sexta-feira, 29 de maio de 2015

49 – As três perguntas – L. Tolstoi

Leon Tolstói (1828-1910), escritor russo mundialmente conhecido por seus romances “Guerra e Paz” e “Anna Karenina”, também foi um profundo pensador que ao longo de sua vida foi penetrando cada vez mais profundamente em temas espirituais.  “As três perguntas” é um conto do Tolstoi já maduro, adepto de um cristianismo quase anárquico, e um dos precursores da não violência com a “Carta para um hindu” escrita em 1908 e lida por M. Ghandi em 1909 quando o grande líder espiritual da Índia  ainda estava na África do Sul.
As três perguntas
León Tolstói

“Certa vez, ocorreu a um imperador que, se soubesse responder apenas às seguintes perguntas, nada jamais o afastaria do caminho justo:
- Qual é o melhor momento para qualquer coisa?
- Quais são as pessoas mais importantes em qualquer trabalho?
- Qual é a coisa mais importante a fazer em qualquer momento?

O imperador promulgou um decreto para todo o seu império, anunciando que quem soubesse responder às três perguntas receberia uma grande recompensa. Depois de ler este decreto, muitos se dirigiram ao palácio com as suas diferentes respostas.
Respondendo à primeira pergunta, alguém sugeriu ao imperador que estabelecesse uma ocupação total do tempo, com as horas, dias, meses, anos e as tarefas a realizar. Se seguisse isso à letra, o imperador poderia então vir a fazer cada coisa em seu devido tempo. Uma outra pessoa retorquiu que era impossível prever tudo, que o imperador devia pôr todas as distrações inúteis à parte e manter-se atento a todas as coisas, para saber quando e como agir. Uma outra insistiu que o imperador sozinho não podia possuir a clarividência e a competência necessárias para decidir quando fazer algo. Parecia-lhe que o mais importante era nomear um Conselho de Sábios e agir de acordo com as suas recomendações. Uma outra pessoa disse que certas questões necessitavam de uma decisão imediata e não podiam esperar por uma consulta. Contudo, se o soberano desejasse conhecer com antecedência o que ia acontecer, ser-lhe-ia possível interrogar os adivinhos e os magos.
As respostas à segunda pergunta também divergiram muito entre si. Alguém disse que o imperador devia colocar toda a sua confiança nos seus ministros; um outro recomendou que fosse aos padres e aos monges; outros, ainda, aos médicos e mesmo aos militares.
À terceira pergunta foram dadas respostas igualmente variadas. Alguns afirmaram que a procura mais importante era a ciência, outros insistiram que era a religião e outros, ainda, a arte da guerra. O imperador não ficou satisfeito com nenhuma das repostas e não atribuiu a ninguém a recompensa.
Depois de várias noites de reflexão, o soberano decidiu visitar um eremita que vivia na montanha e que era tido por ser iluminado. O imperador desejava encontrar o santo homem para lhe fazer as três perguntas, mas sabia muito bem que o eremita nunca deixava as montanhas e que era conhecido por não receber senão pessoas pobres e por recusar qualquer contato com ricos e poderosos. Por esta razão, o soberano disfarçou-se como um pobre camponês e ordenou à sua escolta que esperasse por ele aos pés da montanha, enquanto sozinho procurava o eremita.
Ao chegar à morada do homem santo, o imperador avistou-o a cavar o jardim diante da sua cabana. Ao ver o estrangeiro, o eremita saudou-o com a cabeça e continuou a cavar. Era um trabalho aparentemente muito penoso para um velho: ele ofegava ruidosamente a cada vez que enterrava a enxada no solo para revolver a terra. O imperador aproximou-se dele e disse: “Vim pedir a vossa ajuda. São estas as minhas perguntas”:
“Qual é o melhor momento para qualquer coisa?”
“Quais são as pessoas mais importantes em qualquer trabalho?” “Qual é a coisa mais importante a fazer em qualquer momento?”
O eremita escutou-o atentamente e retomou o trabalho depois de dar uma pequena palmada no ombro do imperador. O monarca disse então: “Deveis estar cansado. Deixai-me ajudar-vos”.
O velho homem agradeceu-lhe, entregou-lhe a enxada e sentou-se no chão para descansar. Depois de ter cavado duas fileiras, o imperador parou, voltou-se para o eremita e repetiu-lhe as suas três perguntas. De novo, o velho homem não respondeu, mas levantou- se e disse-lhe, mostrando a enxada: “Porque não descansais um pouco? Eu continuo”. Mas o imperador continuou a cavar a terra. Passaram uma e outra hora. Por fim, o sol pôs-se atrás da montanha. O soberano pousou a enxada e disse ao eremita: “Escutai-me, eu vim até aqui para vos perguntar se sabeis responder às minhas três perguntas. Mas se não souberdes, dizei-mo para eu regressar à minha casa”.
O eremita levantou a cabeça e perguntou ao imperador: “Ouvis alguém a correr na nossa direção?”. O imperador virou a cabeça e ambos viram surgir do bosque um homem com uma longa barba branca. Corria tropegamente, com as mãos a pressionar uma ferida no ventre, que sangrava. O homem correu em direção ao soberano até cair sem sentidos no chão. Gemia. Ao abrir a sua camisa, o imperador e o eremita viram que ele tinha uma ferida profunda. O monarca limpou-a totalmente e, a seguir, fez-lhe um curativo com a sua própria camisa. Visto que o sangue corria abundantemente, teve de enxaguar e enfaixar várias vezes a sua camisa até conseguir estancar o sangue da ferida.
Finalmente, o homem ferido retomou a consciência e pediu água. O imperador correu até ao rio e trouxe consigo uma bilha de água fresca. Ao longo de todo este tempo, o sol pusera-se e o frio da noite viera. O eremita ajudou o imperador a levar o homem para a cabana, onde o deitaram sobre a cama. Aí, ele fechou os olhos e adormeceu sossegadamente. O soberano estava esgotado pela longa jornada que fizera, por caminhar na montanha e cavar o jardim. Apoiando-se à porta, adormeceu. Por um momento, esqueceu-se de onde estava e o que ali tinha ido fazer. Quando acordou, olhou para a cama e viu o homem ferido, que também se perguntava o que fazia ali naquela cabana. Quando este viu o imperador, olhou-o atentamente nos olhos e disse num murmúrio dificilmente perceptível: “Por favor, perdoai-me”.
“Mas o que fizestes para merecerdes ser perdoado?”, perguntou o soberano.
“Vossa Majestade não me conhece, mas eu vos conheço. Eu fui vosso inimigo e fiz o voto de me vingar por terdes morto o meu irmão na última guerra e por terdes se apoderado de todos os meus bens. Quando soube que vínheis sozinho a esta montanha para vos encontrardes com o eremita, decidi montar-vos uma cilada e matar-vos. Esperei durante muito tempo, mas vendo que não vínheis, deixei o meu esconderijo para vos procurar. Foi assim que acabei por dar com os soldados da vossa guarda que, ao reconhecerem- me, infligiram- me esta ferida. Felizmente, consegui fugir e correr até aqui. Se não vos tivésseis encontrado, teria, com certeza, morrido na hora. Eu tinha a intenção de vos matar e vós salvastes-me a vida! Sinto uma enorme vergonha, mas também um reconhecimento infinito. Se viver, faço o voto de vos servir até ao meu derradeiro sopro e ordenarei aos meus filhos e aos meus netos que sigam o meu exemplo. Suplico-vos, Majestade, concedei-me o vosso per- dão!”.
O imperador encheu-se de alegria ao ver com que facilidade se havia reconciliado com um antigo inimigo. Não apenas o perdoou, mas prometeu também restituir-lhe todos os seus bens e enviar o seu próprio médico e os seus servidores para se ocuparem dele até se curar completamente. Após ter dado ordem à sua escolta de reconduzir o homem a sua casa, o imperador regressou para se encontrar com o eremita. Antes de regressar ao seu palácio, o soberano desejava, por uma última vez, fazer as três perguntas ao velho homem. Encontrou o eremita a semear os grãos nas fileiras cavadas na véspera. O velho homem levantou-se e olhou-o: “Mas já tendes a resposta a essas perguntas”.

