sábado, 24 de outubro de 2015

70 – Sensini – R. Bolaño

Roberto Bolaño (1953-2003) escritor chileno, considerado pela critica internacional como o grande nome da literatura latino-americana neste inicio de século. Tem um habilidade extraordinária para escrever, mas confesso que sinto falta em suas obras mais conhecidas, da riqueza de enredo e desenvolvimento de personagens que tanto caracterizaram a literatura latino-americana. Escolhi “Sensini” como conto destacado por sentir nele um pouco desta mágica e a presença destas características.

Sensini
Roberto Bolaño
Tradução Eduardo Brandão

A forma como se desenrolou minha amizade com Sensini sem duvida escapa ao costumeiro. Naquela época eu tinha vinte e tantos anos e era mais pobre que um rato. Morava nos arredores de Girona, numa casa em ruinas que minha irmã e meu cunhado tinham me deixado depois de irem para o México, e acabava de perder um trabalho de vigia noturno num camping de Barcelona, o qual havia acentuado minha propensão a não dormir de noite. Quase não tinha amigos e a única coisa que fazia era escrever e dar longos passeios que começavam às sete da noite, depois de acordar, momento em que meu corpo experimentava uma coisa parecida com o jet lag, uma sensação de estar e não estar, de distância com respeito ao que me rodeava, de indefinida fragilidade. Vivia com o que tinha economizado durante o verão e, embora quase não gastasse dinheiro, meu pé-de-meia ia minguando com o passar do outono. Talvez tenha sido isso que me levou a participar do Concurso Nacional de Literatura de Alcoy, aberto para escritores de língua castelhana, qualquer que fosse sua nacionalidade e seu lugar de residência. O premio era dividido em três modalidades: poesia, conto e ensaio. Primeiro pensei me apresentar em poesia, mas enviar a luta com os leões (ou com as hienas) o que eu fazia melhor me pareceu indecoroso. Depois pensei me apresentar em ensaio, mas quando me mandaram o regulamento descobri que o ensaio devia versar sobre Alcoy, seus arredores, sua história, seus homens ilustres, sua projeção no futuro, e isso estava além da minha competência. Decidi, pois, me apresentar em conto: enviei em três copias o melhor que eu tinha (não eram muitos) e me sentei a espera.
Quando o premio saiu, eu trabalhava de vendedor ambulante numa feira de artesanato onde absolutamente ninguém vendia artesanato. Obtive o terceiro prêmio e dez mil pesetas que a prefeitura de Alcoy me pagou religiosamente. Pouco depois recebi o livro, no qual não escasseavam as erratas, com o vencedor e os seis finalistas. Claro, meu conto era melhor do que o que havia ganhado o primeiro premio, o que me levou a amaldiçoar o júri e dizer a mim mesmo que, enfim, isso sempre acontece. Mas o que realmente me surpreendeu foi encontrar no mesmo livro Luis Antonio Sensini, o escritor argentino, segundo prêmio, com um conto em que o narrador ia para o campo e ali morria seu filho ou com um conto em que o narrador ia para o campo porque na cidade seu filho tinha morrido, não ficava claro, o caso e que no campo, um campo plano e um tanto ermo, o filho do narrador continuava morrendo, enfim, o conto era claustrofóbico, bem no estilo de Sensini, dos grandes espaços geográficos de Sensini que de repente se reduziam até ter o tamanho de um caixão, e superior ao ganhador e primeiro prêmio e também superior ao terceiro pre­mio e ao quarto, quinto e sexto.
Não sei o que me levou a pedir a prefeitura de Alcoy o endereço de Sensini. Eu havia lido um romance dele e alguns dos seus contos em revistas latino-americanas. O romance era dos que fazem leitores. Chamava-se Ugarte e falava de alguns momentos da vida de Juan de Ugarte, burocrata do vice-reinado do Rio da Prata em fins do século XVIII. Alguns críticos, principalmente espanhóis, o haviam liquidado dizendo que se tratava de uma espécie de Kafka colonial, mas pouco a pouco o romance foi fazendo seus próprios leitores e, quando dei com Sensini no livro de contos de Alcoy, Ugarte tinha, em vários cantos da América e da Espanha, uns poucos e fervorosos leitores, quase todos amigos ou inimigos gratuitos entre si. Sensini, claro, tinha outros livros, publicados na Argentina ou em editoras espanholas desaparecidas, e pertencia a essa geração intermediaria de escritores nascidos nos anos 1920, depois de Cortázar, Bioy, Sabato, Mujica Lainez, e cujo expoente mais conhecido (pelo menos então, pelo menos para mim) era Haroldo Conti, desaparecido num dos campos especiais da ditadura de Videla e seus sequazes. Dessa geração (se bem que talvez a palavra geração seja excessiva) sobrava pouco, mas não por falta de brilho e talento; seguidores de Roberto Arlt, jornalistas, professores e tradutores de alguma maneira anunciaram o que viria em seguida, e anunciaram à sua maneira triste e cética que no fim foi engolindo todos.
 Eu gostava deles. Numa época remota da minha vida eu tinha lido as obras teatrais de Abelardo Castillo, os contos de Rodolpho Walsh (como Conti, assassinado pela ditadura), os contos de Daniel Moyano, leituras parciais e fragmentadas oferecidas pelas revistas argentinas ou mexicanas ou cubanas, livros encontrados nos sebos do DF, antologias piratas da literatura portenha, provavelmente a melhor na língua espanhola deste século, literatura da qual eles faziam parte e que não era certamente a de Borges ou Cortázar e que Manuel Puig e Osvaldo Soriano não tardariam a deixar para trás, mas que oferecia ao leitor textos compactos, inteligentes, que propiciavam cumplicidade e alegria. Meu favorito, nem e preciso dizer, era Sensini, e o fato, de alguma maneira cruento e de alguma maneira lisonjeador, de encontra-lo num concurso literário de província me animou a entrar em contato com ele, cumprimenta-lo, dizer quanto gostava dele.
Assim, a prefeitura de Alcoy não demorou a me enviar seu endereço, ele morava em Madri, e uma noite, depois de jantar ou comer ou lanchar, eu lhe escrevi uma longa carta em que falava de Ugarte, dos outros contos dele que havia lido em revis­tas, de mim, da minha casa nos arredores de Girona, do con­curso literário (eu ria do vencedor), da situação política chilena e argentina (ambas as ditaduras ainda estavam bem estabelecidas), dos contos de Walsh (que era o outro de que eu mais gos­tava, junto com Sensini), da vida na Espanha e da vida em geral. Ao contrario do que esperava, recebi uma carta dele apenas uma semana depois. Começava me agradecendo pela minha, dizia que de fato a prefeitura de Alcoy também lhe enviara o livro com os contos premiados mas que, ao contrario de mim, ele não havia arranjado tempo (se bem que depois, quando voltava de forma enviesada ao mesmo tema, dizia que não tinha encontrado ânimo suficiente) para reler a narrativa vencedora e as outras premiadas, mas nestes dias havia lido o meu conto e o achara muito bom, “um conto de primeira ordem”, dizia, conservo a carta, e ao mesmo tempo me instava a perseverar, mas não, como a princípio entendi, a perseverar na escrita e sim a perseverar nos concursos, coisa que ele, me garantia, também faria. Ato contínuo passava a me perguntar pelos concursos literários que se “avistavam no horizonte”, recomendando-me que mal soubesse de um lhe informasse no ato. Em contrapartida me anexava as coordenadas de dois concursos de narrativas, um em Plasencia, o outro em Écija, de vinte e cinco mil e trinta mil pesetas respectivamente, cujo regulamento conforme pude verificar mais tarde ele tirava de jornais e revistas madrilenhas cuja simples existência era um crime ou um milagre, depende. Os dois concursos ainda estavam a meu alcance e Sensini terminava sua carta de maneira algo entusiasta, como se nós dois estivéssemos na linha de largada de uma corrida interminável, além de dura e sem sentido. “Coragem e mãos à obra”, dizia.
Lembro que pensei: que carta estranha, lembro que reli alguns capítulos de Ugarte, naqueles dias apareceram na praça dos cinemas de Girona os vendedores ambulantes de livros, gente que montava suas bancas ao redor da praça e oferecia principalmente estoques invendáveis, os saldos das editoras que não fazia muito haviam quebrado, livros da Segunda Guerra Mundial, romances de amor e de caubóis, coleções de postais. Numa das bancas encontrei um livro de contos de Sensini e comprei. Estava como novo — na verdade, era um livro novo, daqueles que as editoras vendem com desconto para os únicos que trabalham com esse material, os ambulantes, quando mais nenhuma livraria, nenhum distribuidor quer por as mãos nesse fogo — e aquela semana foi uma semana Sensini em todos os sentidos. As vezes eu relia pela centésima vez sua carta, outras vezes folheava Ugarte, e quando queria ação, novidade, lia seus contos. Estes, embora tratassem de uma gama variada de temas e situações, geralmente se desenrolavam no campo, na pampa, e eram o que pelo menos antigamente se chamavam histórias de homens a cavalo. Quer dizer, histórias de gente armada, desventurada, solitária ou com um senso peculiar da sociabilidade. Tudo o que em Ugarte era frieza, um pulso preciso de neurocirurgião, no livro de contos era calor, paisagens que se distanciavam do leitor muito lentamente (e que as vezes se afastavam com o leitor), personagens corajosos e à deriva.
Do concurso de Plasencia não consegui participar, mas do de Écija sim. Mal pus os exemplares do meu conto (pseudônimo: Aloysius Acker) no correio, compreendi que se ficasse esperando o resultado as coisas só podiam piorar. De modo que decidi procurar outros concursos e de passagem atender ao pedido de Sensini. Nos dias seguintes, quando descia a Girona, dedicava-me a fuçar jornais atrasados em busca de informação: em alguns ocupavam uma coluna junto da crônica social, em outros apareciam entre o noticiário geral e de esportes, o mais sério de todos os situava no meio do caminho entre a previsão do tempo e o obituário, nenhum, é claro, nas paginas culturais. Descobri também uma revista da Generalitat que, entre bolsas, intercâmbios, ofertas de emprego, cursos de pós-graduação, inseria anúncios de concursos literários, a maioria de âmbito catalão em língua catalã, mas nem todos. Logo tinha em perspectiva três concursos dos quais Sensini e eu podíamos participar e lhe escrevi uma carta.
Como sempre, a resposta veio logo em seguida. A carta de Sensini era breve. Respondia a algumas das minhas perguntas, a maioria delas relativa a seu livro de contos recém-comprado, e acrescentava por sua vez as fotocopias do regulamento de outros três concursos de contos, um deles patrocinado pela rede ferroviária, primeiro prêmio e dez finalistas a cinquenta mil pesetas por barba, dizia textualmente, quem não se apresenta não ganha, para que não fique na intenção. Respondi dizendo que não tinha tantos contos assim para cobrir os seis concursos em andamento, mas sobretudo tentei tocar em outros temas, a carta saiu do meu controle, falei de viagens, amores perdidos, Walsh, Conti, Fran­cisco Urondo, perguntei por Gelman que ele sem duvida conhecia, terminei contando minha historia em capítulos, sempre que falo com argentinos acabo me enredando no tango e no labirinto, isso acontece com muitos chilenos.
A resposta de Sensini foi pontual e extensa, pelo menos no tocante a produção e aos concursos. Numa folha escrita com espaço simples e dos dois lados expunha uma espécie de estratégia geral com respeito aos prêmios literários de províncias. Falo por experiência própria, dizia. A carta começava santificando-os (nunca soube se a serio ou de brincadeira), fonte de renda que ajudava no sustento cotidiano. Ao se referir as entidades patrocinadoras, prefeituras e caixas econômicas, dizia “essa boa gente que acredita na literatura”, ou “esses leitores puros e um pouco forçados”. Não tinha, do contrário, ilusões com respeito à informação da “boa gente”, os leitores que previsivelmente (ou nem tao previsivelmente) consumiriam aqueles livros invisíveis. Insistia em que eu participasse do maior número possível de prêmios, mas sugeria que como medida de precaução mudasse o título dos contos se com um só, por exemplo, me inscrevesse em três concursos cujos resultados saíssem mais ou menos na mesma data. Dava como exemplo sua narrativa Ao amanhecer, que eu não conhecia e que ele havia enviado a vários certames literários quase de maneira experimental, como o porquinho-da-índia destinado a testar os efeitos de uma vacina desconhecida. No primeiro concurso, o mais bem pago, Ao amanhecer foi como Ao amanhecer, no segundo concurso se apresentou como Os gaúchos, no terceiro concurso seu título era Na outra pampa, e no ultimo se chamava Sem remorsos. Ganhou no segundo e no último, e com o dinheiro obtido em ambos os prêmios pode pagar um mês e meio de aluguel, em Madri os preços estavam nas nuvens. Claro, ninguém ficou sabendo que Os gaúchos e Sem remorsos eram o mesmo conto com o título mudado, mas sempre havia o risco de topar em mais de uma contenda com um mesmo jurado, oficio singular que na Espanha era exercido de forma contumaz por uma plêiade de escritores e poetas menores ou autores laureados em festas anteriores. O mundo da literatura e terrível, além de ridículo, dizia. E acrescentava que nem o repetido encontro com um mesmo jurado constituía de fato um perigo, pois estes geralmente não liam as obras apresentadas ou as liam por alto ou as liam mais ou menos. E com maior razão, quem sabe se Os gaúchos e Sem remorsos não são duas narrativas distintas cuja singularidade resida precisamente no título. Parecidas, muito parecidas até, mas distintas. A carta concluía enfatizando que o ideal seria fazer outra coisa, por exemplo viver e escrever em Buenos Aires, sobre isso poucas duvidas tinha, mas que a realidade era a realidade, e a gente tinha que ganhar seus porotos (não sei se na Argentina o feijão é chamado de poroto, no Chile sim) e que por ora a saída era essa. E como passear pela geografia espanhola, dizia. Vou fazer sessenta anos, mas me sinto como se tivesse vinte e cinco, afirmava no fim da carta ou talvez num pós-escrito. A princípio me pareceu uma declaração muito triste, mas quando a li pela segunda ou terceira vez compreendi que era como se me dissesse: quantos anos você tem, pibe? Minha resposta, eu me lembro, foi imediata. Disse que tinha vinte e oito, três a mais que ele. Naquela manhã, foi como se eu recuperasse se não a felicidade, em todo caso a energia, uma energia que se parecia muito com o humor, um humor que se parecia muito com a memória.
