sexta-feira, 28 de novembro de 2014

23 – A confusão de sentimentos do árabe Nacib – J. Amado

Alguns talvez digam que Jorge Amado (1912-2001), o grande escritor baiano, não escrevia contos. Discordo, além do que eu seria absolutamente incapaz de fazer uma lista de grandes escritores sem incluir o maior mestre. Este conto/capitulo é para mim o melhor momento de toda obra de Jorge Amado. Faz parte do Gabriela, Cravo e Canela, e começa com Nacib feliz por descobrir que finalmente tem Gabriela ao seu lado e termina com ele aterrorizado pelo medo de perdê-la. Irônica natureza humana retratada neste conto de construção perfeita, com sensualidade, ritmo, graça e a magia inigualável do grande mestre.

De como se iniciou a confusão de sentimentos do árabe Nacib
Jorge Amado
Leu umas linhas no jornal, aspirando a fumaça do charuto de São Félix, perfumado. Em geral, nem chegava a fumar todo o charuto, a ler grande coisa nos diários da Bahia.
Logo adormecia, embalado pela brisa do mar, afrontado pelas iguarias gulosamente devoradas, o inigualável tempero de Gabriela. Ressonava feliz por entre os bigodes frondosos. Aquela meia hora de sono, à sombra das árvores, era uma das delícias de sua vida, sua boa vida tranquila, sem sustos, sem complicações, sem problemas graves. Jamais tinham os negócios marchado tão bem, crescia a frequência do bar, ele acumulava dinheiro no banco, o sonho de um pedaço de terra onde plantar cacau ganhava realidade. Nunca fizera negocio tão vantajoso como ao contratar Gabriela no mercado dos escravos. Quem diria ser ela tão competente cozinheira, quem diria esconder-se sob trapos sujos tanta graça e formosura, corpo tão quente, braços de carinho, perfume de cravo a tontear?...
Naquele dia da chegada do engenheiro, a curiosidade tomando conta do bar, apresentações e cumprimentos, elogios a granel – é um nadador de primeira – quando todos os almoços se atrasaram em Ilhéus, Nacib fizera dia por dia a conta do tempo decorrido desde o anuncio de sua vinda. Gabriela voltava para casa após pedir:
– Deixa eu ir no cinema hoje? Pra acompanhar dona Arminda...
Tirara da caixa uma nota de cinco mil-réis, generoso:
– Pague a entrada dela...
Vendo-a partir, esfogueada e risonha (ele não parara de beliscá-la e tocá-la mesmo enquanto comia), contara os dias: três meses e dezoito dias exatamente. De aperreação, cochichos, agitação, duvida e esperança para Mundinho e seus amigos, para o coronel Ramiro Bastos e seus correligionários. Com descomposturas nos jornais, conversas segredadas, apostas, bate-bocas, surdas ameaças, um clima de tensão em aumento. Havia dias em que o bar parecia uma caldeira prestes a explodir. Quando o Capitão e Tonico mal se falavam, o coronel Amâncio Leal e o coronel Ribeirinho apenas se cumprimentavam.
É para ver-se como são as coisas da vida. Aqueles mesmos dias foram de calma, de perfeita tranquilidade de espírito, de suave alegria para Nacib. Talvez os mais felizes de toda a sua existência.
Jamais dormira tão sereno sua sesta, acordando risonho com a voz de Tonico, infalível após o almoço para um dedo de amargo a ajudar a digestão, um dedo de prosa antes de abrir o cartório. Pouco depois juntava-se a eles João Fulgêncio, passando para a papelaria. Falavam de Ilhéus e do mundo, o livreiro era entendido em assuntos internacionais, Tonico sabia tudo quanto se referia ao mulherio da cidade.
Três meses e dezoito dias tardara o engenheiro a chegar, fazia exatamente o mesmo tempo que contratara Gabriela. Naquele dia o coronel Jesuíno Mendonça matara dona Sinhazinha e o dentista Osmundo. Mas só no outro dia tivera Nacib certeza de que ela sabia cozinhar. Na espreguiçadeira, o jornal abandonado no chão, o charuto a apagar-se, Nacib sorri, recordando... Três meses e dezessete dias a comer comida temperada por ela, não havia em todo Ilhéus cozinheira que se lhe pudesse comparar. Três meses e dezesseis dias dormindo com ela, a partir da segunda noite, quando o luar lambia-lhe a perna e no escuro do quarto saltava um seio da rota combinação...
Nessa tarde, devido talvez ao anormal movimento do bar, à excitação da presença do engenheiro, Nacib não conciliava o sono, tomado por seus pensamentos. A princípio não dera maior importância a nenhuma das duas coisas: nem à qualidade da comida nem ao corpo da retirante nas noites ardentes. Satisfeito com o tempero e a variedade dos pratos, só lhes deu o devido valor quando a freguesia começou a crescer, quando foi preciso aumentar o número de salgados e doces, quando sucederam-se unânimes os elogios e Plínio Araçá, cujos métodos comerciais eram dos mais discutíveis, mandou fazer uma oferta a Gabriela. Quanto ao corpo – aquele fogo de amor a consumi-la no leito, aquela loucura de noites atravessadas insones – prendeu-se a ele, insensivelmente. Nos primeiros tempos, apenas certas noites a procurava, quando, ao chegar em casa, ocupada ou doente Risoleta, não estava cansado e com sono. Então decidia deitar-se com ela, à falta de outra coisa a fazer. Mas durara pouco essa displicência. Logo habituara-se de tal maneira à comida feita por Gabriela que, convidado a jantar com Nhô-Galo no dia de seu aniversário, mal provara os pratos, sentindo diferença na finura do tempero. E fora, sem o sentir, amiudando as idas ao quarto do quintal, esquecendo a sabida Risoleta, passando a não suportar seu carinho representado, suas manhas, seus eternos queixumes, mesmo aquela ciência do amor que ela usava para lhe tirar dinheiro. Terminou por não mais procurá-la, não responder a seus bilhetes, e desde então, há quase dois meses, não tinha outra mulher senão Gabriela. Agora arribava todas as noites em seu quarto, procurando sair do bar o mais cedo possível.
Tempo bom, meses de vida alegre, de carne satisfeita, boa mesa, suculenta; de alma contente, cama de felizardo. No rol das virtudes de Gabriela, mentalmente estabelecido por Nacib na hora da sesta, contavam-se o amor ao trabalho e o senso de economia. Como arranjava tempo e forças para lavar a roupa, arrumar a casa – tão limpa nunca estivera! –, cozinhar os tabuleiros para o bar, almoço e jantar para Nacib? Sem falar que à noite estava fresca e descansada, úmida de desejo, não se dando apenas mas tomando dele, jamais farta, sonolenta ou saciada. Parecia adivinhar os pensamentos de Nacib, adiantava-se às suas vontades, reservava-lhe surpresas: certas comidas trabalhosas das quais ele gostava – pirão de caranguejo, vatapá́, viúva de carneiro –, flores num copo ao lado de seu retrato na mesinha da sala de visitas, troco do dinheiro dado para fazer a feira, essa ideia de vir ajudar no bar.
Antes era Chico Moleza, ao voltar do almoço, quem trazia para Nacib a marmita preparada por Filomena. A barriga a dar horas, o árabe esperava impaciente. Ficava só, com Bico-Fino, a servir os últimos fregueses do aperitivo. Um dia, sem prevenir, Gabriela aparecera com a marmita, vinha lhe pedir licença para ir à sessão espírita, dona Arminda a convidara. Ficou ajudando a servir, passou a vir todos os dias. Naquela noite lhe dissera:
– É melhor eu levar a comida pro moço. Assim come mais cedo, posso ajudar também. Importa não?