“Como assim?”, disse o imperador intrigado.
“Ontem, se não tivésseis tido piedade da minha velhice e não me tivésseis ajudado a cavar a terra, teríeis sido atacado por este homem quando regressásseis. Teríeis então lamentado profundamente não terdes ficado comigo. Por consequência, o momento mais importante foi o tempo passado a cavar o jardim, a pessoa mais importante fui eu e a coisa mais importante foi ajudares-me. Mais tarde, depois da chegada do homem ferido, o momento mais importante foi aquele que passastes a tratar da ferida, porque se o não tivésseis feito, ele teria morrido e vós teríeis desperdiçado a ocasião de vos reconciliar com um inimigo. Do mesmo modo, ele foi a pessoa mais importante, e cuidar da ferida foi a tarefa mais importante. Lembrai-vos que não existe senão um único momento importante, que é agora. Este instante presente é o único momento sobre o qual podemos exercer o nosso magistério. A pessoa mais importante é sempre a pessoa com a qual se está, aquela que está diante de vós, porque quem sabe se vireis a estar ocupado com uma outra no futuro? A tarefa mais importante é fazer feliz a pessoa que está ao vosso lado, porque a procura da vida é apenas isso”.

sábado, 23 de maio de 2015

48 – Amor – C. Lispector

Clarice Lispector (1920-1977) escritora carioca que por um destes acasos nasceu na Ucrânia. Uma das maiores escritoras e contistas de todo o mundo que junto com Machado de Assis, Guimarães Rosa e Jorge Amado compõem o que é para mim o quarteto maior da literatura brasileira. A tarefa difícil foi a de destacar um conto em sua obra e meu coração optou por “Amor”.

Amor
Clarice Lispector

Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô,
Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou
a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de
meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta.
Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez
mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava
estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando.
Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que
se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como
um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas
essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador
de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa
com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto
importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranquilamente,
sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores
que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se.
No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara
um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente
artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e
belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara
a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de
aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida
podia ser feita pela mão do homem.
No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a
cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse
inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos
que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe
estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para
descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma
legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha - com
persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar
estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas
vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim
compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde,
quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro
da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu
coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar
para que sentisse ternura pelo seu espanto - ela o abafava com a mesma
habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido.
Saía então para fazer
compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia
deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio
exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranquila vibração. De manhã
acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo
empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma,
fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento
mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora
instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto
um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo
de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.
A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De
pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma
coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles...
Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam
jantar - o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego
profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na
escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação
fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de
sorrir - como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria
a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez
mais inclinada - o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida
para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão - Ana
deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se
tratava - o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.
Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava
pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com
dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria
entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego
interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente
pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede
e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova
arrancada de partida.
Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos
trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava
feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a
tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido;
não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música,
o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido
de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente.
Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de
sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de
novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa
de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes,
que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão - e por
um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para
onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao
banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem
ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso
com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais
abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários
da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos
estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o
mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de
piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam.
Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar,
depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade
extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse.
Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras,
as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo
jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao
outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da
piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na
fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com
pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um
momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia
de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida
que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso
rodeava lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se.
Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do
Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não
havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no
banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela
adormecia dentro de si.
De longe via a aleia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra
dos ramos cobria o atalho.
Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados
da
tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais. Um movimento leve e íntimo a sobressaltou - voltou-se rápida. Nada
parecia se ter movido. Mas na aleia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pelo eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.
Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar,
pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho
secreto do qual ela começava a se aperceber.
Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão
caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos.
O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa
rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas
de uma aranha. A crueza do mundo era tranquila. O assassinato era profundo.
E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário - era um mundo de se comer com
os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram
percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a
repulsa que precedesse uma entrega - era fascinante, a mulher tinha nojo,
e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia.
Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a
náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada.
A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia
nos
primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam
amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era
profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça
rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo.
A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu
cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.
Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou
na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era
fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara
culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho,
avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria - e via o
Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões
fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado
de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre.
Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito - o que
sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo
lhe parecia seu, sujo, perecível, seu.
Abriu a porta de casa. A sala era grande,
quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a
lâmpada brilhava - que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia
que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver.
O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e
rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto.
Protegia-se trêmula. Porque a vida era periclitante.
Ela amava o mundo,
amava o que fora criado - amava com nojo. Do mesmo modo como sempre
fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a
aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase
a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal - o cego ou o belo Jardim Botânico? - agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta.
O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. O sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De
que tinha vergonha?
Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na
crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade:
seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lado dos que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranquilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo - e
que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar
o leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de
mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.
Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E,
estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria
a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para
a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e
constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do
fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a
água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas
mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros
de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro
na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em
que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os
filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião
estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava
um pouco pálida e ria suavemente com os outros.
Depois do jantar, enfim,
a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças
cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu. Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas,
ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida
e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.
Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa!
pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

