segunda-feira, 3 de outubro de 2016

099 – Matricidio – G.Csáth

Géza Csáth, pseudônimo de József Brenner (1887-1919), médico e escritor húngaro que se caracterizou por contos sombrios.
Matricídio
Géza Csáth
Tradução de Paulo Schiller

Para Ernö Osvát
A morte precoce do pai de crianças bonitas e saudáveis certamente causará problemas. Witman tinha dois filhos, de quatro e cinco anos de idade, quando numa tarde ensolarada de novembro, com um pouco de vento, ele disse adeus ao mundo. Morreu sem muita dificuldade, e, de um modo geral, não deixou muito pesar atrás de si. A esposa, a viúva, era uma mulher bonita, mas de natureza pacata e extremamente egoísta. Nunca torturara o marido, mas além de certo ponto ela jamais o amara. Isso é muito mais desculpável entre homens do que entre mulheres, cuja vida inteira é justificada, salva ou tornada mais valiosa por esse sentimento forte, embora em muitos aspectos sem sentido. Entretanto, temos de perdoar a senhora Witman porque ela afinal trouxe ao mundo dois rapazes bonitos e fortes. Na rua em que eles moravam, em uma casa de dois andares, dilapidada, com uma escadaria de madeira, a senhora Witman, loira, vestida de luto, era decididamente respeitada. Embora a mulher tivesse a cintura fina e olhos infantis. Como ser humano ela não era nem boa nem má. Beijava os filhos tão pouco quanto batia neles. Ela e eles tinham pouco a ver uns com os outros, como aos poucos foi ficando cada vez mais claro.
Os garotos costumavam brincar no vizinho. Não apareciam durante as longas tardes e até altas horas da noite. Falavam pouco e apenas entre si. Em seus pequenos olhos pretos brilhava a alma de Witman, o pai. Subiam em sótãos, remexiam caixas velhas, maltratavam gatos. Muitas vezes passavam pelas fendas dos sótãos para fora, para os telhados e as saídas de incêndio, até as chaminés de formas estranhas, cheirando a fumaça. Enquanto durava o verão eles se banhavam no rio e capturavam pássaros na mata. A senhora Witman lhes dava de comer e roupas de baixo limpas no sábado a noite. Ela também os acompanhava à escola para fazer a matrícula. Por outro lado, ela vivia silenciosamente, e, silenciosamente, engordava. Seis meses depois da morte do marido conheceu um funcionário de banco, um rapaz jovem e bonito, com o queixo barbeado, ombros largos, e a pele do rosto fina, cor-de-rosa e feminina; a senhora Witman o desejava, e embora lhe custasse e a cansasse, ela flertava com ele. O homem, por tédio e preguiça, não largou a mulher.
Os filhos de Witman pouco se preocupavam com a mãe e o amante; tinham planos e afazeres. Entraram no ginásio. Espicharam, os músculos se tencionaram como cabos de aço sobre os ossos finos e fortes. Faziam os deveres de casa com facilidade, depois de se levantarem, em um quarto de hora. A escola não tinha nenhum papel na vida deles. Consideravam a vida uma ocupação grandiosa e solene e, sem consciência e cedo, delinearam o tempo segundo as necessidades deles.
Em um canto oculto do sótão eles instalaram uma pequena cozinha de feitiçaria. Lá eles reuniam flechas, espingardas de balas de borracha, facas, alicates, cordas e parafusos escondidos e organizados. Nas noites de outono com vento, depois que jantavam — a mãe mergulhava em um romance alemão encadernado em vermelho —, com passos silenciosos e rápidos eles desciam para a rua, corriam, percorriam meia cidade. Espreitavam. Passavam uma corda no pescoço de um cachorro perdido e o arrastavam para casa. Amarravam a boca do animal e o estendiam sobre uma tábua. A lanterna diminuta deles, como um mundo distante de um castelo mal-assombrado da floresta, brilhava na escuridão marrom, úmida do sótão. Os dois rapazes se entregavam ao trabalho com uma lentidão nervosa. Abriam o peito do cachorro, faziam o sangue escorrer, e durante o trabalho ouviam os gemidos terríveis, impotentes, do animal. Olhavam seu coração batendo, pegavam na mão a pequena maquina quente, em movimento, e com picadas miúdas danificavam as artérias e as válvulas.