Como ia importar se a presença dela era mais uma atração para a freguesia? Nacib logo se deu conta: demoravam-se mais, pedindo outro trago, os ocasionais passavam a permanentes, vindo todos os dias. Para vê-la, dizer-lhe coisas, sorrir-lhe, tocar-lhe a mão. Afinal que lhe importava, era apenas sua cozinheira com quem dormia sem nenhum compromisso. Ela servia-lhe a comida, armava-lhe a cadeira de lona, deixava a rosa com seu perfume. Nacib, satisfeito da vida, acendia o charuto, tomava dos jornais, adormecia na santa paz de Deus, a brisa do mar a acariciar-lhe os bigodões florescentes. Mas nesse começo de tarde não conseguia dormir. Fazia mentalmente o balanço daqueles três meses e dezoito dias, agitados para a cidade, calmos para Nacib. Gostaria, no entanto, de cochilar pelo menos uns dez minutos, em vez de deter-se a relembrar coisas à toa, sem maior importância. De repente, sentiu que algo lhe faltava, talvez por isso não conseguisse dormir. Faltava-lhe a rosa, cada tarde encontrada caída no bojo da espreguiçadeira. Ele vira quando o juiz de direito, sem dar-se o respeito devido ao seu cargo, a furtara da orelha de Gabriela e a pusera em sua botoeira... Um homem idoso, de seus cinquenta anos, aproveitando-se da confusão em torno do engenheiro para roubar a rosa, um juiz... Ficara com medo de um gesto brusco de Gabriela, ela fez como se não tivesse percebido. Esse juiz estava saindo do sério. Antigamente nunca vinha ao bar na hora do aperitivo, aparecendo apenas, de quando em vez, à tardinha, com João Fulgêncio ou com o Dr. Maurício. Agora esquecia todos os preconceitos e, sempre que podia, lá estava no bar, bebendo um vinho do porto, rondando Gabriela
Rondando Gabriela... Nacib ficou a pensar. Sim, rondando, de súbito dava-se conta. E não era só ele, muitos outros também... Por que se demoravam além da hora do almoço, criando problemas em casa? Senão para vê-la, sorrir para ela, dizer-lhe gracinhas, roçar-lhe a mão, fazer-lhe propostas, quem sabe? De propostas Nacib sabia apenas de uma feita por Plínio Araçá. Mas aquela dirigia-se à cozinheira. Fregueses do Pinga de Ouro haviam-se mudado para o Vesúvio, Plínio mandara oferecer um ordenado maior a Gabriela. Apenas escolhera mal o mediador, confiando a mensagem ao negrinho Tuísca, fiel do Bar Vesúvio, leal a Nacib. Assim, fora o próprio árabe quem dera o recado a Gabriela. Ela sorrira:
– Quero não... Só se seu Nacib me botar pra fora...
Ele a tomara nos braços, era de noite, envolveu-se em seu calor. E aumentou-lhe em dez mil-réis o ordenado:
– Tou pedindo não... – disse ela.
Por vezes comprava-lhe um brinco para as orelhas, um broche para o peito, lembranças baratas, algumas nem lhe custavam nada, trazia da loja do tio. Entregava-as à noite, ela enternecia-se, agradecia-lhe humilde, beijando-lhe a palma da mão num gesto quase oriental:
– Moço bom, seu Nacib...Broches de dez tostões, brincos de mil e quinhentos, com isso lhe agradecia as noites de amor, os suspiros, os desmaios, o fogo a crepitar inextinguível. Cortes de fazenda vagabunda duas vezes lhe dera, um par de chinelos, tão pouco para as atenções, as delicadezas de Gabriela: os pratos de seu agrado, os sucos de frutas, as camisas tão alvas e bem passadas, a rosa caída dos cabelos na espreguiçadeira. De cima, superior e distante, ele a tratara como se estivesse a pagar-lhe regiamente o trabalho, a fazer-lhe um favor deitando-se com ela.
Os outros no bar a rondá-la. A rondá-la talvez na ladeira de São Sebastião, a mandar-lhe recados, a fazer-lhe propostas, por que não seria assim ? Nem todos haviam de usar Tuísca de portador, como ele, Nacib, iria saber? Que vinha fazer no bar o juiz de direito senão tentá-la? A rapariga do juiz, uma jovem cabrocha da roça, aparecera alastrada de doenças feias, ele a largara.
Quando Gabriela começara a vir ao bar, ele – idiota! – alegrara-se interessado apenas nos vinténs a mais das rodadas repetidas, sem pensar no perigo dessa tentação diariamente renovada. Impedi-la de vir não devia fazê-lo, deixaria de ganhar dinheiro. Mas era preciso trazê-la de olho, dar-lhe mais atenção, comprar-lhe um presente melhor, fazer-lhe promessas de novo aumento. Boa cozinheira era coisa rara em Ilhéus, ninguém o sabia melhor do que ele. Muita família rica, donos de bares e de hotéis deviam estar cobiçando sua empregada, dispostos a fazer-lhe escandalosos ordenados. E como iria continuar o bar sem os doces e os salgados de Gabriela, sem o seu sorriso diário, sua momentânea presença ao meio-dia? E como iria ele viver sem o almoço e o jantar de Gabriela, os pratos perfumados, os molhos escuros de pimenta, o cuscuz pela manhã?
E como viver sem ela, sem seu riso tímido e claro, sua cor queimada de canela, seu perfume de cravo, seu calor, seu abandono, sua voz a dizer-lhe moço bonito, o morrer noturno nos seus braços, aquele calor do seio, fogueira de pernas, como? E sentiu então a significação de Gabriela. Meu Deus!, que se passava, por que aquele súbito temor de perdê-la, por que a brisa do mar era vento gelado estremecer-lhe as banhas? Não, nem pensar em perdê-la, como viver sem ela?
Jamais poderia gostar de outra comida, feita por outras mãos, temperada por outros dedos. Jamais, ah!, jamais poderia querer assim tanto desejar, tanto necessitar sem falta, urgente, permanentemente, uma outra mulher, por mais branca que fosse, mais bem vestida e bem tratada, mais rica ou bem casada. Que significavam esse medo, esse terror de perdê-la, a raiva repentina contra os fregueses a fitá-la, a dizer-lhe coisas, a tocar-lhe a mão, contra o juiz ladrão de flores, sem respeito ao cargo? Nacib perguntava-se ansioso: afinal que sentia por Gabriela, não era uma simples cozinheira, mulata bonita, cor de canela, com quem deitava por desfastio? Ou não era tão simples assim? Não se animava a procurar a resposta.
A voz de Tonico Bastos veio – felizmente!, respirou aliviado – arrancá-lo desses pensamentos confusos e assustadores. Mas para outra vez neles mergulhá-lo, neles afundá-lo violentamente.
Pois, apenas haviam-se encostado no balcão, servindo-se Tonico do amargo, e já  Nacib, para varrer suas melancolias, lhe foi dizendo:
– Então o homem chegou finalmente... Mundinho lavrou um tento, essa é a verdade. Tonico, sorumbático, botou-lhe uns olhos maus:
– Por que você não cuida de sua vida, seu turco? Quem avisa amigo é. Em vez de ficar falando tolices, por que não toma conta do que é seu?
Queria Tonico apenas evitar o assunto do engenheiro, ou sabia de alguma coisa?
– Que quer você dizer com isso?
– Cuide do seu tesouro. Tem gente querendo roubar.
– Tesouro?
– Gabriela, bestalhão. Até casa querem botar pra ela.
– O juiz?
– Ele também? Ouvi falar de Manuel das Onças.
Não seria intriga de Tonico? O velho coronel estava muito do lado de Mundinho... Mas, também era verdade, agora aparecia em Ilhéus constantemente, não arredava do bar. Nacib estremeceu, viria do mar aquele vento gelado? Apanhou no escondido do balcão uma garrafa de conhaque sem mistura, serviu-se um trago respeitável. Quis puxar mais por Tonico, porem o tabelião arrenegava de Ilhéus:
– Merda de terra atrasada que se alvoroça toda com a presença de um engenheiro. Como se fosse coisa do outro mundo...


