sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

35 – Os fugitivos – A. Carpentier

“Os fugitivos” do escritor cubano, Alejo Carpentier (1904-1980), é um conto de simples leitura que traz uma das mais fortes denuncias ao escravismo nas Américas, uma das maiores tragédias da humanidade que jamais devera ser esquecida. Carpentier, escreveu outros grandes contos com propostas mais complexas de estrutura, como “El caminho de Santiago” e “Viaje a la semilla” mas a força dos fugitivos é, para mim, insuperável.

Os fugitivos
Alejo Carpentier
Tradução Mario Pontes

I
O rastro morria no pé de uma árvore. E, inconfundível, um forte cheiro de negro invadia o ar cada vez que a brisa impelia para o alto as moscas que trabalhavam em túneis de frutas podres. Mas o cão – sempre o haviam chamado apenas Cão – estava cansado. Espojou-se entre as ervas para desenriçar as costas e distender os músculos. Muito longe dali, os gritos dos perseguidores perdiam-se no entardecer. O cheiro de negro persistia. Talvez o chimarrão estivesse escondido em algum lugar lá no alto, escarranchado em um galho, escutando com os olhos. Contudo, Cão já não pensava na caçada. Havia ali outro cheiro, na terra vestida pelo bejucal, que a passagem do próximo ser humano apagaria para sempre. Cheiro de fêmea. Cheiro que se havia fixado nas costas de Cão, quando ele estivera espojando-se de patas para o ar, rindo com as presas; cheiro que tentava alcançar esticando uma língua demasiado curta para alcançar o vale entre suas omoplatas.
As sombras tomavam-se mais úmidas. Cão deu um salto no ar e caiu sobre as patas. Voando devagar, os sinos do engenho ergueram-lhe as orelhas. No vale, neblina e fumaça reuniam-se na mesma imobilidade azulada, sobre a qual flutuavam, cada vez mais silhuetadas, uma chaminé de tijolos, um teto de grandes beirais, a torre da igreja, e luzes pareciam acender-se no fundo de um lago. Cão tinha fome. Mas ali havia cheiro de fêmea. E às vezes ainda se sentia envolvido pelo cheiro de negro. Contudo, o cheiro do seu próprio desejo, atraído pelo cheiro de outro desejo, era mais forte do que todos os demais. Cão espigou as patas traseiras e esticou o pescoço. O ventre encolhia-se para dentro das costelas, seguindo o ritmo de sua respiração curta e ansiosa. As frutas, demasiado cheias de sol, caíam aqui e ali com um ruído molhado, espalhando pelo chão os odores de polpas ainda mornas.
Cão se pôs a correr em direção ao monte, com a cauda caída, como se o perseguisse o chicote do capataz. Cheirava a fêmea, e isso contrariava o seu próprio sentido de orientação. Seu focinho seguia um rastro sinuoso, que às vezes voltava sobre si mesmo, abandonava a trilha, intensificava-se nas ramas de um espinheiro, perdia-se nas folhas que a fermentação tornava demasiado ácidas, e renascia, com ines­perado vigor, em um pedacinho de chão varrido por uma cauda. De repente Cão desviou-se da pista invisível, do fio que se torcia e distorcia, para investir contra um furão. Com duas sacudidelas, que produziram um som de castanholas dentro de uma luva, quebrou-lhe a coluna vertebral, lançando-o contra um tronco. Cão deteve-se de repente, deixando uma pata suspensa no ar. Latidos muito distantes rolavam montanha a baixo.
Não eram os da matilha do engenho. O tom era diferente, muito mais áspero e mais alto, vinha do fundo da garganta e poderosas fauces o enrouqueciam. Em algum lugar travava-se uma batalha de machos que não levavam, como ele, Cão, uma coleira de fios de cobre, com placa numerada. Diante daquelas vozes desconhecidas, muito mais lupinas do que tudo que até então tinha ouvido, Cão sentiu medo. Voltou-se e correu no sentido inverso, até que a vegetação pintou-se de lua. Já não cheirava a fêmea. Cheirava a negro. E de fato la estava o negro, com seu calção de riscado, boca aberta, adormecido. Cão esteve prestes a atirar-se em cima dele, em obediência a uma palavra de ordem que ouvira de madrugada, em meio ao estalar dos látegos, naquele lugar em que guar­davam os tachos e as cadeirinhas de junco. Mas lá no alto. não se sabia onde, continuava a peleja dos machos. Ao lado do chimarrão havia ossos roídos de costela. Cão aproximou- se lentamente, com as orelhas desconfiadas, disposto a arrebatar às formigas qualquer coisa que tivesse gosto de carne. Aqueles outros cães, com seus latidos tão ferozes, deixavam- no assustado. Por enquanto, o melhor era permanecer ao lado do homem. E ficar de ouvido atento. Contudo, o vento sul acabou por dissipar a ameaça. Cão deu três voltas em tomo de si mesmo e, cansado, enovelou-se. Suas patas correram um sonho ruim. De madrugada Chimarrão passou um braço por cima dele, num gesto de quem já havia dormido muitas vezes com mulheres. Cão aconchegou-se em seu peito, procurando calor. Ambos continuavam em plena fuga, com os nervos esticados pelo mesmo pesadelo.
Uma aranha, que havia descido para observar melhor, recolheu o fio e sumiu na copa do almendro, cujas folhas começavam a sair da noite.

