas frases que escrevera há muitos anos ressurgiam do passado. Queria estar a sós com ela. Quando todos tivessem ido embora, quando se encontrassem no quarto do hotel, ficariam então juntos e sós. Ele a chamaria docemente:
— Gretta!
Talvez não ouvisse na primeira vez: estaria se despindo. Mas alguma coisa em sua voz a feriria. Voltar-se-ia e olharia para ele...
Na esquina da rua Winetavern encontraram um carro. O ruído das rodas livrava-o de conversar e isso o agradava. Ela olhava pela janela e parecia fatigada.
Os outros quase não falavam, apontando vez ou outra uma rua ou edifício. O cavalo galopava penosamente sob o céu nublado da manhã, arrastando sua velha caixa sacolejante e Gabriel estava outra vez no carro com ela, correndo para apanhar o navio, correndo para a lua-de-mel.
Quando atravessaram a Ponte O'Connell, a senhorita O'Callanghan disse:

— Dizem que a gente nunca passa na Ponte O'Connell sem ver um cavalo branco.

— Vi um homem de branco desta vez — disse Gabriel.

— Onde? — perguntou Bartell D'Arcy.

Gabriel apontou para a estátua recoberta de flocos de neve, saudando-a com um gesto:
— Boa-noite, Dan — disse jocosamente.
O carro parou diante do hotel, Gabriel desceu e, a despeito dos protestos de Bartell D'Arcy, pagou o cocheiro. Deu um xelim de gorjeta. O homem agradeceu e exclamou:
— Próspero Ano Novo para o senhor!
— O mesmo para você — respondeu cordialmente Gabriel.
Gretta apoiou-se em seu braço para descer e, quando ainda pisava no estribo, despediu-se dos outros. Repousava de leve no seu braço, com a mesma leveza que ao dançar com ele algumas horas antes. Sentia-se feliz e orgulhoso. Feliz por ela lhe pertencer, orgulhoso de sua graça e madureza. Mas agora, após tantas recordações, o primeiro toque de seu corpo perfumado, estranho e harmonioso, despertou nele uma pungente sensualidade. Envolto no silêncio em que ela se abrigava, Gabriel estreitou-a contra si e enquanto esperavam na porta do hotel, sentiu que haviam escapado da rotina cotidiana, fugido do lar e dos amigos, atirando-se exultantes e ansiosos a uma nova aventura.
Um velho cochilava numa cadeira coberta, no vestíbulo. Ele apanhou um castiçal no balcão e subiu a escada à frente deles. Seguiram-no em silêncio, no tapete espesso que cobria os degraus. Ela subia logo atrás do velho, com a cabeça inclinada, os delicados ombros como que derreados por um peso e o vestido colando-se ao seu corpo. Seria capaz de agarrá-la ali mesmo pela cintura, tanto seus braços tremiam do desejo de envolvê-la, e somente enterrando as unhas nas próprias mãos, pôde conter o impulso que o arrebatava. O velho parou para ajustar a vela gotejante. Eles também pararam, degrau abaixo. No silêncio, Gabriel ouvia as gotas de cera tombando no castiçal e as pancadas do seu próprio coração.
O velho conduziu-os por um longo corredor e abriu uma porta. Então, deixou o castiçal sobre o toucador e perguntou a que horas desejavam ser despertados.
— Às oito — disse Gabriel.
O velho indicou o comutador da luz elétrica e resmungou uma desculpa, mas Gabriel interrompeu-o:
— Não queremos luz nenhuma. A que vem da rua já é bastante. Portanto — acrescentou indicando o castiçal — pode levar consigo esse belo objeto.
O velho tornou a pegar o castiçal, mas vagarosamente, pois surpreendera-se com aquela ideia original. Murmurou então boa-noite e saiu. Gabriel passou o trinco na porta.
Uma luz pálida projetava-se da rua através da janela até a porta. Gabriel atirou o capote e o chapéu sobre um divã e caminhou para a janela. Ficou olhando para a rua, procurando acalmar um pouco sua emoção. Depois se voltou e se debruçou na cômoda, de costas para a luz. Ela tirara o chapéu, a capa, e estava diante de um grande espelho giratório, desabotoando o vestido. Gabriel contemplou-a por algum tempo e então murmurou: — Gretta! — Ela voltou-se lentamente e caminhou para ele ao longo da réstia de luz. Tinha o rosto tão grave e fatigado que Gabriel não conseguiu falar. Não, ainda não era o momento.