sábado, 22 de novembro de 2014

22 – Casa Tomada – Julio Cortázar

Julio Cortázar, escritor argentino (1914-1984), autor de Rayuela (O Jogo das amarelinhas), escreveu e publicou oito aproximadamente oitenta contos em sua vida. Alguns deles bem conhecidos como La Noche Boca arriba, La autopista del Sur, Las babas del diablo, El perseguidor, para mim, no entanto, seu primeiro conto Casa Tomada é o melhor. Simples e magico.

Casa tomada
Julio Cortázar
Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a nossa infância.


Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela, o que era uma loucura, pois nessa casa poderiam viver oito pessoas sem se estorvarem. Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às sete horas, e, por volta das onze horas, eu deixava para Irene os últimos quartos para repassar e ia para a cozinha. O almoço era ao meio-dia, sempre pontualmente; já que nada ficava por fazer, a não ser alguns pratos sujos. Gostávamos de almoçar pensando na casa profunda e silenciosa e em como conseguíamos mantê-la limpa. Às vezes chegávamos a pensar que fora ela a que não nos deixou casar. Irene dispensou dois pretendentes sem motivos maiores, eu perdi Maria Esther pouco antes do nosso noivado. Entramos na casa dos quarenta anos com a inexpressada idéia de que o nosso simples e silencioso casamento de irmãos era uma necessária clausura da genealogia assentada por nossos bisavós na nossa casa. Ali morreríamos algum dia, preguiçosos e toscos primos ficariam com a casa e a mandariam derrubar para enriquecer com o terreno e os tijolos; ou melhor, nós mesmos a derrubaríamos com toda justiça, antes que fosse tarde demais.