Tinham um interesse inesgotável pelo mistério da dor. Mais de uma vez eles se torturaram mutuamente, após acordo prévio, com surras ou beliscões. A tortura de animais se tornou uma paixão séria e natural. Exterminaram uma legião de gatos, galinhas, patos, de modos estranhos, sempre mais elaborados. E das coisas deles ninguém fazia ideia. Sabiam se esconder com segurança, com prudência e sabedoria viril.
Por outro lado, poucos na casa se preocupavam com eles. No primeiro andar morava um velho funcionário da justiça que mal ficava em casa, e uma costureira que trabalhava com quatro moças. No segundo andar, além dos Witman, morava somente o proprietário da casa. Um homem bastante jovem, filho do antigo dono, que não se ocupava muito da casa nem dos moradores. No térreo havia um vidraceiro e uma loja de tecidos. Ninguém sabia quando havia algum freguês nessas lojas. Os rapazes Witman tomaram conta da casa. No pequeno quintal sujo nunca se via ninguém. O sumagre que ficava no meio do quintal, e havia tantos anos produzia seus brotos, folhas e flores, provavelmente sentia que as coisas não andavam bem. A vida, porém, na pequena casa de dois andares progredia, como nos outros lugares. Entretanto, entre os moradores apenas os dois rapazes se divertiam, sempre ousavam pensar no amanhã e no depois de amanhã.
Certa noite de setembro eles chegaram em casa vermelhos, ofegantes. Carregavam uma coruja amarrada. Encontraram-na no sótão da velha igreja. Preparara-se durante uma semana, combinaram como a apanhariam e como a matariam. Conseguiram. Os olhos deles brilhavam, nos ombros fortes sentiam uma força viril quando, atravessando ruas escuras, chegaram em casa com o troféu. A coruja os interessava havia muito tempo. Sua cabeça parecia se resumir a dois grandes olhos. Em seu cérebro se abrigavam antigas histórias extraordinárias. Chegava a viver mais de cem anos… Eles precisavam de uma coruja, precisavam…
Lá estava ela. Tiraram uma a uma as penas de seu peito, e observaram as chamas coloridas da dor se acendendo nos olhos do pássaro. Depois amarraram com cordas as bases das asas, as garras, o bico, e, assim, imobilizada, contemplaram-na durante muito tempo, mudos. Comentaram que o pássaro era na verdade apenas uma casa para onde o sofrimento se mudara, e lá moraria até que eles matassem a coruja. Mas onde ele morava? Muito provavelmente em sua cabeça. Depois decidiram que durante a noite eles a deixariam lá porque dessa forma o sono deles seria belo e excitante. Na verdade, despiram-se agitados e em seguida ficaram escutando se do sótão vinha algum som. Sentiam que certa tensão tomava conta de seus músculos, como se as forças em vão desperdiçadas pelo animal amarrado, em convulsão, se derramassem sobre eles. Assim adormeceram.
No sonho percorreram juntos grandes campos, montados em imensos cavalos brancos, galopando loucamente. Alçavam voo de picos vertiginosamente altos e atravessavam a nado mares quentes, sangrentos. Toda a dor e o sofrimento existentes na terra estremeciam, uivavam e gritavam sob as patas dos cavalos.
Ao despertar, uma manhã de sol sorriu para eles; saltaram leves da cama. Pediram o café da manha da empregada, porque a senhora Witman costumava dormir até as dez horas. Correram para a coruja e em uma hora acabaram com ela. Primeiro arrancaram seus olhos, em seguida abriram seu peito, depois de libertarem a boca do pássaro porque queriam ouvir sua voz. O som, o som terrível, de enregelar os ossos, superava toda intensidade imaginável, mas por isso mesmo o trabalho tinha de ser finalizado logo, porque temiam que ele pudesse ser ouvido na casa. De um modo geral estavam muito satisfeitos, a coisa tinha compensado o empenho.
