domingo, 27 de setembro de 2015

66 – O ovo – S. Anderson

Sherwood Anderson (1876-1941), escritor norte americano nascido em Ohio. Viveu na mesma época que Stefan Zweig – autor destacado por esta pagina na última semana – mas ao contrario do escritor austríaco que viveu em uma Europa que dramaticamente se transformava na primeira metade do século XX, Sherwood vivem em uma América do Norte politicamente estável e pode concentrar sua atenção no tema central deste conto: a compreensão do sonho americano.

O ovo
Sherwood Anderson
Tradução de Mário Zeidler Filho

Meu pai foi, estou certo, naturalmente feito para ser um homem alegre e gentil. Até os trinta e quatro anos de idade ele trabalhou como granjeiro para um homem chamado Thomas Butterworth, cuja fazenda ficava perto da cidade de Bidwell, Ohio. Na época ele tinha um cavalo só dele, e nas noites de sábado ia até a cidade para passar algumas horas se divertindo com outros granjeiros. Na cidade ele bebia um monte de cerveja e ficava à toa no Ben Head’s Saloon – abarrotado nas noites de sábado com granjeiros das redondezas. Canções eram cantadas e copos batiam no balcão. Às dez da noite meu pai voltava pra casa por uma solitária estrada vicinal, desarreava seu cavalo e ia ele mesmo para a cama, bastante feliz com sua posição no mundo. Naquela época ele não tinha nenhuma ideia de tentar subir na vida.
Foi na primavera de seu trigésimo quinto ano que meu pai se casou com minha mãe, então uma professora do interior, e na primavera seguinte eu vim chorando e me contorcendo ao mundo. Alguma coisa aconteceu com os dois. Eles ficaram ambiciosos. A paixão americana por subir na vida se apossou deles.
Pode ser que minha mãe tenha sido a responsável. Sendo professora ela sem dúvida havia lido livros e revistas. Ela devia, eu presumo, ter lido sobre como Garfield, Lincoln e outros americanos saltaram da pobreza para a fama e a grandeza, e enquanto eu permanecia ao seu lado – nos seus dias de resguardo – ela deve ter sonhado que um dia eu governaria homens e cidades. De alguma forma ela convenceu meu pai a abandonar seu posto como granjeiro, vender seu cavalo e embarcar em seu próprio negocio, independente. Ela era uma mulher alta e calada, com um longo nariz e aflitos olhos cinzentos. Para ela mesma não queria nada. Por meu pai e por mim, era incuravelmente ambiciosa.
O primeiro negócio em que os dois se meteram acabou mal. Eles alugaram dez acres de terra ruim e pedregosa na estrada de Griggs, a oito milhas de Bidwell, e se lançaram na criação de galinhas. Passei a meninice naquele lugar e foi dali que tirei minhas primeiras impressões sobre a vida. Desde o começo foram impressões desastrosas, e se de minha parte me tornei um homem sombrio, inclinado a ver sempre o lado mais escuro da vida, atribuo isto ao fato de que aqueles que deveriam ter sido os meus alegres e prazenteiros dias de infância se passaram numa granja de galinhas.
Alguém pouco versado em tais assuntos pode não ter noção das muitas e trágicas coisas que podem acontecer a um frango. Ele nasce de um ovo, vive algumas semanas como uma coisinha fofa tal qual se vê estampada nos cartões de páscoa, e então se transforma numa coisa horrivelmente pelada, come porções de milho e ração compradas com o suor do rosto do teu pai, pega doenças chamadas de gôgo, cólera e outros nomes, fica parado olhando com olhos estúpidos para o sol, adoece e morre. Algumas galinhas, e de vez em quando um galo, feitos para servir aos misteriosos desígnios de Deus, lutam até à maturidade. As galinhas botam ovos dos quais saem outros frangos e o ciclo tenebroso assim se completa. É tudo inacreditavelmente complexo. A maioria dos filósofos deve ter crescido em granjas de galinha. Espera-se tanto de uma galinha e se acaba tão horrivelmente desiludido. Franguinhos, apenas começando a jornada da vida, parecem tão brilhantes e alertas e são na verdade tão horrivelmente estúpidos. Eles se parecem tanto com pessoas que acabam nos confundindo em nossos julgamentos sobre a vida. Se a doença não os mata, eles esperam até que suas expectativas estejam satisfatoriamente elevadas e então passam por baixo das rodas de uma carroça – voltando arrebentados e mortos para as mãos do Criador. Vermes infestam sua juventude, e fortunas têm que ser gastas em talcos curativos. Na vida adulta eu percebi como toda uma literatura foi construída sobre o assunto, sobre como fortunas podem ser feitas com a criação de galinhas. Ela é feita para ser lida pelos deuses que acabaram de comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal. É uma literatura esperançosa e declara que muito pode ser feito por pessoas simples e ambiciosas que possuam algumas galinhas. Não se deixe enganar por ela. Isto não foi escrito para você. Vá à procura de ouro nas montanhas congeladas do Alasca, deposite sua fé na honestidade de um político, acredite se quiser que o mundo está melhor a cada dia e que o bem triunfará sobre o mal, mas não leia nem acredite na literatura que é escrita a respeito da galinha. Não foi escrita para você.