– O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

– Não foi nada, disse, sou um desajeitado.
Ele parecia cansado, com olheiras.
Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção.
Depois atraiu-a a si, em rápido afago.
– Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

– Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro,
respondeu ele sorrindo.
Ela continuou sem força nos seus braços.
Hoje de tarde alguma coisa tranquila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste.
É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.
Acabara-se a vertigem de bondade.
E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.



sexta-feira, 15 de maio de 2015

47 – Um homem bom é difícil de encontrar – F. O’Connor


Para mim uma das maiores contistas da literatura mundial. Flannery O’Connor (1925-1964) escritora americana de Savannah, Georgia publicou em sua vida 32 contos onde descreve, com incrível energia, a vida e as contradições do sul dos Estados Unidos. Toda sua obra é magnifica e entre seus contos "Um homem bom é difícil de encontrar", que frequentemente aparece em listas dos melhores contos já escritos, passou a ser o mais famoso, talvez  pela violência inesperada de seus  personagens.

Um homem bom é difícil de encontrar
Flannery O’Connor
Traduzido por Leonardo Fróes

A avó não queria ir para a Florida. Queria visitar uns parentes no leste do Tennessee e aproveitava todas as oportunidades para induzir Bailey a mudar de ideia. Bailey, o filho com o qual ela morava, seu único filho homem, sentado a mesa na beira da cadeira, dobrava-se sobre o alaranjado da pagina de esportes do Journal. "Olhe só isso aqui, Bailey, olhe só, leia isso aqui", disse ela em pé a seu lado, com uma das mãos no quadril magro e a outra esfregando outra folha de jornal na careca do filho. "Esse tal cara que fugiu da penitenciaria federal, o Desajustado, como ele mesmo se chama, e que foi justamente em direção a Florida... leia só o que diz aqui, veja o que ele fez com as pessoas. Vale a pena você ler. Eu é que não levaria os meus filhos, fosse lá para onde fosse, com um bandido desses assim a solta na área. Não ficaria em paz com a minha consciência."
Bailey não olhou para cima, não parou de ler o que lia, e ela então deu uma volta. Foi ficar cara a cara com a mãe das crianças, mulher nova, numa calça folgada, cujo rosto era tão largo e inocente quanto um repolho, estando envolto num lenço verde de cabeça amarrado com duas pontas no alto, como as orelhas de um coelho. Ela, sentada no sofá para alimentar o bebê, dava-lhe geleia de damasco que tirava do vidro. "À Flórida as crianças já foram", disse a velha senhora. "Deveriam leva-las a algum outro lugar, para variar, para que vejam diferentes partes do mundo e possam ter perspectivas mais amplas. Ao leste do Tennessee elas nunca foram."
A mãe das crianças nem pareceu escutar, mas o garoto de oito anos, John Wesley, parrudinho e de óculos, disse: "Se a senhora não quer ir para a Flórida, por que e que não fica em casa?". Ele e a menina, June Star, estavam lendo historias em quadrinhos no chão.
"Em casa? Duvido. Por nada desse mundo ela fica", disse June Star sem levantar a cabeça.
"Ah, é? E o que fariam vocês, se esse camarada, o Desajustado, pegasse vocês?"
"Eu quebrava a cara dele", John Wesley disse.
"Nem por um milhão de dólares ela ficava em casa" June Star disse. "Tem medo de estar perdendo coisas. Tem de ir pra toda parte com a gente."
"Esta bem, mocinha", disse a avó. "Da próxima vez que me pedir para cachear seu cabelo, você vai ver uma coisa."
June Star disse que seu cabelo já era naturalmente cacheado.
Na manha seguinte a avo foi a primeira a entrar no carro, pronta para partir. Tinha posto num canto sua enorme malinha preta, que parecia uma cabeça de hipopótamo, por baixo da qual ela escondia numa cesta o gato, Pitty Sing. Não quis deixar o gato em casa sozinho, por três dias, porque ele sentiria muito a sua falta e ela tinha medo de que acidentalmente se asfixiasse ao se esfregar num bico de gás. Mas o filho dela, Bailey, não gostava de chegar a um motel com um gato.
A avó ia no banco de trás, no meio, com um neto de cada lado, John Wesley e June Star. Bailey e a mãe das crianças com o bebê iam na frente e eles saíram as oito e quarenta e cinco de Atlanta com o painel indicando 89.944 quilômetros rodados. A avó anotou o numero por achar que seria interessante saber quantos quilômetros eles teriam feito, quando voltassem para casa. Levaram vinte minutos para atingir a periferia da cidade.
A velha senhora se instalou a vontade, tirando as luvas brancas de algodão e pondo-as junto com a bolsa no espaço por trás do banco. A mãe das crianças continuava com a mesma calça folgada, e com o mesmo lenço verde amarrado na cabeça, mas a avó estava usando um chapéu de palha azul-marinho, com um buque de violetas brancas na aba, e um vestido também azul-marinho de bolinhas brancas. A gola e os punhos eram de organdi branco, com debruns de renda, e um ramalhete roxo de violetas de pano, que era um sachê, estava pendurado em seu peito. Qualquer um que a visse morta na estrada, em caso de acidente, logo saberia tratar-se de uma senhora distinta.
Disse que o dia, a seu ver, era bom para viajar, nem muito quente nem muito frio demais, e lembrou a Bailey que o limite de velocidade era de noventa quilômetros por hora, e que os guardas rodoviários, escondidos atrás de anúncios e de amontoados de árvores, logo saiam em disparada atrás, sem nem dar chance de reduzir. E apontou interessantes detalhes dos panoramas: Stone Mountain; o granito azulado que nalguns trechos aflorava de ambos os lados da rodovia; os barrancos brilhantes, de barro vermelho rajado ligeiramente de roxo; e as diversas plantações enfileiradas como rendilhados verdes na terra. As árvores estavam cheias de uma luz solar prateada, e até mesmo as mais insignificantes brilhavam. As crianças iam lendo suas historias em quadrinhos e a mãe tinha voltado a dormir.
"Vamos passar pela Geórgia bem rápido para não ter de olhar muita coisa" John Wesley disse.