II
Movidos pelo hábito, Cão e Chimarrão acordaram com o sino do engenho. A descoberta de que haviam dormido juntos, corpo tocando corpo, fez com que se erguessem de um salto. Protegeram-se por um tempo atrás de troncos, e depois olharam-se demoradamente. Cão se candidatando a um novo dono. O negro ansioso por recuperar alguma amizade. O vale espreguiçava-se. Ao opressivo repique destinado a acordar os escravos, respondia agora, mais lento, o toque grave e nobre da capela, cujo limo ia passando da sombra para o sol sobre um fundo de mugidos e relinchos, que eram como avisos indulgentes aos que dormiam nos altos leitos de mogno. Os galos rondavam as galinhas, para cobri-las logo cedo, e elas esperavam que o dedo da encarregada do galinheiro certificasse a existência de ovos ainda por botar. Um pavão real pavoneava-se no telhado da vivenda, inflamando-se, com um grito, a cada volta e contravolta que dava. Os escravos rezavam diante das cestas cheias de pão com garapa. Chimarrão abriu a braguilha, deixando um lago de espuma entre as raízes de uma ceiba. Cão ergueu a pata sobre uma goiabeirinha bem tenra. Os facões começavam a cortar a cana. Os dogues da matilha encarregada de caçar negros sacudiam as cadeias, impacientes por sair ao trabalho.
Chimarrão perguntou: "Vais comigo?"
Cão seguiu-o docilmente. Lá embaixo havia chicotes demais, correntes demais para aqueles que voltavam arrependidos. Não cheirava mais a fêmea. Agora, Cão estava muito mais atento ao cheiro de branco, cheiro de perigo. Pois o capataz cheirava a branco, apesar de suas camisas engomadas com amido e da graxa acre em suas botas de pele de porco. O seu cheiro era o mesmo das senhoritas da casa, apesar do perfume que se desprendia de suas roupas. O mesmo cheiro do padre, apesar da vela derretida e do incenso, que tornavam tão desagradável a sombra fresca da capela. O mesmo cheiro que o organista exalava lá do alto, embora os foles do harmónio soprassem sobre tantos feltros roídos pelas traças. Tinha, agora, que fugir do cheiro de branco. Cão havia mudado de bando.

III
Nos primeiros dias, Cão e Chimarrão ainda se lembravam de como seu alimento era seguro. Cão recordava-se dos ossos que no fim da tarde eram levados para o lixo em caixotes. Chimarrão sonhava com o peixe que era levado em caixotes para os barracões, após o chamado para a reza ou depois que silenciavam os tambores do domingo. Por isso, depois de um período em que, na ausência de sinos e pontapés, dormiram muitíssimo de manhã, os dois mudaram de hábito e passaram a sair para a caça logo ao alvorecer. Cão farejava uma cutia escondida pela ramagem de algum cedro; Chimarrão abatia-a a pedradas. No dia em que se deparavam com o rastro de um porco selvagem, andavam horas e horas, até que o animal, orelhas rasgadas, atordoado por tantos latidos, mas ainda resistindo, era encurralado ao pé de alguma pedreira e derrubado a pauladas. Pouco a pouco, Cão e Chimarrão foram esquecendo aquela época em que se alimentavam com regularidade. Devoravam o que aparecesse, de uma vez, engolindo a maior quantidade possível, sabendo que amanhã podia chover e que a água vinda lá do alto correria entre as pedras para fertilizar o fundo do vale. Felizmente, Cão sabia comer frutas. Quando Chimarrão encontrava um mamoeiro ou uma mangueira, Cão também saía com o nariz pintado de amarelo ou de vermelho. Além disso, como sempre havia gostado muito de ovos, um ninho de codorniz compensava-o do inexplicável gosto do amo pelos lagostins de água doce encontrados a dormir na contracorrente de um riacho subterrâneo que emergia de uma boca de caracóis petrificados.
Viviam numa caverna bem escondida por uma cortina de fetos arborescentes. As estalactites choravam isocronamente, povoando as sombras frias com um ruído de relógios. Certo dia, Cão se pôs a procurar algo no pé de uma parede da caverna. Logo seus dentes extraíam do local um fêmur e algumas costelas, que de tão antigos já haviam perdido todo sabor, desfazendo-se em pó sobre a língua. Em seguida, levou um crânio humano a Chimarrão, que confeccionava um cinto com pele de serpente. Embora houvesse na caverna uns restos de cerâmica e raspadores de pedra que lhe poderiam ter sido úteis, Chimarrão, aterrorizado com a presença de mortos em sua casa, abandonou o local naquela mesma tarde, murmurando orações, indiferente à chuva. Os dois dormiram entre raízes e sementes, envolvidos pelo mesmo cheiro de cachorro molhado. Ao amanhecer, saíram à procura de uma caverna de teto mais baixo, na qual o homem teve de entrar de gatinhas. Mas ali não havia daqueles ossos que de nada serviam, a não ser para trazer emanações e aparições de coisas ruins.
Como fazia muito tempo que não havia batidas, ambos começaram a aventurar-se em direção à estrada. Às vezes passava um carreteiro conhecido, uma beata vestida com o hábito do Nazareno, ou um tocador de guitarra, daqueles que conheciam o dono de cada povoado; mas limitavam-se a observá-los de longe, em silêncio. Era claro que Chimarrão esperava por alguma coisa. Permanecia horas de bruços nas touças de capim-guiné, de olho naquele caminho pouco mo­vimentado, que um sapo de bom tamanho podia cruzar com um único salto. Nessas longas esperas, Cão matava o tempo dispersando enxames de pequenas borboletas brancas, ou tentando, aos saltos, a impossível caça de um zunzum vestido de lantejoulas.
Certo dia, quando Chimarrão estava à espera de algo que não chegava, um ruído de cascos o fez levantar-se de repente. Uma carruagem aproximava-se a trote largo, puxada pela égua tordilha do engenho. De pé sobre os varais, o co­cheiro Gregório estalava o chicote, enquanto o pároco, atrás dele, agitava a campainha do viático. Havia muito tempo Cão não se divertia ganhando corrida com os cavalos, e por isso imediatamente esqueceu-se da obrigação de ser cauteloso. Desceu a encosta a toda pressa, espigado, azulado de sol; alcançando o coche, colou-se aos jarretes da égua, correndo à esquerda, à direita, à frente, passando e voltando a passar por baixo do animal, mostrando os dentes ao cocheiro e ao sacerdote. A égua disparou, sacudindo os antolhos e mordendo o freio. De repente, um dos tirantes partiu-se e o carro desequilibrou-se. Como se fossem bonecos de palha, o pároco e o cocheiro foram atirados de cabeça contra um pontilhão de pedra. O barro tingiu-se de sangue.
Chimarrão acudiu correndo. Brandia uma vara, ameaçando Cão, e este já se dispunha a arrastar-se aos seus pés e pedir-lhe que o perdoasse. Mas o negro suspendeu o gesto, pensando que nem tudo era negativo naquela circunstância. Apoderou-se da estola e das roupas do cura, da jaqueta e das botas altas do cocheiro. Dos bolsos de ambos recolheu cinco duros. E havia ainda a campainha de prata. Os ladrões re­gressaram ao monte. Naquela noite, envolvido na sotaina, Chimarrão se permitiu sonhar com prazeres esquecidos. Lembrou-se dos candeeiros que, cheios de insetos mortos, ardiam até muito tarde da noite nas casas mais afastadas do povoado, lá onde duas vezes lhe tinham permitido receber o presente da festa de Reis e gastá-lo como melhor lhe pareces­se. Claro, havia imediatamente optado pelas mulheres.

