segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

87 – O Palhaço – A. Moravia

Alberto Moravia (1907-1990) escritor nascido em Roma, um dos mais importantes escritores italianos do século XX. O conto “O Palhaço” faz parte dos Contos Romanos publicado em 1954.

O Palhaço
Alberto Moravia
Tradução de Alessandra Caramori

Naquele inverno, só para fazer alguma coisa, comecei a vagar pelos restaurantes tocando violão enquanto meu companheiro cantava. O companheiro chamava-se Milone apelidado "o professor" porque ensinara ginástica sueca. Tratava-se de um homenzarrão de mais ou menos cinquenta anos, não exatamente gordo, mas quadrado, com um rosto denso e ameaçador e um corpaço maciço que fazia com que as cadeiras rangessem quando se sentava.
Eu tocava o violão do meu jeito, isto é, quase sem me mexer, com os olhos baixos, porque sou um artista e não um bufão; quem bancava o palhaço, ao contrário, era Milone. Começava meio sem querer, em pé, ereto, apoiado a uma parede, o chapeuzinho em cima dos olhos, os polegares sob a axila, a barriga fora das calças, o cinto embaixo da barriga: parecia um bêbado cantando ao luar. Depois, pouco a pouco, esquentava e, mesmo sem cantar de verdade, porque não tinha voz nem ouvido, acabava dando um espetáculo de si mesmo, ou melhor, como eu já disse, bancava o palhaço.
Sua especialidade eram cançõezinhas sentimentais, as mais famosas, as quem normalmente comovem e enternecem, porém na sua boca aquelas canções não comoviam, mas faziam rir, porque ele sabia torná-las ridículas, de um jeito todo seu, desagradável e triste.
Eu não sei o que tinha aquele homem; se na juventude alguma mulher tinha aprontado com ele; ou talvez ele tivesse nascido daquele jeito, com um caráter que se comprazia em tornar ridículas as coisas boas e bonitas; o fato é que ele não era só um ator cômico, não, ele colocava não sei que raiva no que fazia e era necessária toda a obtusidade das pessoas enquanto comem para não perceberem que ele não era ridículo, mas digno de penas.
Superava a si mesmo sobretudo quando se tratava de imitar os movimentos, as caretas e as afetações femininas. O que faz uma mulher, sorri maliciosamente? E ele, por baixo da aba do chapéu, esboçava um riso de escárnio, vulgar, de prostituta. Requebrava, como se diz, um pouco os quadris? E ele começava a dança do ventre, jogando para o lado as nádegas quadradas e maciças como um pacote. Tinha uma voz suave? E ele, apertando a boca, emitia uma voz de flauta, melosa, quase estomacal.
Nunca tinha medida, ultrapassava sempre o limite, tornava-se obsceno, repugnante. De tal maneira, que eu sempre me envergonhava, porque uma coisa é acompanhar um cantor ao violão, outra coisa é servir de muleta a um palhaço. Eu me lembrava de ter tocado não muito tempo atrás as mesmas músicas cantadas seriamente por um excelente artista; e sentia pena de vê-las reduzidas àquilo, irreconhecíveis e indecentes.
Falei com ele numa ocasião em que estávamos batendo perna de rua em rua, de um restaurante a outro. "Mas o que as mulheres fizeram para você?" Normalmente, depois que bancava o palhaço, ficava distraído e sombrio, sabe-se lá com que pensamentos rodando pela sua cabeça. "As mulheres não me fizeram nada." "Eu estou dizendo isso", expliquei, "porque você tira sarro delas com gosto." Desta vez ele não disse nada e a conversa acabou por aí.