De tarde, o rapaz mais velho saiu de casa sozinho. Descobrira algo em outra casa. Tinha visto passar na janela uma moça seminua que se penteava numa camisola cor-de-rosa. Ele se voltara da esquina para olhar de novo o quarto. A moça agora estava de pé no fundo do quarto, seus ombros brancos brilhavam à luz do sol. O rapaz entrou pelo portão da casa. Uma velha veio em sua direção. mas, ao mesmo tempo, no final do corredor lateral apareceu a moça que se penteava. Ela caminhou na direção do rapaz e disse que desejava vê-lo mais de perto porque gostara muito dele. A moça acariciou com delicadeza o rosto límpido do rapaz magro, de calças curtas, que num gesto brusco abraçou seu pescoço e grudou os lábios no rosto dela. Nisso, portas se abriram silenciosamente a toda volta e cabeças de moças jovens os olharam; rapidamente, porém, elas recolheram as cabeças sem fazer ruído. No final do corredor ardia uma lamparina de vidro azul, e a moça levou o mais velho dos rapazes Witman nessa direção. Eles baixaram a cortina, o brilho amarelado do sol da tarde se filtrou no quarto perfumado. A moça se estendeu sobre o tapete e, imóvel, permitiu ser beijada, abraçada. O filho de Witman pensou na coruja e se perguntou por que tudo que era belo, primoroso e excitante na vida era também terrível, inexplicável e sangrento. Entretanto, ele logo se cansou da brincadeira. Levantou-se frustrado, esperou e olhou a mulher com os olhos bem abertos. Em seguida, ele se despediu apressado, mas prometeu que voltaria outra hora. Perguntou o nome da moça, e por fim disse:
— Até logo.
Naquele dia os dois rapazes Witman vagaram até tarde da noite pelos campos. Não falaram sobre os acontecimentos. O mais velho contou que no ar viviam seres que se pareciam com os homens, e quando soprava um vento fraco se podia sentir seus corpos flutuando. Depois eles pararam, fecharam os olhos e estenderam os braços. O mais velho afirmou que à sua volta pairavam moças imensas, de corpo macio, etéreo, e elas tocavam seu rosto com as costas e com os seios. Passados alguns minutos o irmão declarou que também sentia as moças. Em casa, na cama, eles continuaram falando das mulheres etéreas. Elas entraram. Esgueiraram-se sem fazer ruído, mal tocaram o vidro da janela com as costas aveludadas, e, levitando, flutuando, se deitaram junto deles sobre a colcha, sobre os travesseiros. Elas curvaram o pescoço sobre a boca e o rosto dos rapazes, e em seguida escorregaram mais para baixo com movimentos cansados, preguiçosos e leves. Passaram a noite toda com eles no quarto. Abraçavam-nos curvadas, flutuavam sorrindo na direção da janela, depois de novo deslizavam na direção deles, deitavam-se e se aninhavam sobre eles. Somente quando o dia irrompeu no quarto com raios brilhantes e quentes, elas se distanciaram pela janela, com um murmúrio lento, sonhador, arrastado, e se desfizeram no ar fresco da manhã.
Nesse dia os dois rapazes foram a casa da moça juntos. Na manhã quente de maio, eles passaram por lá voltando da escola e se esgueiraram pelo portão. A mulher veio na direção deles sorrindo, despenteada, mas com uma risada fresca, alta, e levou os Witman para seu quarto. Eles depuseram os livros, se estenderam sobre o tapete, puxaram a moça para junto deles e a beijaram, morderam, abraçaram. A mulher riu de boca fechada, e fechou os olhos. Os olhos dos rapazes de súbito se cruzaram. Os dois começaram a bater nela. A mulher agora ria de boca cheia, como se lhe fizessem cócegas. Os dois Witman se apoderaram da moça, beliscaram-na, prenderam, rolaram e a torturaram. A mulher, imóvel, ofegante, permitiu que fizessem com ela o que quisessem. Os rapazes com o rosto vermelho se esticaram sobre seu robe de seda cor-de-rosa. Mais tarde, eles recolheram os livros, e disseram a moça que ela era a jovem mais bela que já viram. Irén respondeu que gostava deles, mas caso viessem outra vez que lhe trouxessem algo, um doce, uma flor. O Witman mais velho disse que ela se contentaria com o que trouxessem. A mulher acompanhou os rapazes até o portão e beijou-lhes a mão.
