sexta-feira, 24 de julho de 2015

57 – O homem da flor na boca – L. Pirandello

“O homem da flor na boca” escrito por  Luigi Pirandelo (1867-1936), escritor e dramaturgo italiano nascido na Sicília tem forma de uma cena de teatro mas é na verdade um pequeno conto que permite ao leitor apreciar o estilo deste grande autor, vencedor do premio Nobel de literatura em 1934. Com Pirandello o que começa com uma simples conversa perdida na noite pode terminar ...
O Homem da Flor na Boca
(L ́uomo del Fiori in Boca)
Luigi Pirandello
Tradução: Eduardo Muniz & Alvaro Pilares

PERSONAGENS: O pacifico freguês e o homem da flor na boca
ATO ÚNICO
CENA – Noite de verão. Uma pequena rua solitária que acaba numa avenida. Ao fundo, entre os galhos das arvores, aparecem os candeeiros elétricos acesos. No prédio de esquina da pequena rua, à esquerda, um pobre café noturno, com mesinhas e cadeiras de passeio fracamente iluminadas pelo candeeiro aceso, à beira do mesmo passeio. Diante da casa da direita uma lâmpada acesa. No ângulo da ultima casa da esquerda que faz esquina com a avenida outro candeeiro aceso.
Quase no fim do dialogo, na altura indicada no texto, aparecerá por duas vezes um vulto de mulher, vestida de preto, com um velho chapéu enfeitado com penas já sem frescura.
É um pouco mais de meia noite. Em alguns intervalos da peça ouvir-se-á um som distante tilintante de um bandolim. Quando o pano sobe, aparece o Homem da Flor na Boca sentado numa das mesas, observando demoradamente e em silencio um Pacifico Freguês que na mesa ao lado chupa com um canudo um refrigerante.
O HOMEM: Pelo que vejo, o senhor, um homem pacifico e metódico... perdeu o trem?
O FREGUÊS: Por um minuto, sabe? Chego na estação e lá o vejo, fugindo diante de mim.
O HOMEM: Podia ter corrido atrás dele!
O FREGUÊS: Podia! É engraçado, eu sei! Se eu não tivesse que carregar todos aqueles embrulhos e embrulhinhos... Mais carregado que um burro! Mas as mulheres... sabe como é – pedindo sempre encomendas e não param. Você acredita que quando desci do carro, eu levei três minutos só para arrumar nos dedos os barbantes de todos os pacotes: dois em cada dedo.
O HOMEM: Gostaria de ter visto isso. Sabe o que eu faria no seu lugar? Teria deixado tudo no carro.
O FREGUÊS: E minha mulher? E as minhas filhas? E todas as amigas delas?
O HOMEM: Iam gritar muito, e eu ia me divertir com isso.
O FREGUÊS: Talvez o senhor não saiba como se tornam as mulheres quando estão de férias.
O HOMEM: Ora! Sei, e muito bem! Digo isso justamente por saber. Todas dizem que não precisam de nada.
O FREGUÊS: Nada? Elas são até capazes de dizer que vão viajar pra fora só com a intenção de economizar. Depois assim que chegam em alguma cidadezinha aqui por perto, quanto mais feia, suja e miserável for, mais elas insistem em enfeitá-la caprichando nos figurinos acessórios. Ora, as mulheres, meu caro senhor! Mas a final, é a profissão delas!...”Se você desse um pulo até a cidade, meu amor!... Eu estava precisando realmente disso... disso... daquilo... e também você podia... se não se incomoda (engraçado esse: ”se não se incomoda”, não acha?)... Já que você vai pra lá, quando passar em frente...”- Mas, minha querida, como é que você quer que eu faça tudo isso em apenas em três horas? – “Ora, o que é que tem? Você pega um táxi...” – O pior é que eu achava que só ia demorar três horas e não trouxe a chave de casa.
O HOMEM: Essa é muito boa! E depois?