"Eu, se eu fosse um menino", disse a avó, "eu não falaria assim desse jeito do meu estado natal. O Tennessee tem montanhas, a Geórgia tem suas colinas..."
"O Tennessee não passa de um lixão, é uma terra de arigós" John Wesley disse, "e a Geórgia também é uma porcaria de estado."
"E isso mesmo", disse June Star.
"No meu tempo", a avó disse, cruzando os dedos de veias finas, "as crianças tinham mais respeito pela terra natal, pelos pais e por tudo o mais. Procedia-se bem, naquela época. Oh, mas vejam só o pretinho, que graça!" disse e apontou para um menino negro, em pé na porta de um barraco. "Não daria um quadro?" perguntou, e todos se viraram, olhando o menino negro pelo vidro de trás. Ele deu adeus.
"Ele estava sem calça", disse June Star.
“Talvez nem tenha" a avó explicou. "Os negrinhos da roça não são assim como nós, não tem coisas." E acrescentou: "Ah, se eu soubesse pintar, bem que faria esse quadro!".
As crianças trocaram de revista.
A avó se ofereceu para segurar o bebê, que a mãe das crianças lhe passou por cima do banco. Tendo-o posto nos joelhos, ela agora o puxava para cima e lhe falava das coisas pelas quais estavam passando. Revirava os olhos, fazia bico com a boca, colava a cara magra e dura no rosto, lisinho e fofo, da criança, que de vez em quando lhe dava algum sorriso distante. Passaram por uma grande plantação de algodão com um cercado com cinco ou seis túmulos no meio, como uma ilhota.
"Olhem lá o cemitério!" disse a avó, apontando. "O antigo campo- santo da família. Pertencia á fazenda."
"E onde esta a fazenda?" John Wesley perguntou.
"E o vento levou..." disse a avó. "Ha, ha."
As crianças, quando acabaram todas as revistas levadas, abriram e comeram seus lanches. A avó comeu um sanduiche de pasta de amendoim e uma azeitona e não deixou as crianças jogarem pela janela os guardanapos e sacos de papel. Quando não tinham mais o que fazer, brincaram de escolher uma nuvem para os outros adivinharem a forma que ela sugeria. John Wesley escolheu uma nuvem que tinha forma de vaca, June Star falou vaca e ele disse que não, que era carro, e June Star disse que John Wesley estava jogando sujo e logo estavam os dois, por cima da avó, aos tapas. A avo disse que contaria uma historia se eles ficassem quietos. E ela, quando contava uma historia, revirava os olhos e agitava a cabeça e era toda dramática. Contou então que nos seus tempos de moça tinha sido cortejada por um rapaz de Jasper, na Geórgia, chamado Charles Otoline Miles Erlanger Robertson. Um rapaz muito atraente, um cavalheiro, segundo a avó, que todo sábado á tarde, quando a visitava, levava-lhe uma melancia com suas iniciais gravadas: C.O.M.E R. Num desses sábados, como ela disse, Robertson chegou com a melancia e não havia ninguém em casa e ele a deixou na varanda e voltou para Jasper na charrete, mas essa melancia ela nunca viu, porque um negrinho a devorou, como ela disse, quando leu as iniciais C.O.M.E.R. A historinha agradou em cheio a John Wesley, que estourou numa gargalhada e se retorcia de rir, mas June Star não achou graça nenhuma. Disse que jamais se casaria com um homem que se limitasse a levar-lhe uma melancia no sábado. Já a avó disse que para ela teria sido uma beleza se casar com Robertson, porque ele era um homem muito distinto e comprou ações da Coca-Cola logo que foram lançadas e só tinha morrido ha poucos anos, riquíssimo.
Pararam para comer uns sanduiches grelhados num lugar chama- The Tower. Era um misto de salão de festas e posto de gasolina, parte em madeira, parte em estuque, instalado numa clareira nos arredores de Timothy. O dono era um gordo, Red Sammy Butts, e havia placas penduradas ali por toda parte, e por quilômetros na rodovia, dizendo: EXPERIMENTE O AFAMADO GRELHADO DE RED SAMMY. NENHUM SE COMPARA AO DELE! RED SAM, O GORDINHO DA RISADA FELIZ! UM VETERANO! RED SAMMY, O HOMEM CERTO!
Deitado no chão, do lado de fora do The Tower, estava o próprio Red Sammy. Tinha a cabeça enfiada embaixo de um caminhão, enquanto um mico cinzento de seus trinta centímetros, amarrado pela corrente a um pé de saboeiro, fazia papagueatas por perto. Bastou ver as crianças saltarem do carro e correrem na sua direção para o mico pular de volta na arvore e subir ao galho mais alto.
Por dentro, The Tower era um salão comprido e escuro, com um balcão de um lado, mesas do outro, e um espaço para dançar no meio. Sentaram-se a uma mesa de tábuas, ao lado da vitrola automática, e a mulher de Red Sam, alta, queimada, de cabelo e olhos mais claros do que sua pele morena, veio atende-los. A mãe das crianças pôs uma moeda na maquina e escolheu "A valsa do Tennessee". A avo disse que sempre sentia vontade de dançar com essa musica e perguntou a Bailey se ele dançaria com ela, mas ele apenas a olhou de banda. Não tinha a disposição dela, assim toda animada, e as viagens o deixavam nervoso. Os olhos da avó, olhos castanhos, brilhavam muito. Sentada, ela fazia de conta que dançava, jogando a cabeça, na cadeira, para os dois lados. June Star pediu para tocar uma musica que desse para sapatear e assim a mãe das crianças pôs uma outra moedinha e escolheu algo mais rápido. June Star pulou na pista e, como era de seu habito, sapateou.
"Que gracinha!" disse a mulher de Red Sam, debruçada no balcão. "Você quer vir morar comigo? Quer ser a minha filhinha?"
"Nem por sombra", June Star disse, "nem por um milhão de dólares eu moraria num lugar tão caído assim!" e voltou correndo para a mesa.
"Mas não e mesmo uma gracinha?", repetia a mulher, esticando polidamente os beiços.
A avo ralhou: "Não tem vergonha não?".
Red Sam entrou e disse a esposa para correr com o pedido dos fregueses, em vez de ficar ali no balcão fazendo hora. Sua calça caqui vinha arriada até quase as coxas, sob o peso da barriga que despencava como um saco de farinha trepidando por baixo da camisa. Aproximou-se, sentou-se perto e deixou escapar algo impreciso, combinação de suspiro e cantoria. "Não dá pra levar" dizia. “Assim não dá pra levar!" e com um lenço acinzentado enxugava o suor do rosto vermelho. "Hoje em dia não se pode confiar em ninguém", disse depois. "Não é verdade?"