Mas, contudo, divago. Minha história não se relaciona primariamente à galinha. Se contada corretamente, deverá se centrar no ovo. Por dez anos meu pai e minha mãe lutaram para fazer nossa granja lucrar, e então desistiram desta luta e começaram outra. Eles se mudaram para a cidade de Bidwell, Ohio, e embarcaram no negócio de restaurantes. Após dez anos de preocupação com chocadeiras que não chocavam, e com pequenas – e a seu próprio modo amáveis – bolinhas de penugem, que então passavam à seminua franguescência e daí para uma falecida galinescência, jogamos tudo para o alto e, juntando nossos pertences numa carroça, descemos pela estrada de Griggs até Bidwell, uma pequena caravana de esperança à procura de um novo lugar para começarmos nossa jornada de ascensão pela vida.
Devíamos ser um bando bem triste de se ver, não muito diferentes, eu imagino, de refugiados escapando de um campo de batalha. Minha mãe e eu andávamos pela estrada. A carroça que levava nossas coisas fora emprestada por um dia pelo Sr. Albert Griggs, um vizinho. Pelos lados saiam pernas de cadeiras baratas e no fundo da pilha de camas, mesas e caixas cheias de utensílios de cozinha, estava um caixote de galinhas vivas, e no topo de tudo o carrinho de bebê no qual me carregavam na minha infância. Por que ficamos com o carrinho de bebê eu não sei. Era improvável o nascimento de outra criança, e as rodas estavam quebradas. Pessoas de poucas posses se agarram fortemente àquelas que têm. Este é um dos fatos que fazem a vida tão desalentadora.
Meu pai ia em cima da carroça. Era então um homem careca de quarenta e cinco anos, um pouco gordo e, pela longa associação com minha mãe e com as galinhas, havia se tornado habitualmente silencioso e desanimado. Durante todos os dez anos na granja ele havia trabalhado como ajudante nas fazendas vizinhas, e a maior parte do dinheiro que ganhou foi gasta em remédios para curar as doenças das galinhas, na Maravilha Branca de Wilmer Contra a Cólera ou no Produtor de Ovos do Professor Bidlow ou em outros preparados que minha mãe via anunciados nas revistas de avicultura. Havia dois pequenos retalhos de cabelo na cabeça de meu pai, logo acima das orelhas. Eu me lembro que quando criança costumava ficar sentado, olhando para ele, enquanto ele dormia numa cadeira em frente ao fogão, nas tardes de domingo no inverno. Naquele tempo eu já tinha começado a ler uns livros e a ter minhas próprias ideias, e a faixa calva que subia até o topo de sua cabeça era, eu imaginava, como que uma larga estrada, uma estrada como as que Cesar deve ter construído, pela qual levava suas legiões de Roma até as maravilhas de um mundo desconhecido. Os tufos de cabelo que cresciam sobre as suas orelhas eram, eu pensava, como florestas. Eu ficava meio adormecido, meio acordado, sonhando que era uma coisinha pequena andando pela estrada até um belo e longínquo lugar onde não existiam granjas e onde a vida era um assunto alegre e sem ovos.
Alguém poderia escrever um livro sobre nossa fuga da granja para a cidade. Minha mãe e eu andamos todas as oito milhas – ela para se certificar de que nada cairia da carroça, e eu para ver as maravilhas do mundo. No assento da carroça, ao lado do meu pai, estava seu maior tesouro. Vou te contar o que era.
Numa granja de galinhas, onde centenas e até milhares de galinhas saem de ovos, coisas surpreendentes às vezes acontecem. Aberrações nascem dos ovos como nascem das pessoas. Este acidente não acontece com frequência – talvez em um de cada mil nascimentos. Nasce uma galinha, veja você, com quatro pernas, dois pares de asas, duas cabeças ou qualquer coisa do tipo. Estas coisas não vivem. Elas voltam rapidamente para as mãos momentaneamente trêmulas de seu Criador. O fato de que as pobres coisinhas não conseguiam sobreviver era uma das tragédias da vida para meu pai. Ele tinha a ideia de que, se conseguisse trazer à galinescência ou à galescência uma galinha de cinco pernas ou um galo de duas cabeças, estaria feita a sua fortuna. Ele sonhava em levar a maravilha pelas feiras rurais e ficar rico exibindo aquilo para outros granjeiros.
De alguma forma ele salvou todas as pequenas monstruosidades nascidas em nossa granja. Elas eram preservadas em álcool e colocadas cada uma em seu frasco de vidro. Estes frascos ele havia colocado cuidadosamente numa caixa, e em nossa jornada até a cidade ele a carregou ao seu lado no banco da carroça.  Ele guiava os cavalos com uma mão e com a outra se agarrava à caixa. Quando chegamos ao nosso destino, a caixa foi imediatamente descida e os frascos guardados. Durante todos os nossos dias como donos de um restaurante na cidade de Bidwell, Ohio, as aberrações em seus pequenos frascos de vidro ficaram numa prateleira atrás do balcão. Minha mãe às vezes protestava, mas meu pai era uma rocha quando o assunto era aquele seu tesouro. As aberrações, ele declarava, eram valiosas. As pessoas, ele dizia, gostavam de ver coisas estranhas e maravilhosas.
Cheguei a dizer que embarcamos no negócio de restaurantes na cidade de Bidwell, Ohio? Eu exagerei um pouco. A cidade propriamente ficava ao pé de uma colina baixa e à margem de um rio pequeno. A ferrovia não passava pela cidade e a estação ficava a uma milha para o norte num lugar chamado Pickleville. Havia ali um engenho de cidra e uma fábrica de picles perto da estação, mas antes da época em que viemos os dois já haviam falido. De manhã e à noite ônibus desciam até a estação por uma ladeira chamada Turner’s Pike, vindos do hotel na rua principal de Bidwell. Nossa ida para este lugar fora de mão para embarcar no negócio de restaurantes foi ideia da minha mãe. Ela falou sobre isso por um ano e então um dia foi lá e alugou um armazém vazio em frente à estação ferroviária. A ideia de que o restaurante seria lucrativo era dela. Os viajantes, ela dizia, estariam sempre por ali esperando os trens que partiam da cidade, e as pessoas da cidade desceriam até a estação para esperar pelos trens que chegavam. Eles viriam ao restaurante para comprar pedaços de torta e tomar café. Agora que estou mais velho eu sei que ela tinha outro motivo para nossa mudança. Ela tinha ambições para mim. Ela queria que eu subisse na vida, que eu entrasse numa escola da cidade e me tornasse um homem cosmopolita.