IV
A primavera alcançou-os ao amanhecer. Cão despertou com uma tensão insuportável entre as patas traseiras e uma expressão de poucos amigos no olhar. Arfava sem sentir calor, deixando pender entre os caninos uma língua que lhe parecia coberta de pedacinhos de concha de algum tipo de molusco. Chimarrão falava sozinho. Ambos estavam de péssimo ânimo. Sem pensar em caça, saíram cedo para a estrada. Cão corria sem rumo, procurando em vão um cheiro para rastrear. Pelo simples prazer de destruir, matava insetos que sempre havia detestado, rasgava espigas com os dentes, arrancava arbustos que mal começavam a crescer. Sua exasperação chegou ao auge quando um sapo cuspiu-lhe nos olhos. Chimarrão esperava como nunca havia esperado.
Mas naquele dia ninguém passou pela estrada. Ao cair da noite, quando os primeiros morcegos começaram a voar como pedradas sobre o campo, Chimarrão tomou lentamente o caminho do engenho. Cão foi atrás, ele também desafiando o chicote e a corrente. Seguindo o vale estreito, chegaram bem perto dos galpões. Sentiram o cheiro, outrora familiar, de lenha queimando, do melado apurando, de cascos de cavalo sendo limados. Decerto faziam doce de goiaba, pois o vento terral espalhava uma interminável doçura de compotas. Cão e Chimarrão continuavam a aproximar-se, um ao lado do outro, a cabeça do homem nivelada pela cabeça do cão.
De repente uma negra do serviço doméstico apareceu no caminho que levava à ferraria. Chimarrão avançou para ela, derrubando-a em cima das alfavacas. Sua mãozorra abafou os gritos da negra. Cão foi sozinho até os limites do grande pátio. Era lá que estava a cadela inglesa, adquirida por Dom Marcial numa exposição em Paris. Ela tentou fuga. Cão cortou o caminho da cadela. Estava eriçado da cabeça à ponta da cauda. Por ser tão envolvente o seu cheiro de macho, a cadela inglesa esqueceu-se de que algumas horas antes lhe haviam dado banho com sabão do reino.
O dia clareava quando Cão regressou à caverna. Chimarrão dormia, envolvido na sotaina do pároco. Lá embaixo, no rio, dois manatis brincavam entre os juncos, turvando a correnteza com saltos que abriam nuvens de espuma sobre o barro.

V
Chimarrão se tornava cada vez mais imprudente. Já não escolhia hora para rondar as casas do povoado, à espreita de uma lavadeira que saísse desacompanhada, ou de uma descuidada macumbeira à procura de avenca, giesta e pitahaya para algum trabalho. E desde aquela noite em que havia tido a audácia de parar num boteco à beira da estrada a fim de beber os dois duros do capelão, vivia ávido por moedas. Várias vezes tinha emboscado fazendeiros brancos a fim de apoderar-se de suas bolsas, depois de derrubá-los da sela e silenciá-los com uma estaca. Cão acompanhava-o nessas aventuras, ajudando na medida do possível. Enquanto isso, os dois iam comendo cada vez mais mal, e frequentemente Cão tinha de arranjar-se com ovos de codornas, garças e galinholas. Mas o pior era que Chimarrão vivia em constante sobressalto. Ao menor latido, apanhava o facão e escondia-se na copa de uma árvore.
Passada a crise da primavera, Cão se mostrava cada vez menos disposto a aproximar-se dos povoados. Havia meninos demais para atirar pedras, gente sempre disposta a dar pontapés, e, ao farejar sua presença nas imediações, todos os cães do engenho começavam a lançar os seus gritos de guerra. Além disso, Chimarrão tinha dado ultimamente para voltar à noite com passos inseguros, e de sua boca vinha um cheiro que Cão detestava tanto quanto o do tabaco. Por isso, quando o amo entrava em uma casa mal iluminada, Cão esperava-o a uma distância segura. Assim foram vivendo, até que certa noite Chimarrão demorou demais no quarto de uma vendedora de miúdos. De repente a choça foi cercada por homens armados e silenciosos. Momentos depois, Chimarrão era levado para a rua, nu, gritando a plenos pulmões. Cão, que acabava de sentir o cheiro do capataz do engenho, voltou correndo para o monte, seguindo uma vereda por dentro do canavial.
No dia seguinte viu Chimarrão passar pela estrada. Estava coberto de feridas tratadas com sal. Tinha ferros no pescoço e nos tornozelos, e era escoltado por quatro membros da Benemérita de San Fernando, que lhe davam uma porretada a cada dois passos, chamando-o de ladrão, bêbado e filho da mãe.