Não me dediquei, como me sugeria Sensini, aos concursos de contos, embora tenha participado dos últimos daqueles que ele e eu havíamos descoberto. Não ganhei nenhum, Sensini voltou a fazer uma dobradinha, em Don Benito e em Écija, com uma narrativa que se intitulava originalmente Os sabres e que em Écija se chamou Duas espadas e em Don Benito O corte mais profundo. E ganhou um premio secundário no concurso da rede ferroviária espanhola, o que lhe proporcionou não só dinheiro mas também um passe para viajar de graça durante um ano.
Com o tempo fui sabendo mais coisas a seu respeito. Morava num apartamento em Madri com a mulher e a filha única, de dezessete anos, chamada Miranda. Outro filho, do seu primeiro casamento, andava perdido pela América Latina ou era o que ele queria acreditar. Chamava-se Gregorio, tinha trinta e cinco anos, era jornalista. As vezes Sensini me contava das suas diligencias em organismos humanitários ou vinculados aos departamentos de direitos humanos da União Europeia para averiguar o paradeiro de Gregorio. Nessas ocasiões as cartas costumavam ser pesadas, monótonas, como se mediante a descrição do labirinto burocrático Sensini exorcizasse seus próprios fantasmas. Deixei de viver com Gregorio, me disse em certa ocasião, quando o garoto tinha cinco anos. Não acrescentava mais nada, mas eu vi o Gregorio de cinco anos e vi Sensini escrevendo na redação de um jornal, e tudo era irremediável. Também me perguntei pelo nome e não sei por que cheguei a conclusão de que havia sido uma espécie de homenagem inconsciente a Gregorio Samsa. Isso, é claro, eu nunca lhe disse. Quando falava de Miranda, pelo contrário, Sensini ficava alegre, Miranda era jovem, tinha vontade de devorar o mundo, uma curiosidade insaciável e, além do mais, dizia, era linda e boa. Parece com Gregorio, dizia, só que Miranda é mulher (obviamente) e não teve que passar pelo que meu filho mais velho passou.
Pouco a pouco as cartas de Sensini foram se tornando mais extensas. Ele morava num bairro feioso de Madri, num apartamento de dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Saber que eu dispunha de mais espaço do que ele me pareceu surpreendente e também injusto. Sensini escrevia na sala, de noite, “quando a senhora e a menina já estão dormindo”, e abusava do tabaco. Seus rendimentos provinham de uns vagos trabalhos editoriais (creio que corrigia traduções) e dos contos que iam pelejar nas províncias. De vez em quando recebia um cheque por algum dos seus numerosos livros publicados, mas a maioria das editoras se fazia de esquecida ou havia quebrado. A única coisa que continuava dando dinheiro era Ugarte, cujos direitos pertenciam a uma editora de Barcelona. Vivia, não demorei a compreender, na pobreza, não numa pobreza absoluta mas uma pobreza de classe média baixa, de classe média desabonada e decente. Sua mulher (que ostentava o curioso nome de Carmela Zajdman) trabalhava fazendo bicos para editoras e dando aulas particulares de inglês, francês e hebraico, no entanto em mais de uma ocasião se vira obrigada a fazer faxina. A filha só se dedicava aos estudos e sua entrada na universidade era iminente. Numa das minhas cartas perguntei a Sensini se Miranda também ia se dedi­car a literatura. Em sua resposta dizia: não, por Deus, a menina vai estudar medicina.
Uma noite lhe escrevi pedindo uma foto da família. Só depois de por a carta no correio me dei conta de que o que eu queria era conhecer Miranda. Uma semana depois chegou uma fotografia tirada certamente no parque do Retiro, onde se via um velho e uma mulher de meia-idade ao lado de uma adolescente de cabelos lisos, magra e alta, de peitos muito grandes. O velho sorria feliz, a mulher de meia-idade olhava para o rosto da filha, como se lhe dissesse alguma coisa, e Miranda fitava o fotógrafo com uma seriedade que achei comovente e inquietante. Com a foto me mandou a fotocópia de outra foto. Nesta aparecia um sujeito mais ou menos da minha idade, de traços acentuados, os lábios bem finos, os pômulos pronunciados, a testa ampla, sem dúvida um sujeito alto e forte que olhava para a câmera (era uma foto de estúdio) com segurança e talvez com uma ponta de impaciência. Era Gregorio Sensini, antes de desaparecer, aos vinte e dois anos, isto é, bem mais moço do que eu era então, mas com um ar de maturidade que o fazia parecer mais velho.
Por muito tempo a foto e a fotocópia ficaram na minha mesa de trabalho. As vezes eu passava um bom tempo contemplando-as, outras vezes as levava para o quarto e ficava olhando para elas até adormecer. Em sua carta Sensini tinha me pedido que eu também mandasse uma foto minha. Não tinha nada recente e resolvi tirar um instantâneo na cabine de fotos da estação, naqueles anos a única de toda Girona. Mas não gostei das fotos que tirei. Eu estava feio, magro, de cabelo mal cortado. De modo que cada dia adiava o envio da foto e cada dia gastava mais dinheiro naquela máquina. Finalmente peguei uma ao acaso, enfiei-a num envelope com um postal e a enviei. A resposta demorou a chegar. Nesse interim lembro ter escrito um poema muito longo, muito ruim, cheio de vozes e de rostos que pareciam diferentes mas que eram um só, o rosto de Miranda Sen­sini e que quando eu por fim podia reconhecê-lo, nomeá-lo, dizer a ele, Miranda, sou eu, o amigo epistolar do seu pai, ela dava meia-volta e saia correndo em busca do irmão, Gregorio Samsa, em busca dos olhos de Gregorio Samsa que brilhavam no fundo de um corredor em trevas onde se moviam imperceptivelmente os vultos escuros do terror latino-americano.
A resposta foi longa e cordial. Dizia que Carmela e ele me acharam muito simpático, tal como me imaginavam, um pouco magro talvez, mas com boa aparência e que também tinham gostado do postal da catedral de Girona que esperavam ver pessoalmente dentre em breve, assim que se vissem mais desafogados de algumas contingências econômicas e domésticas. Na carta dava por entendido que não só passariam para me ver como se hospedariam na minha casa. De passagem me ofereciam a deles quando eu quisesse ir a Madri. A casa é pobre, mas também não é limpa, dizia Sensini imitando um celebre gaúcho de tiras de quadrinhos que foi muito famoso no Cone Sul em princípios dos anos 1970. De seus afazeres literários não dizia nada. Tampouco falava dos concursos.
A princípio pensei em mandar meu poema para Miranda, mas depois de muita duvida e hesitação decidi não fazê-lo. Estou ficando louco, pensei, se mando isso para Miranda acabaram-se as cartas de Sensini e, aliás, com toda razão deste mundo. De modo que não mandei. Por um tempo me dediquei a descobrir regulamentos de concursos para ele. Numa carta, Sensini dizia temer que sua corda estivesse acabando. Interpretei suas palavras erroneamente, no sentido de que já não tinha certames literários bastantes para enviar suas narrativas.
Insisti em que viessem a Girona. Disse que Carmela e ele tinham minha casa à disposição, por uns dias até me obriguei a limpar, varrer, passar pano de chão e tirar a poeira dos cômodos na certeza (totalmente infundada) de que eles e Miranda estavam para chegar. Argumentei que com o bilhete em aberto da rede ferroviária na realidade só precisariam comprar duas passagens, uma para Carmela e outra para Miranda, e que a Catalunha tinha coisas maravilhosas a oferecer ao viajante. Falei de Barcelona, de Olot, da Costa Brava, dos dias felizes que sem duvida passaríamos juntos. Numa longa carta de resposta, na qual me agradecia pelo convite, Sensini me informava que por ora não podiam sair de Madri. A carta, pela primeira vez, era confusa, mas lá pela metade punha-se a falar dos prêmios (creio que havia ganhado outro) e me incitava a não esmorecer e continuar participando. Nessa parte da carta também falava do ofício de escritor, da profissão, e tive a impressão de que as palavras que ele vertia eram em parte para mim, em parte um lembrete que fazia para si mesmo. O resto, como já disse, era confuso. Ao terminar de ler tive a impressão de que alguém da sua família não estava bem de saúde.
Dois ou três meses depois recebi a notícia de que provavelmente haviam encontrado o cadáver de Gregorio num cemitério clandestino. Em sua carta, Sensini era econômico em expressões de dor, só me dizia que tal dia, a tal hora, um grupo de legistas, membros de organizações de direitos humanos, encontrara uma vala comum com mais de cinquenta cadáveres de jovens etc. Pela primeira vez não tive vontade de lhe escrever. Gostaria de haver telefonado, mas acho que ele nunca teve telefone e, se teve, eu não sabia o número. Minha resposta foi sucinta. Disse que sentia muito, aventurei a possibilidade de que talvez o cadáver de Gre­gorio não fosse o cadáver de Gregorio.
Depois chegou o verão e fui trabalhar num hotel da costa. Em Madri esse verão foi pródigo em conferencias, cursos, atividades culturais de toda índole, mas Sensini não participou de nenhuma delas, e se participou de alguma o jornal que eu lia não noticiou.
Em fins de agosto mandei-lhe um cartão-postal. Dizia que provavelmente quando a temporada acabasse ia lhe fazer uma visita. Mais nada. Quando voltei a Girona, em meados de setembro, entre a pouca correspondência acumulada debaixo da porta encontrei uma carta de Sensini datada de 7 de agosto. Era uma carta de despedida. Dizia que voltava para a Argentina, que com a democracia ninguém mais ia impedi-lo de fazer o que quer que fosse e que portanto era inútil permanecer mais tempo fora. Além disso, se quisesse ter certeza do destino final de Gregorio, não tinha outro jeito senão voltar. Carmela, claro, volta comigo, mas Miranda fica. Escrevi imediatamente para ele, para o único endereço que tinha, mas não recebi resposta.
Pouco a pouco fui me acostumando a ideia de que Sensini havia voltado para sempre para a Argentina e que se não me escrevesse de lá podia dar por encerrada nossa relação epistolar. Por muito tempo esperei sua carta ou assim creio agora, ao recordar. A carta de Sensini, claro, não chegou nunca. A vida em Bue­nos Aires, me consolei, devia ser rápida, explosiva, sem tempo para nada, só para respirar e pestanejar. Tornei a escrever ao endereço que tinha de Madri, com a esperança de que fizessem a carta chegar a Miranda, mas ao fim de um mês o correio a devolveu por ser o destinatário desconhecido no endereço. De modo que desisti, deixei os dias passarem e fui me esquecendo de Sensini, mas quando ia a Barcelona, muito de vez em quando, as vezes me enfiava tardes inteiras nos sebos e procurava seus livros, os livros que eu conhecia de nome e que nunca leria. Mas nas livrarias só encontrei velhos exemplares de Ugarte e de seu livro de contos publicado em Barcelona e cuja editora havia pedido concordata, quase como um sinal dirigido a Sensini, dirigido a mim.
Um ou dois anos depois soube que ele tinha morrido. Não sei em que jornal li a notícia. Talvez não a tenha lido em lugar nenhum, talvez tenham me contado, mas não me lembro de ter falado naqueles dias com gente que o conhecesse, de modo que provavelmente devo ter lido em algum lugar a notícia da sua morte. Ela foi sucinta: o escritor argentino Luis Antonio Sensini, exilado durante alguns anos na Espanha, morreu em Buenos Aires. Creio que também mencionavam, no fim, Ugarte. Não sei por que, a notícia não me impressionou. Não sei por que, o fato de Sensini voltar a Buenos Aires para morrer me pareceu lógico.