O FREGUÊS: Ora, depois eu deixei aquele montão de encomendas e fui jantar num restaurante; depois, eu fui ao teatro pra dar uma espairecida. Lá estava muito quente. Na saída me perguntei: E agora, vou fazer o que? Já passa da meia noite e às quatro da manhã eu tenho que pegar o primeiro trem, então nem vale a pena ir deitar. E vim até aqui. Este café não fecha, né?
O HOMEM: Não fecha, não senhor! (PAUSA) E, então, deixou todos os seus pacotes na estação?
O FREGUÊS: Porque me pergunta isso? Por acaso não estão seguros lá? Estavam todos tão bem embrulhados e...
O HOMEM: Não, não digo isso! Muito bem embrulhados, calculo: Com aquela arte especial dos vendedores, de embrulhar os objetos que vendem... (PAUSA) Que mãos! Uma bela folha de papel dobrada, vermelha, polida... que só de olha-la já é um prazer...Tão lisa, que até dá vontade de encostá-la no rosto para sentir o seu toque delicado... Estendem a folha sobre o balcão, e depois, com elegância e desembaraço, colocam em cima, precisamente no meio, o tecido fino, bem dobrado. Levantam primeiro de baixo, com o dorso da mão, uma ponta da folha de papel; dorso da mão, uma ponta de papel: até lhe fazem uma pequena prega, supérflua, só por amor à arte. Então, dobram de um lado e do outro, em triângulo, a folha de papel, e viram por baixo as duas pontas; estendem uma das mãos para o rolo de fita; puxam o necessário para atar o embrulho. E atam tão rapidamente que nem temos tempo de admirar a habilidade do empregado, e já nos apresentam o embrulho feito, com o nó pronto pra levarmos pendurado nos dedos.
O FREGUÊS: Percebo que o senhor dedicou muita atenção aos empregados das lojas...
O HOMEM: Eu? Meu caro amigo, eu passo dias inteiros observando-os! Sou capaz de ficar mais de uma hora, parado, olhando pra dentro das lojas através das vitrines. Chego a esquecer de mim. Parece que sou, e realmente gostaria de ser, aquele tecido de seda... aquele cetim... a fita vermelha, ou azul, que as vendedoras das lojas, depois de a medirem com o metro... já viu como fazem? Enrolam no polegar em forma de oito, antes de embrulhar. (PAUSA) Observo o cliente ou a cliente que sai da loja com o embrulho na mão, ou numa sacola, ou debaixo do braço... Sigo- os com os olhos, até sumirem da minha vista... fico imaginando... - Ah, quantas coisas imagino!, o senhor não faz ideia! (PAUSA, DEPOIS PARA SI) Mas me ajuda, isso me ajuda.
O FREGUÊS: (PAUSA) Desculpe... o que é que lhe ajuda?
O HOMEM: Me agarrar assim – quero dizer, com a imaginação – à vida. Como uma planta trepadeira nas grades de um portão... (PAUSA) Ah, nunca deixar a imaginação descansar, nem um instante sequer: - Aderir, aderir com ela, continuamente, à vida dos outros... mas não à vida de gente que conheço! Não! Não! A essa não! Eu sinto por ela... uma repugnância, se o senhor soubesse! Um nojo! Aderir à vida dos estranhos, em volta dos quais a minha imaginação pode trabalhar livremente; mas isso não é um capricho meu, muito pelo contrario, levando em consideração as menores peculiaridades descobertas neste ou naquele estranho. E se soubesse quanto e como ela trabalha! Dependendo até onde consigo aprofundar, vejo até mesmo a casa deste ou daquele indivíduo; vivo lá dentro; me sinto dentro dela, até sinto o cheiro... sabe? Aquela espécie de cheiro particular de cada casa! Da sua, da minha... mas na nossa, nos já não sentimos mais, porque já é o cheiro da nossa própria vida...Não sei se eu tô sendo claro. Ah, pelo visto sim e...
O FREGUÊS: Sim, porque...quero dizer: deve ser realmente muito prazeroso para o senhor imaginar todas essas coisas...
O HOMEM: (COM EVIDENTE FADIGA DEPOIS DE PENSAR UM INSTANTE)- Prazeroso? Pra mim?