Em Pickleville meu pai e minha mãe trabalharam tão duro quanto sempre tinham feito. No começo havia a necessidade de fazer o lugar ficar parecido com um restaurante. Isso levou um mês. Meu pai fez uma prateleira na qual colocou latas de legumes. Ele pintou uma placa na qual colocou seu nome em grandes letras vermelhas. Embaixo do nome estava a áspera ordem – “COMA AQUI” – que era tão raramente obedecida. Uma vitrine foi comprada e enchida com charutos e tabaco. Minha mãe esfregou o chão e as paredes do salão.  Eu fui para a escola municipal e estava feliz de estar longe da granja e da presença desanimada daquelas galinhas de triste figura. Mesmo assim eu não era muito alegre. No fim da tarde eu caminhava da escola até em casa pela Turner’s Pike e me lembrava das crianças que eu via brincando no pátio da escola municipal. Uma tropa de garotinhas saiu pulando e cantando. Eu tentei aquilo. Descendo a estrada congelada eu ia pulando solenemente sobre uma perna só. “Pulando Faceiro até o Barbeiro”, eu cantava estridente. Então parei e olhei desconfiado ao redor. Eu tinha medo ser visto naquela alegria toda. Devia me parecer que eu estava fazendo alguma coisa que não devia ser feita por alguém que, como eu, foi criado numa granja de galinhas que a morte visitava diariamente.
Minha mãe decidiu que nosso restaurante deveria ficar aberto à noite. Às dez da noite um trem de passageiros passava por nossa porta indo para o norte, seguido por um trem de cargas local. A turma do cargueiro tinha que fazer baldeação em Pickleville e quando o trabalho acabava eles vinham até nosso restaurante procurando por café quente e comida. De vez em quando um deles pedia um ovo frito. Às quatro da manhã eles retornavam pelo norte e nos visitavam de novo.  Uma pequena troca começou a acontecer. Minha mãe dormia de noite e durante o dia cuidava do restaurante e alimentava nossos fregueses enquanto meu pai dormia. Ele dormia na mesma cama que minha mãe havia ocupado durante a noite e eu saía para ir à escola na cidade de Bidwell. Durante as longas noites, enquanto minha mãe e eu dormíamos, meu pai cozinhava as carnes que iam nos sanduíches que nossos fregueses levavam nas marmitas. E então uma ideia a respeito de subir na vida lhe veio à cabeça. O espírito americano tomou conta dele. Ele também ficou ambicioso.
Nas longas noites, quando havia pouco o que fazer, meu pai tinha tempo para pensar. Isso foi sua ruína. Ele decidiu que havia sido um homem malsucedido no passado porque não havia sido suficientemente alegre e que no futuro ele adotaria uma aparência alegre na vida. No começo da manhã ele subiu as escadas e se deitou na cama com minha mãe. Ela acordou e os dois conversaram. Da minha cama no canto eu escutei.
A ideia do meu pai era que ele e minha mãe deviam tentar entreter as pessoas que vinham comer em nosso restaurante. Agora não consigo lembrar suas palavras, mas ele dava a impressão de alguém que estivesse para se transformar, de algum jeito obscuro, num comediante. Quando as pessoas, principalmente gente jovem da cidade de Bidwell, vinham ao nosso estabelecimento, como acontecia em ocasiões muito raras, conversas brilhantemente divertidas seriam entabuladas.  Pelo que meu pai falava, deduzi que alguma coisa como o efeito da familiaridade de um alegre estalajadeiro era o seu objetivo. Minha mãe deve ter duvidado desde o começo, mas não disse nada que pudesse desencorajá-lo. A ideia do meu pai era que o gosto pela companhia dele e da minha mãe simplesmente brotaria do peito das pessoas mais jovens da cidade de Bidwell. Ao anoitecer, grupos alegres e luminosos desceriam cantando a Turner’s Pike. Eles invadiriam o estabelecimento com gritos de alegria e risadas. Haveriam canções e festividade. Não quero dar a impressão de que meu pai falava tão elaboradamente do assunto. Ele era, como eu disse, um homem pouco comunicativo. “Eles querem algum lugar para ir. Estou falando, eles querem algum lugar para ir”, ele dizia, de novo e de novo. Só chegava até aí. Minha própria imaginação preencheu as lacunas.