Tempos depois, quando a foto de Sensini, Carmela e Mi­randa e a fotocópia da foto de Gregorio repousavam com minhas outras lembranças numa caixa de papelão que por algum motivo que prefiro não investigar ainda não queimei, bateram na porta da minha casa. Devia ser meia-noite, mas eu estava acordado. A campainha, no entanto, me sobressaltou. Nenhuma das poucas pessoas que eu conhecia em Girona teria ido a minha casa a não ser que acontecesse algo fora do normal. Ao abrir deparei com uma mulher de cabelos compridos sob um grande casaco preto. Era Miranda Sensini, mas os anos transcorridos desde que seu pai me mandou a foto não haviam passado em vão. Ao lado dela estava um sujeito louro, alto, de cabelo comprido e nariz adunco. Sou Miranda Sensini, disse com um sorriso. Eu sei, disse eu e convidei-os a entrar. Iam de viagem a Itália e depois pensavam em cruzar o Adriático rumo a Grécia. Como não tinham muito dinheiro, viajavam pedindo carona. Naquela noite dormiram na minha casa. Fiz alguma coisa para eles jantarem. O sujeito se chamava Sebastian Cohen e também havia nascido na Argen­tina, mas desde muito jovem vivia em Madri. Ele me ajudou a aprontar o jantar enquanto Miranda inspecionava a casa. Faz muito tempo que você a conhece?, perguntou. Até este instante só a tinha visto em foto, respondi.
Depois do jantar preparei um quarto para eles e disse que podiam ir para a cama quando quisessem. Também pensei em me retirar para meu quarto e dormir, mas compreendi que ia ser difícil, se não impossível, e assim, quando supus que já estavam dormindo, desci ao térreo e liguei a tevê, com o volume baixinho, e fiquei pensando em Sensini.
Pouco depois ouvi passos na escada. Era Miranda. Ela também não conseguia dormir. Sentou ao meu lado e me pediu um cigarro. No início falamos da sua viagem, de Girona (passaram o dia todo na cidade, não perguntei por que haviam chegado tão tarde em casa), das cidades que pretendiam visitar na Itália. Depois falamos de seu pai e de seu irmão. Segundo Miranda, Sensini nunca se recobrou da morte de Gregorio. Voltou para procurá-lo, embora todos soubéssemos que estava morto. Carmela também?, perguntei. Todos, disse Miranda, menos ele. Perguntei como tinha sido para ele na Argentina. Igual aqui, disse Miranda, igual em Madri, igual em toda parte. Mas na Argentina era benquisto, disse eu. Igual aqui, disse Miranda. Peguei uma garrafa de conhaque na cozinha e lhe ofereci um trago. Você esta chorando, disse Miranda. Quando olhei para ela, desviou o olhar. Estava escrevendo?, perguntou. Não, vendo televisão. Quero dizer, quando Sebastian e eu chegamos, disse Miranda, você estava escrevendo? Sim, disse. Narrativas? Não, poemas. Ah, fez Miranda. Bebemos em silêncio por um bom momento, olhando as imagens em branco e preto da televisão. Me diga uma coisa, falei, por que seu pai deu o nome de Grego­rio ao Gregorio? Por causa de Kafka, claro, disse Miranda. Por causa de Gregorio Samsa? Claro, disse Miranda. Era o que eu supunha, disse eu. Depois Miranda me contou em linhas gerais os últimos meses de Sensini em Buenos Aires.

Ele havia partido de Madri já doente e contra a opinião de vários médicos argentinos que o tratavam de graça e que inclu­sive tinham lhe conseguido umas internações nos hospitais da Previdência Social. O reencontro com Buenos Aires foi doloroso e feliz. Desde a primeira semana se mexeu para tentar descobrir o paradeiro de Gregorio. Quis voltar para a universidade mas, entre tramites burocráticos e invejas e rancores dos de sempre, o acesso lhe foi negado e ele teve que se conformar em fazer traduções para algumas editoras. Carmela, pelo contrário, conseguiu trabalho como professora e nos últimos tempos viveram exclusivamente com o que ela ganhava. Toda semana Sensini escrevia a Miranda. Segundo esta, seu pai se dava conta de que lhe restava pouca vida e em certas ocasiões até parecia ansioso por esgotar de uma vez por todas as últimas reservas e enfrentar a morte. Quanto a Gregorio, nenhuma notícia foi concludente. Segundo alguns legistas, seu corpo podia estar entre o monte de ossos exumados daquele cemitério clandestino, mas para maior segurança devia se fazer um exame de Dna, porem o governo não tinha verba ou não tinha vontade de que se fizesse o exame, e este ia se atrasando cada dia um pouco mais. Também se esforçou por encontrar uma moça, uma provável companheira que Goyo teria tido na clandestinidade, mas a moça não apareceu. Depois sua saúde se agravou e ele teve que ser hospitalizado. Nem escre­via mais, disse Miranda. Para ele era muito importante escrever todos os dias, em qualquer condição. Sim, disse a ela, acho que era mesmo. Depois perguntei se em Buenos Aires chegou a participar de algum concurso. Miranda olhou para mim e sorriu. Ah, você era aquele que participava dos concursos com ele, ele te conheceu num concurso. Pensei que tinha meu endereço pela simples razão de que tinha todos os endereços do seu pai, mas só naquele momento ela tinha me identificado. Eu sou o dos concursos, disse. Miranda serviu-se de mais conhaque e disse que durante um ano seu pai tinha falado bastante de mim. Notei que me fitava de outra maneira. Devo tê-lo importunado bastante, falei. Que é isso, disse ela, que importuna-lo o que, ele adorava suas cartas, sempre as lia para nos, para minha mãe e para mim. Espero que tenham sido divertidas, falei sem muita convicção. Eram divertidíssimas, disse Miranda, minha mãe ate os apelidou. Apelidou? Quem? Meu pai e você, ela os chamava de os pistoleiros ou os caçadores de recompensas, não me lembro mais, uma coisa assim, caçadores de escalpos. Imagino por quê, disse eu, mas creio que o verdadeiro caçador de recompen­sas era seu pai, eu só lhe passava um ou outro dado. Sim, ele era um profissional, disse Miranda subitamente seria. Quantos prêmios chegou a ganhar?, perguntei. Uns quinze, disse ela com ar ausente. E você? Eu, por ora só um. Um premio menor em Alcoy, graças ao qual conheci seu pai. Sabe que Borges uma vez escreveu uma carta para ele, em Madri, onde comentava um dos seus contos?, ela perguntou olhando para seu conhaque. Não, não sabia, disse eu. E Cortázar também escreveu sobre ele, e Mujica Lainez também. E que ele era um escritor muito bom, disse eu. Não sacaneie, disse Miranda e se levantou e saiu ao quintal, como se eu tivesse dito uma coisa que a houvesse ofendido. Deixei passar uns segundos, peguei a garrafa de conhaque e a segui. Miranda estava debruçada no parapeito vendo as luzes de Girona. Bonita vista você tem daqui, disse ela. Enchi seu copo, enchi o meu, e ficamos um tempo admirando a cidade iluminada pela lua. De repente me dei conta de que já estávamos em paz, de que por alguma razão misteriosa tínhamos conseguido juntos ficar em paz e que daí em diante as coisas imperceptivelmente começariam a mudar. Como se o mundo, de verdade, se movesse. Perguntei que idade tinha. Vinte e dois, respondeu. Então eu devo ter mais de trinta, falei, e até minha voz soou estranha

domingo, 18 de outubro de 2015

69 – Um coração simples – G. Flaubert

Gustave Flaubert (1821-1880), escritor francês nascido em Rouen, autor de Madame Bovary um dos maiores romances de todos os tempos. Em 1871 ele publicou um pequeno livro com três contos. Entre eles  “Um coração simples.” Nele Flaubert demonstra a mesma riqueza de detalhes que transportam o leitor para dentro do universo da história e a mesma força na construção de um personagem Sua Felicidade, assim como alguns personagens de Garcia Marquez, parecem ter sido condenados a nunca mais serem esquecidos.

Um coração simples
Gustave Flaubert

Durante meio século, os burgueses de Pont-l’Évêque invejaram a Sra. Aubain por sua criada Felicidade. Por cem francos ao ano, ela cozinhava e limpava a casa, costurava, lavava, passava, sabia arrear cavalos, engordar aves, bater a manteiga; permaneceu fiel à sua patroa, que, no entanto, não era uma pessoa agradável.
Ela esposara um belo rapaz sem fortuna, que falecera no começo de 1809, deixando-lhe duas crianças pequenas e uma quantidade considerável de dívidas. Então, vendeu seus imóveis, exceto as terras arrendadas de Toucques e de Geffosses, cujos rendimentos atingiam, no máximo, 5 mil francos, e deixou sua casa de Saint-Melaine para morar em outra menos dispendiosa que pertencera a seus ancestrais, localizada atrás do mercado.
Essa casa, revestida de ardósia, situava-se entre um beco e uma ruela que terminava no riacho. Seu interior tinha desníveis que faziam tropeçar. Um vestíbulo estreito separava a cozinha da sala onde a Sra. Aubain permanecia durante o dia, sentada em uma poltrona de palha, perto da janela. Encostadas no lambri, pintado de branco, alinhavam-se oito cadeiras de acaju. Um velho piano sustentava, sob um barômetro, um pilha piramidal de caixas variadas, algumas de papelão. Duas “bergères” em tapeçaria, ladeavam a lareira em mármore amarelo, em estilo Luís XV. O relógio, no meio, representava um templo de Vesta — e todo o ambiente cheirava um pouco a mofo, pois o piso era mais baixo do que o quintal.
No primeiro andar, havia primeiro o quarto da “senhora”, muito grande, forrado com um papel de flores desbotadas, contendo o retrato do “senhor”, de aparência janota. Ele se comunicava com um quarto menor, onde se viam duas camas de crianças sem colchões. Depois, vinha a sala de visitas, sempre fechada, cheia de móveis cobertos por lençóis. Em seguida, um corredor levava a um escritório; livros e papéis lotavam as prateleiras de uma estante que tomava três lados de uma escrivaninha grande em madeira escura. Dois painéis, por sua vez, desapareciam sob desenhos em bico de pena, paisagens a guache e gravuras de Audran, lembranças de um tempo melhor e de um luxo perdido. Uma lucarna, no segundo andar, clareava um pouco o quarto de Felicidade, com vista para os campos.
Felicidade levantava-se com a madrugada, para não perder a missa, e trabalhava até a noite, sem interrupção; depois, terminado o jantar, a louça em ordem e a porta bem fechada, ela cobria de cinzas a acha de lenha e adormecia diante da lareira com o rosário na mão. Ninguém, nas redondezas, demonstrava mais perseverança. Quanto à limpeza, o brilho de suas panelas levava ao desespero as outras criadas. Econômica, ela comia com lentidão e recolhia com os dedos as migalhas de pão — um pão de doze libras, especialmente feito para ela, que durava vinte dias.
Em todas as estações do ano, ela usava um lenço indiano fixado nas costas por um alfinete, uma touca escondendo-lhe os cabelos, meias cinzas, um saiote vermelho e sobre a camisola, um avental inteiriço, como o das enfermeiras de hospital.
Seu rosto era magro e sua voz aguda. Com vinte e cinco anos, davam-lhe quarenta. A partir dos cinquenta, não aparentava mais nenhuma idade; e, sempre silenciosa, postura ereta e gestos comedidos, parecia uma mulher de madeira, funcionando de maneira automática.
II
Ela tivera, como qualquer outra, sua história de amor.
O pai, pedreiro, morreu quando caiu de um andaime. Depois, a mãe faleceu, as irmãs se dispersaram, um arrendatário recolheu-a e empregou-a, ainda pequena, para cuidar das vacas no pasto. Ela tremia de frio em seus farrapos, bebia, deitada no chão, a água das poças, apanhava por qualquer motivo; por fim, acabou sendo expulsa por causa de um furto de trinta soldos, que não havia cometido. Foi para uma outra propriedade, onde trabalhava no fundo do quintal, cuidando dos animais; e, como agradava aos patrões, os outros criados invejavam-na.
Numa noite do mês de agosto (tinha, então, dezoito anos), eles a levaram à feira em Colleville. Imediatamente ficou atordoada, estupefata pela balbúrdia dos violeiros, pelas luzes nas árvores, pela miscelânea de cores das roupas, pelas rendas, crucifixos de ouro, pela multidão indo e vindo ao mesmo tempo. Mantinha-se a distância, modestamente, quando um jovem, de aparência abastada, fumando cachimbo, com os dois cotovelos sobre o timão de uma carroça, veio tirá-la para dançar. Pagou-lhe sidra, café, bolo, um lenço e, imaginando que ela o adivinharia, ofereceu-se para levá-la para casa. Ao lado de um aveal, ele a derrubou brutalmente. Ela teve medo e se pôs a gritar. Ele se afastou.