VI
Sentado em uma plataforma rochosa da qual se via o vale inteiro, Cão uivava para a lua. Às vezes uma profunda tristeza apoderava-se dele, em geral quando aquele grande e frio sol alcançava o máximo de sua redondez, pondo esvaecidos reflexos nas plantas. Para ele havia terminado o tempo das fogueiras que iluminavam a caverna em noites de chuva. Não contaria mais com o calor do homem no inverno que se aproximava, e também não teria quem lhe tirasse a coleira com garras de cobre, tão desconfortável na hora de dormir. Tinha herdado a sotaina do pároco, mas isso era tudo. Graças à necessidade de caçar o tempo inteiro, tornara-se mais tolerante em relação aos viventes que não serviam para ser comidos. Deixava a majá escapar por entre as pedras aquecidas, sem dar sequer um latido; afinal, Chimarrão já não estava ali para o açular, na esperança de ter um cinturão ou gordura para untar. Aliás, cheiro de cobra o enjoava; as vezes em que agarrara alguma pela cauda, fora apenas para cumprir uma dessas obrigações a que se vê constrangido quem quer que dependa de alguém. Tampouco, salvo em caso de fome extrema, atacava porcos do mato. Contentava-se, agora, com aves aquáticas, furões, uma ou outra galinha desgarrada dos gali­nheiros das aldeias. Mas, apesar de tudo, o engenho estava esquecido. Seu sino já nada lhe dizia. Cão buscava agora a segurança de morros íngremes, quase inacessíveis ao homem, vivendo em um mundo de dragoeiros que o vento sacudia produzindo rangidos de sela nova, mundo de orquídeas e bejucos rasteiros, lugar em que se arrastavam lagartos verdes de orelhas brancas, daqueles que parecem pouco perceber do que se passa ao redor e por isso ficam parados onde estão. Tinha enfraquecido. Em suas costelas salientes a lua colhia frutos de guisasos que já haviam perdido os espinhos.
A primavera voltou com os aguinaldos. Numa certa tarde em que experimentava grande desassossego, Cão encontrou-se novamente com aquele misterioso cheiro de fêmea, forte e penetrante, motivo principal de sua fuga para o monte. Da montanha também vinham latidos. Desta vez, Cão seguiu firmemente a trilha do cheiro, perdendo-a ao cruzar um riacho a nado e logo em seguida recobrando-a. Não tinha mais medo. Caminhou a noite inteira, com o nariz colado no chão, babando pelo canto da língua. Ao amanhecer, o cheiro espalhava-se por uma quebrada inteira. O rasteado viu-se, então, diante de um bando de selvagens. Vários machos, com cara de lobo, ali se amontoavam confusamente, olhos esbraseados, pernas tensas, prontos para atacar. Atrás deles, o cheiro denso de fêmea.
Cão deu um grande salto. Os selvagens caíram-lhe em cima. Corpos caíam sobre corpos, e havia um confuso redemoinho de latidos. Logo ressoaram ganidos de dor provocados pelas garras da coleira. Bocas enchiam-se de sangue. Orelhas eram rasgadas. Quando Cão soltou a garganta despedaçada do mais velho, os outros recuaram, grunhindo com raiva inútil. Cão correu então para o centro da clareira, a fim de travar o último combate, agora com a cadela cinzenta, de pelo duro, que o esperava com os dentes de fora. A trilha de cheiro terminava na sombra de seu ventre.

VII
 Os selvagens caçavam em bandadas. Preferiam, por isso, os animais de porte, com maior volume de carne e de ossos. Quando descobriam um veado, tinham trabalho para vários dias. Primeiro, a perseguição. Depois, quando o animal se deixava encurralar em algum barranco, vinha o ataque. E se a presa conseguia refugiar-se em uma caverna, o cerco. Embora às vezes ferisse ou entortasse algum dos atacantes, o animal sempre acabava entre os dentes da matilha, que dava início ao festim com o corpo ainda vivo, arrancando tiras de couro cinza e bebendo sangue fresco que saía ainda morno das artérias do pescoço ou das que passavam pela raiz de uma orelha arrancada. Entre os selvagens, vários já haviam perdido um olho, arrancado a ponta de chifre, e todos estavam cobertos de cicatrizes, chagas e pisaduras vermelhas. Nos dias de cio os cães brigavam entre si, enquanto as fêmeas esperavam deitadas, com surpreendente indiferença, o resul­tado da luta. O sino do engenho, cujas badaladas às vezes eram trazidas pela brisa, não despertava a menor lembrança no Cão.
Certo dia os selvagens apanharam uma trilha habitual naquelas matas de bejucos, espinheiros e plantas que envenenam ao arranhar. Havia cheiro de negro. Cautelosamente os cães avançaram pelo desfiladeiro dos caracóis, onde erguia-se uma velha pedra com cara de morto. Os homens costumam deixar ossos e inutilidades por onde passam. Mas é melhor prestar atenção neles, são os mais perigosos entre todos os animais, pois o fato de andar sobre as patas traseiras lhes permite encompridar os gestos com pedaços de pau e determinados objetos. A matilha parou de ladrar.
De repente o homem apareceu. Tinha cheiro de negro. Seus passos eram ritmados por correntes partidas que lhes pendiam dos pulsos. Outros elos, mais grossos, soavam em baixo dos farrapos da calça de riscado. Cão reconheceu Chimarrão.
"Cão!", o negro exclamou com alvoroço. "Cão!"
Cão aproximou-se lentamente. Cheirou-lhe os pés, não permitindo porém que ele o tocasse. Deu voltas ao redor dele, balançando a cauda. Quando o homem o chamava, fugia. E quando não era chamado, parecia ficar à procura daquele som da voz humana, que em outras épocas havia entendido um pouco, mas que agora soava muito estranho, algo que lhe fazia lembrar perigosas obediências. Por fim, Chimarrão deu um passo e procurou afagar-lhe a cabeça. Cão soltou um grito esquisito, mistura de latido rouco e de ganido, e saltou no pescoço do negro.
Cão lembrara-se, de repente, de uma antiga ordem que o capataz do engenho lhe tinha dado no dia em que um escravo estava fugindo para a montanha.