O FREGUÊS: Quer dizer... calculo...
O HOMEM: Me diz uma coisa. Já foi consultar algum médico de renome?
O FREGUÊS: Eu não! Por que? Não estou doente!
O HOMEM: Não se assuste! Só tô perguntando para saber se já viu, no consultório desses grandes médicos, a sala onde os clientes esperam a sua vez de serem atendidos.
O FREGUÊS: Já vi, sim. Tive de acompanhar uma vez uma das minhas filhas, que sofria dos nervos, e...
O HOMEM: Muito bem. Não me interessa saber. Só me interessam aquelas salas... (PAUSA) Já reparou nelas? Um sofá de tom escuro, desses antigos... as cadeiras estofadas, muitas vezes desiguais... Tudo comprado de ocasião, de segunda mão, colocadas ali para os clientes; não pertencem ao lugar. Já o médico tem na sua casa rica e bela, uma outra sala, para ele e para as amigas da esposa. Imagine como destoaria uma das suas cadeiras ou poltronas se fosse trazida para cá, para o lugar reservado aos clientes, a quem basta esses moveis sem pretensões, decentes, sóbrios. Queria saber se o senhor, quando foi com a sua filha, reparou bem na poltrona ou na cadeira onde se sentou enquanto esperava.
O FREGUÊS: Eu não, com francamente...
O HOMEM: É verdade: o senhor não estava doente... (PAUSA). Mas nem todos os doentes reparam naquilo, mergulhados como estão no pensamento da sua própria doença... (PAUSA) E, no entanto, quantas vezes alguns deles estão ali, atentos, observando os movimentos ansiosos dos dedos que fazem sinais inúteis, no braço puído daquela cadeira em que estão sentados!...Pensam e não veem. Mas que efeito faz. Quando saímos da consulta, e voltamos a atravessar a sala, vendo de novo a cadeira onde há pouco estávamos sentados, à espera da sentença do nosso mal ainda ignorado! Ocupada por outro paciente, também ele com a sua doença secreta; ou ali, vazia, impassível, à espera de um outro qualquer que vai ocupá-la... (PAUSA) Mas o que estávamos falando?... Ah, sim, é verdade... O prazer da imaginação. – Não sei bem porque me lembrei logo de uma das cadeiras dessas salas dos médicos, onde os pacientes estão à espera da consulta...
O FREGUÊS: Sim... realmente...
O HOMEM… Não vê a relação? Nem eu. Mas é que certos laços ligando imagens entre si longínquas, são tão particulares a cada um de nós, e determinados por causas e experiências tão singulares, que deixaríamos de nos compreender se, ao falarmos, não nos inibíssemos de utilizá-los. Nada mais lógico, por vezes, do que estas analogias. Mas a relação pode talvez ser esta, repare: “Teriam prazer, aquelas cadeiras, em imaginar quem é o paciente que vai sentar-se nelas, à espera da consulta? Que doença ele tem? Para onde ele vai? O que fará depois da consulta?” Nenhum prazer. E assim eu também: Nenhum! Entram e saem os clientes e elas, pobres cadeiras, estão lá à espera de serem ocupadas. Pois bem, a minha é uma ocupação parecida. Ora me ocupa este, ora aquele. Neste momento está me ocupando o senhor, e creia que não sinto prazer algum com o trem que perdeu, com a família que espera o espera na cidadezinha de ferias, com todas as reclamações que eu imagino que tenha...
O FREGUÊS: Ai, tantas, nem calcula!