Uma outra noite, na estrada de Beaumont, ela quis ultrapassar uma grande carroça de feno que avançava lentamente; e, ao esbarrar nas rodas, reconheceu Teodoro.
Ele a abordou com um ar tranquilo, dizendo que precisava perdoar tudo, pois era “culpa da bebida”.
Ela não soube o que responder e teve vontade de fugir.
Logo em seguida, ele falou das colheitas e das pessoas importantes da comuna, pois seu pai tinha deixado Colleville pelas terras de Écots, de modo que, agora, eram vizinhos.
— Ah! — disse ela.
Acrescentou que desejavam casá-lo. Porém não estava apressado e aguardava uma mulher do seu agrado. Ela abaixou a cabeça. Então, ele lhe perguntou se pensava em casamento. Ela respondeu, sorrindo, que não era bom debochar.
— Mas, não, eu lhe juro! — e, com o braço esquerdo ele lhe enlaçou a cintura.
Ela caminhava amparada pelo seu abraço; diminuíram o passo. O vento estava suave, as estrelas brilhavam, a enorme carroça de feno balançava diante deles; e os quatro cavalos arrastando os passos, levantavam poeira. Em seguida sem comando, viraram à direita. Ele a beijou ainda uma vez. Ela desapareceu na penumbra.
Teodoro, na semana seguinte, conseguiu marcar encontros com ela.
Viam-se no fundo dos pátios, atrás de um muro, sob uma árvore isolada. Ela não era inocente à maneira das moças finas — os animais haviam-na instruído; — mas a razão e o instinto de honra impediram-na de se entregar. Essa resistência exasperou o amor de Teodoro, de modo que para satisfazê-lo (ou ingenuamente talvez) ele lhe propôs casamento. Ela hesitava em acreditar. Ele fez grandes juras.
Logo em seguida, confessou-lhe algo desagradável: seus pais, no ano anterior, haviam pago a um homem para se alistar em seu lugar; contudo, cedo ou tarde, poderiam chamá-lo; a ideia do recrutamento assustava-o. Essa covardia foi para Felicidade uma prova de afeto; seu sentimento por ele redobrou. Ela escapava de noite, e uma vez juntos, Teodoro torturava-a com suas inquietudes e insistências.
Enfim, Teodoro anunciou que ele mesmo iria à administração para obter informações e as traria no domingo seguinte, entre onze horas e meia-noite.
Chegado o momento, ela correu ao encontro de seu amado.
Em seu lugar, encontrou um de seus amigos.
Este lhe disse que não mais deveria revê-lo. Para se livrar do alistamento, Teodoro havia-se casado com uma mulher velha e muito rica, sra. Lehoussais, de Toucques.
Foi uma crise de desgosto. Ela se atirou ao chão, gritou, clamou pelo bom Deus, e gemeu sozinha no campo até o sol se levantar. Depois, retornou à propriedade, declarou sua intenção de ir embora; e, no final do mês, tendo recebido suas contas, reuniu seus poucos pertences em uma trouxa e foi para Pont-l’Évêque.
Diante de um albergue, interpelou uma burguesa com capelina de viúva, que justamente procurava por uma cozinheira. A jovem não sabia grande coisa, mas parecia ter tanta boa vontade e tão poucas exigências, que a sra. Aubain acabou por dizer:
— Está bem, eu a admito!
Felicidade, quinze minutos depois, estava instalada na casa dela.
No começo, conviveu com uma espécie de estremecimento que lhe causavam “o estilo da casa” e a lembrança do “senhor”, pairando sobre tudo! Paulo e Virgínia, aquele com sete anos, esta com apenas quatro, pareciam-lhe formados de uma matéria preciosa; ela os carregava nas suas costas como se fosse um cavalo, e a sra. Aubain proibiu-lhe de beijá-los a cada minuto, o que a mortificava. No entanto estava feliz. A suavidade do ambiente tinha dissolvido sua tristeza.
Todas as quintas-feiras, frequentadores assíduos vinham jogar uma partida de bóston. Felicidade preparava com antecedência as cartas e os aquecedores. Eles chegavam às oito horas em ponto e se retiravam antes de soar as onze.
Toda segunda-feira, o vendedor de objetos usados que morava no lado de baixo da alameda esparramava pelo chão suas tranqueiras. Depois a cidade enchia-se de um murmúrio de vozes, ao qual se misturavam relinchos de cavalos, balidos de carneiros, grunhidos de porcos, com o barulho seco das charretes na rua. Por volta de meio-dia, no auge da feira, via-se surgir na soleira um velho camponês de estatura alta, com boné para trás, nariz adunco, e que era Robelin, o arrendatário das terras de Geffosses. Logo depois, chegava Liébard, arrendatário de Toucques, pequeno, vermelho, obeso, usando um casaco cinza e botinas munidas de esporas.
Os dois ofereciam à proprietária galinhas ou queijos. Felicidade invariavelmente adivinhava suas astúcias; e eles iam embora plenos de consideração por ela.
De quando em quando, a sra. Aubain recebia a visita do marquês de Gremanville, um tio seu, arruinado pela devassidão, que vivia em Falaise no seu último quinhão de terra. Chegava sempre na hora do almoço, com um cão insuportável cujas patas sujavam todos os móveis. Apesar de seus esforços para parecer um fidalgo, chegando mesmo a tirar o chapéu cada vez que dizia: “Meu falecido pai”, o hábito era mais forte, ele bebia um copo após o outro e deixava escapar inconveniências. Felicidade colocava-o para fora polidamente. “Já é o bastante, senhor de Gremanville! Até uma outra vez!” E fechava a porta.
Ela a abria com prazer para o sr. Bourais, antigo procurador judicial. Sua gravata branca e sua calvície, o peitilho da camisa, ampla sobrecasaca marrom, o modo de tomar o rapé curvando o braço, todo o seu ser produzia-lhe uma perturbação em que nos lança o espetáculo dos homens extraordinários.
Como ele gerenciava as propriedades da “senhora”, trancava-se com ela, durante horas, no escritório do “senhor” e sempre temia comprometer-se, respeitava infinitamente a magistratura, tinha pretensões de conhecer o latim.
Para instruir as crianças de um modo agradável, deu-lhes de presente um livro de geografia em estampas. Elas representavam diferentes cenas do mundo, antropófagos com as cabeças cobertas de penas, um macaco aprisionando uma moça, beduínos no deserto, uma baleia arpoada etc.
Paulo explicou essas gravuras a Felicidade. Essa foi toda sua educação literária.
A das crianças era feita por Guyot, um pobre-coitado, empregado da prefeitura, famoso por sua bela caligrafia, que afiava o canivete na bota.
Quando o tempo estava bom, iam bem cedo para as terras de Geffosses.
No pátio em declive, a casa ficava no meio; e o mar, ao longe, surgia como uma mancha cinza.
Felicidade retirava de seu cesto fatias de carne fria e almoçavam em uma peça contígua à leiteria. Foi a única que restou de uma construção de lazer, agora desaparecida. O papel da parede, todo rasgado, tremia com as correntes de ar. A sra. Aubain abaixava a cabeça, abatida pelas lembranças; as crianças não se atreviam mais a falar. “Brinquem, vamos!” dizia ela; elas saíam correndo.
Paulo subia no celeiro, apanhava pássaros, fazia ricochetes sobre as poças, ou batia com um bastão os largos barris que ressoavam como tambores.
Virgínia dava comida aos coelhos, corria para colher florezinhas azuis, e a rapidez de suas pernas descobria as pequenas calças bordadas.
Numa noite de outono, voltaram pelas pastagens.
A lua, em quarto crescente, iluminava uma parte do céu e uma neblina flutuava como um véu sobre as sinuosidades do rio Toucques. Alguns bois, deitados na relva, olhavam tranquilamente passarem essas quatro pessoas. No terceiro pasto cercado, alguns se levantaram, puseram-se, em seguida, em círculo diante delas.
— Não tenham medo! — disse Felicidade e, murmurando uma espécie de lamento, acariciou o dorso do animal que se encontrava mais próximo; ele fez meia-volta, os outros o imitaram. Porém, quando atravessaram o pasto seguinte, um mugido medonho soou. Era um touro que a neblina escondia. Ele avançou em direção às duas mulheres. A sra. Aubain ia correr.
— Não! Não! Mais devagar!
Elas apertaram o passo, contudo, e ouviam por trás uma respiração forte que se aproximava. Seus tamancos, como martelos, batiam na relva da campina; e agora ele galopava! Felicidade virou-se; com as duas mãos arrancava placas de terra e jogava-lhe nos olhos. Ele abaixava o focinho, sacudia os chifres e tremia de furor, mugindo horrivelmente. A sra. Aubain, no fim do pasto, com as duas crianças, procurava, perdida, como atravessar a cerca alta. Felicidade recuava sempre diante do touro e lançava continuamente torrões de relva que o cegavam, enquanto gritava:
— Corram! Corram!
A sra. Aubain desceu a vala, empurrou Virgínia, Paulo em seguida; caiu muitas vezes tentando subir o talude, e, à força de muita de coragem, conseguiu fazê-lo.
O touro tinha encurralado Felicidade contra uma cerca; sua baba jorrava no rosto dela, um segundo mais ele a estriparia. Ela teve tempo de deslizar entre duas barras da cerca, e o grande animal, surpreso, parou.
Esse acontecimento, durante muitos anos, foi assunto de conversa em Pont-l’Évêque. Felicidade não tirou nenhuma vantagem disso, duvidando até mesmo de que tivesse feito algo de heroico.
Virgínia sozinha ocupava todo o seu tempo — porque teve, após o seu pavor, uma afecção nervosa e o doutor Poupart aconselhou banhos de mar de Trouville.
Naquele tempo, não se tomavam banhos de mar. A sra. Aubain informou-se, consultou Bourais, fez preparativos como se fosse fazer uma longa viagem.
Seus pertences partiram na véspera, na charrete de Liébard. No dia seguinte, ele levou dois cavalos; um tinha uma sela para mulher, munida de um encosto de veludo; na garupa do segundo, um manto enrolado formava uma espécie de assento. A sra. Aubain sentou-se atrás dele.
Felicidade encarregou-se de Virgínia, e Paulo montou o burro do sr. Lechaptois, emprestado com a condição de se ter muito cuidado com ele.
A estrada era tão ruim que seus oitos quilômetros exigiram duas horas. Os cavalos enterravam até as quartelas na lama e, para sair, faziam bruscos movimentos de ancas; ou, então, apoiavam-se nos sulcos na estrada; outras vezes, era-lhes preciso pular. A égua de Liébard, em certos lugares, parava de repente. Ele esperava pacientemente que ela se pusesse em marcha; e falava de pessoas cujas propriedades margeavam a estrada, acrescentando a suas histórias reflexões morais. Assim, no meio de Toucques, quando passaram sob umas janelas rodeadas de capuchinhas, ele disse, levantando os ombros:
— Aí está uma, a sra. Lehoussais, que em vez de aceitar um jovem rapaz...
Felicidade não ouviu o resto; os cavalos trotavam, o burro galopava; todos entraram por um caminho estreito, uma porteira se abriu, dois garotos apareceram, e desceram em frente da purina, na soleira da porta.
A velha Liébard, vendo sua patroa, prodigalizou demonstrações de alegria. Serviu-lhe um almoço com lombo de boi, rabada, chouriço, um fricassê de frango, sidra espumante, uma torta de compotas e ameixas embebidas em aguardente, tudo regado com cortesias à senhora que parecia cheia de saúde, e à senhorita que se tinha tornado “maravilhosa”, ao sr. Paulo excepcionalmente “gordo”, sem esquecer seus avós falecidos que os Liébard tinham conhecido, pois estavam a serviço da família havia muitas gerações. As terras tinham, como eles, caráter de antiguidade. As vigotas do teto estavam corroídas, as paredes, negras de fumaça, os ladrilhos cinza de poeira. Um aparador de carvalho mantinha todos os tipos de utensílios, jarras, pratos, tigelas de estanho, armadilhas de lobo, tesouras para a tosquia de carneiros; uma enorme seringa provocou risos nas crianças. Não havia nenhuma macieira nos três pátios que não tivesse cogumelos em sua base ou, em seus galhos, um tufo de visgo. O vento derrubara várias delas. Voltaram a brotar pelo meio; e todas se curvavam com a quantidade de maçãs. Os telhados de palha, como veludos castanhos de diferentes espessuras, resistiam aos mais fortes vendavais. Entretanto a cocheira caía em ruínas. A sra. Aubain disse que iria partir e mandou selar os animais.
Levaram ainda meia hora antes de chegar a Trouville. O pequeno grupo teve que apear para passar as Écores, tratava-se de uma falésia que pendia sobre os barcos; e três minutos mais tarde, no fim do cais, entraram no pátio do Agneau d’or, na casa da velha David.
Virgínia, desde os primeiros dias, sentiu-se um pouco mais forte, resultado da mudança de ares e da ação dos banhos. Ela os tomava de camisa, por não ter roupa apropriada; e sua empregada a vestia em uma cabana de aduaneiro que servia aos banhistas.