Por duas ou três semanas esta ideia do meu pai invadiu nossa casa. Nós não falávamos muito, mas em nossas atividades diárias tentamos honestamente fazer com que sorrisos tomassem o lugar dos olhares sombrios. Minha mãe sorria para os fregueses e eu, pegando a infecção, sorria para o nosso gato. Meu pai se tornou um tanto febril em sua ansiedade por agradar. Havia, sem dúvida, escondido em algum lugar dentro dele, o toque de um espírito performático. Ele não gastava muita munição com os ferroviários que ele servia à noite, mas parecia esperar pela chegada de algum rapaz ou alguma moça de Bidwell para mostrar o que podia fazer. No caixa do restaurante havia uma cesta de arame que estava sempre cheia de ovos, e aquilo devia estar bem ali na sua frente quando a ideia de ser divertido nasceu em seu cérebro. Havia algo de pré-natal quanto à forma em que os ovos se mantinham sempre ligados ao desenvolvimento da sua ideia. De algum jeito, um ovo arruinou seu novo impulso na vida. Uma noite, tarde da noite, fui despertado por um rugido de raiva vindo da garganta do meu pai. Minha mãe e eu nos erguemos rapidamente em nossas camas. Com mãos trêmulas ela acendeu uma lâmpada que ficava numa mesa perto da cabeceira. Lá embaixo a porta da frente do nosso restaurante bateu estrondosamente e em poucos minutos meu pai subiu tropeçando pela escada. Ele tinha um ovo na mão e sua mão tremia como se ele estivesse tendo um calafrio. Havia uma luz meio louca em seus olhos. Enquanto ele ficava ali nos encarando, eu tinha certeza de que ele atiraria o ovo em minha mãe ou em mim. Mas então ele colocou o ovo mansamente na mesa ao lado da lâmpada e caiu de joelhos ao lado da cama da minha mãe. Ele começou a chorar como um garotinho, e eu, carregado por sua aflição, chorei com ele. Nós dois enchemos a pequena sobreloja com nossas vozes lamuriosas. É ridículo, mas da cena que fazíamos eu consigo me lembrar apenas do fato de que a mão de minha mãe batia continuamente na faixa calva que passava pelo topo da cabeça dele. Eu me esqueci do que foi que minha mãe disse e de como ela o convenceu a contar o que havia acontecido lá embaixo. Sua explicação também agora me escapa. Eu me lembro apenas da minha aflição e medo e da faixa brilhosa sobre a cabeça do meu pai refletindo a luz da lâmpada enquanto ele se ajoelhava junto à cama.
Quanto ao que aconteceu lá embaixo. Por alguma razão inexplicável, eu sabia a história tão bem como se tivesse testemunhado a descompostura do meu pai. Com o tempo se chega a saber muitas coisas inexplicáveis. Naquela noite o jovem Joe Kane, filho de um comerciante de Bidwell, veio a Pickleville encontrar seu pai, que era esperado no trem das dez vindo do sul. O trem estava três horas atrasado, e Joe entrou no restaurante para reclamar e esperar por sua chegada. O cargueiro local entrou na estação e os carregadores comeram. Joe ficou sozinho no restaurante com meu pai.
Desde o momento em que entrou em nosso estabelecimento, o jovem de Bidwell deve ter ficado estupefato com o comportamento do meu pai. A ideia dele era que meu pai estava irritado por ele ficar ali à toa. Ele notou que o dono do restaurante estava aparentemente incomodado com sua presença e pensou em sair. Contudo, começou a chover e ele não arriscou uma longa caminhada de volta para a cidade. Comprou um charuto barato e pediu uma xícara de café. Ele tinha um jornal no bolso, que tirou e começou a ler. “Estou esperando o trem da noite. Está atrasado”, ele disse se desculpando.
Por um longo tempo meu pai, a quem Joe Kane nunca tinha visto antes, permaneceu calado, olhando o visitante. Ele sem dúvida estava sofrendo um ataque de medo de palco. Como acontece tantas vezes na vida, ele havia pensado tanto e tão frequentemente na situação que agora o confrontava que ficou um tanto nervoso em sua presença.
Por um lado, não sabia o que fazer com as mãos. Ele enfiou uma delas nervosamente por cima do balcão e cumprimentou Joe Kane. “Como é que vamos”, ele disse. Joe Kane largou seu jornal e o encarou. Os olhos de meu pai se iluminaram por sobre a cesta de ovos em cima do caixa e ele começou a falar. “Bem,” ele disse hesitantemente, “bem, você já ouviu falar no Cristóvão Colombo, hã?” Ele parecia estar irritado. “Esse Cristóvão Colombo era um trapaceiro”, ele declarou enfaticamente. “Ele falava em fazer um ovo ficar em pé. Ele falava isso, sim, e aí ele foi e quebrou o fundo do ovo.”
Parecia ao visitante que meu pai estava fora de si quanto à duplicidade de Cristóvão Colombo. Ele resmungava e xingava. Ele declarou que era errado ensinar às crianças que Cristóvão Colombo era um grande homem quando, afinal, ele havia trapaceado no momento crítico. Ele declarava que faria um ovo ficar em pé, e então, quando aceitaram o blefe, ele fez um truque. Enquanto resmungava sobre Colombo, meu pai pegou um ovo da cesta no caixa e começou a andar pra cima e pra baixo. Ele rolava o ovo entre as palmas das mãos. Sorria genialmente. Começou a murmurar palavras a respeito dos efeitos produzidos sobre um ovo pela eletricidade transmitida pelo corpo humano. Ele declarou que, sem quebrar sua casca, e por força apenas de rolá-lo continuamente entre as mãos, ele conseguiria fazer o ovo ficar parado em pé. Ele explicou que com o calor das mãos e o lento movimento de rolagem ele dava ao ovo um novo centro de gravidade, e Joe Kane ficou levemente interessado. “Eu já manuseei milhares de ovos,” meu pai disse. “Ninguém sabe mais sobre ovos do que eu.”
Ele colocou o ovo no balcão e o ovo caiu deitado. Ele tentou o truque de novo e de novo, sempre rolando o ovo entre as palmas das mãos e falando sobre as maravilhas da eletricidade  e as leis da gravidade. Quando, depois de meia hora tentando, ele conseguiu fazer o ovo ficar de pé por um momento, percebeu que o visitante não estava mais olhando. Quando conseguiu chamar a atenção de Joe Kane para o sucesso dos seus esforços, o ovo já havia caído de novo e rolado para o lado.