O HOMEM: Dê graças a Deus que não passam de reclamações. (PAUSA) Existem coisas piores, meu amigo. Eu lhe digo que tenho necessidade de me agarrar com a imaginação à vida alheia; mas assim, sem prazer, sem me interessar de maneira alguma, muito pelo contrário... pelo contrário... para sentir a irritação da vida, para julgá-la estúpida e inútil, tanto que realmente não deve importar muito a ninguém perdê-la. (RAIVOSAMENTE) E isso é necessário que a gente perceba, sabe? Com provas e exemplos contínuos, implacavelmente. Porque, meu caro senhor, não sabemos de que é feito esse desejo de viver, mas existe, existe! Todos a sentimos aqui, como uma angustia na garganta, o gosto da vida que nunca se satisfaz, que nunca se pode satisfazer, porque a vida, no próprio ato de a vivermos, é tão gulosa de si própria, que não se deixa saborear. O sabor está no passado, que permanece vivo dentro de nós. É daí que nos vem o desejo de viver, das recordações que nos mantém presos. Mas presos a que? A esta estupidez... a estas lamentações... a tantas ilusões absurdas... a tantas amarguras que nos ocupam... Sim! Esta, que foi uma estupidez!... Aquela, que foi uma lamentação... e posso até dizer: essa que agora parece ser uma desventura, uma verdadeira desventura... daquí a quatro, cinco, dez anos, quem sabe que gosto virão a ter...que gosto virão a ter as próprias lágrimas de hoje?... E a vida, por Deus, só a ideia de a perdermos... especialmente quando se sabe que é uma questão de dias...(NESTE MOMENTO APARECE O VULTO DA MULHER VESTIDA DE PRETO, ESPREITANDO A ESQUINA.) Pronto... está vendo? Ali, ali, naquela esquina...Então não vê um vulto de mulher? – Já se escondeu!
O FREGUÊS: Quem? Quem era?
O HOMEM: Não viu? Se escondeu.
O FREGUÊS: Uma mulher?
O HOMEM: Sim. Minha mulher.
O FREGUÊS: Ah! Sua esposa?
O HOMEM: (DEPOIS DE UMA PAUSA) Vigia-me de longe. E acredite, tenho vontade de ir até ela e mandá-la embora a pontapés! Mas seria inútil... É como uma dessas cadelas sem dono, teimosas, que quanto mais pontapés nós damos, mais grudam nos nossos calcanhares. (PAUSA) O que aquela mulher está sofrendo por mim, o senhor nem pode imaginar. Já não come, não dorme... Segue-me dia e noite, assim, à distancia. Se pelo menos tentasse escovar aquele cabelo... aqueles vestidos... Já não parece uma mulher, mas um trapo velho. O cabelo empoeirado. E tem apenas trinta e quatro anos! (PAUSA) Sinto uma raiva tão grande que não imagina. Às vezes a pego nos ombros e grito na sua cara: Estúpida, imbecil! – E sacudo-a. Aceita tudo. Fica parada, olhando pra mim, com uns olhos.. .com uns olhos que, juro pra você, fazem-me subir aos dedos um desejo selvagem de estrangulá-la. Mas nada. Espera que me afaste, para recomeçar a me seguir de longe. (DE NOVO A MULHER TORNA A ESPREITAR) Olha, olha, espreitou outra vez aquela esquina!
O FREGUÊS: Pobre senhora!
O HOMEM: Que pobre senhora! Percebe o que ela queria? Queria que eu ficasse em casa, muito calmo, muito quieto, descansando no meio dos seus carinhos; admirando a ordem perfeita de todos os cômodos, da beleza de todos os móveis, aquele silêncio de espelho que havia antes na minha casa, medido pelo tique- taque do relógio de pendulo da sala de jantar. – Era isso que ela queria! E eu pergunto a você, para lhe fazer compreender o absurdo... Não! Que estou dizendo? “O absurdo?” – a macabra ferocidade dessa pretensão! Eu pergunto se julga possível que as casas de Avezzano, as casas da Messina, se tivessem tido conhecimento do terremoto que em breve as iriam derrubar, teriam conseguido ficar muito sossegadas sob o luar, ordenadas em fileiras, ao longo das ruas e das praças, obedecendo ao plano regulador da Comissão Organizadora da Câmara Municipal. Casas, por Deus, de pedra e madeira, e também elas teriam fugido! Imagine então os habitantes de Avezzano, os habitantes da Messina, a despirem-se plácidos, para se deitarem, dobrando as roupas, pondo os sapatos diante da porta, e enfiando-se depois debaixo dos cobertores, gozando a brancura fresca dos lençóis bem lavados, com a consciência de que, dentro de algumas horas, morreriam. Parece-lhe possível?