À tarde, ia-se com o burro para além de Roches-Noires, ao lado de Hennequeville. O caminho, no começo, subia entre terrenos com vales como o gramado de um parque depois, chegava a um planalto onde alternavam as pastagens e as plantações. À beira do caminho, no amontoado de espinheiros, azevinhos erguiam-se; aqui e acolá, havia grandes árvores mortas que faziam ziguezagues com seu galhos no ar azul.
Quase sempre, eles repousavam em um campo, tendo Deauville à esquerda, o Havre à direita e, em frente, o mar aberto. Ele brilhava sob o sol, liso como um espelho tão calmo que mal se escutava seu murmúrio; pardais escondidos chilreavam, e a imensa abóbada celeste recobria tudo. A sra. Aubain, sentada, trabalhava em sua costura; Virgínia, próxima a ela, trançava juncos; Felicidade arrancava flores de lavanda; Paulo, que se entediava, queria ir embora.
Outras vezes, tendo passado de barco por Toucques eles procuravam conchas. A maré baixa deixava à mostra ouriços-do-mar, moluscos, medusas; as crianças corriam para pegar os flocos de espuma que o vento carregava. As ondas adormecidas, quebrando na areia, desenrolavam-se ao longo da praia; esta se estendia a perder de vista, mas, do lado da terra, tinha como limite as dunas que a separavam do Marais, ampla pradaria em forma de hipódromo. Quando retornavam por aí, Trouville, ao fundo sobre o penhasco da encosta, a cada passo, aumentava, e com todas suas casas desiguais parecia desabrochar-se em uma alegre desordem.
Nos dias de muito calor, eles não saíam do quarto. A ofuscante claridade do exterior imprimia faixas de luz entre as lâminas das persianas. Nenhum ruído no vilarejo. Embaixo, na calçada, ninguém. Esse silêncio espalhado aumentava a tranquilidade das coisas. Ao longe, os martelos dos calafates batiam nas carenas, e uma brisa densa trazia o cheiro do piche.
O principal divertimento era o regresso da barca. Assim que ultrapassavam as boias, eles começavam a bordejar. As velas dos mastros vinham dois terços arriadas; e, com a mezena cheia como um balão, eles avançavam, deslizavam no marulho das ondas, até o meio do porto, onde, de repente, lançavam a âncora. Em seguida, o barco se colocava junto ao cais. Os marujos jogavam por cima da borda peixes ainda palpitantes, uma fila de charretes os aguardava e mulheres com gorros de algodão corriam para pegar as cestas e abraçar seus homens.
Uma delas, um dia, abordou Felicidade, que pouco tempo após entrou no quarto, toda feliz. Havia reencontrado uma de suas irmãs; e Nastácia Barette, mulher de Leroux, apareceu, com um bebê no colo, segurando à mão direita uma outra criança, e tendo à sua esquerda um pequeno grumete com os punhos nas ancas e a boina até as orelhas.
Ao cabo de quinze minutos, a sra. Aubain dispensou-a.
Reencontravam-se sempre nos arredores da cozinha ou nos passeios que faziam. O marido nunca aparecia.
Felicidade afeiçoou-se por eles. Ela lhes deu um cobertor, camisas, um fogão; evidentemente, eles a exploravam. Essa fraqueza irritava a sra. Aubain, que, aliás, não gostava das familiaridades do sobrinho, porque ele tratava seu filho por “você”; e, como Virgínia estivesse tossindo e como o tempo tivesse mudado, retornou a Pont-l’Évêque.
O sr. Bourais orientou-a na escolha de um colégio. O de Caen parecia ser o melhor. Paulo foi enviado para lá; e despediu-se valentemente, satisfeito por ir viver em uma casa onde teria amigos.
A sra. Aubain conformou-se com o afastamento do filho, porque era indispensável. Virgínia pensava nisso cada vez menos. Felicidade, sentia falta da balbúrdia que ele fazia. Mas uma ocupação veio distraí-la; depois do Natal, ela levava todos os dias a menina ao catecismo.
III
Uma vez feita, à porta, uma genuflexão, ela avançava sob a alta nave entre as duas fileiras de cadeiras, abria o banco da sra. Aubain, sentava-se e deixava os olhos vagarem à sua volta.
Os rapazes à direita, as moças à esquerda ocupavam a estala do coro; o pároco permanecia de pé perto da estante do coro; em um vitral da abside, o Espírito Santo se elevava sobre a Virgem; um outro mostrava-a de joelhos diante do Menino Jesus e, atrás do tabernáculo, um grupo em madeira representava São Miguel subjugando o dragão.
De início, o padre fez um resumo da História Sagrada. Ela acreditava ver o paraíso, o dilúvio, a torre de Babel, as cidades completamente em chamas, pessoas que morriam, ídolos derrubados; e guardava desse assombro o respeito pelo Altíssimo e o temor de sua cólera. Depois, chorou ao ouvir a Paixão. Por que o haviam crucificado, ele que amava as crianças, alimentava as multidões, curava os cegos e quisera, por bondade, nascer entre os pobres, sobre o esterco de um estábulo? A semeadura, a colheita, o lagar, todas essas coisas familiares de que fala o Evangelho, encontravam-se em sua vida; a passagem de Deus as havia santificado; e ela sentia mais afeto pelos cordeiros por amor ao Cordeiro, e pelas pombas, por causa do Espírito Santo.
Era-lhe difícil imaginar sua pessoa; já que não era apenas uma ave, mas ainda um fogo e, outras vezes, um sopro. Talvez seja sua luz que paira à noite sobre a margem dos pântanos, sua respiração que empurra as nuvens, sua voz que torna os sinos harmoniosos; e ela se estendia em uma adoração, gozando o frescor das paredes e a tranquilidade da igreja.
Quanto aos dogmas, não compreendia absolutamente nada, nem mesmo se esforçava para compreendê-los. O padre discorria, as crianças recitavam, ela acabava por adormecer; e acordava de repente, quando os outros, ao saírem, faziam soar os tamancos sobre o piso.
Foi dessa maneira, de tanto ouvi-lo, que aprendeu o catecismo, uma vez que sua educação religiosa tinha sido negligenciada na juventude; e desde aquele momento, imitava todas as práticas de Virgínia, jejuando como ela, confessando-se com ela. Para a festa de Corpos Christi fizeram juntas um andor.
A primeira comunhão atormentava-a por antecipação. Preocupou-se com os sapatos, o terço, o livro, as luvas. Com que tremor não ajudou a mãe a vesti-la!
Durante toda a missa, sentiu uma angústia. O Bourais escondia-lhe um lado do coro; mas logo à frente o bando de virgens usando coroas brancas sobre os véus abaixados formavam como que um campo de neve; e reconhecia de longe a menina querida pelo pescoço fino e a atitude recolhida. O sino tocou. As cabeças se curvaram; fez-se silêncio. Ao som do órgão, os cantores e a multidão entoaram o Agnus Dei; então começou o desfile dos meninos; e, depois deles, as meninas se levantaram. Passo a passo e de mãos juntas andavam em direção ao altar todo iluminado, ajoelhavam-se no primeiro degrau, recebiam sucessivamente a hóstia e, na mesma ordem, voltavam aos seus genuflexórios. Quando foi a vez de Virgínia, Felicidade debruçou-se para vê-la e, com a imaginação dos verdadeiros afetos, parecia ser ela mesma aquela criança; aquele rosto se tornava seu, aquele vestido a vestia, aquele coração batia em seu peito; no momento de abrir a boca, fechando as pálpebras, estava a ponto de desmaiar.
No dia seguinte, logo cedo, apresentou-se na sacristia para que o padre lhe desse a comunhão. Recebeu-a devotamente, mas não experimentou as mesmas delícias. A sra. Aubain queria tornar sua filha uma pessoa perfeita e, como Guyot não pudesse lhe ensinar inglês e tampouco música, resolveu colocá-la em um pensionato nas Ursulinas de Honfleur.
A criança não fez nenhuma objeção. Felicidade suspirava, julgando a senhora insensível. Depois considerou que talvez a sua patroa tivesse razão. Todas essas coisas ultrapassavam sua competência.
Um dia, afinal, uma velha traquitana parou em frente à porta e dela desceu uma religiosa que vinha buscar a senhorita. Felicidade pôs a bagagem no carro, fez recomendações ao cocheiro e colocou no baú seis potes de doces e uma dúzia de peras com um ramalhete de violetas.
Virgínia, no último momento, foi tomada por um grande choro; abraçava a mãe que a beijava no rosto, repetindo:
— Vamos! Coragem! Coragem!
O degrau foi levantado e o carro partiu.
Então, a sra. Aubain teve um desfalecimento e à noite todos os amigos — o casal Lormeau, a sra. Lechaptois, as senhoritas Rochefeuille, o sr. de Houppeville e Bourais — apareceram para consolá-la.
De início, a privação de sua filha foi muito dolorosa. Mas três vezes por semana recebia uma carta, nos demais dias escrevia-lhe, passeava no quintal, lia um pouco e, dessa forma, preenchia o vazio das horas.
De manhã, por força do hábito, Felicidade entrava no quarto de Virgínia e olhava as paredes. Sentia falta de pentear os seus cabelos, amarrar-lhe as botinas, colocá-la na cama, — e de ver continuamente seu delicado rosto, de segurá-la pela mão quando saíam juntas. Em sua ociosidade, tentou fazer rendas. Os dedos pesados demais rompiam os fios; não ouvia nada, perdera o sono, segundo sua palavra, estava “minada”.
Para “se distrair”, pediu a permissão para receber seu sobrinho Vítor.
Ele chegava aos domingos após a missa, com as faces rosadas, o peito nu e cheirando aos campos que atravessara. Imediatamente ela botava a mesa. Almoçavam um diante do outro e, comendo ela o menos possível para evitar as despesas, empanturrava-o de tal maneira que ele acabava por adormecer. Ao primeiro toque das vésperas, ela o acordava, escovava suas calças, apertava-lhe a gravata e dirigia-se à igreja, apoiada em seu braço com um orgulho maternal.
Seus pais sempre o encarregavam de conseguir alguma coisa, fosse um pacote de açúcar, sabonete, aguardente, às vezes até mesmo dinheiro. Trazia suas roupas velhas para remendar; e ela aceitava esse trabalho, feliz por haver uma oportunidade que o forçasse a voltar.
No mês de agosto, seu pai enviou-o à marinha.
Era época de férias. A chegada das crianças consolou-a. Mas Paulo tornara-se caprichoso e Virgínia não tinha mais idade para ser tratada por “você”, o que colocava um constrangimento, uma barreira entre elas.
Vítor foi sucessivamente a Morlaix, Dunkerque e Brighton; no regresso de cada viagem ele lhe trazia um presente. Da primeira vez, foi uma caixa de conchas; da segunda, uma xícara de café; da terceira, um grande boneco de pão de mel. Estava tornando-se belo, era magro, tinha um bigodinho, olhos sãos e francos e um pequeno chapéu de couro, que usava para trás como um piloto. Divertia-a contando histórias repletas de termos de marinheiro.
Em uma segunda-feira, 14 de julho de 1819 (ela não esqueceu a data), Vítor anunciou que havia sido recrutado para uma longa viagem e que dali a duas noites, com o navio de Honfleur, iria juntar-se à galé, que deveria partir do porto do Havre em breve. Ele talvez ficasse fora por dois anos.
A perspectiva de tal ausência deixou Felicidade desolada; e, para ainda lhe dizer adeus, na quarta-feira à noite, após o jantar da senhora, vestiu as galochas e percorreu as quatro léguas que separavam Pont-l’Évêque de Honfleur.
Chegando diante do Calvário, em vez de pegar a esquerda, pegou a direita, perdeu-se nos canteiros de obras, voltou para trás; as pessoas que abordava mandavam-na apressar-se. Ela deu a volta na doca repleta de navios, batia nas amarras; depois o terreno se inclinou, as luzes se entrecruzaram e ela acreditou estar louca, avistando cavalos no céu.
À margem do cais, outros relinchavam assustados com o mar. Uma talha, que os levantava, desceu-os no barco onde os viajantes se acotovelavam entre os barris de sidra, os cestos de queijo, os sacos de grãos; ouvia-se o barulho das galinhas, o capitão blasfemava e um grumete permanecia apoiado ao turco da embarcação, indiferente a tudo aquilo. Felicidade, que não o reconhecera, gritou:
— Vítor!
Ele levantou a cabeça; ela avançou quando, de repente, retiraram a escada.
O navio, que mulheres cantando puxavam pelas cordas, deixou o porto. A carcaça estalava, as ondas pesadas fustigavam a proa. A vela virara, não se via mais ninguém; e, sobre o mar prateado pela lua, o navio deixou uma mancha negra que se ia empalidecendo, embrenhou-se nas águas, desapareceu.
— Felicidade, ao passar perto do Calvário, quis recomendar a Deus o que mais amava; e rezou muito tempo de pé, com as faces banhadas em lágrimas, os olhos em direção às nuvens. A cidade dormia, os aduaneiros passeavam; e a água caía sem parar pelos buracos da eclusa com um barulho de torrente. Soaram duas horas.