"As pessoas certamente não são mais tão gentis como já foram", disse a avó.
"Semana passada" disse Red Sammy, "vieram aqui dois camaradas, num Chrysler. Um carro velho, muito rodado, mas bom, e os rapazes me pareciam gente direita. Disseram que trabalhavam no moinho, e não é que eu vendi gasolina fiado para eles? Por que fui fazer isso?"
"Porque o senhor é um homem bom", a avó disse.
"É, dona, acho que sim", disse Red Sam, como se ficasse, ele mesmo, espantado com a resposta.
Sua mulher chegou com os pedidos, carregando os cinco pratos, sem bandeja, de uma só vez: dois em cada mão e mais um equilibrado no braço. "Não há alma que seja neste mundo de Deus", disse ela, "em quem se possa confiar. E eu não excluo ninguém, ninguém mesmo", repetiu, olhando para Red Sammy.
“Vocês leram alguma coisa sobre aquele bandido, o Desajustado, que fugiu da cadeia?" a avó perguntou.
"Eu não ficaria nem um pouco surpresa se agora mesmo ele atacasse esse lugar aqui", disse a mulher. "Se ele souber que nós estamos aqui, e se me aparecer pela frente, não ficarei nada surpresa. Se souber que na caixa registradora tem algum dinheiro, não ficarei nada surpresa se ele..."
"Chega!" Red Sam disse. "Traz logo as Cocas dos fregueses", e a mulher lá se foi a completar o pedido.
"Um homem bom e difícil de encontrar", disse Red Sammy. "Tudo está ficando um horror. Lembro do tempo em que se podia sair tranquilamente de casa e deixar a porta aberta. Agora não mais."
Ele e a avó se distraíram conversando sobre tempos melhores. A culpada era a Europa, na opinião da velha senhora, se as coisas andavam assim agora. Pela atitude da Europa, segundo ela, até se poderia pensar que os americanos eram feitos de dinheiro, e Red Sam disse que nem adiantava falar daquilo, que ela estava coberta de razão. As crianças correram para fora, para a claridade do sol, e foram ver o macaquinho no saboeiro rendado. O mico estava entretido, catando pulgas que comia, como guloseimas, com um demorado estalar de dentes.
Depois, pela tarde quente, a família prosseguiu em viagem. A avó dava umas cochiladas e de quando em quando era despertada pelos seus próprios roncos. Nos arredores de Toombsboro, ao acordar de vez, lembrou-se de uma velha fazenda que ela havia visitado por ali, na região, quando moça. Disse que a casa tinha seis colunas brancas na frente, uma fileira de carvalhos conduzindo à entrada e dois pequenos caramanchões de madeira, bem na frente, um de cada lado, onde as moças sentavam-se com os pretendentes, depois de algumas voltas no jardim.
A estrada que era preciso pegar para chegar até lá veio-lhe com precisão à memoria. Ela sabia que Bailey não concordaria em perder tempo só para ir ver uma casa velha, mas quanto mais falava nisso, mais ela queria revê-la, querendo saber se os caramanchões geminados ainda estavam de pé "Havia nessa casa uma passagem secreta", disse pois com astucia, sem contar uma verdade, mas desejando que assim fosse, "e diziam que a prataria da família foi toda escondida lá, quando Sherman passou por aqui, e nunca pode ser encontrada..."
"Oba, então vamos lá!", John Wesley disse. "Vamos descobrir essa prata! E só abrir o madeirame, e só ir tirando as tabuas, que a gente acha. Quem mora lá? Onde e que se pega o caminho? Ei, pai, não dá para dobrar por ali?"
“Nunca vimos uma casa com passagem secreta", berrou June Star. "Vamos ver a casa com passagem secreta! Oba! Papai, temos de ir ver a casa com passagem secreta!"
"Eu sei que não fica longe daqui", disse a avó. "Nem bem uns vinte minutos."
Bailey olhava reto em frente, com o queixo tão rígido quanto uma ferradura. "Não", ele disse.
A gritaria das crianças, querendo ver a casa com passagem secreta, não fez senão aumentar. John Wesley chutava as costas do banco dianteiro, e June Star se pendurou no ombro da mãe, em cujo ouvido choramingou desesperada que era sempre assim mesmo, que nem nas ferias eles se divertiam, que eles nunca podiam fazer o que eles mesmos queriam. O bebê já estava berrando. E os chutes de John Wesley no assento se tornavam tão fortes que o pai já sentia os golpes nos rins.
"Tá legal!" o pai gritou, e parou o carro no acostamento. "Mas vocês querem calar a boca? Querem calar a boca um minuto? Se não se calarem, não vamos a lugar nenhum."
"Mas seria muito instrutivo para eles" murmurou a avó.
"Está bem", Bailey disse, "mas anotem: e a única vez em que nos vamos parar por uma coisa dessas. É a primeira e ultima vez."
"A estrada de terra que você tem de pegar já ficou lá para trás, a uns dois quilômetros", a avó orientou. "Eu a notei quando passamos."
"Estrada de terra...", resmungou Bailey.
Quando já iam, depois de terem feito um retorno, em direção a al estrada, a avó rememorou outros detalhes da casa, como o belo vitral sobre a entrada e o candelabro do salão. John Wesley disse que a passagem secreta provavelmente ficava na lareira.
"Não se pode entrar na casa", Bailey disse. "Nem sabemos quem mora lá."
"Posso ir por trás, enquanto vocês conversam com as pessoas na frente, e entrar por uma janela", John Wesley sugeriu.
"Não", disse a mãe, "vamos ficar todos no carro."
O carro, sacolejando muito, entrou pela estradinha de barro num turbilhão de poeira cor-de-rosa. A avó se lembrou dos tempos em que não havia estradas asfaltadas e se levava um dia inteiro para andar cinquenta quilômetros. A estradinha era acidentada e íngreme, com inesperadas crateras de atoleiros e curvas muito fechadas em perigosos barrancos. Ora eles estavam bem no alto de um morro, vendo as copas azuladas das arvores que se estendiam lá embaixo, por quilômetros em torno, ora, logo a seguir, já estavam numa depressão de terra vermelha, com arvores empoeiradas por cima.
"É melhor esse lugar aparecer logo", Bailey disse, "porque senão eu vou voltar."
Dava a impressão de que ninguém, há meses, passava naquela estrada.