Teria abandonado Milone se não tivesse mais interesse por ele; porque, ainda que possa parecer incrível, ele conseguia mais dinheiro com as suas vulgaridades do que muitos excelentes músicos ambulantes com as suas belas canções.
Vagávamos principalmente por aqueles restaurantes não propriamente de luxo, quase cantinas, caseiros, mas caros, onde as pessoas vão para encher a pança e se divertir. logo que entrávamos, eu, muito de leve, dedilhava o violão, das mesas abarrotadas ouvia-se um só grito: "olha o professor... o professor está aí... venha até aqui, professor".
Carrancudo, debochado, desvairado, puxa-saco, Milone se apresentava, dizendo: "Podem pedir", e aquele "podem pedir" já era tão ridículo ao seu modo, que todos morriam de rir. Nisso chegava o macarrão e, enquanto o dono do restaurante esfalfava-se para servir, Milone, com uma voz idiota, anunciava: "Uma canção muito bonita: Quando Rosina desce do vilarejo... eu vou fazer a Rosina" Imaginem os clientes: quando o viam representando Rosina, com as gagues e as obscenidades de sempre, ficavam com os espaguetes pendurados no garfo, entre a boca e o prato. E não se tratava de grupos de açougueiros ou coisa parecida, eram todos grã-finos: os homens de terno azul escuro, engomados, uma pérola espetada na gravata; as mulheres de casaco de pele, cobertas de joias, delicadas, preciosas. Falavam entre si, enquanto Milone bancava o palhaço: "É bom... é realmente bom", ou até mesmo alguém, alarmado, gritava: "Atenção, não contem por aí que nos o descobrimos... se não a coisa desanda".
Entre as suas vulgaridades, Milone tinha uma canção em que, em uma determinada hora, para tornar o personagem mais ridículo, fazia com a boca um certo barulho que eu nem lhes conto. E você acreditam? Eram exatamente as madames mais afetadas que pediam bis para esta música.
É preciso dizer que, por ser ver tão aplaudido, o sucesso tinha subido à cabeça de Milone. Morava na casa de uma costureira, em um quarto mobiliado, escuro e úmido, na via Cimarra. Agora, todas as vezes que eu ia pegá-lo alguma nova grosseria, uma nova vulgaridade. Acrescentava um certo escrúpulo mórbido, como se tratasse de um grande ator preparando-se para a apresentação;  e eu, sentado na cama, olhando-o simular a dança do ventre na frente do espelho da cômoda, perguntava-me se, pro acaso, ele não fosse meio louco.
"Mas não seria hora", perguntei-lhe num certo dia, "de inventar alguma coisa graciosa, comovente?" E ele: "pra ver que você não entende nada... as pessoas quando comem querem rir e não se comover... e eu", acrescentou rancoroso, "faço elas rirem". Algum tempo depois, sempre por causa dessa mania de se aperfeiçoar, inventou de levar em uma maleta algumas roupas femininas por exemplo, um chapeuzinho, uma echarpe, uma sainha para vestir na hora, para tornar a paródia mais cômica ainda. Esta ideia de travestir-se de mulher, nele, era quase uma mania; não podem imaginar que dureza era vê-lo chacoalhar-se com o chapeuzinho sobre os olhos e a saia amarrada na cintura, por cima das calças. Finalmente, não sabendo mais o que inventar, sugeriu que eu também bancasse o palhaço, mesmo continuando a dedilhar o violão. E aí eu me recusei.
Percorríamos o maior número de restaurantes que conseguíamos, do meio-dia às três e das oito à meia-noite. Visitávamos vários, dependendo do dia: um dia os restaurantes dos lados da Piazza di Spagna; um dia aqueles ao redor da Piazza Venezia; outro dia os restaurantes de Trastevere, outro dia ainda aqueles próximos da estação de trem. Entre um restaurante e outro, sempre correndo pelas ruas, não conversávamos: não havia intimidade entre nós. No fim da noite, íamos a uma cantina e dividíamos o dinheiro. Depois, em silêncio, eu fumava um cigarro e Milone bebia um quarto de vinho. à tarde, Milone ensaiava os seus números à frente do espelho; eu, por minha vez, dormia ou ia ao cinema.