O locutório não abriria antes do amanhecer. Um atraso, certamente, deixaria a senhora contrariada e, apesar do desejo de beijar a outra criança, ela voltou. As moças do albergue despertavam quando ela entrou em Pont-l’Évêque.
O pobre rapaz durante meses iria então vaguear sobre as ondas! Suas viagens precedentes não a haviam assustado. Da Inglaterra e da Bretanha podia-se voltar; mas a América, as Colônias, as Ilhas, aquilo ficava perdido em uma região incerta, do outro lado do mundo.
Desde então, Felicidade pensou exclusivamente em seu sobrinho. Nos dias de sol, atormentava-se com a sede; quando caía um temporal, temia os raios por ele. Escutando o vento que troava na chaminé e varria as ardósias, via-o batido pela mesma tempestade, no topo de um mastro despedaçado, com o corpo todo para trás, sob um lençol e espuma; ou então — lembranças do livro de geografia estampas — ele era devorado pelos selvagens, aprisionado pelos macacos em uma floresta, morria ao longo de uma praia deserta. E jamais falou de suas inquietudes.
A sra. Aubain tinha outras pela filha.
As freiras achavam que ela era afetuosa, mas delicada. A mínima emoção deixava-a nervosa. Era preciso largar o piano.
A mãe exigia do convento uma correspondência regular. Numa manhã em que o carteiro não viera, impacientou-se e andava pela sala, da poltrona até a janela. Era realmente extraordinário! quatro dias, sem notícias!
Para que ela se consolasse com o exemplo, Felicidade disse-lhe:
— E eu, senhora, já faz seis meses que não recebo nada!...
— Mas de quem?...
A criada replicou suavemente:
— Mas ... de meu sobrinho!
— Ah! seu sobrinho! — E, dando de ombros, a sra. Aubain retomou seu passo, o que queria dizer: “Eu nem penso nele!... Além disso, pouco me importa! Um grumete, um miserável, grande coisa!... Enquanto que minha filha... Imagine só!...
Felicidade, embora crescida em meio à crueldade, indignou-se com a senhora, depois esqueceu.
Parecia-lhe fácil perder a cabeça em se tratando da menina.
As duas crianças tinham uma importância igual; um lugar em seu coração as unia e seus destinos deviam ser os mesmos.
O farmacêutico contou-lhe que o barco de Vítor chegara a Havana. Lera essa informação em uma gazeta.
Por conta dos charutos, ela imaginava Havana como um país onde não se fazia outra coisa senão fumar, e Vítor circulava entre os negros em uma nuvem de tabaco. Podia-se “em caso de necessidade” voltar de lá por terra? A que distância ficava de Pont-l’Évêque? Para sabê-lo, interrogou o sr. Bourais.
Ele pegou o atlas, depois começou explicações sobre longitudes; e estampava no rosto um grande sorriso pedante diante do pasmo de Felicidade. Por fim, com sua lapiseira, indicou nos recortes de uma mancha oval um ponto negro, imperceptível, acrescentando:
— Aqui está.
Ela se debruçou sobre o mapa; aquela malha de linhas coloridas cansava a vista, sem lhe ensinar coisa alguma; e a Bourais, o qual insistia que lhe dissesse o que a perturbava, pediu que lhe mostrasse a casa onde morava Vítor.
Bourais levantou os braços, espirrou, riu a valer; tamanha candura excitava sua alegria; e Felicidade não compreendia o motivo, — ela que esperava talvez ver até o retrato do sobrinho, de tal modo sua inteligência era limitada!
Foi após quinze dias que Liébard, na hora do mercado, como de costume, entrou na cozinha e entregou-lhe uma carta enviada pelo cunhado. Uma vez que nenhum dos dois sabia ler, ela recorreu à patroa.
A sra. Aubain, que contava as malhas de um tricô, colocou-o de lado, deslacrou a carta, estremeceu e, com uma voz baixa, um olhar profundo:
— É uma desgraça... que lhe é anunciada. Seu sobrinho...
Morrera. Não estava escrito mais nada.
Felicidade caiu sobre uma cadeira, apoiando a cabeça na parede e fechou as pálpebras, que, de repente, tornaram-se rosadas. Depois, com a fronte baixa, as mãos caídas, o olhar fixo, repetia em intervalos:
— Pobre menino! Pobre menino!
Liébard via-a soltando suspiros. A sra. Aubain tremia um pouco.
Ela lhe propôs ir ver a irmã em Trouville.
Felicidade respondeu, com um gesto, que não era preciso.
Fez-se silêncio. Liébard, homem simples, julgou conveniente se retirar.
Então ela disse:
— Para eles, isso não significou nada!
Sua cabeça baixou; e maquinalmente ela erguia, de tempos em tempos, as longas agulhas sobre a mesa de costura.
Algumas mulheres passaram no pátio com uma padiola de onde gotejava a roupa.
Vendo-as pela janela, lembrou-se da roupa lavada; tendo-a deixado de molho no dia anterior, precisava hoje enxaguá-la; e saiu do aposento.
A tábua de bater roupa e a tina estavam nos limites do Toucques. Jogou sobre o talude uma pilha de camisas, arregaçou as mangas, pegou a tábua de bater; e os fortes golpes que dava eram ouvidos nos outros quintais ao lado. Os campos estavam vazios, o vento agitava o riacho; ao fundo, a relva alta se inclinava sobre ele como cabeleiras de cadáveres flutuando na água. Reteve sua dor, até a noite foi muito corajosa; mas, em seu quarto, jogou-se de ventre sobre o colchão, com o rosto no travesseiro e os dois punhos contra as têmporas.
Muito depois, pelo próprio capitão de Vítor, conheceu as circunstâncias de seu fim.
Haviam-no sangrado demais no hospital, por causa da febre amarela. Quatro médicos ocuparam-se dele ao mesmo tempo. Morreu imediatamente e o médico chefe dissera:
— Bem! Mais um!
Os pais sempre o tinham tratado com crueldade. Preferiu não os rever; e eles não tentaram nenhuma aproximação, por esquecimento ou por endurecimento dos miseráveis.
Virgínia enfraquecia.
Sufocações, tosse, uma febre contínua e marcas na face revelavam uma enfermidade profunda. O dr. Poupart aconselhara uma estada na Provence. A sra. Aubain decidiu-se e teria imediatamente trazido sua filha para casa, se não fosse pelo clima de Pont-l’Évêque.
Fez um trato com um dono de carros que a levava ao convento todas as terças-feiras. Há no jardim um terraço de onde se descobre o Sena. Ali Virgínia passeava de braços dados com ela sobre as folhas caídas das videiras. Às vezes o sol atravessando as nuvens forçava-a a piscar, enquanto olhava as velas ao longe e todo o horizonte, desde o castelo de Tancarville até o farol do Havre. Em seguida repousavam sob o caramanchão. Sua mãe providenciara um pequeno barril de excelente vinho de Málaga; e rindo com a ideia de ficar levemente embriagada, bebia dois dedos, não mais.
Recobrou forças. O outono passou suavemente. Felicidade tranquilizava a sra. Aubain. Mas, certa noite, quando fora aos arredores fazer compras, encontrou à porta o cabriolé do sr. Poupart; e ele estava no vestíbulo. A sra. Aubain amarrava o chapéu.
— Dê-me meu aquecedor, minha bolsa, minhas luvas. Ande, mais rápido!
Virgínia tinha uma fluxão do peito. Talvez fosse grave.
— Ainda não! — disse o médico; e ambos subiram no carro, sob os flocos de neve que turbilhavam. A noite estava por chegar. Fazia muito frio.
Felicidade precipitou-se para a igreja para acender uma vela. Depois correu atrás do cabriolé, que alcançou uma hora mais tarde, saltou ligeiramente por trás, segurando-se nas barras, quando lhe veio um pensamento: “O pátio não estava fechado! e se entrassem ladrões?” E ela desceu.
No dia seguinte, logo de madrugada, apareceu na casa do médico. Ele tinha chegado e saído novamente para o campo. Depois ela permaneceu no albergue, acreditando que algum desconhecido lhe entregaria uma carta. Por fim, ao amanhecer, pegou a diligência de Lisieux.
O convento encontrava-se no fim de uma ruela íngreme. Aproximadamente no meio, ela ouviu sons estranhos, um toque de finados. “É para outra pessoa”, pensou ela; e Felicidade puxou violentamente a aldrava.
Ao cabo de alguns minutos, chinelos arrastaram-se, a porta entreabriu-se e uma religiosa apareceu.
A freira com um ar de compunção disse que “ela acabara de falecer”. Ao mesmo tempo o sino fúnebre de São Leonardo tocou.
Felicidade chegou ao segundo andar.
Já na soleira do quarto, viu Virgínia estendida de costas, com as mãos juntas, a boca aberta e a cabeça para trás sob uma cruz negra que se inclinava sobre ela, entre as cortinas imóveis, menos pálidas que seu rosto. A sra. Aubain, aos pés do leito que abraçava, soluçava de agonia. A madre superiora estava de pé à direita: Três candelabros sobre a cômoda faziam manchas vermelhas e a névoa esbranquiçava as janelas. Algumas religiosas retiraram a sra. Aubain.
Durante duas noites, Felicidade não deixou a morta. Repetia as mesmas preces, aspergia água benta sobre os lençóis, voltava a sentar-se e contemplava-a. Ao final da primeira noite, notou que o rosto havia amarelado, os lábios azulado, o nariz afinava-se, os olhos afundavam. Beijou-os diversas vezes e não teria experimentado nenhuma imensa surpresa se Virgínia os houvesse reaberto; para semelhantes almas o sobrenatural é muito simples. Fez sua toalete, envolveu-a no lençol, desceu-a para o esquife, colocou-lhe uma coroa, estendeu seus cabelos. Eram louros e de extraordinário comprimento para sua idade. Felicidade cortou uma grande mecha, cuja metade deixou deslizar dentro do peito, decidida a jamais dela se separar.
O corpo foi levado a Pont-l’Évêque, seguindo as intenções da sra. Aubain, que seguia o féretro em um carro fechado.
Após a missa foram necessárias ainda quatro horas para alcançar o cemitério. Paulo andava à frente e soluçava. O sr. Bourais vinha atrás, depois os principais habitantes, as mulheres cobertas de mantas negras e Felicidade. Sonhava com seu sobrinho e por não haver podido lhe render suas honrarias, sentia um acréscimo em sua tristeza, como se o estivessem enterrando com a outra.
O desespero da sra. Aubain foi ilimitado.
Primeiro, revoltou-se contra Deus, julgando injusto de sua parte ter levado sua filha, — ela que jamais fizera mal algum e cuja consciência era tão pura! Mas não! ela deveria tê-la levado ao Sul. Outros médicos a teriam salvado! Acusava-se, queria juntar-se a ela, gritava de angústia no meio dos sonhos. Um deles, sobretudo, obcecava-a. Seu marido, vestido como um marinheiro, voltava de uma longa viagem e dizia-lhe chorando, que havia recebido a ordem de levar Virgínia. Então, planejaram juntos de encontrar um esconderijo em alguma parte.
Certa vez, voltou do quintal, transtornada. Havia pouco (ela mostrava o lugar) o pai e a filha tinham-lhe aparecido um após o outro e não faziam nada; observavam-na.
Durante vários meses, permaneceu no quarto, inerte. Felicidade reprimia-a delicadamente; era preciso conservar-se pelo filho e pela outra, em memória “dela”.
— Ela? — repetia a sra. Aubain, como que acordando. — Ah! sim!... sim!... Você não esquece mesmo! — Alusão ao cemitério que lhe haviam proibido escrupulosamente.
Felicidade lá ia todos os dias.
Às quatro horas precisamente, passava ao longo das casas, subia a encosta, abria a grade e chegava à tumba de Virgínia. Era uma pequena coluna de mármore rosa com uma laje por baixo e correntes em volta circundando um pequeno jardim. Os canteiros desapareciam sob uma cobertura de flores. Regava as folhas, renovava a areia, ajoelhava-se para melhor trabalhar a terra. A sra. Aubain, quando podia vir, sentia um alívio, uma espécie de consolo.

Depois os anos passaram, todos iguais e sem outros episódios senão a volta das grandes festas: Páscoa, Assunção, Todos os Santos. Alguns acontecimentos no interior da casa marcaram data, a que se reportavam mais tarde. Assim, em 1825, dois vidraceiros pintaram o vestíbulo; em 1827 uma parte do teto, ao cair no pátio, quase matou um homem. No verão de 1828, foi a vez de a senhora oferecer o pão bento; Bourais, nessa época, ausentou-se misteriosamente; e os antigos conhecidos aos poucos se foram: Guyot, Liébard, a sra. Léchaptois, Robelin, o tio Gremanville, paralítico havia tempos.
