segunda-feira, 30 de novembro de 2015

75– Em Memoria de Paulina – A. Bioy Casares

Adolfo Bioy Casares (1914-1999) escritor argentino, colaborador e amigo de Juan Carlos Borges e autor de um dos mais importantes romances do realismo fantástico latino americano: A invenção de Morel. O vigor de sua criatividade esta presente neste Conto “Em Memoria de Paulina” onde ele leva o leitor, suavemente e com refinada elegância, a navegar pelos caminhos delirantes da imaginação do autor. Uma viagem fantástica!

Em memoria de Paulina
Adolfo Bioy Casares

Sempre amei Paulina. Em uma de minhas primeiras recordações, Paulina e eu estamos escondidos em um sombrio caramanchão de loureiros, em um jardim com dois leões de pedra. Paulina me disse: Gosto de azul, gosto de uvas, gosto de gelo, gosto de rosas, gosto de cavalos brancos. Eu entendi que a minha felicidade havia começado, porque nessas preferencias podia me identificar com Paulina. Éramos tão milagrosamente parecidos que, em um livro sobre a reunião final das almas na alma do mundo, minha amiga escreveu na margem: As nossas já se reuniram. “Nossas”, naquele tempo, significava a dela e a minha.
Para explicar tal semelhança argumentei que eu era um rascunho remoto e apressado de Paulina. Lembro que anotei no meu caderno: Todo poema é um rascunho da Poesia e em cada coisa há uma prefiguração de Deus. Também pensei: Em tudo o que eu me parecer com Paulina, estou a salvo. Via (e vejo ainda hoje) a identificação com Paulina como a melhor possibilidade do meu ser, como o refúgio onde me livraria dos meus defeitos naturais, da estupidez, da negligência, da vaidade.
A vida foi um doce costume que nos levou a esperar, como algo natural e certo, nosso futuro casamento. Os pais de Paulina, insensíveis ao prestigio literário prematuramente alcançado, e perdido, por mim, prometeram dar o consentimento quando eu me formasse. Muitas vezes imaginávamos um futuro bem arrumado, com tempo para trabalhar, para viajar e para amar-nos. Imaginávamos essas coisas tão vividamente que afinal nos persuadíamos de que já morávamos juntos.
Falar do nosso casamento não nos induzia a tratar-nos como noivos. Passamos a infância juntos e continuava havendo entre nós uma casta amizade de crianças. Não me atrevia a assumir o papel de apaixonado e dizer a ela, em tom solene: Eu te amo. No entanto, como a amava, com que amor atônito e escrupuloso eu olhava sua resplandecente perfeição.
Paulina gostava quando eu recebia amigos. Preparava tudo, atendia os convidados e, secretamente, brincava de ser dona de casa. Confesso que essas reuniões não me deixavam muito feliz. A que organizamos para Julio Montero conhecer escritores não foi exceção.
Na véspera, Montero tinha me visitado pela primeira vez. Empunhava, na ocasião, um copioso manuscrito e o despótico direito que uma obra inédita confere sobre o tempo do próximo. Pouco depois da visita eu já havia esquecido seu rosto hirsuto e quase negro. Quanto ao conto que ele me leu – Montero me pediu que lhe dissesse com toda sinceridade se o impacto da sua amargura era muito forte —, talvez fosse notável, porque revelava um vago proposito de imitar escritores positivamente diversos. A ideia central vinha do provável sofisma: se determinada melodia surge da relação entre o violino e os movimentos do violinista, de determinada relação entre movimento e matéria surgia a alma de cada pessoa. O herói do conto fabricava uma maquina de produzir almas (uma espécie de bastidor, com madeiras e barbantes). Depois o herói morria. Velavam e enterravam o cadáver; mas ele continuava secretamente vivo no bastidor. No ultimo parágrafo o bastidor aparecia, junto a um estereoscópio e um tripé com uma pedra de galena, no quarto onde havia morrido uma senhorita.
Quando consegui desviá-lo dos problemas do seu argumento, Montero revelou uma estranha ambição de conhecer escritores.
– Volte amanhã à tarde — disse a ele. — Vou lhe apresentar alguns.
Montero se descreveu como um selvagem e aceitou o convite. Talvez movido pela satisfação de vê-lo ir embora, desci com ele até a portaria. Quando saímos do elevador, Montero descobriu o jardim que há no pátio. Às vezes, com a luz tênue da tarde, visto através da porta de vidro que o separa do hall, esse jardim diminuto sugere a misteriosa imagem de um bosque no fundo de um lago. De noite, uns refletores de luz roxa e alaranjada o transformam em um horrível paraíso de caramelo. Montero o viu de noite.
– Vou ser sincero — disse ele, resignando-se a tirar os olhos do jardim. – De tudo o que vi na casa, isto é o mais interessante.
No dia seguinte Paulina chegou cedo; às cinco da tarde já tinha aprontado tudo para a recepção. Mostrei a ela uma estatueta chinesa, de pedra verde, que havia comprado em um antiquário naquela manha. Era um cavalo selvagem, as patas no ar e a crina levantada. O vendedor garantiu que simbolizava a paixão.
Paulina pôs o cavalinho em uma prateleira da estante e exclamou: É bonito como a primeira paixão de uma vida. Quando lhe disse que era um presente, ela impulsivamente pôs os braços em volta do meu pescoço e me beijou.
Tomamos um chá na copa. Eu lhe contei que tinham me oferecido uma bolsa para estudar dois anos em Londres. De repente acreditamos em um casamento imediato, na viagem, na nossa vida na Inglaterra (que nos parecia tão imediata quanto o casamento). Consideramos pormenores de economia doméstica; as privações, quase doces, a que nos submeteríamos; a distribuição das horas de estudo, de passeio, de repouso e, talvez, de trabalho; o que Paulina faria enquanto eu estivesse nas aulas; a roupa e os livros que levaríamos. Depois de algum tempo fazendo planos, admitimos que eu teria de abrir mão da bolsa. Faltava uma semana para os exames, mas já era evidente que os pais de Paulina queriam adiar o nosso casamento.