— Parece cansada — disse ele.
— Um pouco — respondeu ela.
— Não está se sentindo mal?
— Não. Cansada. Apenas isso.
Ela aproximou-se da janela e ficou ali, olhando para fora. Gabriel esperou um pouco mais e então, temeroso de que a timidez o dominasse, disse bruscamente:
— A propósito, Gretta...
— Quê?
— Você conhece aquele pobre-diabo, o Malins? — apressou-se em dizer.
— Sim. Que há com ele?
— Bem, até que não é mau sujeito — prosseguiu Gabriel num tom falso.
— Devolveu-me o esterlino que eu lhe emprestei. Sinceramente, não esperava mais. Pena que não se afaste daquele Browne, pois não é mau sujeito.
Agora, ele tremia de impaciência. Por que se mostrava ela tão ausente? Não sabia como começar. Estaria aborrecida com alguma coisa? Se ao menos se voltasse ou se aproximasse espontaneamente. Abraçá-la naquele estado seria brutal. Não, primeiro seria preciso vislumbrar alguma paixão em seus olhos. Ansiava por desvendar o enigmático alheamento da esposa.
— Quando foi que lhe emprestou o dinheiro? — perguntou ela, após uma pausa.
Gabriel conteve-se para não acabar num rude desabafo aquela tola conversa sobre Malins e o dinheiro. Queria gritar-lhe do fundo da alma, estreitá-la contra seu corpo, subjugá-la. Entretanto, respondeu:
— Oh, no Natal, quando ele abriu aquela lojinha de cartões de boas-festas, na rua Henry.
Sentia-se tão dominado pela impaciência e pelo desejo que não a viu afastar-se da janela. Ela ficou um instante parada a sua frente, fitando-o com um olhar estranho. Então, erguendo-se subitamente na ponta dos pés, apoiando de leve as mãos em seus ombros, beijou-o.
— Você é muito generoso, Gabriel.
Trêmulo de prazer por aquele beijo e pela frase inesperada, Gabriel começou a acariciar-lhe os cabelos, quase sem tocá-los com os dedos. Eram macios e brilhantes.
Seu coração transbordava de felicidade. Ela viera espontaneamente, no próprio instante em que ele a desejava. Talvez estivessem pensando as mesmas coisas.
Talvez houvesse pressentido o impetuoso desejo que o possuía e por isso se entregara. Agora, que ela se rendera docilmente, admirava-se de ter sido tão tímido.
Segurou sua cabeça entre as mãos e depois deslizando um dos braços em volta de seu corpo, puxou-a para junto de si, dizendo suavemente:
— Gretta, querida, em que estava pensando?
Ela não respondeu nem se abandonou por completo em seus braços. Tornou a perguntar, brandamente:
— Conte-me, Gretta. Creio que sei do que se trata. Não sei?

Ela não respondeu imediatamente. Então, numa torrente de lágrimas, murmurou:  
— Estou pensando naquela canção. The Lass of Aughrim.
Libertou-se dele e correu para a cama; agarrando-se às grades, ocultou a cabeça entre os braços. Gabriel ficou paralisado por um momento, perplexo, e depois a seguiu. Ao passar diante do espelho viu-se inteiramente refletido nele: o peitilho da camisa esticado sobre o tórax largo, o rosto cuja expressão sempre o intrigara, os óculos de aros faiscantes. Parou alguns passos longe dela e perguntou:
— Que há com essa música? Por que a faz chorar?
Ela ergueu a cabeça e enxugou os olhos com as costas da mão como uma criança. Com suavidade maior do que pretendia, Gabriel insistiu:
— Por que, Gretta?
— Estou pensando em alguém que, há muitos anos, costumava cantar essa canção.
— Quem era? — perguntou Gabriel, sorrindo.
— Alguém que conheci em Galway, quando morava com minha avó.
O sorriso desapareceu do rosto de Gabriel. Uma cólera surda tornou a se condensar no fundo de sua mente e a chama escura do desejo voltou a latejar com fúria em suas veias.
— Alguém por quem esteve apaixonada? — perguntou em tom sarcástico.  
— Um rapaz que conheci — respondeu ela.
— Chamava-se Michael Furey. Cantava sempre essa canção. The Lass of Aughrim. Era muito sensível.