Certa noite, o condutor da mala-posta anunciou em Pont-l’Évêque a Revolução de Julho. Um novo subprefeito, poucos dias depois, foi nomeado: o barão de Larsonnière, ex-cônsul na América e que tinha em casa, além da mulher, a cunhada com três senhoritas, já bem grandes. Eram vistas na relva vestidas de blusas esvoaçantes; possuíam um negro e um papagaio. A sra. Aubain recebeu a visita deles e não se esqueceu de fazer a sua. Por mais longe que fosse de onde aparecessem, Felicidade corria para avisá-la. Mas uma coisa apenas era capaz de comovê-la, as cartas de seu filho.
Ele não podia seguir nenhuma profissão, por estar absorvido nos botequins. Ela lhe pagava as dívidas, ele fazia outras; e os suspiros que soltava a sra. Aubain, tricotando perto da janela, chegavam até Felicidade, que girava a roca na cozinha.
Elas passeavam juntas ao longo da fileira de árvores e falavam sempre de Virgínia, perguntando-se se tal coisa lhe teria agradado, em tal ocasião o que provavelmente teria dito.
Todos os seus pequenos objetos ocupavam um armário no quarto com duas camas. A sra. Aubain os inspecionava o menos possível. Certo dia de verão, resignou-se; e borboletas saíram voando do armário.
Os vestidos alinhavam-se sob uma prateleira onde havia três bonecas, arcos, uma casinha, a bacia de mãos de que se servia. Elas retiraram igualmente os saiotes, as meias, os lenços e estenderam-nos sobre os dois leitos antes de dobrá-los novamente. O sol iluminava aqueles pobres objetos, fazendo aparecer as manchas e as dobras formadas pelo movimento do corpo. O ar estava quente e azul, um melro chilreou, tudo parecia viver em uma profunda tranquilidade. Reencontraram um pequeno chapéu de pelúcia, com longos pelos, de cor marrom; mas estava todo comido por traças. Fixaram os olhos uma na outra, eles se encheram de lágrimas; por fim a patroa abriu os braços, a criada neles se jogou; e abraçaram-se, satisfazendo a dor em um abraço que as igualava.
Foi a primeira vez de suas vidas, pois a sra. Aubain não era uma pessoa de natureza expansiva. Felicidade ficou-lhe grata como por uma caridade e doravante adorava-a com uma devoção bestial e uma veneração religiosa.
A bondade de seu coração desenvolveu-se.
Quando ouvia na rua os tambores de um regimento em marcha colocava-se à porta com uma moringa de sidra e oferecia de beber aos soldados.
Cuidava dos doentes de cólera. Protegia os poloneses; e houve mesmo um que declarou querer se casar com ela. Mas eles se desentenderam; pois certa manhã, ao voltar da igreja, encontrou-o na cozinha, onde entrara e preparara um molho vinagrete que comia tranquilamente.

Depois dos poloneses, foi a vez do velho Colmiche, conhecido por cometer atrocidades em 93. Vivia à margem do riacho, nos escombros de uma pocilga. Os meninos observavam-no pelas fendas do muro e atiravam-lhe pedregulhos que lhe caíam sobre a enxerga, onde jazia, continuamente abalado por um catarro, com os cabelos muito longos, as pálpebras vermelhas e no braço um tumor maior que a cabeça. Ela lhe providenciou roupas, tratou de limpar aquele chiqueiro, sonhava em instalá-lo na casa do forno, sem que isso incomodasse a senhora. Quando o câncer rebentou, ela o tratava todos os dias, algumas vezes trazia-lhe um pouco de bolo, sentava-o no sol sobre um feixe de palha; e o pobre velho, babando e tremendo, agradecia-lhe com a voz apagada, temendo perdê-la, estendia as mãos assim que a via afastar-se. Ele morreu; ela encomendou uma missa para o descanso de sua alma.
Naquele dia teve uma grande felicidade: na hora do jantar, o negro da sra. de Larsonnière apareceu segurando o papagaio na gaiola, com o bastão, a corrente e o cadeado. Um bilhete da baronesa anunciava à sra. Aubain que, na vez que seu marido havia sido promovido para uma prefeitura, eles partiriam àquela noite; e ela pedia que aceitasse este pássaro como uma lembrança e testemunho de seu respeito por ela.
Ele já ocupava há muito tempo a imaginação de Felicidade, pois vinha da América; aquela palavra lembrava-lhe Vítor, tanto que se informava sobre ele com o negro. Certa vez até disse:
— A senhora é que ficaria feliz em tê-lo!
O negro repetira aquela fala à sua patroa que, não podendo levá-lo, livrou-se dele dessa maneira.
IV
Ele se chamava Lulu. Seu corpo era verde, as pontas das asas rosa, a fronte azul e o pescoço dourado.
Mas tinha a irritante mania de morder seu bastão, arrancava as penas, espalhava sua sujeira, derramava a água de sua banheira; a sra. Aubain, a quem aborrecia, deu-o para sempre para Felicidade.
Ela se ocupou a ensiná-lo; logo ele repetia: “Belo rapaz! Às ordens, senhor! Ave Maria!” Ficava perto da porta e muitos espantavam-se que não atendesse pelo nome de Jacquot, uma vez que todos os papagaios se chamam Jacquot. Comparavam-no a um peru, achavam-no estúpido: tantas punhaladas para Felicidade! Estranha obstinação de Lulu de não falar assim que o observavam!
No entanto procurava companhia; pois aos domingos, enquanto as senhoritas Rochefeuille, o sr. de Houppeville e novos freqüentadores — Onfroy o boticário, senhor Varin e o capitão Mathieu — jogavam sua partida de cartas, ele batia nos vidros com as asas e agitava-se tão furiosamente, que era impossível ouvir qualquer coisa.
O rosto de Bourais, provavelmente, parecia-lhe muito engraçado. Logo que o via, começava a rir com todas as forças. Os estalos de sua voz repercutiam no pátio, o eco repetia-os, os vizinhos colocavam-se às janelas, rindo também; e, para não ser visto pelo papagaio, o sr. Bourais passava rente ao muro, dissimulando o perfil com o chapéu, alcançava o riacho, depois entrava pela porta do quintal; e os olhares que lançava ao pássaro não tinham nenhuma ternura.
Lulu recebera do empregado do açougueiro um piparote, quando se permitira afundar a cabeça em seu cesto; e desde então tratava sempre de beliscá-lo através da camisa. Fabu ameaçava torcer-lhe o pescoço, se bem que não fosse cruel, apesar das tatuagens nos braços e das grandes suíças. Pelo contrário! tinha até uma afeição pelo papagaio, querendo mesmo, por brincadeira jovial, ensinar-lhe alguns palavrões.
Felicidade, a quem estas, maneiras desagradavam, colocou-o na cozinha. Tirou-lhe a corrente e ele circulava pela casa.

Quando descia as escadas, apoiava sobre os degraus a curva do bico, levantava a pata direita, depois a esquerda; e ela temia que tal ginástica lhe causasse tonturas. Ele ficou doente, não podia mais falar nem comer. Tinha sob a língua uma membrana grossa, como às vezes a tem algumas galinhas. Ela o curou arrancando essa película com suas unhas. O sr. Paulo, certo dia, teve a imprudência de soprar-lhe nas narinas a fumaça de um charuto; uma outra vez a sra. Lormeau provocou-o com a ponta de sua sombrinha, ele engoliu o aro da mesma, por fim desapareceu.
Ela o havia colocado sobre a relva para refrescá-lo, ausentando-se por um minuto e, quando voltou, nada do papagaio! Primeiro procurou-o nas moitas à beira da água e sobre os telhados, sem ouvir sua patroa que gritava:
— Tome cuidado! Você está louca! Em seguida verificou todos os quintais de Pont-l’Évêque; e parava os passantes.
— Não viram, por acaso, meu papagaio?
— Àqueles que não conheciam o papagaio, dava uma descrição. De repente, acreditou distinguir detrás dos moinhos, ao final das ladeiras, uma coisa verde que esvoaçava. Mas do alto das ladeiras, nada! Um mascate lhe afirmou que o havia encontrado agora mesmo, em Saint-Melaine, na loja da velha Simão. Para lá ela correu. Não entendiam o que ela queria dizer. Por fim, voltou para casa esgotada, os chinelos aos farrapos, com a morte na alma; e sentada no meio do banco, perto da senhora, contava todas as suas peripécias, quando um leve peso lhe pousou sobre o ombro. Lulu! Que diabos tinha ele feito? Talvez tivesse passeado pelos arredores!
Custou-lhe recompor-se, ou melhor, não se recompôs jamais.
Como consequência de um resfriado, ela pegou uma angina; pouco tempo depois, uma dor nos ouvidos. Três anos mais tarde, ela ficou surda; e falava muito alto, mesmo na igreja. Ainda que seus pecados pudessem, sem desonra para ela e sem inconveniência para o mundo, espalhar-se pelos quatro cantos da diocese, o pároco julgou conveniente não mais ouvir sua confissão na sacristia.
Zunidos ilusórios conseguiam atormentá-la. Frequentemente sua patroa dizia:
— Meu Deus! Como você é tola!
Ela retrucava:
— Sim, senhora! — procurando alguma coisa à sua volta.
O pequeno círculo de suas ideias encolheu ainda mais e o badalar dos sinos, o mugido dos bois, não existiam mais. Todos os seres funcionavam com o silêncio das almas. Um único som chegava agora a seus ouvidos, a voz do papagaio.
Como que para distraí-la, ele reproduzia o tique-taque do relógio, o grito agudo de um vendedor de peixes, o serrote do marceneiro que morava em frente e, ao soar da campainha, imitava a sra. Aubain: “Felicidade! A porta! A porta!”
Mantinham diálogos, ele recitando à saciedade as três frases de seu repertório, e ela as respondendo com palavras sem lógica, mas com as quais seu coração se extravasava, Lulu, em seu isolamento, era quase um filho, um amado. Ele escalava seus dedos, mordia seus lábios, agarrava-se a seu lenço; e quando ela se debruçava inclinando a cabeça como as babás, as grandes asas de sua toca e as asas do papagaio tremiam juntas.
Quando nuvens se acumulavam e trovões estrondavam, ele dava gritos talvez se recordando das tempestades de sua floresta natal. O cair das águas excitava seu delírio. Esvoaçava, desvairado subia ao teto, derrubava tudo e pela janela ia agitar-se no quintal; mas voltava rapidamente sobre um dos cães da lareira, e saltitando para secar as plumas, mostrava ora o rabo, ora o bico.
Numa manhã do terrível inverno de 1837, quando ela o colocara diante da lareira, por causa do frio, encontrou-o morto, no meio da gaiola, com a cabeça para baixo e as garras nas barras de ferro. Uma congestão, talvez, o matara? Ela acreditava ter sido um envenenamento pela salsa; e apesar da ausência de qualquer prova, suas suspeitas recaíram sobre Fabu. Chorou tanto, que sua patroa lhe disse:
— Bom! Mande empalhá-lo!
Pediu conselho ao farmacêutico, que sempre fora bom com o papagaio.
Ele escreveu ao Havre. Um certo Fellacher encarregou-se desse trabalho. Mas, como a diligência por vezes perdia os pacotes, ela resolveu levá-lo ela mesma até Honfleur.
As macieiras sem folhas sucediam-se à margem do caminho. Gelo cobria as valas. Cães latiam ao redor das casas e, com as mãos sob o manto, seus pequenos tamancos pretos e a sacola, andava apressadamente, no meio da rua.
Atravessou a floresta, passou Haut-Chêne, chegou a volt Saint-Gatien.
Atrás dela, em uma nuvem de poeira uma mala-posta a todo galope vinha violentamente, acelerada pela descida. Vendo aquela mulher que nem se incomodava, o condutor ergueu-se por sobre a capota e o cocheiro também gritou, enquanto os quatro cavalos, que não conseguia conter, aceleravam a marcha; os dois primeiros roçaram-na; com uma sacudida nas rédeas, ele os jogou para fora do caminho, mas furioso levantou o braço, e com toda a força e o grande chicote acertou-lhe do ventre ao coque um tamanho golpe que ela caiu de costas.
O primeiro gesto ao recuperar a consciência foi abrir o cesto. Lulu não tinha nada, felizmente. Sentiu uma queimação na face direita; as mãos, que a tocaram, estavam vermelhas. O sangue corria.
Sentou-se sobre os pedregulhos, limpou o rosto com o lenço, depois comeu uma côdea de pão colocada no cesto por precaução e consolou-se de sua ferida olhando o pássaro.
Chegando ao topo de Ecquemauville, viu as luzes de Honfleur que cintilavam na noite como um punhado de estrelas; o mar, ao longe, estendia-se confusamente. Então uma fraqueza fê-la parar; e a miséria de sua infância, a decepção do primeiro amor, a partida do sobrinho, a morte de Virgínia, como o fluxo das marés, voltaram ao mesmo tempo e, subindo-lhe pela garganta sufocavam-na.
Depois quis falar com o capitão do barco e, sem lhe dizer o que estava enviando, fez-lhe muitas recomendações.