Começaram a chegar os convidados. Eu não me sentia feliz. Quando conversava com uma pessoa, só pensava em algum pretexto para me afastar dali. Parecia impossível abordar algum tema que interessasse ao interlocutor. Quando queria me lembrar de alguma coisa, perdia a memória ou a achava longe demais. Ansioso, fútil, abatido, eu pulava de um grupo a outro desejando que as pessoas fossem embora, que ficássemos sozinhos, que chegasse o momento, ai, tão breve, de levar Paulina para sua casa.
Perto da janela, minha noiva conversava com Montero. Quando olhei para ela, levantou os olhos e inclinou seu rosto perfeito em minha direção. Senti que havia um refúgio inviolável na ternura de Paulina, um refugio onde nós dois estávamos sozinhos. Como desejei dizer que a amava! Tomei a firme decisão de perder nessa mesma noite a minha pueril e absurda vergonha de lhe falar de amor. Ah, se eu pudesse (suspirei) lhe comunicar agora os meus pensamentos. Em seu olhar palpitou uma generosa, alegre e surpresa gratidão.
Paulina me perguntou em que poema um homem se distancia tanto de uma mulher que quando a encontra no céu não a cumprimenta. Eu sabia que o poema era de Browning e me lembrava vagamente dos versos. Passei o resto da tarde procurando-os na edição da Oxford. Se não me deixavam com Paulina, procurar algo para ela era preferível a conversar com outras pessoas, mas eu estava singularmente agitado e me perguntei se a impossibilidade de encontrar o poema não era um pressagio. Olhei para a janela. Luis Alberto Morgan, pianista, deve ter notado minha ansiedade, porque me disse:
– Paulina está mostrando a casa a Montero.
Dei de ombros, tentei disfarçar minha contrariedade e simulei me interessar de novo, pelo livro de Browning. Obliquamente vi Morgan entrando no meu quarto. Pensei: vai chamá-la. Logo em seguida reapareceu com Paulina e Montero.
Por fim alguém foi embora; depois, com despreocupação e vagar, outros partiram. Chegou um momento em que só ficamos Paulina, eu e Montero. Então, como eu temia, Paulina exclamou:
– Já é tarde. Vou embora.
Montero interveio rapidamente:
– Se me permitir, eu a acompanho até sua casa.
– Eu também vou acompanhá-la — respondi.
Falei com Paulina, mas olhei para Montero. Pretendia que os olhos comunicassem meu desprezo e meu ódio.
Quando chegamos embaixo, notei que Paulina não estava com o cavalinho chinês. Disse a ela:
– Você esqueceu o meu presente.
Subi até o apartamento e voltei com a estatueta. Os dois estavam encostados na porta de vidro, olhando para o jardim. Peguei no braço de Paulina e não deixei que Montero se aproximasse dela pelo outro lado. Na conversa prescindi ostensivamente de Montero.
Ele não se ofendeu. Quando nos despedimos de Paulina, insistiu em vir comigo até minha casa. No trajeto falou de literatura, provavelmente sinceridade e ardor. Pensei: Ele é o literato; eu sou um homem cansado, frivolamente preocupado com uma mulher. Considerei a incongruência que havia entre seu vigor físico e sua fraqueza literária. Pensei: ele tem uma carapaça que o protege; o que o interlocutor sente não o atinge. Observei com ódio seus olhos despertos, seu bigode hirsuto, seu pescoço fornido.
Nessa semana quase não vi Paulina. Estudei muito. Depois do último exame, telefonei para ela. Ela me parabenizou com uma insistência que não parecia natural e disse que no final da tarde iria a minha casa.
Fiz a sesta, tomei um banho vagaroso e esperei Paulina folheando um livro sobre os Faustos de Muller e de Lessing.
Quando a vi, exclamei:
– Você esta mudada.
– Sim — respondeu. — Como nós nos conhecemos! Não preciso nem falar para você saber o que estou sentindo.
Então nos olhamos dentro dos olhos, em um êxtase de beatitude.
– Obrigado — respondi.
Nada me comovia tanto como a admissão, por parte de Paulina, da intima conformidade das nossas almas. Confiante, eu me entreguei a essa lisonja. Não sei quando foi que me perguntei (incredulamente) se as palavras de Paulina não escondiam outro sentido. Antes que eu chegasse a considerar essa possibilidade, ela começou uma confusa explicação. De repente ouvi:
– Nessa primeira tarde já estávamos perdidamente apaixonados.
Eu me perguntei quem estava apaixonado. Paulina continuou.
– É muito ciumento. Não se opõe a nossa amizade, mas jurei que, por um tempo, não veria mais você.
Eu ainda esperava a impossível explicação que me tranquilizaria. Não sabia se Paulina estava falando sério ou era brincadeira. Não sabia que expressão havia no meu rosto. Não sabia como era dilacerante a minha angustia. Paulina acrescentou:
– Vou indo. Julio me espera. Ele não subiu para não nos incomodar.
– Quem? — perguntei.
E logo em seguida temi — como se nada tivesse acontecido — que Paulina descobrisse que eu era um impostor e que nossas almas não estavam tão unidas.
Paulina respondeu com naturalidade:
– Julio Montero.
A resposta não podia me surpreender; no entanto, naquela tarde horrível, nada me abalou tanto como essas duas palavras. Pela primeira vez me senti longe de Paulina. Quase com desprezo, perguntei…
– Vocês vão se casar?
Não lembro o que ela respondeu. Acho que me convidou para o casamento.
Depois fiquei sozinho. Tudo era absurdo. Não havia pessoa mais incompatível com Paulina (e comigo) que Montero. Ou eu estava enganado? Se Paulina amava esse homem, talvez ela nunca tivesse se parecido comigo. Uma abjuração não me bastou; descobri que já havia vislumbrado muitas vezes a horrenda verdade.
Fiquei muito triste, mas não creio que estivesse com ciúmes. Deitei na cama, de bruços. Ao esticar a mão encontrei o livro que estava lendo pouco antes. Joguei-o longe, com nojo.
Sai para caminhar. Em uma esquina fiquei olhando um carrossel. Naquela tarde parecia impossível continuar vivendo.