Aceso com sua vontade performática e ao mesmo tempo bastante desconcertado com o fracasso de sua primeira tentativa, meu pai então tirou os frascos com as monstruosidades avícolas da prateleira e começou a mostrá-las ao visitante. “O que você acharia de ter sete pernas e duas cabeças como esse camaradinha aqui?”, ele perguntou, exibindo o mais notável dos seus tesouros. Um sorriso alegre apareceu em seu rosto. Ele passou o braço pelo o balcão e tentou dar um tapa no ombro de Joe Kane, como ele havia visto os homens fazerem no Ben Head’s Saloon, quando era um jovem granjeiro  e ia até a cidade nas noites de sábado. O visitante ficara um tanto enojado com a visão daquela ave terrivelmente deformada boiando no álcool do frasco, e se levantou para sair. Dando a volta por detrás do balcão, meu pai segurou o braço do jovem e o devolveu a seu assento. Ele ficou um pouco nervoso e por um momento teve que virar o rosto e forçar um sorriso. Então colocou os frascos de volta na prateleira. Numa demonstração de generosidade, ele bondosamente compeliu Joe Kane a aceitar outro charuto e uma xícara de café novo por conta da casa. Aí pegou uma panela e encheu de vinagre, que guardava num garrafão embaixo do balcão, e declarou que faria um outro truque. “Vou esquentar este ovo nesta panela de vinagre”, ele disse. “E aí vou passar o ovo pelo gargalo de uma garrafa sem quebrar a casca. Quando o ovo estiver dentro da garrafa ele vai voltar à sua forma normal e a casca vai endurecer de novo. Então vou te dar a garrafa com o ovo dentro. Você pode leva-la com você pra qualquer lugar. As pessoas vão querer saber como você colocou o ovo na garrafa. Não diga nada pra elas. Deixe que elas imaginem. É assim que você se diverte com esse truque.”
Meu pai sorriu e piscou para o visitante. Joe Kane decidiu que o homem a sua frente era meio louco, mas inofensivo. Ele tomou a xícara de café que havia ganho e começou novamente a ler seu jornal. Quando o ovo já estava quente no vinagre, meu pai o levou numa colher até o balcão e buscou uma garrafa vazia no quarto dos fundos. Ele estava irritado porque o visitante não o olhava fazendo seu truque desde o começo, mas mesmo assim continuou alegremente com o serviço. Por um longo tempo ele lutou, tentando fazer o ovo passar pelo gargalo da garrafa.  Ele colocou a panela de vinagre de volta no fogão, pensando em reaquecer o ovo, mas queimou os dedos quando o pegou. Depois de um segundo banho em vinagre quente, a casca do ovo amoleceu um pouco, mas não o suficiente para cumprir seu propósito. Ele tentou e tentou, e um espírito de determinação desesperada tomou posse dele.  Quando ele pensou que afinal o truque se consumaria, o trem atrasado entrou na estação e Joe Kane começou tranquilamente a andar até a porta. Meu pai fez uma última tentativa desesperada de vencer o ovo e fazer com que acontecesse aquilo que estabeleceria sua reputação como alguém que sabia divertir os clientes que viessem ao seu restaurante. Ele intimidou o ovo. Ele tentou ser algo rude com ele. Ele xingava e o suor começou a surgir em sua testa. O ovo quebrou em sua mão. Quando o interior estourou em suas roupas, Joe Kane, que havia parado na porta, virou as costas e saiu rindo.
Um rugido de raiva subiu da garganta de meu pai. Ele sapateou e gritou um cordel de palavras inarticuladas. Pegando outro ovo na cesta do caixa, ele o atirou, errando por pouco a cabeça do jovem, que se desviou pela porta e escapou.
Meu pai subiu as escadas até minha mãe e eu, com um ovo na mão. Eu não sei o que ele pretendia fazer. Imagino que ele tivesse alguma ideia de destruí-lo, de destruir todos os ovos, e que queria que eu e minha mãe o víssemos começar. Entretanto, quando se viu na presença de minha mãe, alguma coisa aconteceu com ele. Ele deixou o ovo gentilmente na mesa e caiu de joelhos perto da cama como eu já tinha explicado. Depois ele decidiu fechar o restaurante pela noite e vir para cima e ir para a cama. Depois que fez isso, ele apagou a luz e depois de muita conversa resmungada tanto ele quanto minha mãe foram dormir. Suponho que eu tenha ido dormir também, mas meu sono foi intranquilo. Eu acordei de madrugada e por um longo tempo eu olhei para o ovo em cima da mesa. Eu imaginava por que os ovos tinham que existir e por que do ovo saía a galinha que novamente botava o ovo. A coisa entrou no meu sangue. E ficou lá. Eu imagino, porque sou o filho do meu pai. De alguma forma, o problema continua irresolvido em minha cabeça. E isto, concluo, é apenas mais uma evidência do completo e definitivo triunfo do ovo – pelo menos até onde isto diz respeito à minha família. 
Sherwood Anderson (1876-1941), contista e romancista norte-americano, foi um dos precursores da chamada “Geração Perdida”. Amigo e leitor de Gertrude Stein, com quem manteve extensa correspondência, foi responsável pela publicação dos primeiros trabalhos de Hemingway e Faulkner, influenciando também escritores como Norman Mailer e J. D. Salinger. O Triunfo do Ovo foi publicado originalmente em 1920 pela revista The Dial, que no ano seguinte concedeu ao autor seu primeiro prêmio literário – seguido, em 1922, por T. S. Eliot. Em 1923, foi republicado sob o título The Egg [O Ovo], no volume The Triumph of the Egg: A Book of Impressions from American Life in Tales and Poems.  Como lembra Irving Howe no prefácio a Winesburg, Ohio (único livro de S. Anderson publicado no Brasil), O Triunfo do Ovo é “o maior de seus contos isolados (…) conseguindo unir uma superfície de farsa a uma insinuação de tragédia”, sendo uma “obra-prima americana”.