VIII
Como o tempo estava agradável e não havia cheiro de fêmea no ar, os selvagens dormiram fartos durante dois dias. Lá no alto, acima das ramagens, as auras voavam em círculo, esperando que a matilha fosse embora sem terminar o trabalho. Cão e a cadela cinzenta divertiam-se como nunca, brincando com a camisa listrada de Chimarrão. Cada um puxava mais forte, a fim de provar a solidez de suas presas. Quando uma costura se abria, ambos rolavam no chão. Mas logo recomeçavam, o farrapo cada vez menor, olhando-se no olhos, focinhos quase tocando-se. Por fim deu-se a ordem de partir. Os latidos perderam-se nos picos cobertos pelo arvoredo.

Durante muitos anos os monteiros evitaram usar à noite aquele atalho assombrado por ossos e correntes.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

34 – A nova Califórnia – L. Barreto

A nova Califórnia, um conto clássico de um dos maiores escritores brasileiros, o carioca Lima Barreto (1881-1922) – autor de “O triste fim de Policarpo Quaresma”. Uma  excelente leitura neste imenso pais do carnaval. Este conto deu origem ao filme Osso, amor e papagaios filmado em 1957, uma das grandes comedias dos estúdios da Vera Cruz  
A nova Califórnia
Lima Barreto
I
Ninguém sabia donde viera aquele homem. O agente do correio pudera
a penas informar que acudia ao nome de Raimundo Flamel, pois assim
era subscrita a correspondência que recebia. E era grande. Quase diariamente, o carteiro lá ia a um dos extremos da cidade, onde morava o
desconhecido, sopesando um maço alentado de cartas vindas do mundo inteiro, grossas revistas em línguas arrevesadas, livros, pacotes...

Quando Fabrício, o pedreiro, voltou de um serviço em casa do novo
habitante, todos na venda perguntaram-lhe que trabalho lhe tinha sido determinado.
– Vou fazer um forno, disse o preto, na sala de jantar.

Imaginem o espanto da pequena cidade de Tubiacanga, ao saber de tão extravagante construção: um forno na sala de jantar!
E, pelos dias seguintes, Fabrício pôde contar que vira balões de vidros, facas sem corte, copos como
os da farmácia - um rol de coisas esquisitas a se mostrarem pelas mesas e prateleiras como utensílios de uma bateria de cozinha em que o próprio diabo cozinhasse.

O alarme se fez na vila. Para uns, os mais adiantados, era um fabricante
de moeda falsa; para outros, os crentes e simples, um tipo que tinha parte
com o tinhoso.

Chico da Tirana, o carreiro, quando passava em frente da casa do
homem misterioso, ao lado do carro a chiar, e olhava a chaminé da sala de jantar a fumegar, não deixava de persignar-se e rezar um "credo" em voz
baixa; e, não fora a intervenção do farmacêutico, o subdelegado teria ido dar um cerco à casa daquele indivíduo suspeito, que inquietava a imaginação de toda uma população.

Tomando em consideração as informações de Fabrício, o boticário
Bastos concluíra que o desconhecido devia ser um sábio, um grande químico, refugiado ali para mais sossegadamente levar avante os seus trabalhos científicos.

Homem formado e respeitado na cidade, vereador, médico também,
porque o doutor Jerônimo não gostava de receitar e se fizera sócio da farmácia para mais em paz viver, a opinião de Bastos levou tranquilidade a todas as consciências e fez com que a população cercasse de uma silenciosa admiração a pessoa do grande químico, que viera habitar a cidade.

De tarde, se o viam a passear pela margem do Tubiacanga, sentando-se
aqui e ali, olhando perdidamente as águas claras do riacho, cismando diante
da penetrante melancolia do crepúsculo, todos se descobriam e não era raro que às "boas noites" acrescentassem "doutor". E tocava muito o coração daquela gente a profunda simpatia com que ele tratava as crianças, a maneira pela qual as contemplava, parecendo apiedar-se de que elas tivessem nascido para sofrer e morrer.

Na verdade, era de ver-se, sob a doçura suave da tarde, a bondade de
Messias com que ele afagava aquelas crianças pretas, tão lisas de pele e tão tristes de modos, mergulhadas no seu cativeiro moral, e também as brancas,
de pele baça, gretada e áspera, vivendo amparadas na necessária caquexia dos trópicos.
Por vezes, vinha-lhe vontade de pensar qual a razão de ter Bernardin
de Saint-Pierre gasto toda a sua ternura com Paulo e Virgínia e esquecer-se
dos escravos que os cercavam...