Irene era uma jovem nascida para não incomodar ninguém. Fora sua atividade matinal, ela passava o resto do dia tricotando no sofá do seu quarto. Não sei por que tricotava tanto, eu penso que as mulheres tricotam quando consideram que essa tarefa é um pretexto para não fazerem nada. Irene não era assim, tricotava coisas sempre necessárias, casacos para o inverno, meias para mim, xales e coletes para ela. Às vezes tricotava um colete e depois o desfazia num instante porque alguma coisa lhe desagradava; era engraçado ver na cestinha aquele monte de lã encrespada resistindo a perder sua forma anterior. Aos sábados eu ia ao centro para comprar lã; Irene confiava no meu bom gosto, sentia prazer com as cores e jamais tive que devolver as madeixas. Eu aproveitava essas saídas para dar uma volta pelas livrarias e perguntar em vão se havia novidades de literatura francesa. Desde 1939 não chegava nada valioso na Argentina. 
Mas é da casa que me interessa falar, da casa e de Irene, porque eu não tenho nenhuma importância. Pergunto-me o que teria feito Irene sem o tricô. A gente pode reler um livro, mas quando um casaco está terminado não se pode repetir sem escândalo. Certo dia encontrei numa gaveta da cômoda xales brancos, verdes, lilases, cobertos de naftalina, empilhados como num armarinho; não tive coragem de lhe perguntar o que pensava fazer com eles. Não precisávamos ganhar a vida, todos os meses chegava dinheiro dos campos que ia sempre aumentando. Mas era só o tricô que distraía Irene, ela mostrava uma destreza maravilhosa e eu passava horas olhando suas mãos como puas prateadas, agulhas indo e vindo, e uma ou duas cestinhas no chão onde se agitavam constantemente os novelos. Era muito bonito.


Como não me lembrar da distribuição da casa! A sala de jantar, lima sala com gobelins, a biblioteca e três quartos grandes ficavam na parte mais afastada, a que dá para a rua Rodríguez Pena. Somente um corredor com sua maciça porta de mogno isolava essa parte da ala dianteira onde havia um banheiro, a cozinha, nossos quartos e o salão central, com o qual se comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa por um corredor de azulejos de Maiorca, e a porta cancela ficava na entrada do salão. De forma que as pessoas entravam pelo corredor, abriam a cancela e passavam para o salão; havia aos lados as portas dos nossos quartos, e na frente o corredor que levava para a parte mais afastada; avançando pelo corredor atravessava-se a porta de mogno e um pouco mais além começava o outro lado da casa, também se podia girar à esquerda justamente antes da porta e seguir pelo corredor mais estreito que levava para a cozinha e para o banheiro. Quando a porta estava aberta, as pessoas percebiam que a casa era muito grande; porque, do contrário, dava a impressão de ser um apartamento dos que agora estão construindo, mal dá para mexer-se; Irene e eu vivíamos sempre nessa parte da casa, quase nunca chegávamos além da porta de mogno, a não ser para fazer a limpeza, pois é incrível como se junta pó nos móveis. Buenos Aires pode ser uma cidade limpa; mas isso é graças aos seus habitantes e não a outra coisa. Há poeira demais no ar, mal sopra uma brisa e já se apalpa o pó nos mármores dos consoles e entre os losangos das toalhas de macramê; dá trabalho tirá-lo bem com o espanador, ele voa e fica suspenso no ar um momento e depois se deposita novamente nos móveis e nos pianos.


Lembrarei sempre com toda a clareza porque foi muito simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando no seu quarto, por volta das oito da noite, e de repente tive a idéia de colocar no fogo a chaleira para o chimarrão. Andei pelo corredor até ficar de frente à porta de mogno entreaberta, e fazia a curva que levava para a cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som chegava impreciso e surdo, como uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa. Também o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que levava daqueles quartos até a porta. Joguei-me contra a parede antes que fosse tarde demais, fechei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava colocada do nosso lado e também passei o grande fecho para mais segurança.


Entrei na cozinha, esquentei a chaleira e, quando voltei com a bandeja do chimarrão, falei para Irene:


— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos.


Ela deixou cair o tricô e olhou para mim com seus graves e cansados olhos.


— Tem certeza?

Assenti.


— Então — falou pegando as agulhas — teremos que viver deste lado. 


Eu preparava o chimarrão com muito cuidado, mas ela demorou um instante para retornar à sua tarefa. Lembro-me de que ela estava tricotando um colete cinza; eu gostava desse colete.


Os primeiros dias pareceram-nos penosos, porque ambos havíamos deixado na parte tomada muitas coisas de que gostávamos. Meus livros de literatura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene pensou numa garrafa de Hesperidina de muitos anos. Freqüentemente (mas isso aconteceu somente nos primeiros dias) fechávamos alguma gaveta das cômodas e nos olhávamos com tristeza. 


— Não está aqui.


E era mais uma coisa que tínhamos perdido do outro lado da casa. 


Porém também tivemos algumas vantagens. A limpeza simplificou-se tanto que, embora levantássemos bem mais tarde, às nove e meia por exemplo, antes das onze horas já estávamos de braços cruzados. Irene foi se acostumando a ir junto comigo à cozinha para me ajudar a preparar o almoço. Depois de pensar muito, decidimos isto: enquanto eu preparava o almoço, Irene cozinharia os pratos para comermos frios à noite. Ficamos felizes, pois era sempre incômodo ter que abandonar os quartos à tardinha para cozinhar. Agora bastava pôr a mesa no quarto de Irene e as travessas de comida fria.


Irene estava contente porque sobrava mais tempo para tricotar. Eu andava um pouco perdido por causa dos livros, mas, para não afligir minha irmã, resolvi rever a coleção de selos do papai, e isso me serviu para matar o tempo. Divertia-nos muito, cada um com suas coisas, quase sempre juntos no quarto de Irene que era o mais confortável. Às vezes Irene falava: 


— Olha esse ponto que acabei de inventar. Parece um desenho de um trevo?


Um instante depois era eu que colocava na frente dos seus olhos um quadradinho de papel para que olhasse o mérito de algum selo de Eupen e Malmédy. Estávamos muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar. Pode-se viver sem pensar.


(Quando Irene sonhava em voz alta eu perdia o sono. Nunca pude me acostumar a essa voz de estátua ou papagaio, voz que vem dos sonhos e não da garganta. Irene falava que meus sonhos consistiam em grandes sacudidas que às vezes faziam cair o cobertor ao chão. Nossos quartos tinham o salão no meio, mas à noite ouvia-se qualquer coisa na casa. Ouvíamos nossa respiração, a tosse, pressentíamos os gestos que aproximavam a mão do interruptor da lâmpada, as mútuas e freqüentes insônias.


Fora isso tudo estava calado na casa. Durante o dia eram os rumores domésticos, o roçar metálico das agulhas de tricô, um rangido ao passar as folhas do álbum filatélico. A porta de mogno, creio já tê-lo dito, era maciça. Na cozinha e no banheiro, que ficavam encostados na parte tomada, falávamos em voz mais alta ou Irene cantava canções de ninar. Numa cozinha há bastante barulho da louça e vidros para que outros sons irrompam nela. Muito poucas vezes permitia-se o silêncio, mas, quando voltávamos para os quartos e para o salão, a casa ficava calada e com pouca luz, até pisávamos devagar para não incomodar-nos. Creio que era por isso que, à noite, quando Irene começava a sonhar em voz alta, eu ficava logo sem sono.) 


É quase repetir a mesma coisa menos as conseqüências. Pela noite sinto sede, e antes de ir para a cama eu disse a Irene que ia até a cozinha pegar um copo d'água. Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho na cozinha ou talvez no banheiro, porque a curva do corredor abafava o som. Chamou a atenção de Irene minha maneira brusca de deter-me, e veio ao meu lado sem falar nada. Ficamos ouvindo os ruídos, sentindo claramente que eram deste lado da porta de mogno, na cozinha e no banheiro, ou no corredor mesmo onde começava a curva, quase ao nosso lado.


Sequer nos olhamos. Apertei o braço de Irene e a fiz correr comigo até a porta cancela, sem olhar para trás. Os ruídos se ouviam cada vez mais fortes, porém surdos, nas nossas costas. Fechei de um golpe a cancela e ficamos no corredor. Agora não se ouvia nada.


— Tomaram esta parte — falou Irene. O tricô pendia das suas mãos e os fios chegavam até a cancela e se perdiam embaixo da porta. Quando viu que os novelos tinham ficado do outro lado, soltou o tricô sem olhar para ele.


— Você teve tempo para pegar alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente.


— Não, nada.

Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário do quarto. Agora já era tarde.