Durante anos me lembrei dela, e como preferia os dolorosos momentos da ruptura (porque os tinha passado com Paulina) à solidão posterior, eu os percorria e os examinava minuciosamente e voltava a vivê-los. Nessa angustiada cavilação pensava descobrir novas interpretações para os fatos. Por exemplo na voz de Paulina declarando o nome de seu amado surpreendi uma ternura que, a principio, me emocionou. Pensei que a moça sentia pena de mim e sua bondade me comoveu da mesma forma que antes o seu amor me comovia. Depois, pensando melhor, deduzi que aquela ternura não era para mim e sim para o nome pronunciado.
Aceitei a bolsa e, silenciosamente, fui cuidar dos preparativos da viagem. No entanto, a notícia correu. Na ultima tarde Paulina veio me visitar.
Eu já me sentia distante dela, mas quando a vi me apaixonei de novo. Sem que Paulina dissesse, entendi que a sua vinda era furtiva. Segurei suas mãos, trêmulo de gratidão. Paulina exclamou:
– Sempre vou te amar. De algum modo, sempre vou te amar mais do que a qualquer outra pessoa.
Talvez ela tivesse achado que cometera uma traição. Sabia que eu não duvidava de sua lealdade a Montero, mas, parecendo contrariada por ter pro­nunciado palavras que implicassem — não para mim, para uma testemunha imaginária — uma intenção desleal, acrescentou rapidamente:
– Evidentemente, o que sinto por você não conta. Estou apaixonada por Julio.
Todo o resto, disse, não tinha importância. O passado era uma região deserta onde ela havia esperado por Montero. Do nosso amor, ou amizade, não se lembrou.
Depois falamos pouco. Eu estava muito ressentido e fingi ter pressa. Fui com ela até o elevador. Quando abri a porta, retumbou, imediata, a chuva.
– Vou procurar um taxi — disse.
Com uma súbita emoção na voz, Paulina me gritou:
– Adeus, querido.
Atravessou, correndo, a rua e desapareceu ao longe. Eu me virei, tristemente. Ao erguer os olhos vi um homem escondido no jardim. O homem se ergueu e encostou as mãos e o rosto na porta de vidro. Era Montero.
Raios de luz lilás e de luz alaranjada se entrecruzavam sobre um fundo verde, com boscagens escuras. O rosto de Montero, apertado contra o vidro molhado, parecia pálido e disforme.
Pensei em aquários, em peixes em aquários. Depois, com uma amargura frívola, pensei que o rosto de Montero sugeria outros monstros: os peixes deformados pela pressão da água que habitam no fundo do mar.
No dia seguinte, de manha, embarquei. Durante a viagem quase não sai do camarote. Escrevi e estudei muito.
Queria esquecer Paulina. Nos dois anos que passei na Inglaterra, evitei tudo o que me fizesse pensar nela: dos encontros com argentinos até os poucos telegramas de Buenos Aires que os jornais publicavam. É verdade que ela me aparecia nos sonhos, com uma vividez tão persuasiva e tão real que me perguntei se minha alma não compensava de noite as privações que eu lhe impunha na vigília. Evitei obstinadamente a sua lembrança. No final do primeiro ano, consegui excluí-la das minhas noites e, quase, esquecê-la.
Na tarde em que cheguei da Europa voltei a pensar em Paulina. Com apreensão, pensei que quando chegasse em casa as lembranças talvez fossem vivas demais. Ao entrar em meu quarto senti alguma emoção e me detive respeitosamente, comemorando o passado e os extremos de alegria e de aflição que eu havia conhecido. Então tive uma revelação vergonhosa. O que me comovia não eram os monumentos secretos do nosso amor, subitamente manifestados no mais íntimo da minha memória, mas sim a luz enfática que entrava pela janela, a luz de Buenos Aires.
Por volta das quatro fui até a esquina e comprei um quilo de café. Na padaria, o dono me reconheceu, cumprimentou-me com estrondosa cordialidade e me informou que fazia muito tempo — seis meses, pelo menos — que eu não o honrava com minhas compras. Depois dessas gentilezas pedi, tímido e resignado, meio quilo de pão. Ele perguntou, como sempre:
– Moreno ou claro?
Respondi, como sempre:
– Claro.
Voltei para casa. O dia estava límpido como um cristal, e muito frio.
Enquanto preparava o café, pensei em Paulina. Ali pelo fim da tarde nos acostumávamos tomar uma xicara de café preto.
Como se estivesse em um sonho, passei de uma afável e equânime indiferença a emoção, à loucura que o aparecimento de Paulina me provocou. Cai de joelhos quando a vi, pus o rosto entre as mãos dela e, pela primeira vez, chorei toda a dor de tê-la perdido.
Sua chegada foi assim: ouviram-se três batidas na porta; eu me perguntei quem podia ser o intruso; pensei que o café ia esfriar por sua culpa; abri, distraidamente.
Depois — não sei se o tempo que transcorreu foi muito longo ou muito breve — Paulina mandou que a seguisse. Entendi que assim estava corrigindo, com a persuasão dos fatos, nossos antigos erros de comportamento. Tenho a sensação (mas além de incorrer nos mesmos erros, sou infiel a essa tarde) de que os corrigiu com uma determinação excessiva. Quando me pediu que segurasse sua mão (“A mão!”, disse. “Agora!”), eu me entreguei à felicidade. Olhamos nos olhos um do outro e, como dois rios confluentes, nossas almas também se uniram. Lá fora, sobre o telhado, contra os muros, chovia. Interpretei essa chuva — que era o mundo inteiro surgindo novamente — como uma pânica expansão do nosso amor.
A emoção não me impediu, contudo, de descobrir que Montero havia contaminado a fala de Paulina. Às vezes, quando ela falava, eu tinha a ingra­ta impressão de estar ouvindo o meu rival. Reconheci o peso característico das frases; reconheci as ingênuas e trabalhosas tentativas de encontrar o termo exato; reconheci, ainda despontando vergonhosamente, a inconfundível vulgaridade.
Fazendo um esforço, consegui me sobrepor. Fitei o rosto, o sorriso, os olhos. Ali estava Paulina, intrínseca e perfeita. Ali não a haviam mudado.