domingo, 20 de setembro de 2015

65 – Episódio no lago Genebra – S. Zweig

Stefan Zweig (1881-1942), escritor austríaco, conhecido e respeitado em todo o mundo, foi obrigado a abandonar seu pais em razão do antissemitismo. Em 1940, depois de viver em Londres e Nova York, foi viver em Petrópolis onde ele e sua mulher Lotte Altmann optaram pelo suicídio para fugir à tristeza causada pela guerra e pela perseguição nazista.

Episódio no lago de Genebra
Stefan Zweig

Às margens do lago de Genebra, perto da pequena cidade Suíça de Villeneuve, numa noite de verão do ano de 1918, um pescador, que, remando, se adiantara pelo lago, avistou um objeto estranho a boiar no meio das águas, e, chegando mais perto, reconheceu uma embarcação feita de caibros ligados ligeiramente, que um homem nu, com gestos desajeitados, impelia com uma tabua a guisa de remo. Surpreso, o pescador aproximou-se, auxiliou o homem a passar para o seu bote, cobriu-lhe a nudez provisoriamente com redes e procurou falar com o infeliz, trêmulo de frio, que, tímido e esquivo, se agasalhava num canto da embarcação. Ele respondia num idioma estranho, do qual nenhuma palavra se assemelhava às do pescador . Este desistiu então de novos esforços, recolheu as redes e seguiu, com fortes golpes de remo, para a margem.
À medida que na luz difusa se divisava a margem, começou a clarear-se o rosto do homem nu, uma risada infantil desabrochou na curva barbada de sua boca larga, a mão se ergueu num gesto e o desgraçado balbuciou uma palavra, que soava como Rossiya, com entonação cada vez mais jubilosa, quanto mais perto a proa se acercava da margem. Finalmente o bote rangeu na areia da praia; os parentes femininos do pescador, que esperavam a presa molhada, se espalharam aos gritos, como outrora as criadas de Nausikaa, ao verem o homem nu na rede de peixe; aos poucos, atraídos pela estranha nova, reuniram-se os diversos homens da aldeia, aos quais se ajuntou breve, cheio de si, em plena atividade de sua função, o prefeito. Tinha como certo, deduzido de sua experiência do tempo de guerra e das varias horas de instrução, que devia ser um desertor, vindo a nado da margem francesa, e já se preparava para um interrogatório. Mas essa tentativa circunstancial perdeu breve em valor e dignidade, pelo fato de que o homem nu (a quem um dos moradores havia atirado um paletó e uma calça de brim) repetia cada vez mais medroso e inseguro a exclamação interrogativa “Rossiya?” “Rossiya?” Um pouco aborrecido pelo insucesso, o prefeito ordenou-lhe com gestos que não permitiam dúvida, que o seguisse. Cercado, aos gritos, pela entrementes desperta garotada, levaram o homem molhado de pés descalços, que tremia dentro do paletó e das calças, para, a casa de banho e lá o detiveram. Ele não se opunha, não dizia palavra; apenas os seus olhos claros escureceram com a decepção e os seus ombros altos encolheram-se como sob um golpe receado.
A nova da pescaria humana, entretanto, se espalhara até aos hotéis mais próximos, e atraídos pelo aprazível episódio, que interrompia a monotonia do dia, algumas senhoras e cavalheiros, vieram admirar a criatura selvagem. Uma dama presenteou-o com confeitos, que ele deixou de lado, desconfiado como um macaco; um senhor tirou um instantâneo fotográfico; todos tagarelavam e conversavam alegres em redor dele, até que, finalmente, o gerente de um dos grandes hotéis, que vivera muito tempo no estrangeiro, conhecendo vários idiomas, dirigiu ao atemorizado palavras em alemão, italiano, inglês, e finalmente, em russo. Mal ouviu os primeiros sons do seu idioma materno, o pobre homem ergueu-se de um pulo e um sorriso largo rasgou-lhe o rosto bondoso de uma orelha a outra e, repentinamente, seguro e franco, relatou toda a sua história. Era muito comprida e embrulhada nos seus detalhes, nem sempre compreensíveis ao seu intérprete casual, mas em linhas gerais o destino desse homem fora o seguinte:
Lutara na Rússia e fora, um belo dia, com milhares de outros, embarcado em comboios, viajando para muito longe; depois embarcado em navios, seguindo por mais tempo através de países onde fazia tanto calor, que, como ele se expressava, os ossos eram assados até amolecer a carne. Finalmente atracaram em um porto e foram, novamente, embarcados em comboios. e tiveram repentinamente que tomar uma colina, sobre a qual nada sabia, pois, logo ao principio, fora atingido por um balaço na perna. Aos ouvintes, a quem o interprete traduzia as perguntas e as respostas, era claro que este fugitivo pertencia àquela divisão russa na França, que foi mandada através de meio mundo, pela Sibéria e Vladivostok, até a frente francesa. Além de uma espécie de compaixão, ele provocou, ao mesmo tempo, a curiosidade de saber o que o teria conduzido a tentar esta fuga estranha. Com um sorriso meio ingênuo e meio astuto, o russo contou solicito que, recém-curado, havia perguntado aos enfermeiros onde ficava a Rússia, e eles lhe haviam indicado a direção, que ele pouco mais ou menos guardara pela posição do sol e das estrelas, e assim fugira secretamente, caminhando de noite e de dia, escondendo-se das patrulhas nas medas de feno. Durante dez dias alimentara-se de frutas e de pão esmolado, até que, finalmente, chegara a este lago. Agora suas declarações se tornavam menos compreensíveis; parecia evidente que ele, originário das proximidades do lago Baikal, imaginara que na margem oposta, cujas linhas movimentadas vira na luz do entardecer, deveria situar-se a Rússia. Em todo caso, havia roubado de uma choupana dois caibros, e sobre eles, deitado de barriga, com a ajuda de uma tábua à guisa de remo, atravessara o lago, onde o achara o pescador. A pergunta tímida com que terminara a sua exposição pouco clara, era se amanha já poderia estar em casa. Isso provocou, pela sua ingenuidade, forte gargalhada, que logo cedeu lugar a uma comovida compaixão. E cada um meteu entre as mãos do pobre, que olhava em torno, indeciso e desconsolado, algumas moedas, ou notas de banco.