O FREGUÊS: Mas por acaso, a sua esposa...
O HOMEM: Deixe-me falar! Se a morte, meu amigo, fosse como um daqueles insetos esquisitos, repugnantes, que pousam em cima de nós, sem percebermos... O senhor vai passando pela rua; outro pedestre, de repente o faz parar, e com toda cautela, com os dedos estendidos, lhe diz: “Perdão amigo, com licença. Vossa excelência tem a morte em cima de si!” E, com os tais dedos estendidos, pega-lhe e atira com ela para longe... Então seria magnifico! Mas a morte não é como um desses insetos repugnantes. Quantos daqueles que passeiam tranquilos e sem preocupações, talvez a tragam em cima em si; ninguém a vê; e eles vão tranquilamente planejando seu dia de amanhã e depois de amanhã. Ora, eu, meu caro senhor... (LEVANTA-SE) Vem!... vem mais pra cá... (CONDUZ O FREGUÊS PARA JUNTO DO CANDEEIRO ACESO)...Quero mostrar uma coisa...Olhe aqui, debaixo do bigode... Aqui, está vendo? Não vê que linda tuberosidade violácea? Sabe como se chama isso? Ah, um nome muito doce, mais doce que um rocambole: Epitelioma, é assim que se chama. Pronuncie, verá que doçura: Epitelioma... A morte, percebe? Passou por mim. Pôs esta flor na boca, e disse: - “Fica com ela, querido: voltarei a passar por aqui dentro de oito ou dez meses!” (PAUSA). E agora me diz, se com essa flor na boca, eu podia ficar em casa tranquilo e sossegado, como desejava aquela infeliz. Eu grito com ela: - Ah, então, você quer que eu te beije? – Sim, me beija! – Mas sabe o que ela fez?: Com um alfinete, a semana passada, fez um arranhão aqui no lábio superior, e depois agarrou minha cabeça e queria me beijar... me beijar na boca... Porque diz que quer morrer comigo... (PAUSA) Está louca... (RAIVOSAMENTE) Em casa é que eu não fico! Preciso estar atrás das vitrines das lojas, admirando a habilidade dos vendedores. Porque, o senhor compreende, se por momentos sinto um vazio dentro de mim... compreende, posso até matar, como se nada fosse, uma pessoa que nem sequer conheço... sacar uma arma e matar um sujeito que, como o senhor, tenha apenas perdido o trem... (RINDO) Não, não se assuste, meu caro senhor, estou brincando! (PAUSA) Eu vou embora (PAUSA) Eu me mataria primeiro (PAUSA) Mas existem, nesta altura do ano, certos damascos tão bons... De que maneira costuma comê-los? Com a boca toda, não é? Abre-se pelo meio; depois apertamos com os dedos até escorrer o sumo... como dois lábios carnudos... Que delícia! (RI. PAUSA) Meus respeitos à sua distinguida esposa e às suas filhas que estão de férias. (PAUSA) Eu as imagino vestidas de branco ou de azul celeste, numa linda ladeira, sob a sombra. (PAUSA) E talvez possa me fazer um favor, amanhã de manhã, quando chegar. Imagino que a cidadezinha estará perto da estação. – Ao romper do dia, poderá fazer o caminho a pé. – O primeiro ramo de ervas que encontrar ao longo da estação, repare bem nele. Conte os fios de erva por mim. Quantos fios contar, tantos serão os dias que ainda terei que viver. Mas escolhe um bem grande, pelo amor de Deus! (RI.) Boa noite, meu caro senhor.
AFASTA-SE CANTAROLANDO, DE BOCA FECHADA. A ÁRIA QUE O BANDOLIM TOCA, AO LONGE. MAS ANTES DE CHEGAR À ESQUINA DA DIREITA, LEMBRA-SE DE QUE A MULHER ESTÁ LÁ À SUA ESPERA. ENTAO RECUA UNS PASSOS, ATRAVESSA A RUA E DOBRA A ESQUINA DO OUTRO LADO, SEGUIDO PELO O OLHAR DO PACÍFICO FREGUÊS, QUASE PETRIFICADO.)
FIM