Então, enquanto a contemplava na penumbra mercurial do espelho, rodeada pela moldura de grinaldas, de coroas e de anjos negros, achei-a diferente. Era como se descobrisse outra versão de Paulina; como se a visse de um modo novo. Dei graças pela separação, que havia interrompido meu hábito de vê-la, mas que a devolvia ainda mais bonita.
Paulina disse:
— Já vou. Julio está me esperando.
Notei em sua voz uma estranha mistura de menosprezo e de angústia, que me desconcertou. Pensei melancolicamente: Paulina, em outros tempos, não trairia ninguém. Quando ergui os olhos, tinha ido embora.
Apos um instante de vacilação, chamei-a. Voltei a chamá-la, desci e fui até a entrada, corri pela rua. Não a encontrei. Na volta, senti frio. Pensei: “Refrescou. Foi só uma pancada de chuva”. A rua estava seca.
Quando voltei para casa vi que eram nove horas. Não estava com vontade de sair para comer; a possibilidade de encontrar algum conhecido me acovardava. Fiz um pouco de café. Tomei duas ou três xícaras e mordi a ponta de um pão.
Não sabia sequer quando nos veríamos de novo. Eu queria falar com Paulina. Queria pedir que me explicasse... De repente, minha ingratidão me assustou. O destino me proporcionava a felicidade, e eu não estava contente. Aquela tarde era a culminação de nossas vidas. Paulina tinha entendido assim. Eu mesmo entendi assim. Por isso quase não nos falamos. (Falar, fazer perguntas, teria sido, de certo modo, diferenciar-nos.)
Parecia impossível ter de esperar até o dia seguinte para ver Paulina. Com um alívio incomodo, determinei que nessa mesma noite iria à casa de Montero. Desisti rapidamente; sem falar antes com Paulina, eu não podia ir visitá-los. Resolvi procurar um amigo — achei que Luis Alberto Morgan era o mais indicado — e pedir que ele me contasse tudo o que sabia da vida de Paulina durante minha ausência.
Depois pensei que era melhor ir dormir. Descansado, no dia seguinte veria tudo com mais clareza. Por outro lado, não estava disposto a ouvir falar frivolamente de Paulina. Quando me deitei tive a impressão de ter caído em uma armadilha (lembrei-me, talvez, de noites de insônia, dessas em que ficamos na cama para não admitir que estamos acordados). Apaguei a luz.
Eu não ia mais especular sobre o comportamento de Paulina. Sabia muito pouco para querer entender a situação. Como não podia esvaziar a mente e parar de pensar, eu me refugiaria na lembrança daquela tarde.
Continuaria gostando do rosto de Paulina, mesmo encontrando em seus atos algo de estranho e hostil que me afastava dela. O rosto era o de sempre, o rosto puro e maravilhoso que me amara antes do abominável aparecimento de Montero. Pensei: há uma fidelidade nos rostos que as almas talvez não compartilham.
Ou seria tudo um engano? Eu não estaria apaixonado por uma cega projeção de minhas preferencias e ojerizas? Será que nunca tinha conhecido Paulina?
Escolhi uma imagem daquela tarde — Paulina em frente a escura e tersa profundidade do espelho — e tentei evocá-la. Quando a divisei, tive uma revelação instantânea: eu hesitava porque estava esquecendo Paulina. Quis me concentrar na contemplação da sua imagem. A fantasia e a memoria são faculdades caprichosas: eu me lembrava do cabelo despenteado, de uma prega do vestido, da vaga penumbra circundante, mas minha amada se desvanecia.
Muitas imagens, animadas por uma inevitável energia, passavam diante dos meus olhos fechados. De repente fiz uma descoberta. Como que na beira escura de um abismo, em um angulo do espelho, à direita de Paulina, apareceu o cavalinho de pedra verde.
Essa visão, quando se produziu, não me surpreendeu; só após alguns minutos lembrei que a estatueta não estava em casa. Eu a tinha dado a Paulina dois anos antes.
Pensei se tratar de uma superposição de lembranças anacrônicas (a mais antiga, do cavalinho; a mais recente, de Paulina). A questão estava elucidada, eu já podia ficar tranquilo, e precisava dormir. Formulei então uma reflexão envergonhada e, a luz do que iria descobrir mais tarde, patética. “Se eu não dormir logo’’, pensei, “amanhã estarei pálido e não vou agradar Paulina ”.
Pouco depois percebi que minha lembrança da estatueta no espelho do quarto não era justificável. Nunca a deixei no quarto. Em casa, só a vi no outro aposento (na prateleira, nas mãos de Paulina ou nas minhas).
Apavorado, quis ver essas recordações mais uma vez. O espelho reapareceu, rodeado de anjos e de grinaldas de madeira, com Paulina no centra e o cavalinho a direita. Eu não tinha certeza de que refletisse o quarto. Talvez sim, mas de um modo vago e sumario. Em contrapartida, o cavalinho se empinava nitidamente na prateleira da estante. A estante ocupava toda a parede do fundo, e na escuridão lateral rondava um novo personagem, que não reconheci no primeiro momento. Depois, com pouco interesse, percebi que esse personagem era eu.
Vi o rosto de Paulina, vi-o inteiro (não em partes), como que projetado em minha direção pela extrema intensidade de sua formosura e de sua tristeza. Acordei chorando.
Não sei desde quando eu estava dormindo. Mas sei que o sonho não foi criativo. Ele deu continuidade, insensivelmente, às minhas imaginações e reproduziu com fidelidade as cenas da tarde.
Olhei o relógio. Eram cinco horas. Eu me levantaria cedo e, mesmo correndo o risco de irritar Paulina, iria até sua casa. Essa resolução não mitigou minha angústia.
Levantei às sete e meia, tomei um banho demorado e me vesti devagar.
Não sabia onde Paulina morava. O porteiro me emprestou as listas telefônicas, a de assinantes e a comercial. Nenhuma das duas tinha o endereço de Montero. Procurei o nome de Paulina; tampouco constava. Verifiquei, também que na antiga casa de Montero morava outra pessoa. Pensei em perguntar o endereço aos pais de Paulina.
Fazia muito tempo que não os via (quando soube do amor de Paulina por Montero, interrompi o contato com eles). Agora, para me desculpar, teria de historiar meus pesares. Não tive ânimo.