Em poucos dias a admiração pelo sábio era quase geral, e, não o era,
unicamente porque havia alguém que não tinha em grande conta os méritos
do novo habitante.
Capitão Pelino, mestre-escola e redator da Gazeta de Tubiacanga, órgão
local e filiado ao partido situacionista, embirrava com o sábio. "Vocês hão
de ver, dizia ele, quem é esse tipo... Um caloteiro, um aventureiro ou talvez
um ladrão fugido do Rio."

A sua opinião em nada se baseava, ou antes, baseava-se no seu oculto
despeito vendo na terra um rival para a fama de sábio de que gozava. Não que
Pelino fosse químico, longe disso; mas era sábio, era gramático. Ninguém
escrevia em Tubiacanga que não levasse bordoada do Capitão Pelino, e mesmo
quando se falava em algum homem notável lá no Rio, ele não deixava de
dizer: "Não há dúvida! O homem tem talento, mas escreve: um outro', 'de
resto ..." E contraía os lábios como se tivesse engolido alguma cousa amarga.

Toda a vila de Tubiacanga acostumou-se a respeitar o solene Pelino,
que corrigia e emendava as maiores glórias nacionais. Um sábio...

Ao entardecer, depois de ler um pouco o Sotero, o Cândido de Figueiredo ou o Castro Lopes e de ter passado mais uma vez a tintura nos
cabelos, o velho mestre-escola saía vagarosamente de casa, muito abotoado
no seu paletó de brim mineiro, e encaminhava-se para a botica do Bastos a
dar dois dedos de prosa. Conversar é um modo de dizer, porque era Pelino
avaro de palavras, limitando-se tão-somente a ouvir. Quando, porém, dos
lábios de alguém escapava a menor incorreção de linguagem, intervinha e
emendava. "Eu asseguro, dizia o agente do Correio, que..." Por aí, o
mestre-escola intervinha com mansuetude evangélica: "Não diga 'asseguro',
Senhor Bernardes; em português é 'garanto.
E a conversa continuava depois da emenda, para ser de novo interrompida por
uma outra.
Por essas e outras, houve muitos palestradores que
se afastaram, mas Pelino, indiferente, seguro dos seus deveres, continuava
o
seu apostolado de vernaculismo. A chegada do sábio veio distraí-lo um pouco
da sua missão. Todo o seu esforço voltava-se agora para combater aquele
rival, que surgia tão inopinadamente.
Foram vãs as suas palavras e a sua eloquência: não só Raimundo Flamel
pagava em dia as suas contas, como era generoso - pai da pobreza - e o
farmacêutico vira numa revista de específicos seu nome citado como químico
de valor.
II
Havia já anos que o químico vivia em Tubiacanga, quando, uma bela
manhã, Bastos o viu entrar pela botica adentro. O prazer do farmacêutico
foi imenso. O sábio não se dignara até aí visitar fosse quem fosse, e, certo
dia, quando o sacristão Orestes ousou penetrar em sua casa, pedindo-lhe uma esmola para a futura festa de Nossa Senhora da Conceição, foi com visível enfado que ele o recebeu e atendeu.
Vendo-o, Bastos saiu de detrás do balcão, correu a recebê-lo com a mais perfeita demonstração de quem sabia com quem tratava e foi quase em uma exclamação que disse:

– Doutor, seja bem-vindo.
O sábio pareceu não se surpreender nem com a demonstração de
respeito do farmacêutico, nem com o tratamento universitário. Docemente
olhou um instante a armação cheia de medicamentos e respondeu:

– Desejava falar-lhe em particular, Senhor Bastos.

O espanto do farmacêutico foi grande. Em que poderia ele ser útil ao
homem, cujo nome corria mundo e de quem os jornais falavam com tão
acendrado respeito. Seria dinheiro? Talvez... Um atraso no pagamento das
rendas, quem sabe? E foi conduzindo o químico para o interior da casa, sob
o olhar espantado do aprendiz, que, por um momento, deixou a "mão"
descansar no gral, onde macerava uma tisana qualquer.

Por fim, achou aos fundos, bem no fundo, o quartinho que lhe servia
para exames médicos mais detidos ou para as pequenas operações, porque
Bastos também operava. Sentaram-se e Flamel não tardou a expor:

– Como o senhor deve saber, dedico-me à química, tenho mesmo um
nome respeitado no mundo sábio...

– Sei perfeitamente, doutor, mesmo tenho disso informado, aqui, aos
meus amigos.

– Obrigado. Pois bem: fiz uma grande descoberta, extraordinária...

Envergonhado com o seu entusiasmo, o sábio fez uma pausa e depois
continuou:

– Uma descoberta... Mas não me convém, por ora, comunicar ao
mundo sábio, compreende?

– Perfeitamente.

– Por isso precisava de três pessoas conceituadas que fossem testemunhas de uma experiência dela e me dessem um atestado em forma, para
resguardar a prioridade da minha invenção... O senhor sabe: há acontecimentos
imprevistos e...

– Certamente! Não há dúvida!

– Imagine o senhor que se trata de fazer ouro...

Como? O quê? fez Bastos arregalando os olhos.

– Sim! Ouro! disse com firmeza Flamel.

–Como?

– O senhor saberá, disse o químico secamente. A questão do momento
são as pessoas que devem assistir à experiência, não acha?

– Com certeza, é preciso que os seus direitos fiquem resguardados,
porquanto...

– Uma delas, interrompeu o sábio, é o senhor; as outras duas o Senhor
Bastos fará o favor de indicar-me.

O boticário esteve um instante a pensar, passando em revista os seus
conhecimentos e, ao fim de uns três minutos, perguntou:

– O Coronel Bentes lhe serve? Conhece?
– Não. O senhor sabe que não me dou com ninguém aqui.