Depois do almoço eles se trancaram no quarto e falaram sobre a moça; concordaram que haviam experimentado algo que superava incomparavelmente todas as aventuras que haviam tido antes, até mesmo a tortura da coruja.
– Somente por isso vale a pena viver — disse o menor.
– É o que tanto procuramos — declarou o outro.
Em uma tarde linda e quente de maio eles partiram para a escola sem livros. No entanto, foram direto para a casa, para a janela da moça. Não encontraram ninguém. Voltaram: da segunda vez, a cortina se moveu e a moça olhou para fora. Eles pararam. A moca abriu a janela.
– Vocês vem amanhã de manhã? — ela perguntou com um rosto sorridente. — Venham amanhã, tragam alguma coisa. Ela acenou e fechou a janela.
Os rapazes ficaram vermelhos e palpitantes à visão dela.
– Vamos lhe trazer joias, pulseiras ou anéis de ouro — disse depois de um longo silêncio o mais velho.
– Sim, mas de onde?
– Nossa mãe tem, vamos pedir a ela.
– Ela não vai dar.
– Vamos arranjar a chave do armário de vidro.
– Ela não vai dar a chave.
– Mas ela tem quatro pulseiras de ouro e sete anéis.
Nos dedos ela também usa três anéis.
De noite eles rodearam o armário examinando as preciosidades da mãe. Havia entre elas uma pulseira cravejada de perolas e rubis vistosos. Pediram a senhora Witman que lhes mostrasse as coisas. A mulher — loira, frágil, de natureza teimosa — os expulsou da sala. Tinha um pouco de medo dos filhos, sentia-os muito distantes dela.
Os rapazes correram para a rua para discutir.
– Não podemos pedir a ela.
– De modo algum.
– Ela não vai dar.
– Não, não.
– Temos de arrombar o armário.
– Ela vai acordar, vai fazer barulho, e nos vamos continuar sem nada.
– Ela não vai acordar!
O coração deles estava cheio de ódio da mãe loira, de olhos azuis, preguiçosa e gorda, desejavam torturá-la também.
– Eu vou quebrar uma das laterais de vidro com o cabo do meu canivete e não vai haver mais nenhum outro barulho. Você ilumina com a lanterna, e eu vou pegar todas as pulseiras e anéis.
  Mas não vamos levar tudo!
– Sim, vamos levar tudo; ela não precisa, pode ficar sem nada, ela pode chorar a vontade depois.
Subiram correndo para o sótão, deram uma busca entre as ferramentas e pegaram uma talhadeira, um alicate, verificaram a lanterna e puseram tudo nos bolsos. Em seguida, desceram correndo e se deitaram. Porém, antes espiaram pela fenda debaixo da porta e viram que o quarto da mãe estava escuro. Enquanto se despiam decidiram que só voltariam por volta da meia-noite. Não tiraram as meias, para não fazerem barulho quando andassem, e se deitaram despertos, mas serenos. Apoiados nos cotovelos fizeram pianos, de manha, depois da escola iriam correndo para a casa da moça. Esconderiam as preciosidades no sótão e as levariam aos poucos. De manhã, negariam tudo, e, se a mãe quisesse surrá-los, fugiriam. Sentiram-se felizes ao pensar que ela ficaria furiosa e choraria impotente, por não encontrar as joias. Nem por um instante consideraram a possibilidade de que ela pudesse acordar. Depois saíram da cama, abriram a janela, e se debruçaram na noite morna de maio. Os latidos dos cães, o estrépito dos carros que de tempos em tempos repartiam a noite em capítulos não encurtaram a passagem lenta das horas.