Como ainda ficara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura de Irene (acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua. Antes de partir senti pena, fechei bem a porta da entrada e joguei a chave no ralo da calçada. Não fosse algum pobre-diabo ter a idéia de roubar e entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada.


O texto acima foi publicado originalmente em "Bestiario" e extraído do livro "Contos Latino-Americanos Eternos", Bom Texto Editora, Rio de Janeiro — 2005, pág. 09, organização e tradução de Alicia Ramal.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

21 – O grande inquisidor – F. Dostoievski

Fiodor Dostoievski, escritor russo (1821-1881). “O grande inquisidor” não é um conto mas sim um capitulo de seu ultimo romance, Os Irmãos Karamazov. Não é um texto fácil de ser lido, mas é certamente um dos maiores momentos da literatura mundial. Nele Cristo regressa a terra em meio a Inquisição do século XV e nas palavras do Grande Inquisidor, Dostoievski provoca uma profunda reflexão sobre a liberdade – desejo supremo para alguns e talvez um grande temor para outros. Provavelmente uma segunda, ou mesmo uma terceira leitura será necessária, mas ao final, muitos elementos da discussão religiosa, e mesmo da questão política  que podem parecer ilógicos, terão para o leitor um novo e mais claro significado.

O grande inquisidor
Fiodor Dostoiéwski

É preciso, sob o ponto de vista literário, que o meu poema tenha um preâmbulo. A ação passa-se no século XVI; bem sabes que era costume, nesta época, fazer intervir nos poemas os poderes celestes. Não falo de Dante. Em França, os "clercs de la basoche" e os monges davam representações em que punham em cena Nossa Senhora, os anjos, os santos, Cristo e Deus. Eram espetáculos ingênuos. Na Nossa Senhora de Paris, de Vítor Hugo, o povo é convidado, no tempo de Luís XI, em Paris, e em honra do nascimento do Delfim, para uma representação edificante e gratuita: O Bom Juízo da Sagrada e Graciosa Virgem Maria. Neste mistério aparece a própria Virgem a pronunciar o seu "bom Juízo". No nosso país, em Moscovo, antes de Pedro, o Grande, davam-se, de tempos a tempos, representações deste gênero, inspiradas sobretudo no Velho Testamento. Além disso, circulava uma grande quantidade de narrativas e de poemas em que figuravam, segundo as necessidades, os santos, os anjos, o exército celeste. Nos mosteiros traduziam- se e copiavam-se estes poemas, e compunham-se mesmo outros novos, tudo sob a dominação dos Tártaros. Existe, por exemplo, um pequeno poema, traduzido sem duvida do grego: A Virgem no Inferno com quadros duma audácia dantesca: a Virgem visita o Inferno, guiada pelo arcanjo S. Miguel, e vê os condenados e os seus tormentos; entre outros, há uma categoria muito interessante de pecadores: os do lago de fogo; mergulham no lago e nunca mais aparecem: são aqueles "de que até Deus se esquece" – expressão esta duma profundeza e duma energia notável. A Virgem, chorando, cai de joelhos diante do trono de Deus e pede o perdão de todos os pecadores que viu no Inferno, sem distinção; o Seu dialogo com Deus é dum interesse extraordinário; suplica, insiste e, quando Deus Lhe mostra os pés e as mãos do Filho furados pelos pregos e Lhe pergunta: "Como poderia eu perdoar aos seus verdugos?" –, ordena a todos os santos, a todos os mártires, a todos os anjos que se ponham de joelhos como Ela e implorem a Deus que perdoe a todos os pecadores, sem distinção. Obtém, por fim, que cessem os tormentos, todos os anos, desde Sexta-Feira Santa ao Pentecostes, e os condenados, do fundo do Inferno, agradecem a Deus e gritam: "Senhor, a Tua sentença é justa!". Pois bem: o meu poemazito teria sido deste gênero, se o tivesse escrito nessa época. Deus aparece; não diz nada; só passa. Rodaram quinze séculos, depois que prometeu voltar ao Seu reino, depois que o Seu profeta escreveu: "Cedo voltarei; quanto ao dia e à hora, o Filho mesmo não os conhece; só o sabe meu Pai que está nos Céus", segundo as próprias palavras que pronunciou na Terra. E a humanidade espera-O com a mesma fé que outrora, fé mais ardente ainda, porque já quinze séculos passaram depois que o Céu deixou de dar penhores aos homens: "Crê no que te diz o coração; os Céus não dão penhores".
É verdade que se produziam então numerosos milagres: os santos realizavam curas maravilhosas, a Rainha dos Céus visitava certos justos, a acreditar no que narram as biografias. Mas o Diabo não dorme; a humanidade começa a duvidar da autenticidade destes prodígios. Neste momento, nasceu na Alemanha uma heresia terrível que negava os milagres. "Uma grande estrela, ardendo como um facho (a Igreja, evidentemente!), caiu sobre as fontes das águas, que se tornaram amargas". A fé dos fiéis redobrou. As lagrimas da humanidade elevam-se para Ele como outrora, e aguardam-n'O e amam-n'O e têm esperança n'Ele como outrora... Já há tantos séculos que a humanidade roga com ardor: "Senhor, digna-Te aparecer-nos", já há tantos séculos que para Ele vão seus gritos, que, na Sua misericórdia infinita, quis descer junto dos fiéis. Já antes tinha visitado, pelo que nos dizem os biógrafos, alguns justos, mártires e santos anacoretas. Entre nós, Pintchev, que acreditava profundamente na verdade das Suas palavras, proclamou que "curvado ao peso da Sua cruz e com humilde aparência, o Rei dos Céus te percorreu, ó terra natal, a abençoar-te toda".
Mas eis que se quis mostrar, por um instante ao menos, ao povo sofredor e miserável, ao povo mergulhado nos pecados, mas que O ama ingenuamente. A ação passa-se em Espanha, em Sevilha, na época mais terrível da Inquisição, quando todos os dias, para glória de Deus, se acendiam as fogueiras e "os medonhos hereges ardiam em soberbos autos-de-fé". Oh! não foi assim que prometeu voltar, no fim dos tempos, em toda a Sua glória, subitamente, "como um relâmpago que brilha de Oriente a Ocidente". Não; quis visitar Seus filhos, precisamente no lugar em que crepitavam as fogueiras dos hereges. Na Sua infinita misericórdia, volta para entre os homens com a forma que tinha durante os três anos de vida publica. Desce pelas ruas ardentes da cidade meridional em que, justamente na véspera, em presença do rei, dos cortezões, dos cavaleiros, dos cardeais e das mais gentis damas da corte, o grande inquisidor mandou queimar uma centena de hereges, ad majorem gloriam Dei. Apareceu suavemente, sem se fazer notar, e, coisa estranha, todos O reconhecem; a explicação do motivo seria um dos mais belos passos do meu poema; atraído por uma força irresistível, o povo comprime-se à Sua passagem e segue-Lhe os passos. Silencioso, passa pelo meio da multidão com um sorriso de compaixão infinita. Tem o coração abrasado de amor, dos olhos se Lhe desprendem a Luz, a Ciência, a Força que irradiam e nas almas despertam o amor. Estende-lhes os braços, abençoa-os, e uma virtude salutar emana do Seu contato e até dos Seus vestidos. Um velho, cego de criança, grita dentre o povo: "Senhor, cura-me e ver-Te-ei"; cai-lhe uma escama dos olhos e o cego vê. O povo derrama lágrimas de alegria e beija o chão que Ele pisa. As crianças deitam-Lhe flores no caminho; todos cantam, todos gritam: Hosana! É Ele, deve ser Ele, não pode ser senão Ele! Para no adro da Catedral de Sevilha, no momento em que trazem um caixãozinho branco, com uma menina de sete anos, filha única de um homem importante. A morta está coberta de flores.
– Vai ressuscitar a tua filha – gritam da multidão para a mãe cheia de lágrimas. O padre que viera ao encontro do caixão olha com ar perplexo e franze o sobrolho. De repente, ouve-se um grito e a mãe lança-se-Lhe aos pés: "Se és Tu, ressuscita-me a filha! - e estende-Lhe os braços. O préstito para, pousam o caixão nas lajes. Ele contempla-o com piedade e a Sua boca profere suavemente, uma vez mais: Talitha kum, e a rapariga levantou-se. Soergue-se a morta, senta-se e olha em torno, sorridente, com um ar de espanto; segura nas mãos o ramo de rosas brancas que lhe tinham posto no caixão. Na gente que assiste, há perturbação, gritos e choros. Neste instante, passa pela praça o cardeal grande inquisidor. É um velho alto, quase nonagenário, com uma face seca e olhos cavados, onde ainda brilha, porém, uma centelha. Não tem o vestuário pomposo com que no dia anterior se pavoneava diante do povo, enquanto se queimavam os inimigos da Igreja romana; voltou ao grosseiro burel. Os taciturnos ajudantes e a guarda do Santo Ofício seguem-no a respeitosa distância. Para diante da multidão e observa-a de longe. Viu tudo, o caixão pousado perante Ele, a ressurreição da criança – e a face tornou-se-lhe sombria. Franze as espessas sobrancelhas e os olhos brilham lhe com sinistro clarão. Aponta-O com o dedo e ordena aos guardas que O prendam. Tão grande é o seu poder e tão habituado está o povo a submeter-se, a obedecer- lhe, tremendo, que a multidão se afasta diante dos esbirros; estes, no meio de um silêncio de morte, seguram-n'O e levam-n'O. Como um só homem, o povo inclina-se até o chão diante do velho inquisidor que o abençoa sem dizer palavra e prossegue o seu caminho. Conduzem o Preso ao velho e sombrio edifício da Inquisição, metem-n'O em estreita cela abobadada. Termina o dia e chega a noite, uma noite de Sevilha, quente e sufocante. O ar está todo perfumado de loureiros e limoeiros. De súbito, nas trevas, abre-se a porta de ferro do calabouço e o grande inquisidor aparece, com um archote na mão. Está só e a porta se fecha por trás dele. Para no limiar, considera longamente a Face Sagrada. Por fim, aproxima-se, pousa o archote na mesa e diz-Lhe:
– És Tu, és Tu? - E, como não recebe resposta, acrescenta rapidamente: – Não digas nada, cala-Te. De resto, que poderias Tu dizer? Já o sei de mais. Não tens o direito de juntar uma palavra ao que disseste outrora. Porque vieste incomodar-nos? Bem sabes que nos incomodas. Mas, sabes o que acontecerá amanhã? Ignoro quem és e nem quero sabê-lo: és Tu ou somente a Sua aparência? Mas amanhã hei de condenar-Te e serás queimado como o pior dos heréticos e o mesmo povo que hoje Te beijava os pés se precipitará amanhã, a um sinal meu, para deitar lenha na fogueira. Sabes tudo isso? Talvez – diz ainda o velho, pensativo, com os olhos sempre fixos no Preso.
– Não compreendo bem o que isso quer dizer, Ivan - objetou Aliocha, que tinha escutado em silêncio. – É uma fantasia, um erro do velho, um estranho mal-entendido?
– Admite essa última hipótese – respondeu Ivan, rindo - se o realismo moderno te tornou a esse ponto refratário ao sobrenatural. Seja como tu quiseres. É verdade, o meu inquisidor tem noventa anos e pode ser que a sua ideia lhe tenha perturbado o espirito já há muito. Pode ser, enfim, um simples delírio, o sonho de um velho antes do fim, com a imaginação excitada pelo corrente auto-de-fé. Mas, mal-entendido ou fantasia, que nos importa? O que é preciso notar somente é que o inquisidor revela finalmente o seu pensamento, descobre o que calou durante toda a sua carreira.
– E o Preso não diz nada? Contenta-se em olhar?
– Decerto. Não tem outra coisa a fazer senão calar-se. O próprio velho lhe faz observar que não tem o direito de juntar nem mais uma palavra ao que disse antigamente. Na minha humilde opinião, é esta talvez a característica fundamental do catolicismo romano: "Tudo foi transmitido por Ti ao papa, tudo depende agora do papa; não venhas incomodar-nos, antes do tempo, pelo menos." Tal é a doutrina deles; em qualquer caso, é a dos Jesuítas; encontrei-a nos seus teólogos. "Tens Tu o direito de nos revelar um só dos segredos do mundo donde vens?" – pergunta o velho que logo responde em lugar do Outro: "Não, não tens o direito de o fazer, porque esta revelação se juntaria à de outrora, e isso seria retirar aos homens a liberdade que tanto defendias na Terra. Todas as Tuas novas revelações infringiriam a liberdade da fé, porque pareceriam miraculosas; ora, Tu punhas acima de tudo, há quinze séculos, esta liberdade da fé". Não disseste Tu muitas vezes: "Quero tornar-vos livres"? Pois bem: lá os viste, aos homens "livres" - acrescenta o velho, com um ar sarcástico. Sim, custou-nos caro - prossegue, olhando-O, com severidade, mas, enfim, sempre completamos em Teu nome esta obra. Foram necessários quinze séculos de rude trabalho para instaurar a liberdade; mas está pronto, e bem pronto. Não crês? Olhas-me com brandura, sem mesmo dares a honra de Te indignares? Mas é bom saberes que nunca os homens se julgaram tão livres como hoje, e, contudo, depuseram a nossos pés, humildemente, a sua liberdade. É esta a nossa obra, na verdade; é a liberdade que Tu sonhavas?
– Não compreendo outra vez – interrompeu Aliocha; é uma ironia dele, é uma troça?
– De modo nenhum! Gaba-se de terem, Ele e os Seus, suprimido a liberdade, com o objetivo de tornar os homens felizes. "Porque é agora, pela primeira vez (fala da Inquisição, bem entendido), que se pode pensar na felicidade dos homens. São, por natureza, uns revoltados; podem os revoltados ser felizes? Tu estavas prevenido, não Te faltaram conselhos, mas não Te importaste, puseste de parte o único meio de obter a felicidade para os homens; e foi uma sorte que, ao partires, nos tivesses transmitido a obra, nos tivesses prometido, nos tivesses solenemente concedido o direito de ligar e desligar; não poderias agora pensar em nos retirares esse direito. Porque vieste incomodar-nos?
– Que significa isso: "Não Te faltaram avisos e conselhos"?
– Mas é o ponto capital do discurso do velho.