– Posso garantir-lhe que é homem sério, rico e muito discreto.

– É religioso? Faço-lhe esta pergunta, acrescentou Flamel logo, porque
temos que lidar com ossos de defunto e só estes servem...

– Qual! É quase ateu...

– Bem! aceito. E o outro?

Bastos voltou a pensar e dessa vez demorou-se um pouco mais consultando a sua memória... Por fim falou:

– Será o Tenente Carvalhais, o coletor, conhece?

– Como já lhe disse...
– É verdade. É homem de confiança, sério, mas...
– Que é que tem?

– É maçom.

– Melhor.
– E quando é?

– Domingo. Domingo, os três irão lá em casa assistir à experiência e
espero que não me recusarão as suas firmas para autenticar a minha descoberta.

– Está tratado.
Domingo, conforme prometeram, as três pessoas respeitáveis de Tubiacanga foram à casa de Flamel, e, dias depois, misteriosamente, ele desaparecia sem deixar vestígio ou explicação para o seu desaparecimento.
III
Tubiacanga era uma pequena cidade de três ou quatro mil habitantes,
muito pacífica, em cuja estação, de onde em onde, os expressos davam a
honra de parar. Há cinco anos não se registrava nela um furto ou roubo. As
portas e janelas só eram usadas... porque o Rio as usava.

O último crime notado em seu pobre cadastro fora um assassinato por
ocasião das eleições municipais; mas, atendendo que o assassino era do
partido do governo, e a vítima da oposição, o acontecimento em nada alterou
os hábitos da cidade, continuando ela a exportar o seu café e a mirar as suas
casas baixas e acanhadas nas escassas águas do pequeno rio que a batizara.

Mas, qual não foi a surpresa dos seus habitantes quando se veio a
verificar nela um dos mais repugnantes crimes de que se tem memória! Não
se tratava de um esquartejamento ou parricídio; não era o assassinato de uma
família inteira ou um assalto à coletoria; era cousa pior, sacrílega aos olhos
de todas as religiões e consciências; violavam-se as sepulturas do "Sossego",
do seu cemitério, do seu campo-santo.

Em começo, o coveiro julgou que fossem cães, mas, revistando bem o muro, não encontrou senão pequenos buracos. Fechou-os; foi inútil. No dia
seguinte, um jazigo perpétuo arrombado e os ossos saqueados; no outro, um
carneiro e uma sepultura rasa. Era gente ou demônio. O coveiro não quis
mais continuar as pesquisas por sua conta, foi ao subdelegado e a notícia
espalhou-se pela cidade.

A indignação na cidade tomou todas as feições e todas as vontades.
 A religião da morte precede todas e certamente será a última a morrer nas
consciências. Contra a profanação, clamaram os seis presbiterianos do lugar
- os bíblias, como lhes chama o povo; clamava o Agrimensor Nicolau,
antigo cadete, e positivista do rito Teixeira Mendes; clamava o Major
Camanho, presidente da Loja Nova Esperança; clamavam o turco Miguel
Abudala, negociante de armarinho, e o céptico Belmiro, antigo estudante,
que vivia ao deus-dará, bebericando parati nas tavernas.
A própria filha do
engenheiro residente da estrada de ferro, que vivia desdenhando aquele
lugarejo, sem notar sequer os suspiros dos apaixonados locais, sempre
esperando que o expresso trouxesse um príncipe a desposá-la - a linda e
desdenhosa Cora não pôde deixar de compartilhar da indignação e do horror
que tal ato provocara em todos do lugarejo. Que tinha ela com o túmulo de
antigos escravos e humildes roceiros? Em que podia interessar aos seus lindos
olhos pardos o destino de tão humildes ossos? Porventura o furto deles
perturbaria o seu sonho de fazer radiar a beleza de sua boca, dos seus olhos
e do seu busto nas calçadas do Rio?
Decerto, não; mas era a Morte, a Morte implacável e omnipotente, de
quem ela também se sentia escrava, e que não deixaria um dia de levar a sua
linda caveirinha para a paz eterna do cemitério. Aí Cora queria os seus ossos
sossegados, quietos e comodamente descansando num caixão bem feito e num túmulo seguro, depois de ter sido a sua carne encanto e prazer dos vermes...

O mais indignado, porém, era Pelino. O professor deitara artigo de
fundo, imprecando, bramindo, gritando: "Na história do crime, dizia ele, já bastante rica de fatos repugnantes, como sejam: o esquartejamento de Maria de Macedo, o estrangulamento dos irmãos Fuoco, não se registra um que o seja tanto como o saque às sepulturas do 'Sossego'."
E a vila vivia em sobressalto. Nas faces não se lia mais paz; os negócios estavam paralisados; os namoros suspensos. Dias e dias por sobre as casas pairavam nuvens negras e, à noite, todos ouviam ruídos, gemidos, barulhos sobrenaturais... parecia que os mortos pediam vingança...
O saque, porém, continuava. Toda noite eram duas, três sepulturas
abertas e esvaziadas de seu fúnebre conteúdo. Toda a população resolveu ir
em massa guardar os ossos dos seus maiores. Foram cedo, mas, em breve, cedendo à fadiga e ao sono, retirou-se um, depois outro e, pela madrugada,
já não havia nenhum vigilante. Ainda nesse dia o coveiro verificou que duas sepulturas tinham sido abertas e os ossos levados para destino misterioso.
Organizaram então uma guarda. Dez homens decididos juraram perante o subdelegado vigiar durante a noite a mansão dos mortos.

