segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

100 – O Tambor Chinês – I. Saikaku

Ihara Saikaku, poeta e escritor japonês do século XVII, nascido em Osaka. O conto “O Tambor chinês” destacado em nosso blog, foi escrito há aproximadamente 340 anos atrás.

O Tambor Chinês
 Ihara Saikaku
Tradução Tejiti Suzuki

No bairro de Nishijin, na cidade de Quioto, estão localizadas as oficinas de tecelagem de seda. Entre os mestres que viviam dessa profissão, havia um que, não obstante a sua destreza no ofício, via a sua situação econômica piorar dia por dia. No fim do ano, encontrava-se num beco sem saída. Falou com a mulher, e ficou decidido que deixariam o bairro na calada da noite, às escondidas dos credores. Começou ele, então, a vender os móveis e utensílios da oficina, secretamente, mas o fato não passou desapercebido dos seus colegas. Os mais chegados, que somavam uma dezena, lamentaram que tal ocorresse justamente com quem se mostrara sempre comedido, honesto, prestativo, homem de alma piedosa e isenta de pecados. Desejosos de salvá-lo da situação em que encontrava, encarregaram um deles, escolhido por mais avisado, de indagar do estado real das dívidas do colega. O enviado ficou sabendo que elas mal chegavam a oitenta ryos (cerca de duas libras ouro). Disse então, ao casal em apuros:
– Por que abandonar a oficina, que mantiveram durante tanto tempo por causa de tão pouco? Não se amofinem: são coisas da vida. Deixem tudo por nossa conta. Vão tratar dos preparativos para o Ano Novo. Deem as crianças presentes bonitos. Quanto aos uniformes dos aprendizes, ainda há tempo de mandar fazê-los azuis, sem o emblema da oficina. E, a senhora, deve cuidar mais da sua aparência, principalmente numa ocasião como esta. Vá fazer um penteado vistoso: a sabedoria da esposa consiste em não deixar ninguém perceber que o marido está em dificuldades.
Na noite de 26 de dezembro, conquanto estivessem todos atarefados, os dez colegas do mestre tecelão combinaram entre si e foram ter à casa do amigo, levando cada um consigo dez ryos. Pediram um vaso de madeira e nele depuseram as moedas de ouro que haviam trazido, constituindo assim uma caixa de socorro mútuo.
– As moedas aqui juntadas, que somam cem ryos, dentro em breve estarão multiplicadas por dez — diziam.
Um dos tecelões, com ar de entendido, levou o vaso até o santuário do Deus da Prosperidade, diante do qual depois de bater palmas, disse, como se rezasse:
Ó Deus da Prosperidade: multiplicai este tesouro; caso contrário, sereis jogado ao Rio Kamiya.
Entre os risos e aplausos de todos os presentes, teve inicio uma alegre libação, com os vinhos e vitualhas trazidos pelos visitantes. Beneficiadores e beneficiados estavam eufóricos.
Que bela e inusitada maneira de comemorar a passagem do ano! — exclamavam, erguendo as taças. Mesmo os menos afeitos às bebidas fartaram-se de beber. Cantaram e dançaram até esgotarem todo o seu repertorio de habilidades artísticas. Faziam tamanha algazarra que ninguém mais se entendia.
Eram quatro horas da manhã, e os galos cantavam, quando os visitantes se retiraram, após trocarem as sandálias, deixando suas capas e leques. Saíram abraçados uns aos outros, esquecidos de se despedirem dos donos da casa. Fatigado pelas preocupações da véspera, o mestre tecelão deitara-se no meio da sala, onde ficou a roncar alto.
Sua esposa fechou as portas, com maior cautela. Mandou a criadagem ir repousar. Não se continha, porém, de júbilo. Foi acordar o marido e pediu-lhe que fizesse um levantamento das contas à pagar: entregou- lhe, para tanto, o ábaco e o diário.
Brandindo o ábaco, bravateou o marido:
– Neste fim de ano, quando os cobradores me aparecerem, atiro-lhes com as moedas de ouro na cara. Sobretudo aquele maldito Hatiemon, o dono do empório, que, apesar de ser nosso parente afastado, e o mais intolerante de todos. Vou saldar definitivamente nossa dívida com ele. Não lhe compre mais nada. Passe a comprar no empório vizinho. E pague à vista, ouviu?
Enquanto fazia suas contas e projetos de pagamento, o tecelão foi buscar o vaso de madeira no santuário. Qual, porem, não foi a surpresa do casal quando constatou que o vaso estava vazio! Não podia ser obra dos ratos: ratos não roem moedas de ouro. Quem sabe se não seria uma brincadeira do Deus da Prosperidade? Vasculharam o santuário, repetidas vezes, mas não encontraram nem sombra do tesouro.
A grande alegria de havia pouco transformou-se numa tristeza sem fim. O tecelão pôs-se a monologar em voz alta:
– É destino. Não guardarei rancor de quem me roubou. Mas por que teria feito isso? Aceitei um auxilio caritativo e vejo-me em dificuldades maiores do que antes. Qual não será a maledicência das pessoas, agora? Não, não adianta continuar a viver neste mundo ingrato. Vamos, querida, partamos juntos para outra vida, levando as crianças conosco.