Quando por fim o relógio da torre bateu meia-noite, lentamente, eles começaram a se preparar. Acenderam a lanterna, o Witman mais jovem pegou o alicate, a serra e a lanterna, o outro somente o canivete com a longa lamina aberta. Ele foi na frente. Esgueiraram-se calmos e seguros pela sala de jantar, em seguida o mais velho se adiantou e abriu a porta que dava para o quarto da senhora Witman. As dobradiças não rangeram nem um pouco. Respiraram aliviados. Voltada para a parede, a senhora Witman dormia serena, só se via suas costas gordas, largas, cobertas por uma manta tricotada. Postaram-se diante do armário.
O garoto ergueu o canivete para golpear a lateral do armário. Ensaiou por alguns instantes e depois bateu no vidro. O estridor foi terrivelmente forte, forte como se alguém tivesse atirado uma porção de copos de vidro em uma caixa pela janela alta de um sobrado. A senhora Witman se mexeu, se virou, em seguida, apoiando-se nos cotovelos, abriu os olhos. Seu rosto expressou raiva e ódio obstinados, mas ela não chegou a falar porque o rapaz mais velho saltou sobre a cama e a golpeou no peito com o canivete. A mulher caiu para trás e sua mão direita se agitou no ar. O menor também já estava na cama e prendeu as pernas dela. O maior tirou a lamina sangrenta do peito da mãe e a golpeou de novo. Não era necessário, porque ela estava morta. De seu peito o sangue corria lentamente debaixo da colcha.
– Bern, isso está resolvido — disse o mais velho —, agora vamos pegar as coisas.
Tiraram as joias do armário, as pulseiras, os broches, os anéis, o relógio e a longa corrente de ouro do relógio. Puseram calmamente sobre a mesa o tesouro conquistado, e, de pleno acordo, eles o classificaram e separaram.
– Agora vamos logo, vamos nos lavar e trocar de roupa.
Voltaram para o quarto deles, lavaram as mãos, despejaram a água, mas não tiveram de se trocar, nas roupas não tinham nenhum sinal de sangue. Voltaram para o cenário do crime. O mais jovem abriu a janela do quarto ao lado e esperou pelo irmão, que trancou o quarto da senhora Witman por dentro, e pela janela, passando pelo parapeito, entrou pela outra janela aberta.
A rua estava completamente escura, fazia um silêncio mortal, mas eles tinham de se apressar porque o relógio da torre tinha soado uma hora e eles ainda queriam dormir. Despiram-se, entraram na cama, e, exaustos pela excitação, em alguns instantes estavam os dois profundamente adormecidos.
De manhã a mulher da limpeza que sempre chegava pontualmente as seis e meia os acordou. Estava acostumada a que a senhora Witman levantasse as dez e por isso não foi ao quarto dela. Depois de limpar a sala de jantar, ela acordou os meninos, que se lavaram depressa, tomaram o café e desapareceram com as preciosidades nos bolsos.
– Antes da escola!
– Está bem!
– Temos de ser pontuais para a apresentação.
– Claro, especialmente hoje.
– As onze horas vão nos chamar para casa.
– Vamos logo.
O portão da casa estava aberto. Até chegarem pelo corredor a porta de moça não cruzaram com ninguém. Entraram. A mulher, com o rosto vermelho, dormia profundamente, eles a descobriram e a beijaram, em seguida tiraram dos bolsos os tesouros. Puseram-nos sobre a barriga, o peito e as coxas dela
– Veja o que trouxemos.
– É tudo seu.
A mulher, com dificuldade, porem sorrindo, voltou a si, apertou as cabeças duras dos dois pequenos malfeitores, agradeceu a visita, e se virou para a parede.
– Hoje ou amanhã voltaremos.
Com isso, os rapazes se despediram, e saíram correndo para a escola.


quinta-feira, 22 de setembro de 2016

098 – O Diabo que assoviava J. Ubaldo Ribeiro

João Ubaldo Ribeiro (1941- 2014) escritor baiano de Itaparica, vencedor do Premio Camões em 2008 e autor de conhecidos romances também escreveu alguns contos, entre eles, um dos mais conhecidos, foi O Diabo que assoviava.