Em uma noite de muito frio, depois de ter rodado as trattorias de Trastevere, entramos, mais para nos aquecermos do que para tocar, numa cantina atrás da Piazza Mastai. Tratava-se de um espaço comprido, quase um corredor, com as mesas alinhadas ao longo da parede e, nas mesas, quase só gente pobre, bebendo vinho da casa e comendo comida embrulhada em jornal. Não sei por que, a vaidade, já que não podia ser interesse, levou Milone a se exibir também naquela cantina. Escolheu então uma das suas músicas mais bonitas e, com os modos de sempre, reduziu-a, à força dos escárnios e das contorções, a uma porcaria. Logo que acabou, recebeu um aplauso bastante frio e depois, de uma daquelas mesas, escutou-se uma voz: "Agora, quem vai cantar esta música sou eu".
Virei e vi que se aproximava um rapaz loiro, com um macacão de mecânico, bonito como um anjo, olhando para Milone com olhar furioso, como se quisesse comê-lo. "Você, comece a tocar", disse-me com autoridade, "do início." Milone, fingindo que estava cansado, deixou-se cair em uma cadeira perto da porta. O rapaz me fez sinal com a mão para começar e então se pôs a contar. Não digo que ele cantasse como um verdadeiro cantor, mas cantava com sentimento, com uma voz bonita, quente e tranquila, enfim, cantava como se deve cantar e como a música pedia para ser cantada. Além disso, como eu já disse, era bonito, com aqueles seus cachos, especialmente se comparado a Milone, tão maciço e sórdido. Cantava virado para a cantina, olhando para uma mesa onde estava sentada uma moça sozinha, como se estivesse cantando para ela. Quando terminou, fez um gesto para Milone, com a mão estendida, como se dissesse: "é assim que se canta", e voltou para a mesinha onde o esperava a moça, que em seguida colocou os braços em volta do seu pescoço. Na cantina para dizer a verdade, aplaudiram por que ele tinha se incomodado em cantar. Mas eu o entendera; e, desta vez, Milone também tinha entendido.
Enquanto eu tocava, olhara frequentemente para Milone; tinha visto ele passar muitas vezes a mão no rosto e sob os cabelos que lhe caíam na testa, como quem não está suportando ficar acordado e está caindo de sono. Mas não conseguia esconder uma expressão amarga que eu nunca tinha visto; a cada nova estrofe que o moço acertava, parecia que sua amargura crescia. Finalmente se levantou, espreguiçando-se e fingindo que bocejava e disse: "Bem, está na hora de ir dormir... estou com um sono...".
Despedimo-nos na esquina, com o habitual encontro marcado para ao dia seguinte.  O que aconteceu durante a noite, reconstruí depois, mas são suposições. Eu disse que o sucesso tinha subido à cabeça de Milone, imaginando ser sabe-se lá que grande artista quando na verdade era um pobre coitado que bancava o palhaço para divertir as pessoas enquanto comiam; de modo que foi grande o tombo que aquele rapaz loiro de macacão lhe deu com o seu gesto. Acredito que, enquanto o rapaz cantava, de repente, deve ter visto a si próprio como era e não como tinha até então acreditado ser: um homenzarrão de cinquenta anos que colocava um babador e recitava a Vispa Teresa. Mas acho também que ele se julgava incapaz de cantar, mesmo tendo feito um pacto com o diabo. Ele, em suma, só conseguia fazer rir ridicularizando certas coisas. E estas certas coisas, por coincidência, eram exatamente aquelas que ele, na sua vida, nunca tinha conseguido ter.
Mas, como eu disse, são suposições. O certo é que a costureira que lhe alugava o quarto no dia seguinte o encontrou enforcado entre a janela e a cortina, no lugar em que geralmente ficavam penduradas as gaiolas dos passarinhos. Foram algumas transeuntes a notá-lo, da via Cimarra, vendo, através dos vidro, as pernas e os pés balançando no vazio. Despeitado como todo suicida, tinha fechado a porta à chave e apoiado na porta a cômoda com o espelho: talvez quisesse se ver, como quando ensaiava, enfiando o pescoço no laço. Em suma, tiveram que arrombar a porta, o espelho caiu e se quebrou. Levaram-no ao cemitério Verano e eu fui o único que o acompanhou, desta vez sem violão. A costureira recolocou o espelho, mas se consolou vendendo, a uma certa quantia o metro, a corda.