Entretanto, chegava, após um entendimento telefônico com Montreux, um alto oficial da polícia, que, não com pouco esforço, anotou em protocolo o ocorrido. Não só o intérprete casual se revelara incompetente, mas tornava-se também evidente (e para um ocidental, incompreensível) a ignorância desse homem, cujo conhecimento de si próprio mal ultrapassava o do seu primeiro nome, Boris, e que de sua aldeia natal apenas tinha uma noção confusa: fora, com outros, servo do Duque de Hetschersky (ele dizia servo, se bem que há uma geração a casta tivesse sido abolida) e vivia distante cinquenta verstas do grande lago, com a mulher e três filhos. Então, começou a deliberação sobre o seu destino, enquanto ele, com o olhar apático e humilde, permanecia no meio dos contendores: uns opinavam que se devia envia-lo a legação russa, em Berna, mas outros receavam, dessa medida, um reenvio para a França; o oficial de polícia explicava todas as dificuldades da questão, se devia ser tratado como desertor ou como estrangeiro sem documentos; o escrivão do lugar afastou desde logo a possibilidade de eles poderem sustentar ou abrigar o estrangeiro. Um francês gritou, agitado, que não se fizesse tantas cerimônias com esse miserável desertor: que trabalhasse ou então fosse reenviado; duas mulheres objetaram violentamente que ele não era culpado de sua infelicidade e que era um crime tirarem as criaturas de suas terras e dos seus lares para enviá-las a países estrangeiros. Já ameaçava surgir desse motivo casual uma disputa política, quando, repentinamente, um senhor de idade, dinamarquês, intrometeu-se declarando com energia que pagaria o sustento do desconhecido por oito dias e que, entretanto, as autoridades a justassem com a legação uma solução qualquer que tanto satisfizesse aos desígnios oficiais como aos particulares.
Durante a discussão, cada vez mais agitada, o olhar esquivo se erguia, cada vez mais inquieto, e permanecia preso aos lábios do gerente, o único neste tumulto, a quem ele podia, tornar compreensível o seu destino. Parecia sentir vagamente o redemoinho que sua presença provocava, e ainda inconsciente quando diminuiu o barulho, ergueu implorante, nesse silêncio, as duas mãos para ele como as mulheres diante de um santo. 0 comovente desse gesto atingiu irresistivelmente a todos. 0 gerente adiantou-se cordialmente para ele e sossegou-o, dizendo não tivesse medo, pois poderia permanecer ali sem ser importunado, e pelos primeiros tempos, as suas despesas de hospedagem seriam custeadas.
0 russo queria beijar-lhe a mão, ao que, porém, o outro se subtraiu, dando um passo para trás. Depois indicou-lhe a casa de um vizinho, uma pequena estalagem de aldeia, onde teria cama e alimento, e dizendo-lhe amavelmente mais algumas palavras carinhosas e tranquilizadoras, subiu outra vez à rua que levava ao hotel.
Imóvel, o fugitivo fitava-o fixamente e a medida que o único entendedor do seu idioma se afastava, escurecia-se-lhe o rosto, já desanuviado. Com olhares devoradores seguiu o que se afastava até lá em cima, no hotel, situado no alto, sem fazer caso das outras pessoas, que o observavam, admiradas ou a rir dos seus modos estranhos. Quando um deles o tocou compadecido, apontando para a estalagem, os seus pesados ombros como que se agacharam e de cabeça inclinada entrou pela porta. Abriram-lhe a sala comum. Ele encostou-se a mesa, sob a qual a criada depusera um copo de aguardente, como saudação, e ficou sentado aí toda a manha, imóvel e com os olhos turvos. Incessantemente os garotos da aldeia espiavam pela janela e gritavam-lhe qualquer coisa — ele não erguia a cabeça. Os que entravam, olhavam curiosos; mas ele ficava imóvel, o olhar fixo na mesa, de costas vergadas, envergonhado e tímido. E quando, ao meio dia, na hora da refeição, uma turma de gente alegrava o compartimento com risadas, quando centenas de palavras, que o desconhecido não compreendia, esvoaçavam-lhe em torno, ele reconhecendo o horror de ser estranho, sentado surdo e mudo no meio do movimento geral, sentia as mãos lhe tremerem tanto que mal podia erguer a colher com a sopa. Subitamente uma grossa lagrima correu-lhe pela face, caindo na mesa. Acanhado, olhou em redor. Os outros o notaram, calaram abruptamente. Ele sentia vergonha: cada vez mais inclinava a cabeça pesada e desgrenhada sobre a madeira negra. Até ao anoitecer ficou sentado assim, as mãos pesadamente pousadas sobre a mesa. Gente ia e vinha mas ele não a sentia como os estranhos também não o sentiam, Todos o esqueciam e ninguém reparou que, ao escurecer, se ergueu repentinamente e, bronco como um animal, subiu o caminho para o hotel. Uma hora ou duas esteve parado a porta, com o gorro respeitosamente na mão, sem tocar pessoa com o olhar: finalmente, um dos moços de recado reparou nessa figura rara, que enraizara como um tronco de árvore, estarrecida e negra, diante da entrada cintilante de luzes do hotel, e chamou o gerente. Novamente um pequeno clarão nasceu no seu rosto sombrio, quando em seu idioma o saudaram.