Nada houve de anormal na primeira noite, na segunda e na terceira;
mas, na quarta, quando os vigias já se dispunham a cochilar, um deles julgou lobrigar um vulto esgueirando-se por entre a quadra dos carneiros. Correram
e conseguiram apanhar dois dos vampiros. A raiva e a indignação até aí sopitadas no ânimo deles, não se contiveram mais e deram tanta bordoada
nos macabros ladrões, que os deixaram estendidos como mortos.

A notícia correu logo de casa em casa e, quando, de manhã se tratou
de estabelecer a identidade dos dois malfeitores, foi diante da população
inteira que foram neles reconhecidos o Coletor Carvalhais e o coronel Bentes,
rico fazendeiro e presidente da Câmara. Este último ainda vivia e, a perguntas repetidas que lhe fizeram, pôde dizer que juntava os ossos para fazer ouro
e o companheiro que fugira era o farmacêutico.

Houve espanto e houve esperanças. Como fazer ouro com ossos? Seria possível? Mas aquele homem rico, respeitado, como desceria ao papel de
ladrão de mortos se a cousa não fosse verdade!

Se fosse possível fazer, se daqueles míseros despojos fúnebres se pudesse
fazer alguns contos de réis, como não seria bom para todos eles!

O carteiro, cujo velho sonho era a formatura do filho, viu logo ali meios
de consegui-la. Castrioto, o escrivão do juiz de paz, que o ano passado
conseguiu comprar uma casa, mas ainda não a pudera cercar, pensou no muro, que lhe devia proteger a horta e a criação. Pelos olhos do sitiante Marques,
que andava desde anos atrapalhado para arranjar um pasto, passou logo o
prado verde do Costa, onde os seus bois engordariam e ganhariam forças...

As necessidades de cada um, aqueles ossos que eram ouro, viriam
atender, satisfazer e felicitá-los; e aqueles dois ou três milhares de pessoas, homens, crianças, mulheres, moços e velhos, como se fossem uma só pessoa, correram à casa do farmacêutico.

A custo, o subdelegado pôde impedir que varejassem a botica e conseguir que ficassem na praça à espera do homem, que tinha o segredo de todo
um Potosí.
Ele não tardou a aparecer. Trepado a uma cadeira, tendo na mão
uma pequena barra de ouro que reluzia ao forte sol da manhã, Bastos pediu graça, prometendo que ensinaria o segredo, se lhe poupassem a vida. "Queremos já sabê-lo", gritaram. Ele então explicou que era preciso redigir a receita,
indicar a marcha do processo, os reativos - trabalho longo que só poderia
ser entregue impresso no dia seguinte. Houve um murmúrio, alguns chegaram a gritar, mas o subdelegado falou e responsabilizou-se pelo resultado.
Docilmente, com aquela doçura particular às multidões furiosas, cada
qual se encaminhou para casa, tendo na cabeça um único pensamento:
arranjar imediatamente a maior porção de ossos de defunto que pudesse.

O sucesso chegou à casa do engenheiro residente da estrada de ferro.
Ao jantar, não se falou em outra cousa. O doutor concatenou o que ainda
sabia do seu curso, e afirmou que era impossível. Isto era alquimia, cousa
morta: ouro é ouro, corpo simples, e osso é osso, um composto, fosfato de
cal. Pensar que se podia fazer de uma cousa outra era "besteira". Cora
aproveitou o caso para rir-se petropolimente da crueldade daqueles botocudos;
mas sua mãe, Dona Emília, tinha fé que a cousa era possível.
À noite, porém, o doutor percebendo que a mulher dormia, saltou a
janela e correu em direitura ao cemitério; Cora, de pés nus, com as chinelas
nas mãos, procurou a criada para irem juntas à colheita de ossos. Não a
encontrou, foi sozinha; e Dona Emília, vendo-se só, adivinhou o passeio e
lá foi também.
E assim aconteceu na cidade inteira. O pai, sem dizer nada
ao filho, saía; a mulher, julgando enganar o marido, saía; os filhos, as filhas,
os criados - toda a população, sob a luz das estrelas assombradas, correu ao
satânico rendez-vous no "Sossego". E ninguém faltou. O mais rico e o mais
pobre lá estavam. Era o turco Miguel, era o professor Pelino, o doutor
Jerônimo, o Major Camanho, Cora, a linda e deslumbrante Cora, com os
seus lindos dedos de alabastro, revolvia a sânie das sepulturas, arrancava
as
carnes ainda podres agarradas tenazmente aos ossos e deles enchia o seu
regaço até ali inútil. Era o dote que colhia e as suas narinas, que se abriam
em asas rosadas e quase transparentes, não sentiam o fétido dos tecidos
apodrecidos em lama fedorenta...

A desinteligência não tardou a surgir; os mortos eram poucos e não
bastavam para satisfazer a fome dos vivos. Houve facadas, tiros, cachações.
Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur e mesmo entre as famílias
questões surgiram. Unicamente, o carteiro e o filho não brigaram. Andaram
juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno, uma esperta criança de
onze anos, até aconselhou ao pai: "Papai, vamos onde está mamãe; ela era tão gorda..."
De manhã, o cemitério tinha mais mortos do que aqueles que recebera
em trinta anos de existência. Uma única pessoa lá não estivera, não matara
nem profanara sepulturas: fora o bêbedo Belmiro.

Entrando numa venda, meio aberta, e nela não encontrando ninguém,
enchera uma garrafa de parati e se deixara ficar a beber sentado na margem
do Tubiacanga, vendo escorrer mansamente as suas águas sobre o áspero leito
de granito - ambos, ele e o rio, indiferentes ao que já viram, ao que viam,
mesmo à fuga do farmacêutico, com o seu Potosi e o seu segredo, sob o dossel
eterno das estrelas.