Decidi falar com Luis Alberto Morgan. Antes das onze não podia aparecer em sua casa. Perambulei pelas ruas, sem ver nada, ou observando com uma fugaz aplicação a forma de uma moldura em uma parede ou o sentido de uma palavra ouvida por acaso. Lembro que na praça Independência havia uma mulher, com os sapatos em uma das mãos e um livro na outra, passeando descalça pela grama molhada.
Morgan me recebeu na cama, às voltas com uma enorme tigela que segurava com as duas mãos. Divisei um líquido esbranquiçado e, flutuando, um pedaço de pão.
– Onde Montero mora? — perguntei.
Ele já tinha bebido todo o leite. Agora pegava os pedaço de pão do fundo da tigela.
– Montero esta preso — respondeu.
Não pude esconder meu assombro. Morgan continuou:
– Como? Você não sabe?
Imaginou, sem duvida, que eu só ignorava esse detalhe, mas, pelo gosto de falar, contou tudo o que acontecera. Pensei que eu fosse perder os sentidos; cair em um súbito precipício; lá também chegava a voz cerimoniosa, implacável e nítida, que relatava fatos incompreensíveis com a monstruosa e persuasiva convicção de que eram familiares.
Morgan me contou o seguinte: suspeitando que Paulina ia me visitar, Montero se escondeu no jardim do meu prédio. Viu-a sair e a seguiu; interpelou-a na rua. Quando se aglomeraram curiosos, ele a obrigou a entrar em um taxi. Rodaram a noite toda pela Costanera e pelos lagos e, de madrugada, em um hotel do Tigre, matou-a com um tiro. Isso não tinha acontecido na noite anterior àquela manha; tinha acontecido na véspera da minha viagem a Europa; tinha acontecido havia dois anos.
Nos momentos mais terríveis da vida muitas vezes caímos em uma espécie de irresponsabilidade protetora e, em vez de pensar no que esta acontecendo, dirigimos nossa atenção a trivialidades. Nesse momento perguntei a Morgan:
– Está lembrado do nosso ultimo encontro, lá em casa, antes da minha viagem?
Morgan se lembrava. Continuei:
– Quando você viu que eu estava preocupado e foi procurar Paulina no meu quarto, o que Montero estava fazendo?
– Nada — respondeu Morgan, com certa vivacidade. — Nada. Pensando melhor, agora me lembro: estava se olhando no espelho.
Voltei para casa. Cruzei, na entrada, com o porteiro. Demonstrando indiferença, perguntei-lhe:
– Sabe que a senhorita Paulina morreu?
– Como não iria saber? — respondeu. — Todos os jornais falaram do assassinato e eu acabei prestando depoimento à policia.
O homem me olhou inquisitivamente.
— Esta tudo bem? — perguntou, aproximando-se muito de mim. — Quer que o acompanhe?
Agradeci e fugi para cima. Tenho uma vaga lembrança de ter pelejado com uma chave; de ter apanhado umas cartas, do outro lado da porta; de estar de olhos fechados, deitado de bruços, na cama.
Depois me surpreendi em frente ao espelho, pensando: “O fato é que Paulina me visitou esta noite. Morreu sabendo que o casamento com Montero tinha sido um equívoco — um equívoco atroz — e que nós éramos a verdade. Voltou da morte para completar o seu destino, o nosso destino”. Lembrei de uma frase que Paulina havia escrito, anos antes, em um livro: Nossas almas já se reuniram. Continuei pensando: “Esta noite, finalmente. No momento em que segurei sua mão”. Depois, pensei: “Sou indigno dela: duvidei, senti ciúmes. Ela veio da morte para me amar”.
Paulina tinha me perdoado. Nunca havíamos nos amado tanto. Nunca estivemos tão perto.
Eu estava me debatendo nessa embriaguez de amor, vitoriosa e triste, quando me perguntei — ou melhor, quando meu cérebro, movido pelo simples hábito de propor alternativas, perguntou — se não haveria outra explicação para a visita daquela noite. Então, fulminante, a verdade me atingiu.
Eu gostaria de descobrir agora que estou enganado de novo. Infelizmente, como sempre acontece quando surge a verdade, minha horrível explicação esclarece os fatos que pareciam misteriosos. Estes, por seu lado, a confirmam.
Nosso pobre amor não tirou Paulina do túmulo. Não houve fantasma de Paulina. Eu abracei um monstruoso fantasma dos ciúmes do meu rival.
A chave do que aconteceu esta na visita que Paulina me fez na véspera da minha viagem. Montero a seguiu e a esperou no jardim. Brigaram a noite toda e, como não acreditou em suas explicações — como esse homem podia entender a pureza de Paulina? —, matou-a de madrugada.
Eu o imaginei na prisão, cismando naquela visita, representando-a com a cruel obstinação do ciúme.
A imagem que entrou em casa, o que depois aconteceu lá, foi uma projeção da horrenda fantasia de Montero. Na época não descobri isso, porque estava tão comovido e tão feliz que a minha única vontade era obedecer a Paulina. No entanto, não faltaram indícios. Por exemplo, a chuva. Durante a visita da verdadeira Paulina — na véspera da minha viagem —, eu não ouvi a chuva. Montero, que estava no jardim, sentiu-a diretamente no corpo. Ao imaginar-nos, ele achou que a tínhamos ouvido. Por isso ouvi chover ontem a noite. Depois vi que a rua estava seca.
Outro indício é a estatueta. Só esteve em minha casa por um único dia o dia da recepção. Para Montero, ela se tornou um símbolo do lugar. Por isso apareceu esta noite.
Não me reconheci no espelho porque Montero não me imaginou claramente. Também não imaginou o quarto com muita precisão. Nem sequer conheceu Paulina. A imagem projetada por Montero se comportava de uma maneira que não é própria de Paulina. Além do mais, falava como ele.
Urdir esta fantasia é a tortura de Montero. A minha é mais real. É a convicção de que Paulina voltou não porque estivesse desenganada de seu amor. E a convicção de que eu nunca fui seu amor. E a convicção de que Montero não ignorava aspectos de sua vida que eu só vim a conhecer indiretamente. É a convicção de que, ao segurar sua mão — no suposto momento da união das nossas almas —, obedeci a um pedido de Paulina que ela nunca me dirigiu e que meu rival escutou muitas vezes.