"Não esta muito longe", disse a avó, e justamente quando o disse ela teve um pensamento horroroso. Um pensamento tão embaraçoso que seu rosto corou, seus olhos se dilataram e os pés se mexeram muito no chão, atingindo e deslocando a maletinha no canto. No mesmo instante em que a valise se moveu, a folha de jornal que ela usava como tampa da cesta que estava embaixo se levantou com um miado e voou no ombro de Bailey.
As crianças foram jogadas no chão. A mãe, agarrada ao bebê, foi jogada porta afora, na estrada. A velha senhora jogada para o banco da frente. O carro deu uma capotada e voltou à posição normal, mas fora da estrada, e numa vala. Bailey permanecia no lugar do motorista com o gato - listrado de cinza, cara branca achatada e focinho cor de laranja - agarrado como lagarta em seu pescoço.
As crianças, assim que conseguiram mexer braços e pernas, saíram se espremendo do carro, e gritavam: "Tivemos um acidente!". Ja a avó se encolheu sob o painel, com a esperança de estar ferida para que a ira de Bailey não se abatesse implacável sobre ela. O pensamento horroroso que havia tido, pouco antes do acidente, foi que a casa da qual ela se lembrava tão bem não ficava na Geórgia, mas sim no Tennessee.
Bailey tirou o gato do pescoço, com ambas as mãos, e o arremessou contra o caule de um pinheiro, pela janela. Depois, saindo do carro, foi procurar a mãe das crianças. Essa, que estava ao lado da valeta estripada, e ali sentada segurava o bebé aos berros, tinha ela mesma apenas uma fratura no ombro e um corte feio no rosto. "Tivemos um acidente!" gritavam as crianças numa alegria frenética.
"Mas não morreu ninguém'', disse, desapontada, June Star, quando a avó desceu mancando do carro com o chapéu ainda preso na cabeça, malgrado a aba desabada na frente, que ela tentava recolocar numa posição elegante, e o buque de violetas caído ao lado. Sentaram-se todos na valeta, menos as crianças, todos tremendo muito, para se refazerem do susto.
"Talvez venha um carro por aí, disse a mãe das crianças com a voz embargada.
"Acho que algum órgão meu foi afetado", disse a avó, apalpando- se de um lado do corpo, mas ninguém ligou para ela. Os dentes de Bailey batiam sem parar. Vestido numa camisa esporte amarela, na qual brilhavam, estampadas, umas araras-azuis, ele estava com o rosto da mesma cor da camisa. A avó achou melhor não dizer que a tal da casa era no Tennessee.
A estrada se encontrava cerca de três metros acima, e eles podiam ver apenas, do outro lado, o topo das arvores. Por trás da vala na qual estavam sentados se estendia a mata cerrada, escura e alta. Em poucos minutos avistaram um carro, não muito longe, no cocuruto de um morro, que vinha bem devagar, como se seus ocupantes os observas- sem. A avó, para lhes chamar a atenção, levantou-se em espalhafatosos acenos, agitando os dois braços. O carro, que continuava a se aproximar lentamente, desapareceu numa curva e ressurgiu adiante ainda mais devagar, já no cume do morro por que eles tinham passado. Era um grande automóvel preto e velho, em péssimo estado, que mais parecia um carro fúnebre. Levava três homens dentro.
Parou bem por cima deles e, por alguns minutos, o motorista ficou olhando para baixo, lá para onde eles estavam, de um modo fixo, porém sem expressão, e não disse nada. Depois, virando-se de cabeça, sussurrou algo aos outros dois, que desceram. Um, o gordo, de calça preta, que usava uma camiseta vermelha adornada no peito por um garanhão prateado, passou por eles e foi plantar-se à direita, do outro lado, de onde concentradamente os olhava, com uma espécie de riso frouxo na boca aberta pelo meio. O outro, de calça caqui e paletó listrado de azul, com um chapéu cinza tão enterrado na testa que lhe ocultava a maior parte do rosto, lentamente se aproximou pela esquerda. Nenhum dos dois falava nada.
O motorista saltou, mas continuou ao lado do carro, de pé, olhando para eles lá embaixo. Era mais velho do que os outros dois homens. Seu cabelo já estava meio grisalho, e os óculos de aros prateados davam-lhe um ar estudioso. Tinha o rosto enrugado e o peito nu, sem camisa nem camiseta. Sua calça blue jeans estava muito apertada e ele empunhava um revolver, tendo na outra mão seu chapeu preto. Os dois rapazes também estavam armados.
"Sofremos um acidente", as crianças gritavam.
A avó teve a nítida impressão de que já conhecia aquele homem de óculos. Seu rosto lhe era bem familiar, como se o tivesse conhecido a vida toda, e ela no entanto não conseguia se lembrar quem era. Ele se afastou do carro e começou a descer pelo barranco, firmando os pés com atenção, para não escorregar. Usava sapatos de duas cores, marrom e branco, sem meias, e tinha os tornozelos muito vermelhos e finos. "Boa tarde", ele disse. "Tiveram um probleminha, ne?"
"Capotamos duas vezes!", disse a avó.
“Uma” ele corrigiu. "Nos vimos quando aconteceu. Ligue lá o carro deles, Hiram, pra ver se pega", disse calmamente para o rapaz de chapéu cinza.
"Pra que essa arma?", perguntou John Wesley. "Vai fazer o que com essa arma, hein?"
"Minha senhora", disse o homem para a mãe das crianças, "mande essas crianças sentarem-se ai ao seu lado, sim? Crianças me põem nervoso. Quero todos vocês sentados juntos aí, aí mesmo onde estão."
"Por que é que você está dando ordens pra gente?" June Star per­guntou.
A mata se abria, por trás deles, como uma boca escura. "Venham pra cá", disse a mãe.
"Olha aqui", disse Bailey bruscamente, "nós estamos numa enrasca- da! Estamos nu..."
A avó deu um grito. Ficou em pé, encarou o homem e disse: "O senhor e o Desajustado! Eu logo vi!".
"É, dona, sou sim", disse o homem, com um ligeiro sorriso, como que satisfeito de sua fama, apesar dos pesares, "mas seria muito melhor para todos se a senhora não tivesse me reconhecido."
Bailey se virou abruptamente e disse para a sua mãe qualquer coisa que deixou até mesmo as crianças chocadas. A velha senhora começou a chorar, e o Desajustado corou.
"Minha senhora", ele disse, "não fique triste. As vezes um homem diz coisas sem querer. A intenção dele, penso eu, não era falar assim com a senhora."
"O senhor não atiraria em mulher, não é?" disse a avó, tirando do punho do vestido um lencinho limpo para enxugar os olhos