O Diabo que Assoviava
João Ubaldo Ribeiro

O problema com essas histórias todas é que é tudo offzirrécorde, como se diz atualmente. Quer dizer, quem diz não escreve e quem escreve não assina. Não tolero isso. Pode estar muito na moda, mas não me convence. Eu, você pode escrever aí: foi eu que disse. O resto de quem sabe, não querendo confirmar, não confirme. Escreva aí, sem o offzirrécorde. O camarada tem medo de dizerem que ele é colhudeiro, a verdade é o sol e ele é a lua, essas coisas. Comigo não, escreva. O diabo Beremoalbo, muitas pessoas estiveram pessoalmente com ele - posso citar diversas, aliás não cito nada, hoje em dia o sujeito cita e, quando está bem do seu, já virou alcaguete, pode deixar - o diabo Beremoalbo era um diabão altamente escroto, dos piores que já apareceram por aqui, inclusive fazia as desgraças dele e dava grandes gaitadas, espécie de curriúque-curriúque, só que com aquele bafo de diabo, absolutamente diferentíssimo. Ele chegava na porta das pessoas explodindo fortemente as letras que movimentam os beiços:
— Boa noite. Meu nome é Beremoalbo.
E aí podia se resignar, que seguia uma escrotidão em cima da outra, encarreirado. Leite azedando, mulher abortando, menino de caganeira, boi de bicheira, água podre no purrão, panarício no dedão, moça velha desonrada, casa nova destelhada, tudo o que possa lhe ocorrer. O bicho tinha uma voz péssima, mestiça de gruta, uma coisa horrível de se ouvir assim no meio da noite — meu nome é Beremoalbo —, imagine o senhor. Pessoas há que procuram achar qualidades nesse diabo Beremoalbo, mas a verdade precisa ser dita, porque não existe coisa ruim neste mundo que não apareça algum descarado para elogiar: nesse Beremoalbo não tem nada que se salve, não se pode ter a mínima confiança nele. Para não dizer mais nada, recordo o dia em que seu Beremoalbo se nos aparece por meio do serviço de alto-falantes. O que ele diz é o seguinte:
— Boa noite. Ao microfone, Beremoalbo. Votem no Medebê.
Agora o senhor veja que conselho porreta que ele achou de dar. Interessante. Com certeza é a mãe dele, se diabo tivesse mãe, que vai ficar aqui aguardando quatro anos sem nem o secretário da Justiça, que é o mais esculhambado de todos, aparecer por aqui, mordamos aqui para vermos se sairmos leite, ora me deixe. Acredito ser isto suficiente para saber de quem se trata Beremoalbo.
Entretanto, Beremoalbo está longe de ser o único da raça do cão a frequentar por aqui, aliás, é exatamente de um caso desses que eu quero tratar, mais tarde lhe falo, logo, logo. Tem gente que nega, mas, quando o senhor virar as costas, vão se benzer e espalhar alho pelos cantos da casa, só que Beremoalbo come alho, com ele o negócio é difícil. Tem gente que nega, mas só de fingimento, pois a verdade é que esse pessoal todo vai se lembrar se o senhor chegar para eles e mencionar alguns dos seguintes cães: Balganoel, o espalha-merda; Virifinário, o que conseguiu fazer aparecer mais cornos nesta terra do que se pode contar; o diabão Jugurta, que convencia todo mundo a dizer a verdade e assim causou toda apresentação de fatos maus que a gente seria feliz se não soubesse; Harpagelão, que meteu na cabeça de diversos padres de ir na terra de uns índios mais do que degenerados, os quais comeram Roquiféler - uns índios que comeram Roquiféler, vai se brincar com um povo desses? - e igualmente que os índios comeram os padres e nem pensaram duas vezes, que quando índio pensa meia vez pensa muito; Rolvinésio, o que botava para falar e, botando gente para falar, causou grande número de misérias; Erundino, que peidava nos ambientes e provocava inimizades; Raimundo Humberto, dador de bofetadas estraladas, levantador de saias de mulheres, assoprador de ventos maus de toda consequência, causador de dor de ouvidos, mandador de moscas na hora do sono, broxador de amantes, atiçador de crianças insuportáveis e tudo mais que faça nós o Homem que possamos dirigir blasfêmias ao Nosso Criador - mas esse Raimundo Humberto, o senhor tem de concordar que um diabo chamado Raimundo Humberto nunca que pode ser a mesma coisa de um diabo atendendo por Beremoalbo, então seu Raimundo Humberto se fazia passar, a quantos coubesse a desgraça de topar com ele, por Ascaltenor, mas esse já é outro diabo, que não atenta aqui.