domingo, 22 de novembro de 2015

74 – Vadico – E. Coutinho


Jose Edilberto Coutinho (1938-1995) escritor brasileiro nascido em Bananeiras, Paraíba que a partir de 1970 viveu no Rio de Janeiro e escreveu uma das maiores obras sobre o futebol Maracanã Adeus, que inclui o conto “Vadico.”
Vadico
Edilberto Coutinho

Uns poucos passos, apenas. Vejam só. Quando corria para a bola, a torcida fazia um coro de ôôôôôô que terminava numa explosão de gol. Este jogo foi em Paris. Cartazes nas ruas anunciavam:
VÁ AO PARC DES PRINCES VER PELÉ ET COMPAGNIE
Pelé e Companhia. Os companheiros. Bastavam Pelé e Vadico para pagar o espetáculo. Depois dos aplausos habituais ao rei Pelé, a multidão se
divertia com os chutes de Vadico. Os franceses adoraram e consagraram
Vadico. Est-ce que cet homme a centpieds? O Cem Pés. Aí nasceu o apelido.
O Cem Pés, no filme, após esse jogo na França, exibe as canelas cheias de cicatrizes. Denunciadoras, diz o locutor, da violência característica dos zagueiros que o enfrentavam.
O Cem Pés, um ídolo. Um gênio do futebol. Vadico, sendo entrevistado, diz que não senhor, não trocaria essa vida com a bola por nenhuma outra. As cicatrizes? Ele as olhava, diz o locutor, como um prêmio amargo pelas tantas vezes em que foi atingido. Não havia de culpar a vida?
Mas eu nem tenho jeito pra contar uma história de forma organizada.
Bola pra frente.
Na televisão, aquele moço:
Onde estão os ídolos do passado? Muitos, esquecidos, sós, abandonados. Como vivem? O que fazem? Fomos encontrar Vadico, o grande
artilheiro que brilhou ao lado de Pelé, sentado num banco de parque, triste
e só, aparentando pelo menos mais 20 anos além de sua idade real.