sábado, 18 de julho de 2015

56 – O ex-mágico da Taberna Minhota – M. Rubião

Murilo Rubião (1916-1991) escritor mineiro nascido em Carmo de Minas. Andou pelo jornalismo, pela politica e até pelo serviço diplomático. Seus contos são considerados como exemplos de literatura fantástica, mas para mim, o que mais impressiona é o bom humor com o qual ele conta suas historias... ainda que sejam tristes.


O ex-mágico da Taberna Minhota
Murilo Rubião

Inclina, Senhor, o teu ouvido, e ouve-me;
 porque eu sou desvalido e pobre.
(Salmos. LXXXV, I)

Hoje sou funcionário público e este não é o meu desconsolo maior.
Na verdade, eu não estava preparado para o sofrimento. Todo homem, ao atingir certa idade, pode perfeitamente enfrentar a avalanche do tédio e da amargura, pois desde a meninice acostumou-se às vicissitudes, através de um processo lento e gradativo de dissabores.


Tal não aconteceu comigo. Fui atirado à vida sem pais, infância ou juventude.


Um dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna Minhota. A descoberta não me espantou e tampouco me surpreendi ao retirar do bolso o dono do restaurante. Ele sim, perplexo, me perguntou como podia ter feito aquilo.


O que poderia responder, nessa situação, uma pessoa que não encontrava a menor explicação para sua presença no mundo? Disse-lhe que estava cansado. Nascera cansado e entediado.


Sem meditar na resposta, ou fazer outras perguntas, ofereceu-me emprego e passei daquele momento em diante a divertir a freguesia da casa com os meus passes mágicos.


O homem, entretanto, não gostou da minha prática de oferecer aos espectadores almoços gratuitos, que eu extraía misteriosamente de dentro do paletó. Considerando não ser dos melhores negócios aumentar o número de fregueses sem o consequente acréscimo nos lucros, apresentou-me ao empresário do Circo-Parque Andaluz, que, posto a par das minhas habilidades, propôs contratar-me. Antes, porém, aconselhou-o que se prevenisse contra os meus truques, pois ninguém estranharia se me ocorresse a ideia de distribuir ingressos graciosos para os espetáculos.


Contrariando as previsões pessimistas do primeiro patrão, o meu comportamento foi exemplar. As minhas apresentações em público não só empolgaram multidões como deram fabulosos lucros aos donos da companhia.


A plateia, em geral, me recebia com frieza, talvez por não me exibir de casaca e cartola. Mas quando, sem querer, começava a extrair do chapéu coelhos, cobras, lagartos, os assistentes vibravam. Sobretudo no último número, em que eu fazia surgir, por entre os dedos, um jacaré. Em seguida, comprimindo o animal pelas extremidades, transformava-o numa sanfona. E encerrava o espetáculo tocando o Hino Nacional da Cochinchina. Os aplausos estrugiam de todos os lados, sob o meu olhar distante.