"O Espírito terrível e profundo, o Espírito da destruição e do nada – continua ele – falou-Te no deserto e contam as Escrituras que Te "tentou". É verdade? E podiam ter-Te dito alguma coisa de mais penetrante que as três perguntas, ou, para falar como as Escrituras, as "tentações" que repeliste? Se jamais houve na Terra um milagre autêntico e retumbante, foi no dia dessas três tentações. Basta o fato de se terem formulado as três perguntas para que haja o milagre. Suponhamos que desapareciam das Escrituras, que era preciso reconstitui-las, imaginá-las de novo para as pôr lá outra vez, e que, para esse fim, se reuniam todos os sábios da Terra, homens de Estado, prelados, homens de ciência, filósofos, poetas, e se lhes dizia: "Imaginai, redigi três perguntas que não somente correspondam à importância do acontecimento, mas exprimam ainda, em três frases, toda a história da humanidade futura; achas que este areópago da sabedoria humana poderia imaginar alguma coisa de tão forte e de tão profundo como as três perguntas que te propôs então o poderoso Espírito? Elas provam, sozinhas, que se tratava do Espírito eterno e absoluto, não de um espírito humano transitório, porque resumem e predizem ao mesmo tempo toda a história posterior da humanidade; são as três formas em que se cristalizam todas as contradições insolúveis da natureza humana. Nesse momento, ninguém deu conta de nada, porque o futuro estava encoberto, mas hoje, como passaram quinze séculos, vemos que tudo fora previsto nas três perguntas e se realizou a tal ponto que é impossível juntar ou cortar uma só palavra.
"Decide Tu próprio quem tinha razão, Tu ou aquele que Te interrogava. Lembra-Te da primeira, pelo menos do sentido: querer ir pelo mundo com as mãos vazias, a pregar aos homens uma liberdade que a sua estupidez e a sua ignomínia natural os impedem de compreender, uma liberdade que lhes faz medo, porque nada há nem nunca houve tão intolerável para o homem e para a sociedade! Vês estas pedras neste árido deserto? Transforma-as em pães e a humanidade seguirá os Teus passos, como um rebanho dócil e reconhecido, mas sempre com medo que a Tua mão se retire e que o pão se lhe acabe. "Mas não quiseste privar o homem da liberdade e recusaste, achando que ele era incompatível com a obediência comprada como os pães. Replicaste que o homem não vive só de pão; mas, sabes que em nome do pão terrestre o Espírito da Terra se levantará contra Ti, lutará e Te há-de vencer, e que todos o hão de seguir gritando: "Quem se pode comparar com a besta que nos dá o fogo do Céu?" Hão de passar os séculos e a humanidade proclamará, pela boca dos seus homens de ciência e dos seus sábios, que não há crimes e que, por conseguinte, não há pecados: só há famintos. "Alimenta-os e só depois podes exigir que sejam virtuosos!" Eis o que se há-de inscrever no estandarte da revolta que abaterá o Teu templo. Elevarão em vez dele um novo edifício, uma segunda torre de Babel que, sem dúvida, como a primeira, ficará por terminar; mas poderias ter poupado aos homens esta nova tentativa e mil anos de sofrimento. Hão de vir procurar-nos, depois de se terem esforçado, durante mil anos, por construir a sua torre. Hão de procurar-nos debaixo do chão como outrora, nas catacumbas em que estaremos escondidos (porque nos perseguirão de novo) e hão de clamar: "Dai-nos de comer, porque aqueles que nos tinham prometido o fogo do Céu nada nos deram." Então havemos de acabar a torre, porque para tal só é preciso comida, e nós os alimentaremos, em Teu nome, claro, e lhes faremos crer. Sem nós, estarão sempre com fome. Nenhuma ciência lhes dará o pão enquanto estiverem livres; e hão de depô-la a nossos pés, a essa liberdade, e dirão: "Fazei de nós escravos, mas alimentai- nos." Compreenderão, enfim, que a liberdade é inconciliável com o pão da Terra à discrição, porque nunca hão de saber reparti-lo entre si! Também se hão de convencer da sua impotência para se tornarem livres, porque são fracos e depravados, revoltados e nulos. Prometias-lhes o pão do Céu; e, vamos lá uma vez mais, acaso se pode ele comparar com o da Terra aos olhos da fraca raça humana, eternamente ingrata e depravada? Milhares e dezenas de milhares de almas Te hão de seguir por causa deste pão, mas que há de ser dos milhões e dos biliões que não tiverem coragem de preferir o pão do Céu ao pão da Terra? Não serias Tu amigo senão dos grandes e dos fortes, para quem os outros, a multidão inumerável, que é fraca, mas que Te ama, serviria apenas de matéria explorável? Mas nós somos também amigos dos seres fracos. Embora depravados e revoltados, hão de tornar-se finalmente dóceis. Hão de admirar-nos e hão de julgar-nos deuses por termos consentido, pondo- nos à frente deles, em assegurar a liberdade que temiam e em dominá-los; tal será́, por fim, o seu medo de serem livres. Mas dir-lhes-emos que somos Teus discípulos, que reinamos em Teu nome. Enganá-los-emos de novo, porque nessa altura não deixaremos que Te aproximes de nós. E é esta impostura que constituirá́ o nosso sofrimento, porque seremos obrigados a mentir. É este o sentido da primeira pergunta que Te fizeram no deserto e foi isto o que Tu repeliste em nome da liberdade que punhas acima de tudo. Continha, no entanto, o segredo do mundo. Se tivesses consentido no milagre dos pães, terias acalmado a eterna inquietação da humanidade - indivíduos e coletividade - : "diante de quem se inclinar?" Porque não há para o homem que ficou livre cuidado mais constante e mais doloroso do que o de procurar um ser diante do qual se incline. Mas não quer inclinar-se senão diante de uma força incontestada, que todos os seres humanos respeitam por um consentimento universal. Estas pobres criaturas atormentam-se na busca de um culto que reúna não somente alguns fiéis, mas no qual comunguem todos juntos, unidos pela mesma fé. Esta necessidade do comum na adoração é o principal tormento de cada indivíduo e da humanidade inteira, desde o começo dos séculos. É para realizar este sonho que tem havido os extermínios a gladio. Os povos forjaram deuses e desafiaram-se uns aos outros: "Abandona os vossos deuses, adorai os nossos; senão, ai de vós e dos vossos deuses!" E será assim até o fim do mundo, mesmo quando já os deuses tiverem desaparecido; prostrar-se-ão diante dos ídolos. Não ignoravas, não podias ignorar este segredo fundamental da natureza humana e, contudo, repeliste a única bandeira infalível que Te ofereciam e que teria curvado, sem contestação, todos os homens diante de Ti, a bandeira do pão terrestre; repeliste-a em nome do pão celeste e da liberdade! Vê o que fizeste depois, e sempre em nome da liberdade! Não há, torno a dizer-Te, anseio mais doloroso para o homem que o de encontrar o mais cedo possível um ser a quem entregue este dom da liberdade que o desgraçado traz ao nascer. Mas, para dispor da liberdade dos homens, é necessário dar-lhes a paz da consciência. O pão garantia-Te o êxito; o homem inclina-se diante de quem o dá, porque é coisa incontestada; mas logo que outro se assenhoreie da consciência humana, deixará o Teu pão para seguir quem cativou a sua consciência. Nisto tinhas Tu razão, porque o segredo da existência humana consiste, não somente em viver, mas também em encontrar um motivo de viver. Sem uma ideia nítida do fim da existência, o homem prefere abandoná-la e, embora estivesse rodeado de montões de pão, antes seria capaz de suicidar-se do que de ficar na Terra. Mas, que aconteceu? Em lugar de Te apoderares da liberdade humana, foste alargá-la ainda mais!
Esqueceste que o homem prefere a paz, e até a morte, à liberdade de discernir o Bem e o Mal? Nada há de mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio, mas nada há também de mais doloroso. E, em vez de princípios sólidos que tivessem tranquilizado para sempre a consciência humana, escolheste noções vagas, estranhas, enigmáticas, tudo o que ultrapassa a força dos homens; agiste, portanto, como se os não amasses, Tu, que tinhas vindo para dar a vida por eles! Aumentaste a liberdade humana em lugar de a confiscares e impuseste assim, para sempre, ao ser moral as agonias dessa liberdade. Querias ser livremente amado, voluntariamente seguido pelos homens que tivesses encantado. Em vez da dura lei antiga, o homem devia, daí por diante, discernir, de coração livre, o Bem e o Mal, não tendo para o guiar senão a Tua imagem; mas não previas que por fim repeliria e contestaria mesmo a Tua imagem e a Tua verdade, porque estava esmagado pelo fardo terrível da liberdade de escolher? Hão de gritar que a verdade não estava em Ti; de outro modo, não os terias deixado em tão angustiosa incerteza, com tantos cuidados e tantos problemas insolúveis. Preparaste assim a ruína do Teu reino; não deves, portanto, acusar ninguém dessa ruína. Era isto, contudo, o que Te propunham? Há três forças, as únicas que podem subjugar para sempre a consciência destes fracos revoltados: são o milagre, o mistério, a autoridade! A todas três afastaste, dando assim um exemplo. O Espirito terrível e fecundo transportara-Te ao pináculo do templo e dissera-Te: "Queres Tu saber se és Filho de Deus? Atira-Te abaixo, porque está escrito que os anjos O hão de sustentar e segurar e não Se ferirá; ficaras então a saber se és o Filho de Deus e provarás assim a Tua Fé em Teu Pai." Mas repeliste