Gabriel ficou quieto. Não queria deixá-la pensar que estava interessado no tal rapaz sensível.
— Lembro-me tão bem! Que olhos tinha ele: grandes, castanhos! E que expressão, que expressão!
— Oh! Então ainda está apaixonada?
— Passeávamos juntos, quando eu morava em Galway.
Uma ideia atravessou a mente de Gabriel.
— Talvez por essa razão desejava ir a Galway com a tal de Ivors? — perguntou com frieza.
Ela olhou-o espantada e perguntou:
— Para quê?
Seu olhar desconcertou-o. Gabriel encolheu os ombros e disse:
— Como posso saber? Para vê-lo, talvez.
Ela desviou o olhar para a janela iluminada e permaneceu em silêncio.
— Ele está morto — disse finalmente. — Morreu quando tinha apenas dezessete anos. Não é terrível morrer tão jovem?
— Que fazia ele? — perguntou Gabriel, ainda com sarcasmo.
— Trabalhava na companhia de gás.
Gabriel sentiu-se humilhado pelo fracasso de sua ironia e pela evocação da figura do morto, um garoto da companhia de gás. Enquanto vibrava com íntimas recordações, repleto de ternura, alegria e desejo, ela o comparava com outro. Uma humilhante consciência de si mesmo o assaltou. Viu-se como uma figura ridícula, fazendo de menino travesso para as tias, um sentimentalista tímido e bem intencionado discursando para pessoas vulgares e idealizando seus cômicos desejos: o lamentável pretensioso que vira de relance no espelho. Instintivamente, voltou-se contra a luz, para a esposa não ver o rubor que se alastrava em seu rosto.
Procurou manter o tom de frio interrogatório, mas sua voz soou humilde e indiferente:
— Suponho que esteve apaixonada por esse Michael Furey, Gretta.

— Queríamo-nos muito bem nesse tempo — respondeu ela.
Sua voz era velada e triste. Percebendo como seria tolo tentar arrastá-la ao que pretendia, Gabriel começou a acariciar-lhe a mão e disse, também com tristeza:
— E por que morreu tão jovem, Gretta? Tuberculose, foi?
— Creio que morreu por minha causa.
Ao ouvir a resposta, um vago terror apossou-se de Gabriel, como se no instante em que esperava triunfar, um ser impalpável e vingativo, reunisse forças em seu mundo obscuro para se levantar e se atirar contra ele. Mas com um esforço da razão afastou esse sentimento e continuou a acariciá-la. Não perguntou mais nada, pois sabia que ela contaria espontaneamente. A mão dela, quente e úmida, não correspondia ao seu afago, mas continuou a acariciá-la, como fizera com a primeira carta naquela manhã de primavera.
— Foi no inverno — disse ela — no princípio do inverno, quando estava para deixar a casa de minha avó e vir para o internato e estava doente na pensão em Galway e não o deixavam sair. Sua família, que morava em Oyghterard, tinha sido avisada. Dizem que definhava, ou algo parecido. Nunca soube ao certo.
Calou-se um momento e suspirou.
— Pobre rapaz. Gostava tanto de mim e era tio gentil. Passeávamos juntos, sabe, Gabriel, como é costume no interior. Ia estudar canto se sua saúde permitisse. Tinha realmente uma bela voz, pobre Michael Furey.
— Bem, e daí? — perguntou Gabriel.
— Então, chegou o dia em que eu devia deixar Galway e vir para o internato. Ele havia piorado tanto que não me permitiram vê-lo. Por isso, escrevi-lhe uma carta dizendo que ia partir para Dublim e retornaria no verão, esperando encontrá-lo bem melhor.
Parou um instante para controlar a voz e prosseguiu:
— Na noite anterior à partida, estava em casa de minha avó em Nun's Island, arrumando as malas, quando ouvi uma pedra bater na vidraça. Os vidros estavam tão embaçados que não pude ver nada. Desci correndo as escadas, vestida como estava, e dei furtivamente a volta pelos fundos da casa e lá estava o pobre rapaz, num canto do jardim, tiritando de frio.
— E não o mandou voltar para casa? — perguntou Gabriel.
— Implorei que o fizesse; disse que a chuva ia matá-lo. Respondeu que não queria viver. Lembro-me tão bem de seus olhos! Tão bem! Estava parado perto do muro onde havia uma árvore.