Pode o senhor assim consultar a nossa praça e perceber o que quiser. Porque cada um percebe o que quer, apesar de todo o offzirrécorde. Embora não perceber certas coisas já pareça descaração, mas manda a caridade que se deixe isso de lado. Nunca me esqueço de que uns americanos estiveram aqui e filmaram o povo todo - sem porém pagar um tostão a ninguém, como eles pagam por exemplo a Tarzan, claro que ninguém aqui é Tarzan, mas também é filhos de Deus - e, quando notaram que a maior parte só trabalha quando está com fome, disseram que todo mundo aqui somos uma sociedade rica. E ainda sustentaram e botaram na rádio. Quer dizer, quanto mais a gente estiver morando no oco dos pés de pau e cagando nos matos, mais eles estão gostando. Americano é mais sabido até do que paulista. Estamos de olho neles todos. O diabo Gildélio, conforme o senhor sabe, do contrário não estava perguntando a respeito dele, era mais especial do que esses outros, isto porque, de acordo com todas as testemunhas, trazia sempre franzido o sobrolho e a cara ensombreada, por isso que não suportava ser diabo. Se bem que nessa eu não creio assim cem por cento, porque cansei de ver ele sair da bodega de Ernestino com cada lasca de jabá deste tamanho na mão, que ele roubava, provocando com isso peixeiradas e tentativas de Ernestino contra qualquer pessoa que apresentasse cara de haver comido jabá naqueles dias, notadamente jabá crua. Eu mesmo estive acusado falsamente. Quer dizer, são umas coisas que fazem a pessoa alimentar certas dúvidas.
No entanto, de relação aos assovios, posso muitíssimo bem prestar depoimento, isto porque todos nesta cidade sabem que um certo tipo de assovio, antes muito ouvido por aqui, podia contar como uma espécie de aviso, porque lá vinha miséria. Acúrcio mesmo, depois que ele já tinha metido no juízo de Acúrcio casar com Isabel Rosália e morar com a mãe lá dela, dona Aurora, que só não se podia chamar de jararaca porque a jararaca tem a natureza mais cortês. Por aí o senhor tira a natureza de dona Aurora. Pois Acúrcio garante que, na hora do pedido de casamento, ele ouviu aquele assoviozinho como que de curió, assim no pé do ouvido bem lá dele. A consciência cochichou: atenção nos assobeios, que possa ser Gildélio. Mas aí é que está o particularismo da situação. Na hora, o sujeito não dá importância ao assovio, de forma que a desgraça fica feita. A mesma coisa pode ser dita dúzias e dúzias de vezes, como no caso de Genival, esse mesmo que o senhor está pensando, que vem ouvindo esses assovios toda vez que se candidata, desde vereador aqui até prefeito, deputado, vai a senador — quer dizer, chegando em todas as alturas políticas, não tem quem salve ele do inferno. Como no caso de Totonho, para mim ele continua a ser Totonho, lá fora é que chamam de doutor, doutor para mim é ourinol, não vou chamar de doutor um moleque daquele, que eu vi o pai muitas vezes passando cabresto em jegue alheio nos pastos, ora me deixe. O caso dele é que hoje, de grau em grau, é dono de altos bancos e altíssimas fábricas e é empregador — que ele chama empregador e não gosta que chamem de patrão, por causa do natural acanhamento — de diversas pessoas, porém sempre ele ouvindo o assovio de Gildélio, quanto mais dinheiro ele vai ganhando. Tem uns dinheiros de viúvas que ele também arrecada e escreve numa caderneta e esses incrementam muitíssimo a assoviação. Deixe ele.