a proposta e não Te precipitaste. Mostraste nessa altura uma altivez sublime, divina, mas os homens, raça fraca e revoltada, não são deuses! Sabias que, se desses um passo, se fizesses um gesto para Te precipitares, terias tentado o Senhor e perdido a Fé que n'Ele tinhas. Com grande alegria do tentador, ter-Te-ias despedaçado na Terra que vinhas salvar. Mas haverá́ muitos como Tu? Podes admitir por um instante que os homens teriam a força de resistir a semelhante tentação? É próprio da natureza humana repelir o milagre e, nos momentos graves da vida, perante as questões capitais e dolorosas, entregar-se à livre decisão do espírito? Oh! Tu sabias que a Tua firmeza seria relatada nas Escrituras, atravessaria as idades, atingiria as regiões mais longínquas, e esperavas que, seguindo o Teu exemplo, o homem se contentasse com Deus, sem recorrer ao milagre. Mas ignoravas que o homem repele Deus ao mesmo tempo que o milagre, porque é sobretudo o milagre o que ele busca. E, como não era capaz de passar sem ele, forja novos milagres, os seus próprios milagres, e inclina-se diante dos prodígios dum mago, dos sortilégios de uma feiticeira, mesmo que seja um revoltado, um herético, um ímpio confesso. Não desceste da cruz quando zombavam de Ti e Te gritavam por troça: "Desce da cruz e acreditaremos em Ti." Não o fizeste, porque não querias escravizar de novo o homem com um milagre; desejavas uma fé que fosse livre e não inspirada pelo maravilhoso. Era-Te necessário um livre amor, não os transportes dum escravo aterrado. Ainda aí fazias uma ideia elevada dos homens, porque são escravos, embora tenham sido criados rebeldes. Vê e ajuíza, após quinze séculos: quem elevaste até junto de Ti? Posso jurar-te: o homem é mais fraco e mais vil do que Tu julgavas. Acaso pode ele realizar o mesmo que Tu? A grande estima que tinhas pelos homens prejudicou a piedade. Exigiste-lhes demasiado, Tu que, no entanto, os amavas mais do que a Ti próprio! Estimando-os menos, ter-lhes-ias imposto fardo mais leve, mais de acordo com o Teu amor. São covardes e fracos. Que importa que se insurjam agora contra a nossa autoridade e se orgulhem da sua revolta? É o orgulho dos rapazitos de escola que se amotinaram e expulsaram o mestre. A alegria dos garotos acabará e custar-lhes-á cara. Derrubarão os templos e inundarão a Terra de sangue; mas perceberão por fim, essas estúpidas crianças, que não são mais do que fracos revoltados incapazes de manter a sua revolta durante muito tempo. Derramarão lágrimas absurdas e compreenderão que o Criador, fazendo-os rebeldes, quis troçar deles, com certeza. Hão de chamá-Lo com desespero e esta blasfêmia torná-los-á ainda mais infelizes porque a natureza humana não suporta a blasfêmia e acaba sempre por se vingar. A inquietação, as perturbações, a infelicidade, eis aqui o que possuem os homens, depois de tudo que sofreste pela sua liberdade! O Teu eminente profeta diz, na sua visão simbólica, que viu todos os que participavam da primeira ressurreição, e que havia doze mil para cada tribo. Para serem tão numerosos deviam ser mais do que homens, deviam ser quase deuses. Suportavam a Tua cruz e a vida no deserto, alimentados a gafanhotos e a raízes; decerto podes estar orgulhoso destes filhos da liberdade, do livre amor, do sublime sacrifício em Teu nome. Mas lembra-Te de que não eram senão alguns milhares e quase deuses; e o resto? É culpa deles, dos outros, dos fracos homens, o não terem podido suportar o que suportam os fortes? Acaso tem culpa a alma fraca de não poder conter dores tão terríveis? Só vieste para os eleitos? Nesse caso, é um mistério, incompreensível para nós, e teríamos o direito de o pregar aos homens, de ensinar que não importam nem a livre decisão dos corações nem o amor, mas sim o mistério, a que se devem submeter cegamente, mesmo contra a aprovação da sua consciência. Foi o que nós fizemos. Corrigimos a Tua obra fundando-a sobre o milagre, o mistério, a autoridade. E os homens alegraram-se, porque eram de novo levados como um rebanho e ficavam livres da diva funesta que tais tormentos lhes causava. Não é verdade que tínhamos razão para proceder assim? Não era amar a humanidade, compreender a sua fraqueza, aliviando-lhe o fardo com amor, tolerar mesmo o pecado à sua fraca natureza, contanto que fosse com permissão nossa? Para que vieste, portanto, entravar a nossa obra? Para que Te conservas em silêncio e me fixas com o Teu olhar terno e penetrante? É preferível que Te zangues, porque não quero o Teu amor: eu mesmo não Te amo. Porque o hei de dissimular? Sei a quem falo, conheço o que tenho a dizer-Te, vejo-o nos Teus olhos. Terei eu de Te esconder o nosso segredo? Mas talvez o queiras ouvir da minha boca; aqui o tens. Não estamos contigo, mas com ele, e já há muito tempo. Há exatamente Oito séculos que recebemos dele esta última dádiva que Tu afastaste com indignação quando ele te mostrava todos os reinos da Terra; aceitamos Roma e o gládio de César e declarámo-nos os únicos reis da Terra, se bem que não tenhamos tido tempo até agora de ultimar a nossa obra. Mas, de quem é a culpa? O trabalho ainda está no princípio, está longe do termo e a Terra terá́ ainda muito que sofrer, mas nós atingiremos o nosso objetivo, seremos césares; pensaremos então na felicidade universal.
No entanto, poderias ter empunhado o gládio de César. Por que motivo afastaste esta última dádiva? Se seguisses o terceiro conselho do poderoso Espírito, realizarias tudo o que os homens procuram na Terra: um senhor diante de quem se inclinem, um guarda da consciência e o meio de finalmente se unirem em concórdia num formigueiro comum, porque a necessidade da união universal é o terceiro e último tormento da raça humana. A humanidade, no seu conjunto, mostrou sempre tendência para se organizar sobre uma base universal. Tem havido grandes povos de história gloriosa, mas, à medida que se têm elevado, têm sofrido mais, porque sentem mais fortemente do que os outros a necessidade da união universal. Os grandes conquistadores, os Tamerlão e os Gengiscão, que percorreram a Terra como furacões, encarnavam também, sem disso terem consciência, esta aspiração dos povos para a unidade. Aceitando a púrpura de César, terias fundado o império universal e dado a paz ao mundo. Com efeito, quem pode dominar os homens senão aqueles que lhes dominam a consciência e dispõem do pão? Tomamos o gládio de César e, ao fazê-lo, abandonamos-Te para o seguirmos. Oh! hão de passar ainda séculos de licença intelectual, de vã ciência e de antropofagia, porque é por isso que hão de acabar, depois de terem edificado sem nós a sua torre de Babel. Então a besta virá ter conosco, de rastos, lamberá os nossos pés, regá-los-á com lágrimas de sangue; e subir-lhe-emos para cima e levantaremos no ar uma taça em que estará gravada a palavra "Mistério!" Só então a paz e a felicidade reinarão entre os homens. Tens orgulho dos Teus eleitos, mas são apenas um escol, ao passo que nós daremos o repouso a todos. De resto, entre esses fortes destinados a serem os eleitos, quantos se cansaram de esperar, quantos levaram e continuarão a levar para outros pontos as forças do seu espírito e o ardor do seu coração, quantos acabarão por se insurgir contra Ti em nome da liberdade. Mas foste Tu quem a deu. Tornaremos os homens felizes, cessarão as revoltas e chacinas que são inseparáveis da Tua liberdade. Oh! havemos de persuadi-los de que não serão verdadeiramente livres senão abdicando da sua liberdade em nosso favor. Pois bem! Diremos a verdade ou mentiremos? Eles próprios se convencerão de que falamos a verdade, porque se hão de lembrar da escravatura e da perturbação em que os tinha lançado a Tua liberdade. A independência, o pensamento livre, a ciência, hão de perdê-los num tal labirinto, hão de pô-los em presença de tais prodígios, de tais enigmas, que uns, rebeldes, furiosos, se destruirão a si próprios, outros, rebeldes, mas fracos, multidão de cobardes e de miseráveis, se hão de arrastar aos nossos pés em clamores: "Sim, tínheis razão, só vós possuís o seu segredo e a vós regressamos; salvai-nos de nós mesmos!" Sem dúvida, ao receberem de nós os pães, verão bem que são os seus os que tomamos, os seus, ganhos pelo seu próprio trabalho, para os distribuirmos, sem nenhum milagre; verão bem que não mudamos as pedras em pão, mas o recebê-lo das nossas mãos dar-lhes-à mais prazer do que o próprio pão. Hão de lembrar-se de que outrora esse pão, fruto do seu trabalho, se lhes mudava em pedra nas mãos, ao passo que depois, quando voltaram a nós, as pedras se transformaram em pão. Compreenderão o valor da submissão definitiva. E, enquanto o não compreenderem, os homens serão infelizes. Diz-me: quem contribuiu mais para esta incompreensão? Quem dividiu o rebanho e o dispersou pelas estradas desconhecidas? Mas o rebanho se reunirá de novo, voltará à obediência e, então, será para sempre. Vamos dar-lhes uma felicidade humilde e branda, uma felicidade adaptada às criaturas fracas que eles são. Havemos de persuadi-los de que não se orgulhem, porque foste Tu, ao elevá-los, quem lhes ensinou; havemos de provar-lhes que são débeis, que são umas lamentáveis crianças, mas que a felicidade infantil é a mais deliciosa. Tornar-se-ão tímidos, não nos perderão de vista e apertar-se-ão a nós, cheios de medo, como a ninhada que se