O gerente do circo, a me espreitar de longe, danava-se com a minha indiferença pelas palmas da assistência. Notadamente se elas partiam das criancinhas que me iam aplaudir nas matinês de domingo. Por que me emocionar, se não me causavam pena aqueles rostos inocentes, destinados a passar pelos sofrimentos que acompanham o amadurecimento do homem? Muito menos me ocorria odiá-las por terem tudo que ambicionei e não tive: um nascimento e um passado.


Com o crescimento da popularidade a minha vida tornou-se insuportável.


Às vezes, sentado em algum café, a olhar cismativamente o povo desfilando na calçada, arrancava do bolso pombos, gaivotas, maritacas. As pessoas que se encontravam nas imediações, julgando intencional o meu gesto, rompiam em estridentes gargalhadas. Eu olhava melancólico para o chão e resmungava contra o mundo e os pássaros.


Se, distraído, abria as mãos, delas escorregavam esquisitos objetos. A ponto de me surpreender, certa vez, puxando da manga da camisa uma figura, depois outra. Por fim, estava rodeado de figuras estranhas, sem saber que destino lhes dar.


Nada fazia. Olhava para os lados e implorava com os olhos por um socorro que não poderia vir de parte alguma.


Situação cruciante.


Quase sempre, ao tirar o lenço para assoar o nariz, provocava o assombro dos que estavam próximos, sacando um lençol do bolso. Se mexia na gola do paletó, logo aparecia um urubu. Em outras ocasiões, indo amarrar o cordão do sapato, das minhas calças deslizavam cobras. Mulheres e crianças gritavam. Vinham guardas, ajuntavam-se curiosos, um escândalo. Tinha de comparecer à delegacia e ouvir pacientemente da autoridade policial ser proibido soltar serpentes nas vias públicas.



Não protestava. Tímido e humilde mencionava a minha condição de mágico, reafirmando o propósito de não molestar ninguém.


Também, à noite, em meio a um sono tranquilo, costumava acordar sobressaltado: era um pássaro ruidoso que batera as asas ao sair do meu ouvido.


Numa dessas vezes, irritado, disposto a nunca mais fazer mágicas, mutilei as mãos. Não adiantou. Ao primeiro movimento que fiz, elas reapareceram novas e perfeitas nas pontas dos tocos de braço. Acontecimento de desesperar qualquer pessoa, principalmente um mágico enfastiado do ofício.



Urgia encontrar solução para o meu desespero. Pensando bem, concluí que somente a morte poria termo ao meu desconsolo.


Firme no propósito, tirei dos bolsos uma dúzia de leões e, cruzando os braços, aguardei o momento em que seria devorado por eles. Nenhum mal me fizeram. Rodearam-me, farejaram minhas roupas, olharam a paisagem, e se foram.


Na manhã seguinte regressaram e se puseram, acintosos, diante de mim.


— O que desejam, estúpidos animais?! — gritei, indignado.


Sacudiram com tristeza as jubas e imploraram-me que os fizesse desaparecer:


— Este mundo é tremendamente tedioso — concluíram.


Não consegui refrear a raiva. Matei-os todos e me pus a devorá-los. Esperava morrer, vítima de fatal indigestão.


Sofrimento dos sofrimentos! Tive imensa dor de barriga e continuei a viver.


O fracasso da tentativa multiplicou minha frustração. Afastei-me da zona urbana e busquei a serra. Ao alcançar seu ponto mais alto, que dominava escuro abismo, abandonei o corpo ao espaço.


Senti apenas uma leve sensação da vizinhança da morte: logo me vi amparado por um paraquedas. Com dificuldade, machucando-me nas pedras, sujo e estropiado, consegui regressar à cidade, onde a minha primeira providência foi adquirir uma pistola.


Em casa, estendido na cama, levei a arma ao ouvido. Puxei o gatilho, à espera do estampido, a dor da bala penetrando na minha cabeça.