– É verdade. Não adianta continuar a viver — concordou, resoluta, a mulher.
Lembrou-se de que viria gente ver ambos, depois de mortos, e vestiu, então, o único quimono de seda branca que ainda lhe restava. Arrumou o cabelo ao espelho, com maior cuidado. Acarinhou a cabeça do marido: disse-lhe que, apesar dos dezenove anos decorridos, o amor conjugal de ambos parecia o orvalho daquela mesma madrugada. Com os olhos turvados pelas lágrimas, marido e mulher acenderam velas no santuário dos antepassados. Acordaram os filhos com cuidado. A menina, que era a mais velha, perguntou se já chegara o Ano Novo. Apesar de sonolento, o caçula não se esqueceu do arco de brinquedo que lhe havia sido prometido de presente.
Penalizados, os dois puseram-se a chorar copiosamente. Nesse momento, banhada também em prantos, a velha criada precipitou-se para dentro da sala:
– Não precisam explicar nada. Sei de tudo. O senhor e a senhora podem morrer, mas roubar a vida a estes inocentes! Não, isso não pode ser. Será que perderam a cabeça? Eu me encarrego de criar estas duas crianças.
Tudo isso foi dito aos gritos, enquanto ela protegia as crianças com seus braços. Os demais residentes acordaram com o barulho e os vizinhos vieram ver o que se passava. Em meio a confusão subsequente, o sol nasceu, e o projeto de suicídio acabou sendo posto de lado.
A noticia da ocorrência chegou aos ouvidos de alguns dos colegas do tecelão, os quais, convocando os companheiros faltantes, promoveram, os dez reunidos, uma sessão para deliberarem sobre o assunto. Ocorrência verdadeiramente incompreensível, na verdade. Como todos se haviam declarado dispostos a salvar o amigo da bancarrota, não seria admissível que algum deles fosse roubar o que ele próprio doara espontaneamente. O ladrão, no entanto, tinha de ser um deles.
– Só consultando a Providência é que se poderá provar a inocência de cada um de nos — afirmavam alguns. Outros, mais sensatos, achavam que isso não resolvia. Concordaram, por fim, em levar o caso ao conhecimento da autoridade, por escrito, de quem solicitaram julgamento. Deferida a solicitação, a audiência ficou marcada para o dia 25 de janeiro, ao termino das festas. Foi, outrossim, ordenado aos suplicantes que não se ausentassem da cidade, sob pena de sofrerem as sanções da lei, e que todos comparecessem a audiência em companhia de suas respectivas esposas ou, na falta desta, de qualquer parente mais próximo, do sexo feminino.
No dia aprazado, os tecelões, acompanhados das esposas, que se mostravam contrariadas, compareceram em juízo. Sorteado o número de ordem e afixada a lista respectiva na parede, a autoridade sentenciou:
– Julgo-vos responsáveis, coletivamente, pelo desaparecimento do dinheiro que constituía o fundo de socorro mutuo, e condeno-vos à pena seguinte: todo o dia, durante dez dias consecutivos, sairá um dos casais à rua, conduzindo, na ponta de uma vara, aquele tambor chinês que ali está, e, fazendo o percurso que vai do palácio até a alameda de pinheiros do templo, na direção oeste, voltará aqui pelo mesmo trajeto. É terminantemente proibida a aproximação de curiosos.
O tambor em questão era um tambor grande e pesado, pintado de vermelho berrante.
Durante dez dias consecutivos, o caso manteve acesa a curiosidade publica.
Que condenação esquisita! — comentavam todos.
Decorridos dez dias, a autoridade convocou novamente os dez casais e disse-lhes:
– Agradeço a colaboração de todos vós para a elucidação deste caso. Sinto muito ter-vos submetido a tal ridículo e vexame. Dirijo-me particularmente aos maridos, que parecem ter sofrido bastante, por causa das queixas e imprecações das mulheres. Eu soube disso por meio de um garoto muito vivo que coloquei dentro do tambor. Ele me contou ainda mais o seguinte: uma das mulheres se mostrou particularmente veemente nas suas invectivas contra o marido. Queixava-se do infortúnio de se ver assim exposta à curiosidade pública por culpa exclusiva dele. Protestava contra a tolice de ajudar a outrem e sacrificar a própria família. Suas lástimas e imprecações foram num crescendo. A certa altura, o marido sussurrou ao ouvido da esposa: “Tenha um pouco de paciência. O dinheiro é nosso. Você o verá em casa.” Não direi aqui de quem se trata, nem penso tenha sido o roubo ato premeditado. Julgo-o, antes, fruto da embriaguez. Em consideração ao seu louvável ato anterior, de ter prestado socorro a um necessitado, suspendo a pena e ordeno ao culpado que se limite a devolver o dinheiro e a desaparecer da cidade com a família. Cumprida minha ordem, arquive-se o processo. Podeis retirar-vos. Tenho dito.