Fala-se em Gildélio também, quando, por uma razão ou por outra, a pessoa se engana com alguém e pega esse alguém com a boca na botija em alguma desgraceira contra si, isto porque, segundo se diz, seu Gildélio me comete as piores safadezas por entre os disfarces mais descarados e as mais altas finuras. O sujeito pega ele armando uma sacanagem e ele faz o seguinte discurso:
— Creia, meu senhor, neste mundo é muito fácil condenar e ainda mais fácil ignorar. O senhor me compreenda, eu sou diabo, é uma fatalidade, o que é que se pode fazer? Alguém tem que ser diabo, havemos de convir. Vamos compreender. Não se condena pela profissão, sem conhecer o caráter. Se eu fosse anjo, está certo. Mas eu não sou. De forma que só posso fazer esse tipo de coisa, o senhor por fineza queira relevar. Posso garantir que, se o senhor fosse diabo, estava na mesma situação, firuri-firuri.
Bom consolo, pode o senhor dizer e, de fato, nada disso ia impedir que a desgraceira fosse feita. Pelo contrário, acho que nisso vai a demonstração de que Gildélio pode ser o exemplo de todos os diabos, pois devia ser verdade conhecida que nenhum assovio ou até apito de trem vai desviar o homem de seu mau destino. De maneira que podemos considerar esses assovios na qualidade de deboche, mesmo porque a situação aqui é de molde que, se o urubu de baixo está cagando no de cima, isso se descreve como boas notícias. É assim que vemos as coisas pretas, Deus é grande. Aliás, podia chegar uma banda de assoviadores que nada se alterava, pois desde que este mundo é mundo que existe um assoviador, sem que ninguém devote a ele preocupação, porventura senão um maestro ou outro, para lhe comunicar que o seu dó maior enganchou no si bemol.
Não sei de nada, até nem sou daqui e, mesmo que fosse, não estava aqui e, mesmo que estivesse, não falava nada. Estou ficando nos paraxismos, a culpa é sua, que me deu álcool. Estou sabendo apenas que esse diabo tanto atanazou a vida do meu compadre Tito Procópio que esse compadre, ouvindo embora os assovios, fez mais filhos do que devia a consciência consentir, pois afirmava Tito Procópio que o filho era a riqueza do pobre, convencimento este assoprado pelo Gildélio mencionado. Sendo que Gildélio, que tinha se provado amigo da família, tudo bem disfarçadinho, mostrou que não ter filhos ia ser bem pior. Além de ser maldição, exibia aos vizinhos gala fraca ou mulher maninha e, mais do que importante, podia ser - estou dizendo assim: sempre podia ser, às vezes possa ser até que não podia ser, que eu não sou comunista - podia ser que, sem mais gente para ajudar na produção, podia ser que eles não pudessem mais ficar ali, naquelas terras que não eram deles. Considerado isso, lembre que tanto faz nascer como não nascer, que a comida não aumenta, mas a produção pode aumentar. E tal e coisa. E só os assovios. Pois então Tito Procópio foi tendo filhos, juntamente com despesas de enterros diversos, muito embora tenha feito muitos que viviam ali mesmo, comendo o barrinho deles e esfregando as barriguinhas d'água deles e dois ou três quem sabe se não pode vir a ser até peão, se forte?
Terminou, naturalmente, que Tito Procópio desmascarou Gildélio e se preparou para envergonhar esse diabo, quando ele então começou com a história de que culpa ele tinha se ele era diabo. Mas logo eu, disse Tito Procópio, logo eu, que sou pobre e nada possuo nesse mundo? Podendo vosmecê ir infernar quem por aí explora e torpedeia?

É por isso mesmo, disse o diabo Gildélio, olhando para os meninos amarelos com seus olhos maus e dando um sorriso horrível como só o diabo pode dar, o sorriso mais feio do mundo. E ele sorri porque sabe que não pode obrar coisa pior do que fazer nascer. Pelo menos nascer por aqui.