domingo, 21 de fevereiro de 2016

86 – O dilúvio em Norderney – K. Blixen

Karen Blixen (1885-1962) escritora dinamarquesa, também conhecida como Isak Dinesen, foi uma das maiores contadoras de historias que o mundo já conheceu. O romance “Out of Africa” é sua obra mais conhecida mas o livro de contos “As sete narrativas góticas” que abre com o conto “O dilúvio em Norderney” destacado esta semana, é uma obra que merece ser lida e relida.

O dilúvio em Norderney
Karen Blixen
Tradução Claudio Marcondes
Foi na quadra inicial do século passado que teve início a voga dos balneários litorâneos, mesmo naqueles países setentrionais da Europa cujos habitantes até então haviam considerado o mar uma espécie de demônio, um frio, voraz e tradicional inimigo da humanidade. Naquela época, o espírito romântico – que se rejubilava diante de ruínas, espectros e lunáticos, e fazia de uma noite tempestuosa na charneca e de um profundo conflito passional regalos mais requintados para o conhecedor do que as amenidades de salão e a harmonia dos sistemas filosóficos - reconciliou até mesmo os indivíduos mais refinados com a eterna rusticidade da paisagem costeira e do mar aberto. Com isso, damas e cavalheiros elegantes trocaram a sombra de seus parques por caminhadas em litorais desolados e a contemplação das ondas indomáveis. A proximidade de algum naufrágio, com os restos da embarcação ainda visíveis na maré baixa, como um escuro esqueleto petrificado e salgado, tornou-se um dos locais prediletos para piqueniques, nos quais artistas armavam seus cavaletes.
A costa ocidental de Holstein viu assim surgir e prosperar por duas décadas o balneário de Norderney. Os caminhos arenosos dessa região costeira passaram a ser percorridos por belas carruagens e coches, que depositavam baús e malas, e damas de pés delicados, com véus e mantas de chenile esvoaçando na brisa fresca, diante dos pequenos e graciosos hotéis e chalés. O duque de Augustenburg, em companhia de sua bela esposa e de sua espirituosa irmã, assim como o príncipe de Noer, costumavam honrar o lugar com sua presença. Tanto a nobreza fundiária de Schleswig-Holstein, agitada pelas recentes turbulências politicas, como os representantes das tradicionais casas mercantis de Hamburgo e Lübeck, que valiam seu peso em ouro, empreendiam juntos essa peregrinação ao âmago da natureza. Os próprios camponeses e pescadores de Norderney aprenderam a ver o terrível e infiel monstro cinzento a oeste como uma espécie de maître de plaisir.
Ali havia uma esplanada, um clube e um pavilhão, o ponto de encontro, nos prolongados crepúsculos de verão, de muitos sons e cores amáveis. Damas com filhas casadoiras, após terem passado muitas temporadas infrutíferas nas cortes e capitais, agora acompanhavam o amadurecimento de promissores namoros na praia ensolarada. Jovens dândis conduziam suas montarias pelas extensas praias sob olhares atentos. Cavalheiros idosos enfronhavam-se em questões politicas e dinásticas, embalados por doses de excelente rum, enquanto suas jovens esposas caminhavam, com as caxemiras nos braços, até clareiras solitárias nos baixios, ainda acaloradas pelo longo dia estival, a fim de comungar com a natureza, com os arbustos mirrados e os amores-perfeitos sacudidos pelo vento, e contemplar a lua cheia, no alto do pálido céu de verão. O próprio ar da costa, em seu desdenhoso vigor, estimulava e reanimava o coração. Para Heinrich Heine, que conheceu o balneário, o persistente cheiro de peixe que emanava das filhas dos pescadores de Norderney era mais do que suficiente para lhes resguardar a virtude. Todavia, outros narizes e corações consideravam intoxicante o odor repulsivo e salobro, tal como o cheiro de pólvora no campo de batalha. E havia também ali um pequeno cassino, onde era possível desafiar de outro modo as perigosas potências da existência. As vezes promoviam-se até mesmo grandes bailes e, nos amenos crepúsculos de verão, a orquestra tocava no terraço.
– O senhor não tem ideia – disse a princesa de Augustenburg a Herr Gottingen – do quanto nos faz bem esse lugar. A brisa marinha sopra através de minha touca e de minhas roupas, e mesmo através de minha carne e meus ossos, limpando meu coração e meu espírito, deixando-os secos e salgados.
– Com sal ático, imagino – replicou Herr Gottingen fitando-a, enquanto pensava consigo mesmo: "Meu Deus, exatamente como um bacalhau aberto ao meio".
No final do verão de 1835, porem, um terrível desastre abateu-se sobre o balneário de Norderney. Após uma tempestade de três dias vinda do sudoeste, a ventania deslocou-se para o norte. Isto ocorre apenas uma vez a cada cem anos. A tremenda massa de água impelida pela tormenta foi desviada e empurrada para a região de Westerland. Em dois pontos, os diques não resistiram, e o mar irrompeu por ali. Centenas de bois e carneiros morreram afogados. Casas de fazendas e celeiros ruíram como castelos de cartas sob a força das águas, e muitas vidas humanas se perderam até mesmo em locais distantes como Wilsum e Wredon.