Enquanto a nova média esfria, estou vendo tudo de novo pelo televisor
do bar. Repetem o filme sobre a carreira de Vadico. Sentei aqui e pedi a primeira média com pão e manteiga. Molhei o pão no café com leite e
consumi logo tudo. Então, pedi uma segunda xícara. Sorvendo devagarinho. Agora já está meio fria. Mas não importa. Pedi mesmo para ter o direito, sem
o portuga do garçom me aporrinhar, de permanecer no balcão mais tempo. Todo o tempo do programa.
É preto e branco o Fantástico Show da Vida (nome do programa a cores,
com a moça lindinha na abertura, levantando o braço e mostrando o sovaquinho raspado).
Sou um velho perdido na bosta da vida, com catarata numa das vistas. Parece que o mundo todo virou um quarto escuro. Todas
as tardes estou num desses bancos do parque que o filme mostra. A vida de Vadico, bem? Tanta glória e agora essa penúria dele, igualzinho a mim, vivendo feito um molambo. Tem uma estátua, nesse parque, que só consigo enxergar bem na claridade do dia. É o corpo de uma jovem (parece a moça ousada do programa de televisão) e, quando a tardinha vem caindo, o corpo dela vai ficando monstruoso, e vou embora para o meu quarto. Um
aposentado me aconselhou a não andar por aí à noite, e estou ainda esperando tratamento do Instituto para o meu olho direito.

Velho é um peso morto, eu disse para o homem ao meu lado, aquele
dia no parque. Observei quando ele se aproximou e sentou junto de mim.
A boina escura, a camiseta amarelecida sob a camisa estampada (e rota?), a calça de casimira surrada e a botina de solado de pneu formando a figura
dele. Assim fiquei conhecendo Vadico. Ele chegou a me contar algumas daquelas histórias, em que eu nem podia acreditar. Contar histórias é
ocupação de velho. Depois vi na televisão que era tudo verdade.
Numa tarde chuvosa de São Paulo (é a voz do moço arrumado da
televisão), terminou seu futebol. Não era jogador de se poupar. Teve mais
de 12 anos de carreira, artilheiro de ataques famosos. Jogou com Garrincha, Pelé, Gérson. Vadico não fugia da luta.
Nesta sequência, observem, senhores telespectadores, atenção, viu a bola, vindo pelo alto, pulou antes do zagueiro. Ganhou a bola (o filme mostra), mas caiu sobre o joelho. Vejam, Vadico permanece imóvel, gemendo de dor.
Num rápido exame, o médico do clube garantiu que aquilo não era coisa grave. O craque precisava apenas de alguns dias de recuperação. Mas esses dias se transformaram nos piores de sua vida. Um mês depois, estava decidida a operação. O tratamento à base de infiltrações e exercícios havia fracassado.
Um moleque parou na porta do bar, me olhou e berrou que velho tem
cheiro de égua. Levantei o braço, num gesto ameaçador, mas muito fraco e lento, o diabinho ainda repetiu de égua, de égua, e saiu correndo. O portuga
sorriu, me parece que sorriu, o puto, mas que importa esse safado? Forço
bem a vista para ver o que aconteceu a Vadico. Mas agora, na televisão,
passam uma propaganda. Ao Sucesso, com Hollywood. E chegou para perto
essa mulherzinha morena, animada, as pestanas muito lambuzadas de uma
tintura azul - acendo o meu Continental, Preferência Nacional- mas sem
nenhuma outra pintura no rosto tenso. O que a menina vai querer?, pergunta
o portuga. Esse homem era o máximo, ela diz, olhando para o televisor. Pede
um conhaque Dreher.

Dois meses depois da operação, continua o narrador do filme, pouca
coisa havia mudado. O joelho do craque continuava dolorido e a perna sem
movimentos, apesar dos exercícios todos. O tempo passava para ele, que
tinha a sua única alegria na lembrança dos tempos gloriosos. Aí aparece
Vadico, este de agora que conheci, um velhinho desprezado como eu
(embora tenha muito menos idade):

– Eu vivia fazendo gols. Eram tantos que perdi a conta. Sei apenas
que foram muitos. Pena que acabaram.

Em seguida não se vê mais a figura de Vadico, mas se ouve a sua voz,
enquanto mostram ele em ação: chutando, driblando, fazendo embaixadas.
Depois, uma série de gols. Verdadeira pintura, coisa linda de se ver. Um quadro.

As vezes, diz o locutor, a valentia lhe custava meses de atividade. A
torcida quer uma presença constante.
Ficaram me dando esperanças, diz Vadico, até que um dia veio o
médico e, finalmente, revelou: Você não pode mais jogar. Para o seu próprio
bem, o médico me disse, é melhor encerrar a carreira. Sim, o médico
confirmou, a contusão pode se agravar a ponto de aleijar o seu joelho. Aí eu
já estava mesmo com o joelho mutilado por todas aquelas injeções e as
operações. Doía quando andava, a qualquer flexão da perna. Compreendi
que era impossível resistir. Tinha que parar.
Tenho que ter coragem, pensei.
Outro conhaque, a mulherzinha pediu, com a voz tremida, e vi que
devia ter chorado, o rosto dela num estado deplorável.
Era mesmo uma coragem enorme, diz o narrador da vida de Vadico, que
lhe permitia entrar na área sob os pontapés dos zagueiros. Depois - com a
mutilação - a coragem, ainda, de abandonar tudo aquilo que foi sua vida, e
que
lhe deu muitas glórias, até deixá-lo inutilizado, com a perna sem mexer.