– Que queres, Boris?, perguntou o bondoso gerente.
– Perdoa-me. . . balbuciou o fugitivo. Eu só queria saber. . . se posso ir para casa.
– Decerto, Boris, podes ir para casa, sorriu o interpelado.
– Já, amanhã?
Agora, o outro também se tornou sério, o sorriso desvaneceu-se no seu rosto, tão vivamente foram ditas estas palavras.
– Não, Boris... ainda não. Quando acabar a guerra..
– E quando? Quando acaba a guerra?
– Deus o sabe. Nós homens não o sabemos.
– E, então? Não posso ir antes?
– Não, Boris.
– É tão longe?
– Sim.
– Muitos dias ainda?
– Muitos dias.
– Irei mesmo assim, senhor! Sou forte. Eu não me canso.
– Mas tu não podes, Boris. Há mais uma fronteira no meio.
– Uma fronteira?
Ele olhou torvamente. A palavra lhe era estranha.
Depois disso, novamente, com rara tenacidade:
– Eu irei a nado.
0 gerente quase sorriu. Mas lhe doía, e esclareceu suavemente:
– Não, Boris, isso não pode ser. Uma fronteira é um pais estranho. Os homens não te deixam passar.
– Mas eu não lhes faço nada! Joguei fora a minha carabina. Por que não me deixam ir para junto de minha mulher, se lhes peço pelo amor de Cristo?
0 gerente tornou-se cada vez mais sério. Sentiu-se amargurado.
— Não, disse ele, não te deixarão passar, Boris. Os homens agora não atendem mais a palavra de Cristo.
Mas que devo fazer, senhor? Não posso ficar aqui! Os homens aqui não me entendem e eu não os entendo também.
– Tu o aprenderás, Boris.
— Não, senhor — o russo inclinou a cabeça. — Eu não posso aprender nada. Só sei trabalhar no campo, fora isso não faço nada. Que devo fazer aqui? Eu quero ir para casa! Mostre-me o caminho.
– Agora não há caminho, Boris.
Mas senhor, eles não me podem proibir de voltar para junto de minha mulher e meus filhos! Já não sou mais soldado!
– Eles te prendem, Boris.
– E o Tzar ? perguntou repentinamente, tremulo de expectativa e respeito.
– 0 Tzar não existe mais, Boris. Os homens o depuseram.
– O Tzar não existe mais? E olhou para o outro estupefato. Um ultimo clarão se apagou no seu olhar, depois disse abatido
– Não posso, pois, ir para casa?
– Ainda não. Temos que esperar, Boris.
– Muito?
– Não sei.
Cada vez mais sombrio tornou-se o rosto no escuro.
– Já esperei tanto tempo! Não posso esperar mais. Mostre-me o caminho. Quero tentá-lo.
— Não há caminho, Boris. Na fronteira te prendem. Fica aqui, pois encontraremos trabalho para ti.
— Os homens não me compreendem aqui, e eu não os compreendo — repetiu teimoso. Não posso viver aqui! Ajude-me senhor.
– Eu não posso, Boris.
— Ajude-me pelo amor de Cristo, senhor. Ajude-me, não o suporto mais.
– Não posso, Boris. Ninguém te pode ajudar agora.
Pararam mudos, um em frente do outro. Boris girava o gorro nas mãos.
– Por que me tiraram de casa? Disseram que eu tinha que defender a Rússia e o Tzar. Mas a Rússia está longe daqui, e tu dizes o que fizeram ao tzar. . . como dizes ?
– Depuseram-no.
– Depuseram-no. (Sem compreender repetiu a palavra). Que devo fazer agora, senhor? Tenho que ir para casa. Meus filhos gritam por mim. Não posso viver aqui! Ajude-me, senhor! Ajude-me!
– Eu não posso, Boris.
– E ninguém pode ajudar-me?
– Agora, ninguém.
0 russo abaixou ainda mais a cabeça, depois disse bruscamente com voz abafada: — Agradecido, senhor, e voltou-se.
Devagar, desceu pelo caminho. 0 gerente seguiu-o longo tempo com os olhos e admirou-se de que ele não fosse em direção da estalagem, mas sim dos degraus que dão para o lago Soltou um profundo suspiro e entrou para cuidar do seu trabalho no hotel.
O acaso quis que o mesmo pescador encontrasse na manhã seguinte o cadáver nu do afogado. Ele tinha deposto cuidadosamente a calça, o gorro e o paletó presenteados na margem e entrara na água tal como dela saíra. Registrou-se o acontecimento e como não se sabia o nome do desconhecido, foi colocada uma pequena e barata cruz de madeira na sua sepultura, uma dessas pequenas cruzes de destinos sem nome, de que a nossa Europa esta coberta de um lado a outro da superfície. (1918)