O Desajustado enfiou o bico de seu sapato na terra e fez um buraquinho que depois tampou. "Eu detestaria ter de fazer isso" disse.
"Escute aqui", disse a avó quase gritando, "eu sei que o senhor é um homem bom. Não aparenta nem um pouco ser pessoa comum. Sei que deve ser de boa familial"
"Ah, isso sim", disse ele, "da melhor do mundo." Deixava a mostra, quando ria, seus dentes brancos e fortes. "Deus nunca fez mulher mais perfeita do que a minha mãe, e o coração do meu pai era ouro puro", ele disse. O rapaz de camiseta vermelha deu a volta e, com sua arma apoiada na cintura, ficou em pé por trás deles. O Desajustado se agachou. "Olho nessas crianças, Bobby Lee", disse ele. "Você sabe que elas me deixam nervoso." Olhava para o grupo dos seis amontoados ali na sua frente e parecia confuso, como se não achasse o que dizer. "Nem uma nuvem no céu, não é?" observou, olhando para as alturas. "Não se vê o sol, mas também não se vê nuvem."
"Pois é, está um dia lindo!" disse a avó. "Mas ouça" acrescentou, "o senhor não deveria se chamar de Desajustado, porque eu sei que é um homem de bom coração. Basta olhar a sua pessoa, que eu logo vejo."
"Silêncio", gritou Bailey. "Boca calada todo mundo! Deixem comigo que eu resolvo a parada." Ele estava a postos, na posição de um corredor na largada, mas não se moveu.
"Obrigado por suas boas palavras, minha senhora" disse o Desajustado, traçando com o cabo da arma uma rodinha no chão.
"Levaria uma meia hora para ajeitar esse carro", gritou Hiram, olhando por cima do capô aberto.
'Tudo bem, mas primeiro você e o Bobby Lee levem o cara e o garotinho para dar uma andada", disse o Desajustado, apontando Bailey e John Wesley. "Os rapazes querem te perguntar uma coisa", disse ele para Bailey. "Pode dar uma chegadinha ali na mata com eles?"
"Escute aqui", começou Bailey, "nos estamos numa enrascada terrível! Será que ninguém percebe?" mas sua voz sumiu, e ele permaneceu completamente parado, com os olhos de um azul tão intenso quanto as araras da camisa que usava.
A avó se esticou para ajeitar a beirada do chapéu, como se tivesse de ir para a mata também, mas o chapéu acabou caindo na sua mão. Ela o olhou por algum tempo e depois o deixou cair no chão. Hiram puxou Bailey pelo braço, como se estivesse ajudando a um velho. John Wesley se agarrou na mão do pai, e Bobby Lee os seguiu. Foram lá para a mata, e quando estavam chegando a orla escura Bailey se virou e, apoiado no caule nu e acinzentado de um tronco de pinheiro, gritou: "Eu volto logo, mamãe, me espere aí!".
"Volte já! Agora mesmo!", gritou a mãe, mas todos tinham desaparecido na mata.
"Bailey, meu filho!" chamou a avó numa voz trágica, mas deu-se conta de que tinha pela frente, agachado no chão, o Desajustado, para o qual alias estava olhando. "Sei que o senhor e um homem bom", disse, desesperada. "Não é uma pessoa qualquer!"
"Não, dona, não sou bom não", o Desajustado disse um segundo depois, como se houvesse refletido sobre o que ela tinha dito, "mas também não sou o pior do mundo. Meu pai dizia que eu era de outra raça, diferente dos meus irmãos e irmãs. Dizia que há pessoas capazes de passar a vida toda sem perguntar por quê, mas que outras tem de saber o porquê das coisas, e que eu era desse tipo e ia me meter em tudo." Pôs o chapéu preto, olhou bruscamente para cima e logo desviou o olhar lá para a mata, como se estivesse novamente sem jeito. "Desculpem eu estar sem camisa assim diante das senhoras", disse, dobrando ligeiramente os ombros. "Nos enterramos nossas roupas depois da fuga, e temos nos safado com essas até achar coisa melhor. Essas nós pegamos com um pessoal que encontramos", explicou.
"Mas então está tudo bem" disse a avó. "Bailey deve ter uma camisa extra na mala."
"Ah, eu vou dar uma olhada", disse o Desajustado.
"Para onde estão levando eles?", berrou a mãe das crianças.
"O meu velho era um colosso. Ninguém passava a perna nele. Nunca se meteu numa encrenca, sabia como lidar com autoridades."
"O senhor também, se quisesse tentar, poderia ser honesto", disse a avó. "Já pensou que maravilha seria fixar-se numa vida tranquila, sem ter de pensar se há alguém a persegui-lo o tempo todo?"
O Desajustado pareceu refletir. Continuava rabiscando no chão, com o cabo da arma, e disse: "Tem sempre alguém atrás da gente".
A avó pode notar que os ombros dele eram estreitos demais, logo abaixo do chapéu, porque, estando em pé, ela o via de cima. "Costuma rezar?", perguntou.
Ele meneou a cabeça. Ela só viu o chapéu preto balançando em seus ombros. E ele disse: "Não".
A um tiro de pistola na mata seguiu-se logo mais um. Depois, silencio. A cabeça da avo rodopiou. Ela ouviu o vento passando pelo alto das arvores como uma tomada de ar longa e satisfatória. "Bailey, meu filho!" gritou.
"Por uns tempos, fui cantor gospel", disse o Desajustado. "Já fiz um pouco de tudo. Fiz meu serviço militar, em terra e no mar, no país e lá fora, já me casei duas vezes, já fui agente funerário, já fui ferroviário e já lavrei a mãe terra, estive em um tornado, certa vez vi um homem queimado vivo..." e olhou para a mãe das crianças e a garota, que estavam sentadas bem juntinhas, com o rosto pálido e os olhares vidrados. "Vi até uma mulher ser chicoteada", acrescentou.
"Reze", interveio a avó. "Reze..."
"Não me lembro de ter sido um mau menino", o Desajustado disse, numa voz como que em devaneio, "mas o fato e que lá pelas tantas fiz alguma coisa de errado e fui para a cadeia. Enterrado vivo, na penitenciária" e olhou para cima, prendendo-lhe a atenção com um olhar persistente.
"Era então que devia ter começado a rezar", ela disse. "O que foi que fez para ser mandado para a penitenciária dessa primeira vez?"
"Do lado direito uma parede" disse o Desajustado, "do lado esquerdo outra. Se eu me virasse para cima, via o teto; para baixo, o chão. Esqueci o que eu fiz, minha senhora. Sentava lá e ficava tentando lembrar o que eu tinha feito e até hoje não lembro. De vez em quando parecia que ia vir, que eu ia me lembrar, mas não vinha."
"Talvez o tenham prendido por engano", disse vagamente a velha senhora.