Primeiro, foi o pontapé violento por trás, na panturrilha. Aquele beque
era um cara muito parrudo (é a voz de Vadico, no filme), um cavalo forte.
Um grosso com a bola, é claro. Vi que era fácil passar por ele, e não pude
resistir aos dribles. O público aplaudiu, gritou meu nome. Cheguei a fazer
aquelas embaixadas - o filme mostra ele controlando a bola, sem deixar
cair, várias vezes seguidas, com o peito do pé esquerdo, uma série brilhante
de embaixadas - e a galera vibrou. Gritaram mais alto meu nome. O filme
mostra, o Maracanã inteiro uma só voz: va-di-co, va-di-cooo. Faltou humildade
naquele cara, Vadico prosseguiu. Eu sei, todo jogador tem mesmo horror de ser feito de bobo. Porque, além dos dribles, das embaixadas, vai receber também o riso de gozação dos colegas, do público.

Era um boa-pinta, hein?, diz a mulher tomando um longo gole do seu conhaque, tremendo boa-pinta, um macho muito do bem-apanhado.
É claro, continua Vadico, que o jogador que parte para o bloqueio
direto a um adversário - seja atacante, homem de meio-campo ou zagueiro-de-área
- corre sempre o risco de ser driblado, e até de ser humilhado,
feito de bobo. Mas é um risco que significa uma prova de dedicação ao time
e não humilhação pessoal. Mas foi humilhação pessoal o que sentiu aquele
zagueiro. Adiei, o nome dele. Desapareceu. Não sei por onde andará, hoje
um velho igual a mim, outro que deve estar perdido por aí (a voz vai se
tornando muito baixa, quase que não se ouve ele falar), mais um expulso da vida. Mas é isso (ouve-se melhor agora): na manobra do bloqueio, o primeiro
jogador tem que se expor no drible. Se ele conseguir tomar a bola, tudo bem.
Se for driblado, pode se irritar e até perder a cabeça. Como aquele becão,
o
tal Adiei. Foi aí que veio a bola dividida, e minha perna ficou.
A mulherzinha
deposita com ruído o copo no balcão:
Merda de vida.
Há três dias encontrei Vadico pela última vez. Vi você na televisão, eu
disse, alegremente, quando ele se aproximou de mim no banco do parque.
Estava tomando café e vi tudo pelo televisor do bar. Muita gente viu.
Contar histórias é ocupação de velho, Vadico disse.
Eu não sei contar direito, mas é isto que conto: estão repetindo agora
o filme e estou tomando café de novo e assistindo de novo, e tem essa mulher
que já mandou uns quatro conhaques, está de porre e não para de chorar.
E
repetem o filme por causa do que Vadico fez ontem. (Se essa puta porrista
parasse com o faniquito dela, eu ia me sentir melhor, mas ela tem razão:
merda de vida.)

O único patrimônio que ele guarda com carinho, diz o mocinho bonito
da televisão (esse aí, é claro, não cheira a égua velha), é esta bola (a bola
enche
toda a tela do televisor), e Vadico, entrevistado no seu quartinho pequenino
e limpo, diz, foi um chute, que dei nela, que deu o tricampeonato ao nosso
time. Me lembro muito bem. Mal o juiz apitou o final da partida, me abracei
a essa boneca aí e disse, é minha, e está comigo até hoje.
Acordo todos os dias muito cedo. Vadico diz logo depois, e saio pra
rua, que está sempre meio deserta, tem só uns poucos trastes, que vão
madrugar no trabalho, ou essa gente que vem da noite.
Não há muito o que
fazer, moço, a mesma coisa todos os dias, a mesma coisa sempre. A gente
procura nas pessoas que passam ou nas notícias dos jornais assunto para
conversa durante o dia no parque (aí o filme mostra ele sentado no banco
do parque; Vadico sozinho visto ao longe, e umas crianças que passam e
olham com desagrado para a figura dele, meio recostado no banco). Mulher,
moço? Quando acabou o futebol, elas acabaram também. Sim, houve
algumas delas, mas parece que eu não levava muito jeito com elas não (um
riso meio forçado, que vira uma careta), é, pois é, com as zinhas deu zebra.

E a mulher do bar, quase aos gritos: Mais um, porra. O portuga veio com a
garrafa e ela: Manda. O garçom entortou a garrafa, o líquido escorrendo em
conta-gotas, e a puta, impaciente: Capricha. Pode caprichar. Pegou na mão
do homem, entortando mais: Assim. Aí tá bom. E emborcou a nova dose
até a metade.

Hoje Vadico é notícia em todos os jornais e tem essa bruaca que não
para de beber e de chorar. Tinha que dar zebra, né, Vadico?, com umas tipas
como essa aí ao lado, o que você queria, meu amigo?
E agora é o final do filme, que repetiram inteirinho porque ontem, como está dizendo agora esse moço aí na televisão, o famoso Cem Pés se libertou com as próprias mãos. E foi a primeira coisa que vi, hoje, nas manchetes dos jornais espetados nas bancas: a notícia de que Vadico, o famoso ídolo do passado, o célebre Cem Pés - um Deus dos estádios - tinha se matado, cortado o pescoço com uma navalha.

Assim que o filme terminou, eu paguei e me levantei para sair. Foi aí
que a mulher arriou a cabeça sobre o balcão do bar, empurrando num gesto involuntário o copo de conhaque, ao mesmo tempo em que, abrindo a mão, libertou um frasco pequenino, sem tampa, de onde rolou uma pilulazinha verde. Só uma. As outras, o diabo da criatura tinha engolido com o conhaque.