Não veio o disparo nem a morte: a máuser se transformara num lápis.


Rolei até o chão, soluçando. Eu, que podia criar outros seres, não encontrava meios de libertar-me da existência.



Uma frase que escutara por acaso, na rua, trouxe-me nova esperança de romper em definitivo com a vida. Ouvira de um homem triste que ser funcionário público era suicidar-se aos poucos.


Não me encontrava em condições de determinar qual a forma de suicídio que melhor me convinha: se lenta ou rápida. Por isso empreguei-me numa Secretaria de Estado.



1930, ano amargo. Foi mais longo que os posteriores à primeira manifestação que tive da minha existência, ante o espelho da Taberna Minhota.


Não morri, conforme esperava. Maiores foram as minhas aflições, maior o meu desconsolo.


Quando era mágico, pouco lidava com os homens -o palco me distanciava deles. Agora, obrigado a constante contato com meus semelhantes, necessitava compreendê-los, disfarçar a náusea que me causavam.


O pior é que, sendo diminuto meu serviço, via -me na contingência de permanecer à toa horas a fio. E o ócio levou-me à revolta contra a falta de um passado. Por que somente eu, entre todos os que viviam sob os meus olhos, não tinha alguma coisa para recordar? Os meus dias flutuavam confusos, mesclados com pobres recordações, pequeno saldo de três anos de vida.


O amor que me veio por uma funcionária, vizinha de mesa de trabalho, distraiu-me um pouco das minhas inquietações.


Distração momentânea. Cedo retornou o desassossego, debatia-me em incertezas. Como me declarar à minha colega? Se nunca fizera uma declaração de amor e não tivera sequer uma experiência sentimental!


1931 entrou triste, com ameaças de demissões coletivas na Secretaria e a recusa da datilógrafa em me aceitar. Ante o risco de ser demitido, procurei acautelar meus interesses. (Não me importava o emprego. Somente temia ficar longe da mulher que me rejeitara, mas cuja presença me era agora indispensável.)


Fui ao chefe da seção e lhe declarei que não podia ser dispensado, pois, tendo dez anos de casa, adquirira estabilidade no cargo.


Fitou-me por algum tempo em silêncio. Depois, fechando a cara, disse que estava atônito com meu cinismo. Jamais poderia esperar de alguém, com um ano de trabalho, ter a ousadia de afirmar que tinha dez.


Para lhe provar não ser leviana a minha atitude, procurei nos bolsos os documentos que comprovavam a lisura do meu procedimento. Estupefato, deles retirei apenas um papel amarrotado — fragmento de um poema inspirado nos seios da datilógrafa.


Revolvi, ansioso, todos os bolsos e nada encontrei.


Tive que confessar minha derrota. Confiara demais na faculdade de fazer mágicas e ela fora anulada pela burocracia.


Hoje, sem os antigos e miraculosos dons de mago, não consigo abandonar a pior das ocupações humanas. Falta-me o amor da companheira de trabalho, a presença de amigos, o que me obriga a andar por lugares solitários. Sou visto muitas vezes procurando retirar com os dedos, do interior da roupa, qualquer coisa que ninguém enxerga, por mais que atente a vista.


Pensam que estou louco, principalmente quando atiro ao ar essas pequeninas coisas.


Tenho a impressão de que é uma andorinha a se desvencilhar das minhas mãos. Suspiro alto e fundo.


Não me conforta a ilusão. Serve somente para aumentar o arrependimento de não ter criado todo um mundo mágico.



Por instantes, imagino como seria maravilhoso arrancar do corpo lenços vermelhos, azuis, brancos, verdes. Encher a noite com fogos de artifício. Erguer o rosto para o céu e deixar que pelos meus lábios saísse o arco-íris. Um arco-íris que cobrisse a Terra de um extremo a outro. E os aplausos dos homens de cabelos brancos, das meigas criancinhas.