— E voltou para casa?
— Sim. Voltou. E quando fazia apenas uma semana que eu estava no internato, ele morreu e foi enterrado em Oughterar, onde viviam seus parentes. Oh, o dia em que soube que... que estava morto!
Calou-se, sufocada em soluços. Prostrada pela emoção atirou-se na cama com o rosto para baixo, soluçando. Hesitante, Gabriel continuou a segurar-lhe a mão e, então, com pudor de imiscuir-se em sua tristeza, deixou-a cair e caminhou sem ruído até a janela.
Gretta logo adormeceu.
Gabriel debruçou-se na cômoda e contemplou sem ressentimento os seus cabelos emaranhados, a boca entreaberta, ouvindo-lhe a profunda respiração. Então havia esse romance em sua vida: um homem morrera por ela. Quase já não o magoava pensar no pouco que ele, marido, representara em sua vida. Observava-a enquanto dormia, como se nunca houvessem vivido juntos. Seus olhos curiosos fitaram longamente o rosto e os cabelos, e ao pensar em como devia ser ela naquele tempo, no tempo da primeira juventude, uma estranha sincera piedade pela esposa invadiu-lhe a alma. Não ousava dizer, nem para si mesmo, que seu rosto já não era belo, embora soubesse que já não era o rosto pelo qual Michael Furey afrontara a morte.
Talvez não lhe tivesse contado toda a história. Seus olhos moveram-se para a cadeira sobre a qual ela atirara algumas roupas. Um cordel da anágua pendia no chão. Uma bota estava em pé, o cano dobrado para baixo; a outra tombada de lado. Pensou no tumulto que o agitara uma hora antes. De onde surgira aquilo? Da ceia, do tolo discurso, do vinho, da dança, da brincadeira quando se despediam no vestíbulo, do prazer de passear pelo cais sobre a neve? Pobre tia Júlia! Ela também logo seria uma sombra junto às sombras de Patrick Morkan e seu cavalo. Surpreendera esse lúgubre presságio em sua face, quando ela cantava.
Muito em breve, talvez, estaria sentado no mesmo salão, vestido de preto, o chapéu de seda sobre os joelhos. Os reposteiros estariam cerrados e tia Kate, sentada a seu lado, chorando e assoando o nariz, contar-lhe-ia como tia Júlia morrera. Revolveria o cérebro à procura de palavras que pudessem consolá-la e só diria frases fúteis e vãs. Sim, isso logo iria acontecer.
O ar gélido do quarto fê-lo estremecer. Deslizou cautelosamente sob as cobertas e acomodou-se ao lado da esposa. Um por um, estavam todos se transformando em sombras. Seria melhor precipitar-se na morte no apogeu de uma paixão, do que extinguir e murchar lentamente com a velhice. Pensou como aquela mulher, adormecida a seu lado, ocultara por tantos anos a imagem do seu amado a afirmar-lhe que não queria viver.
Pranto generoso invadiu-lhe os olhos. Nunca se sentira assim por uma mulher, mas sabia que isto era amor. As lágrimas cresceram nos olhos e ele imaginou ver na penumbra do quarto um jovem parado sob uma árvore encharcada. Outras formas pairavam. Sua alma acercava-se da região habitada pela vasta legião dos mortos. Pressentia, mas não podia apreender suas existências vacilantes e incertas. Ele próprio dissolvia-se num mundo cinzento e incorpóreo. O mundo real, sólido, em que os mortos tinham vivido e edificado, desagregava-se.
Leves batidas fizeram-no voltar-se para a janela. A neve tornava a cair. Olhou sonolento os flocos prateados e negros, que despencavam obliquamente contra a luz do lampião. Era tempo de preparar a viagem para o oeste. Sim, os jornais estavam certos: a neve cobria toda a Irlanda. Caía em todas as partes da sombria planície central, nas montanhas sem árvores, tombando mansa sobre o Bog of Allen e, mais para o oeste, nas ondas escuras do cemitério abandonado onde jazia Michael Furey. Amontoava-se nas cruzes tortas e nas lápides, nas hastes do pequeno portão, nos espinhos estéreis. Sua alma desmaiava lentamente, enquanto ele ouvia a neve cair suave através do universo, cair brandamente — como se lhes descesse a hora final — sobre todos os vivos e todos os mortos.