abriga sob a asa da mãe. Hão de sentir uma receosa surpresa e mostrar-se-ão orgulhosos da energia e da inteligência que nos terão permitido domar a inumerável multidão dos rebeldes. A nossa cólera fá-los-a tremer, encher-se-ão de timidez, e os olhos se lhes velarão de lagrimas como nas crianças e nas mulheres; mas, a um sinal nosso, passarão com a mesma facilidade para o riso e para a alegria, para o radioso júbilo das crianças. Havemos, certamente, de os obrigar ao trabalho, mas, nas horas de repouso, organizar-lhes-emos a vida como um jogo infantil, com cantos, coros e danças inocentes. Oh! permitir-lhes-emos até que pequem, porque são fracos, e por isso nos hão de amar como crianças. Dir-lhes-emos que todo o pecado será redimido, se o cometerem com permissão nossa; é por amor que os deixaremos pecar e sobre nós recairá o castigo. Hão de querer-nos como a benfeitores que se apresentam diante de Deus com os pecados deles. Não terão para nós nenhuns segredos. Segundo o grau de obediência, permitir-lhes-emos ou proibiremos que vivam com as mulheres ou as amantes, que tenham filhos ou não os tenham; e hão de escutar-nos com alegria. Hão de submeter-nos os segredos mais dolorosos da sua consciência; resolver-lhes-emos todos os casos e hão de aceitar a nossa decisão com alegria, porque lhes poupará o grave cuidado de escolherem por si próprios, livremente. E todos serão felizes, milhões de criaturas, exceto uns cem mil, os dirigentes, exceto nós, os depositários do segredo. Os felizes hão de contar-se por biliões e haverá́ cem mil mártires sob a carga do conhecimento maldito do Bem e do Mal. Morrerão pacificamente, suavemente se extinguirão em Teu nome, e no Além nada encontrarão senão a morte. Mas guardaremos o segredo: embalá-los-emos, para sua felicidade, com uma recompensa eterna no Céu. Porque, se houvesse outra vida, não seria decerto para seres como eles.
Profetiza-se que Tu voltarás para vencer de novo, rodeado dos eleitos, poderosos e altivos; e nós diremos que só se salvaram a si próprios, ao passo que nós salvamos o mundo. Pretende-se que a pecadora, montada na besta e tendo na mão a taça do martírio, será desonrada; que os fracos se revoltarão de novo, lhe rasgarão a púrpura e desnudarão seu corpo "impuro". Então eu me levantarei e mostrarei os biliões de felizes que não conheceram o pecado. E nós, os que tivermos tomado sobre nós as faltas deles, para sua felicidade, erguer-nos-emos diante de Ti, dizendo: "Não Te receio; também estive no deserto, também vivi de gafanhotos e de raízes; também abençoei a liberdade com que favoreceste os homens, também me preparava para figurar entre os Teus eleitos, os poderosos e os fortes, com um ardente desejo de "completar o numero". Mas dominei-me e não quis servir uma causa insensata. Voltei, para me juntar aos que corrigiram a Tua obra. Abandonei os altivos, regressei aos humildes, para os tornar felizes. Sucederá o que Te disse e edificar-se-á o nosso império. Repito-Te: amanhã, a um sinal que eu fizer, veras o dócil rebanho trazer brasas para a fogueira a que hás de subir por teres vindo entravar a nossa obra. Se alguém mereceu mais que todos a fogueira, esse alguém és Tu. Amanhã, queimar-Te-ei. Dixi."
Ivan parou. Tinha-se exaltado com o discurso; quando acabou, apareceu-lhe um sorriso nos lábios. Aliocha tinha escutado em silêncio, com extrema emoção. Por várias vezes tinha querido interromper o irmão, mas tinha-se contido.
– Mas... é absurdo! – exclamou, corando. – O teu poema é um elogio a Jesus, não é uma censura, como querias. Quem vai acreditar o que disseste da liberdade? Será assim que temos de a entender? É essa a concepção da Igreja ortodoxa? É Roma, e nem toda ainda, são os piores elementos do catolicismo, os inquisidores, os Jesuítas. Não existem personagens fantásticas como o teu inquisidor. Quais são esses pecados dos outros que ele toma sobre si? Quais são esses detentores do mistério que se carregam de maldiçoes para bem da humanidade? Quando é que se viu coisa semelhante? Conhecemos os Jesuítas, diz-se muito mal deles; mas são semelhantes aos teus? De modo algum! É simplesmente o exercito romano, o instrumento da futura dominação universal, tendo à frente um imperador, o pontífice romano... Eis o ideal que eles tem; não há aí nenhum mistério, nenhuma tristeza sublime... a sede de reinar, a vulgar cobiça dos vis bens terrestres... uma espécie de futura servidão em que deles seriam todos os bens de raiz... eis tudo. Talvez mesmo não acreditem em Deus. O teu inquisidor não é mais do que uma ficção.
– Espera, espera – disse-lhe rindo Ivan. – Como tu te exaltas! Uma ficção? Seja, evidentemente. No entanto, crês tu que todo o movimento católico dos últimos séculos seja inspirado somente pela sede do poder, que não tenha em vista senão os bens terrestres? Não é o Padre Paisius quem te ensina isso?
– Não, não, pelo contrário. O Padre Paisius falou-me uma vez segundo as tuas vistas... mas não era precisamente a mesma coisa.
- Aí está uma informação preciosa, apesar do teu "não era precisamente a mesma coisa". Mas por que razão os Jesuítas e os inquisidores se teriam unido só em vista da felicidade terrestre? Não se poderá encontrar entre eles um mártir que tenha um nobre sofrimento e que ame a humanidade? Supõe que entre esses seres, que não anseiam por outra coisa senão pelos bens materiais, há um só como o meu velho inquisidor que viveu de raízes no deserto e se bateu por vencer os sentidos, para se tornar livre, para atingir a perfeição; no entanto, sempre tem o amor da humanidade. De repente, vê tudo claro, reconhece que é medíocre felicidade a de chegar a uma liberdade perfeita, quando milhões de criaturas continuam para sempre na desgraça, fracas de mais para usarem da sua liberdade, que estes débeis revoltados nunca poderão acabar a sua torre e que não foi para tais gansos que o grande idealista sonhou a sua harmonia. Depois de ter compreendido tudo isto, o meu inquisidor volta para trás e junta-se às pessoas inteligentes. É impossível?
– Mas juntar-se a quem? A que pessoas inteligentes? - gritou Aliocha, quase zangado. – Não são tal inteligentes, não têm mistérios nem segredos... O ateísmo, eis o segredo. O teu inquisidor não crê̂ em Deus.
– Bem, suponhamos que é assim. Adivinhaste, finalmente. É isso mesmo, todo o segredo está aí. Mas não é um sofrimento, pelo menos para um homem como ele que no deserto sacrificou a sua vida ao seu ideal e não deixou de amar a humanidade? Ao declinarem-lhe os dias, convence-se claramente de que só os conselhos do grande e terrível Espírito poderiam tomar suportável a existência dos débeis revoltados, "esses seres de aborto, criados por troça". Compreende que deve escutar o Espírito profundo, este Espírito de morte e de ruína e, para o fazer, admitir a mentira e a fraude, levar conscientemente os homens para a morte e para a ruína, enganando-os durante todo o caminho, para lhes não revelar onde os levam e para que os pobres cegos tenham a ilusão da felicidade. Nota isto: a fraude em nome de Aquele em quem o velho acreditou ardentemente durante toda a sua vida! Não é isto uma infelicidade? E se houver alguém, se houver um só homem semelhante à frente deste exercito "ávido do poder apenas para os vis bens", não bastará isto para que se dê uma tragédia? Mais ainda: basta um único chefe semelhante para encarnar a verdadeira ideia diretriz do catolicismo romano, com os seus exércitos e os seus jesuítas, a ideia superior. Declaro-te que estou convencido de que nunca faltou um homem deste tipo à frente do movimento. Quem sabe? Talvez haja alguns entre os pontífices romanos! Quem sabe? Talvez que esse maldito velho que ama tão obstinadamente a humanidade, à sua maneira, exista ainda agora em vários exemplares, não por efeito do acaso, mas sob a forma de um entendimento, duma liga secreta, organizada já há muito tempo para guardar o mistério, ocultá-lo aos desgraçados e aos fracos para os tornar felizes. Deve seguramente ser assim; é fatal. Imagino mesmo que a maçonaria tem um mistério análogo na base da sua doutrina e que deve ser por isso que os católicos odeiam tanto os mações; veem neles concorrentes, veem neles uma dispersão da ideia única, quando deve existir apenas um rebanho com um único pastor. Mas basta: não quero ter, com esta defesa do meu pensamento, o ar de um autor que não suporta a tua crítica.
– Talvez tu sejas também maçom – disse de súbito Aliocha. – Não acreditas em Deus – continuou com profunda tristeza. Tinha-lhe parecido também que o irmão o contemplava com ar de troca. – Como acaba o teu poema? – prosseguiu ele, baixando os olhos. – Não há mais nada?
- Há. O fim que eu tinha pensado era este: "O inquisidor cala-se, espera um momento a resposta do Preso. O Seu silêncio oprime-o. O Cativo escutou-o sempre fixando nele o olhar penetrante e calmo, visivelmente decidido a não lhe responder. O velho gostaria de que Ele lhe dissesse alguma coisa, mesmo que fossem palavras amargas e terríveis. De repente, o Preso aproxima-se em silêncio do nonagenário e beija-lhe os lábios exangues. Mais nenhuma resposta. O velho tem um sobressalto, mexe os lábios; vai até à porta, abre-a e diz: "Vai e nunca mais voltes... nunca mais." E deixa-o ir, nas trevas da cidade. O Preso vai.
– E o velho?
O beijo queimou-lhe o coração, mas persiste na sua Ideia.