"Não", ele disse. "Não houve erro. Sabiam tudo a meu respeito."
"Teria roubado alguma coisa, por acaso?" ela disse.
O Desajustado, zombando um pouco, riu. "Ninguém tinha nada que eu quisesse" disse. "Um medico lá da penitenciaria, um medico de cabeça, sabe, cismou que eu mesmo tinha matado meu pai. Invenção dele, é claro. Meu pai morreu na epidemia de gripe de 1919, e eu nunca tive nada com isso. Foi enterrado no cemitério da igreja batista de Mount Hopewell. Se quiser, pode ir lá ver."
"Jesus lhe ajudaria" disse a velha senhora, "se o senhor rezasse."
"Isso é verdade", disse o Desajustado.
"Mas então por que não reza?" perguntou ela, trêmula, num repentino deleite.
"Não quero ajuda", disse ele. "Tenho me dado bem sozinho."
Bobby Lee e Hiram voltaram da mata a passos lentos. O primeiro arrastando uma camisa amarela com araras-azuis muito brilhantes.
"Jogue essa camisa pra mim", disse o Desajustado. E a camisa veio voando, pousou em seu ombro e ele a vestiu. A avó não conseguia saber o que é que a camisa lhe trazia a lembrança. "Não, dona" disse o Desajustado, enquanto a abotoava, "eu descobri que o crime não importa. Você pode fazer isso ou aquilo, matar um homem ou roubar um pneu do carro dele, porque mais cedo ou mais tarde você se esquecerá do que fez e será punido justamente por isso."
A mãe das crianças começou a dar uns gemidos, como se não pudesse respirar muito bem. "Dona", ele pediu, "pode dar uma chegada com Bobby Lee e Hiram ate ali, com a garotinha, para juntar-se ao seu marido?"
"Sim, obrigada" disse, enfraquecida, a mulher. Seu braço esquerdo pendia bambo, e com o outro ela amparava o bebe, que agora estava dormindo. "Ajude a moça, Hiram", disse o Desajustado, quando ela já se esforçava para sair da valeta, "enquanto o Bobby Lee pega a garota pela mão."
"Não quero que ele me pegue pela mão", disse June Star. "Parece um porco."
O gordo corou e riu e a pegou pelo braço e foi levando para a mata atrás de Hiram e da mãe.
Sozinha com o Desajustado, a avó constatou ter perdido a voz. Não havia uma só nuvem, nem sol, no céu. Nada, em torno dela, a não ser a mata. Ela queria dizer que ele devia rezar. Abriu e fechou diversas vezes a boca, mas a frase não saía. Finalmente deu consigo dizendo: "Jesus, Jesus", querendo dizer Jesus vai lhe ajudar, embora mais parecesse estar xingando, pelo modo como falou.
"É, dona", disse o Desajustado, como se concordasse. "Jesus desequilibrou as coisas. O mesmo caso, o dele e o meu, só que ele não praticou nenhum crime, e o meu eles puderam provar, porque tinham tudo anotado na minha ficha. É claro", disse ele, "que nunca me mostraram a ficha. Por isso agora assino tudo. Ha muito que eu digo, o negócio é caprichar na assinatura, assinar tudo que fizer e guardar cópia. Você assim poderá saber o que fez, podendo comparar o crime ao castigo, para ver se correspondem, e por fim terá alguma coisa para provar, se não for tratado direito. Se eu me chamo Desajustado", disse ele, "e porque não faço esse ajuste, não consigo encaixar as coisas para que tudo que eu fiz de errado corresponda a tudo que sofri de castigo."
Veio da mata um grito lancinante, logo seguido por um tiro de pistola. "A senhora acha justo que um receba punição rigorosa e outro nem sequer seja punido?"
"Jesus!", gritou a velha. "O senhor tem sangue bom. Tenho certeza de que não atiraria numa mulher. Sei que vem de boa família... Jesus, reze! Numa senhora o senhor não deve atirar. Eu lhe dou todo o dinheiro que eu tenho!"
"Minha senhora", disse o Desajustado, olhando bem além dela, para a mata, "cadáver não da gorjeta para quem faz o serviço."
Houve mais dois tiros de pistola e a avó ergueu a cabeça, como uma perua sedenta pedindo agua para se refrescar, e gritou: "Bailey, meu filho! Bailey, meu filho!" como se o seu coração fosse explodir.
"Jesus foi o único a ressuscitar os mortos" prosseguiu o Desajustado, "e ele não devia ter feito isso. Desequilibrou tudo. Se ele fazia o que dizia, não temos outra coisa a fazer a não ser renunciar a tudo e segui-lo. Mas, se não fazia, então o que nos cabe e desfrutar dos poucos minutos que nos restam da melhor maneira possível - matando alguém ou queimando a casa de alguém ou lhe fazendo alguma outra maldade. Sem maldade não ha prazer", disse ele, e sua voz era quase um rosnado.
"Vai ver que ele não ressuscitou os mortos", murmurou a velha senhora, já sem saber o que dizia e se sentindo tão tonta que arriou na vala, a medida que suas pernas foram se retorcendo.
"Se fez ou não fez, não sei, porque eu não estava lá", disse o Desa­justado. "E bem que eu gostaria de ter estado", acrescentou, dando um soco no chão. "Não é justo ser assim, porque, se eu tivesse estado lá, eu saberia. Sabe de uma coisa, madame", disse em voz alta: "Se eu tivesse estado lá, eu saberia, e não seria como sou agora". Sua voz parecia a ponto de rachar, e a cabeça da avó clareou por um instante. Ela viu o rosto do homem contorcendo-se próximo ao dela, como se ele fosse chorar, e balbuciou: "Mas você é uma das minhas crianças, um dos meus filhinhos!" esticando o braço para toca-lo no ombro. O Desajustado deu um pulo para trás, como se uma cobra o picasse, e atirou três vezes nela, todas no peito. Depois botou a arma no chão, tirou os óculos e começou a limpá-Ios.
Hiram e Bobby Lee voltaram da mata e pararam na beirada da vala, de onde olhavam para a avó lá embaixo, meio sentada, meio deitada numa poça de sangue, com as pernas cruzadas sob o corpo, como pernas de criança, e o rosto rindo para o alto, para o céu sem nuvens.
Os olhos do Desajustado, sem os óculos, eram lívidos, orlados de vermelho e indefesos. "Levem ela daqui e joguem lá onde jogaram os outros" disse ele, apanhando o gato, que se esfregava em sua perna.
"Ela falava demais, né?" disse em voz cantante Bobby Lee, ao escorregar vala adentro.
"Seria até boa mulher", o Desajustado disse, "se a cada instante de sua vida houvesse alguém nas cercanias para lhe dar um tiro."
"Teria sido gozado!" disse Bobby Lee.
"Cala essa boca, Bobby Lee!", disse o Desajustado. "É, na vida não há prazer verdadeiro."