Fellacher ficou por muito tempo com o papagaio. Prometia-o sempre para a semana seguinte; ao cabo de seis meses, anunciou a remessa de um caixote; e não se falou mais naquilo. Parecia que Lulu não voltaria jamais. “Eles o roubaram de mim!” — pensava ela.
Finalmente ele chegou, — e esplêndido, em pé sobre um galho de árvore, que estava parafusado a um soquete de acaju, com uma das patas no ar, a cabeça inclinada e mordendo uma noz que o empalhador tinha dourado por amor ao grandioso.
Ela o trancou em seu quarto.
Neste lugar, onde apenas poucos podiam entrar, havia um clima ao mesmo tempo de capela e de bazar, de tantos objetos religiosos e coisas heteróclitas que continha.
Um grande armário dificultava a abertura da porta. Do lado oposto da janela, dominando o quintal, um olho-de-boi dava para o pátio; uma mesa, perto da cama de lona, continha um pote de água, dois pentes e um cubo de sabonete azul em um pratinho lascado. Viam-se nas paredes: terços, medalhas, diversas Virgens, uma pia batismal talhada em uma casca de coco; sobre a cômoda coberta com um lençol, como um altar, a caixa de conchas que Vítor lhe havia dado; depois um regador e uma bola, cadernos, o livro de geografia em estampas, um par de botinas; e no prego do espelho, preso pelas fitas, o chapéu de pelúcia! Felicidade cultivava mesmo esse tipo de respeito tão distante que guardava uma das sobrecasacas do senhor. Todas as velharias que a sra. Aubain não queria mais, ela levava para o quarto. Assim havia flores artificiais no canto da cômoda e o retrato do conde de Artois no vão da lucarna.
Com uma prancheta, Lulu foi instalado em um canto da lareira que avançava para dentro do quarto. Todas as manhãs, ao levantar, ela o via na claridade da aurora e se lembrava então dos dias passados e de ações insignificantes em seus menores detalhes, sem dor, com toda a tranquilidade.
Por não se comunicar com ninguém, vivia em um torpor de sonâmbulo. As procissões de Corpus Christi reanimavam-na. Ela ia até os vizinhos pedir tochas e esteiras para embelezar os andores que passavam na rua.
Na igreja, sempre contemplava o Espírito Santo observava que nele havia algo de similar com o papagaio. A semelhança pareceu-lhe ainda mais evidente em uma imagem de Épinal representando o batismo de Nosso Senhor. Com as asas de púrpura e o corpo de esmeralda era realmente o retrato de Lulu.
Tendo-o comprado pendurou-o no lugar do conde de Artois — de maneira que, com um só olhar, via-os juntos. Associavam-se em seu pensamento, o papagaio santificado pela relação com o Espírito Santo, que por sua vez se tornava mais vivo a seus olhos e inteligível. O Pai para expressar-se não deveria ter escolhido uma pomba, uma vez que esses animais não tem voz, mas antes um dos ancestrais de Lulu. E Felicidade fazia suas preces olhando a imagem mas, de vez em quando, virava-se um pouco em direção ao pássaro.
Ela teve vontade de entrar para as Filhas de Maria. A sra. Aubain dissuadiu-a.
Um acontecimento considerável sucedeu: o casamento de Paulo.
Após ter sido primeiro escrivão de cartório, após ter trabalhado no comércio, na alfândega, nas arrecadações e ter mesmo começado a pleitear um emprego nas águas e reflorestamento, aos trinta e seis anos, de repente por uma inspiração dos céus, descobriu seu caminho: o registro! e nele mostrava tamanha habilidade que um aferidor ofereceu-lhe a filha, prometendo-lhe proteção.
Paulo, agora homem sério, trouxe-a até a mãe.
Ela denegriu os hábitos de Pont-l’Évêque, agiu com ares de princesa, ofendeu Felicidade. A sra. Aubain, assim que ela saiu, sentiu um alívio.
Na semana seguinte, souberam da morte do sr. Bourais, na Baixa Bretanha, em um albergue. O rumor de um suicídio acabou se confirmando; levantaram-se dúvidas quanto a sua probidade. A sra. Aubain conferiu suas contas e não tardou a conhecer uma infinidade de falcatruas: desvios de pagamentos, vendas de madeira dissimuladas, falsas quitações etc. Além do mais, tinha um filho natural e “relações com uma certa pessoa de Dozulé”.
Essas baixezas afligiram-na muito. No mês de março de 1853, teve uma dor no peito; sua língua parecia coberta de fumaça, as sanguessugas não acalmaram suas sufocações; e na nona noite ela expirou tendo precisamente setenta e dois anos.
Julgavam-na mais jovem, por causa dos cabelos castanhos, cujos bandôs envolviam o rosto macilento, marcado pela varíola. Poucos amigos entristeceram-se por ela, de tal forma suas maneiras eram de uma altivez que distanciava.
Felicidade chorou-a como não se costuma chorar os patrões. Que a senhora morresse antes dela, isso lhe perturbava as ideias, parecia-lhe contrário à ordem natural das coisas, inadmissível, monstruoso.
Dez dias depois (o tempo de chegarem de Besançon), os herdeiros apareceram. A nora vasculhou gavetas, escolheu alguns móveis, vendeu os demais, depois recuperaram o registro.
A poltrona da senhora, sua mesinha redonda, o aquecedor, as oito cadeiras, foram-se! No lugar das gravuras desenhavam-se quadrados amarelos no meio das paredes. Eles haviam levado as duas camas e os colchões, e dentro do armário não se via mais nenhum dos pertences de Virgínia! Felicidade subiu os andares, ébria de tristeza.
No dia seguinte, havia sobre a porta um cartaz; o boticário gritou-lhe aos ouvidos que a casa estava à venda.
Ela cambaleou e foi obrigada a se sentar.
O que a desolava principalmente era ter de abandonar seu quarto, — tão cômodo para o pobre Lulu. Envolvendo-o em um olhar de angústia, implorava ao Espírito Santo e adquiriu o hábito idólatra de dizer as preces ajoelhada diante do papagaio. Às vezes, o sol entrando pela lucarna atingia seu olho de vidro, fazendo jorrar um grande raio luminoso que a fazia entrar em êxtase.
Tinha uma renda de trezentos e oitenta francos, legados pela patroa. A horta fornecia-lhe legumes. Quanto as vestimentas, tinha com o que se vestir até o fim de seus dias, e economizava luz, deitando-se logo ao crepúsculo.
Ela não saía muito, a fim de evitar a loja do antiquário, onde estavam expostos alguns dos antigos móveis. Desde seu atordoamento, puxava uma perna; e, como suas forças minguavam, a velha Simão, que perdera tudo no armazém, vinha todas as manhãs cortar a lenha e bombear água.
Seus olhos enfraqueceram-se. As persianas não se abriam mais. Muitos anos se passaram. E a casa nem se alugava, nem se vendia.
Com medo de que fosse mandada embora, Felicidade não pedia por nenhum conserto. As ripas do telhado apodreciam; durante todo um inverno a cabeceira de sua cama ficou molhada. Depois da Páscoa, cuspiu sangue. Então a velha Simão recorreu a um médico. Felicidade quis saber o que tinha. Mas, surda demais para ouvir, uma única palavra chegou-lhe aos ouvidos: “pneumonia”. Era-lhe conhecida e replicou suavemente:
— Ah! Como a senhora. — achando natural seguir a patroa.
A época dos altares aproximava-se.
O primeiro era sempre montado ao pé da encosta, o segundo na frente do correio, o terceiro no meio da rua. Houve disputas a respeito desse último; e os paroquianos escolheram finalmente o pátio da sra. Aubain.
As sufocações e a febre aumentavam. Felicidade entristecia-se por nada fazer para o altar. Ao menos, se ela pudesse ter colocado qualquer coisa sobre ele! Então pensou no papagaio. Não era conveniente, objetaram os vizinhos. Mas o pároco deu a permissão; ela ficou tão feliz, que lhe pediu que aceitasse, quando falecesse, Lulu, sua única riqueza.
Da terça-feira ao sábado, na véspera de Corpus Christi, ela tossiu com mais frequência. À noite, seu rosto estava crispado, os lábios colavam-se às gengivas, os vômitos surgiram; e no dia seguinte, ao amanhecer, sentindo-se muito mal, mandou chamar um padre.
Três velhas rodeavam-na durante a extrema-unção. Depois disse que precisava falar com Fabu.
Ele chegou em trajes de domingo, pouco à vontade naquela atmosfera lúgubre.
— Perdoe-me — disse ela com um esforço para estender o braço — Eu acreditava que fora você quem o havia matado!
O que significavam semelhantes asneiras? Ter suspeitado dele como um assassino, um homem como ele! e indignou-se, ia fazer um alvoroço.
— Ela perdeu o juízo, vocês estão vendo!
Felicidade, vez ou outra, falava com as sombras. As velhas afastaram-se. A Simone foi almoçar.
Um pouco mais tarde, pegou Lulu e, aproximando-o de Felicidade:
— Vamos! Diga-lhe adeus!
Embora não fosse um cadáver, os vermes devoravam-no; uma de suas asas estava quebrada, a estopa saía-lhe do ventre. Mas, cega agora, ela o beijou na fronte e o mantinha encostado à face. A Simone pegou-o. de volta para colocá-lo sobre o altar.
V
As pastagens exalavam o aroma do verão; moscas zumbiam; o sol fazia brilhar o ribeirão, aquecia as ardósias. A velha Simão, de volta ao quarto, dormia tranquilamente.
Toques de sino acordaram-na; saía-se das vésperas. O delírio de Felicidade diminuiu. Sonhando com a procissão, ela a via, como se a tivesse acompanhado.
Todas as crianças das escolas, os cantores e os bombeiros andavam nas calçadas, enquanto pelo meio da rua avançavam primeiramente: o suíço carregando a alabarda, o sacristão com uma grande cruz, o instrutor vigiando os garotos, a religiosa inquieta com suas meninas — três das menores, cacheadas como anjos, lançavam no ar pétalas de rosas —, o diácono, com os braços abertos, moderando a música e dois incensadores voltando-se a cada passo em direção ao Santo Sacramento, que o pároco, na sua bela casula, carregava, sob um pálio de veludo vermelho vivo, segurado por quatro membros da igreja. Uma multidão seguia atrás, entre as toalhas brancas cobrindo o murro das casas; e chegou ao final da ladeira.
Um suor frio molhava as têmporas de Felicidade. A Simone a enxugava com um pano, dizendo que precisaria um dia passar por lá.
O murmúrio da multidão aumentou. Tornou-se muito forte por um momento, distanciou-se.
Uma rajada de fuzis abalou os ladrilhos. Eram os postilhões saudando o ostensório. Felicidade virou suas pupilas, e disse, o mais alto que pode:
— Ele está bem? — angustiada pelo papagaio.
Sua agonia começou. E estertores, cada vez mais frequentes, erguiam-lhe as costas. Bolhas de espuma escorriam-lhe pelo canto da boca, e todo seu corpo tremia.
Logo se distinguiu o ronco dos oficlides, as vozes cristalinas das crianças, a voz grave dos homens. Tudo silenciava de vez em quando, e a batida dos passos, amortecida pelas flores, fazia o barulho de um rebanho sobre a relva.
O pároco surgiu no pátio. A Simone subiu em uma cadeira para alcançar o olho-de-boi, e dessa maneira dominava o andor.
Guirlandas verdes pendiam sobre o altar, ornado por um falbalá em ponto inglês. Havia no meio um pequeno quadro contendo relíquias, duas laranjeiras nos cantos e, em todo o comprimento, candelabros de prata e vasos de porcelana, de onde saíam girassóis, lírios, peônias, dedaleiras, cachos de hortênsias. Esse amontoado de cores brilhantes descia obliquamente, do primeiro andar até o tapete, prolongando-se sobre os paralelepípedos; e objetos estranhos atraíam os olhares. Um açucareiro de prata dourada tinha uma coroa de violetas, pingentes em pedras de Alençon brilhavam sobre musgo, dois biombos chineses expunham suas paisagens. Lulu, escondido sob as rosas, só deixava ver sua testa azul, parecida com uma placa de lápis-lazúli.
Os membros da igreja, os cantores, as crianças enfileiraram-se nos três lados do pátio. O padre subiu lentamente os degraus e colocou sobre a renda seu grande sol de ouro que cintilava. Todos se ajoelharam. Fez-se um grande silêncio. E os incensórios, balançados vigorosamente, deslizavam em suas correntinhas.
Um vapor azul subiu no quarto de Felicidade. Ela avançou as narinas, inalando-o com uma sensualidade mística; depois fechou suas pálpebras. Seus lábios sorriam. Os movimentos de seu coração diminuíram um a um, cada vez mais vagos, mais suaves, como uma fonte se esgota, como um eco desaparece; e quando exalou seu último suspiro, ela acreditou ver, nos céus entreabertos, um papagaio gigantesco, planando acima de sua cabeça.


Nota: Conto publicado no livro “Um Coração Simples”, editora Paz e Terra, com tradução de Clotilde Mariano Vaz, Daniel Vaz e Simia Katarina Rickmann.