Tudo começou em um entardecer extraordinariamente tranquilo e celestial, mas com o ar sufocante e uma estranha e luminosa opacidade sulfurosa. Não havia como distinguir a linha entre o céu e o mar. O sol se pôs em uma confusão de luz, ele próprio exibindo um rubor opaco, como um alvo que havia na esplanada. As ondas pareciam formadas de uma substancia curiosa, como se fossem águas-vivas lançadas a praia. Era um anoitecer extremamente inspirador e muita coisa aconteceu em Norderney. Naquela noite, as pessoas que não permaneceram despertas devido às batidas de seus próprios corações acordaram aterrorizadas por um rugido novo que se aproximava rapidamente. Seria possível que aquele mar tão conhecido estivesse agora cantando com tal voz?
Pela manhã, o mundo era outro, ainda que ninguém pudesse explicar a diferença. Ninguém conseguia conversar, ou mesmo pensar, em meio ao ruído. As roupas começavam a ser arrancadas pela venta­nia antes mesmo que se avistasse a areia, e a espuma salgada rodopiava em direção ao céu. Imensas e violentas ondas quebravam em sucessão, cada qual mais forte que a anterior. O ar era frio e cortante
 O rumor de que um barco havia encalhado quatro milhas ao norte alcançou o balneário, mas ninguém se aventurou a ir até lá. O velho general Von Brackel, que vira a ocupação da Prússia Oriental pelas tropas napoleônicas em 1806, e o idoso professor Schmiegelow, o médico da casa principesca de Coburg, que estava em Nápoles na época da cólera, percorreram juntos uma pequena distância e, calados, contemplaram a paisagem do alto de uma pequena colina. Foi somente na quinta-feira, quando a tempestade havia terminado, que começou a inundação.
Nessa altura, não restava muita gente em Norderney. A temporada já estava chegando ao fim, e vários dos visitantes mais ilustres haviam partido antes da chegada da tempestade. Agora a maioria dos retardatários partiu apressada. As jovens encostavam o rosto nas janelas das carruagens, excitadas para vislumbrar pela última vez a paisagem convulsionada. Parecia que estavam deixando para trás o único local e verdadeiro momento de suas vidas. Todavia, quando a imponente carruagem do barão Goldstein, de Hamburgo, foi arremessada pelo vento para fora da estrada sobre o dique, tornou-se óbvio que não havia mais o que esperar. E todo o mundo partiu o mais rápido possível.
Foi durante essas horas, as últimas da tempestade e as primeiras da noite seguinte, que o mar rompeu os diques. Construídos para resistir a uma forte pressão no sentido do mar, não resistiram quando forçados a partir do leste. Ruíram ao longo de um trecho de quase um quilometro e por essa abertura assomaram às águas do mar.
Os camponeses foram despertados pelos mugidos queixosos de seus animais. Saltando da cama em plena escuridão, mergulhavam os pés em quase meio metro de água fria e barrenta. E era água salgada, a mesma que se agitava a oeste, com uma profundidade de cem braças, e banhava os sopés esbranquiçados dos penhascos de Dover. O mar do Norte chegara para fazer-lhes uma visita. E estava subindo com rapidez. Uma hora depois, os móveis já estavam boiando e chocando-se contra as paredes baixas das casas. Quando raiou o dia, aos lavradores, encarapitados nos telhados das casas, só restava contemplar a paisagem transformada. Arvores e arbustos agora balançavam em um solo cinzento e movediço, e uma espessa espuma amarelada cobria trechos das plantações de cereais prontas para a colheita, sobre a qual haviam conversado poucos dias antes da tempestade.
Inundações assim já haviam ocorrido no passado. Alguns dos mais velhos ainda podiam relatar aos jovens como, certa vez, foram arrancados das camas e jogados em botes por suas mães desesperadas, e como viram, desde as casas periclitantes, o gado lutando em vão antes de desaparecer nas aguas escuras. Também contavam como haviam perecido os arrimos de família, provocando a ruína e a perdição de muitos lares. O mar se comportava assim de tempos em tempos. A despeito disso, essa ultima inundação permaneceria por muito tempo gravada nas lembranças do litoral. Por ter ocorrido na época do verão, o dilúvio assumiu o caráter de uma pilhéria terrível e soturna. Nos anais da província, onde ocupa um lugar próprio e possui um nome, ficou conhecido como "dilúvio do cardeal".
Isto se deve ao fato de que, em meio a sua desgraça, as pessoas aterrorizadas contaram com a ajuda de um personagem já então meio mítico, e sentiram que estavam na proximidade de um anjo da guarda. Muitos anos depois, na lembrança dos camponeses, parecia que tal presença em meio ao profundo desespero lançara um foco de luz clara sobre as negras ondas.
O cardeal Hamilcar von Sehestedt passara o verão em uma pequena cabana de pescador situada fora do balneário, onde coligia suas anotações de muitos anos para um livro sobre o Espirito Santo. Tal como Joaquim de Flora, que nascera em 1202, o cardeal sustentava que, embora o livro do Pai tivesse adquirido sua forma no Antigo Testamento, e o do Filho no Novo Testamento, ainda restava escrever o testamento da Terceira Pessoa da Trindade. E era isto o que entendia ser a tarefa de sua vida. Ele crescera na região de Westerland, e preservara, durante uma longa vida de viagens e obras espirituais, o amor pela paisagem costeira e pelo mar. Nos momentos de descanso, costumava, seguindo o exemplo do próprio são Pedro, passar longas horas no mar em barcos de pescadores, observando-os em sua labuta diária. Na cabana, vivia apenas com uma espécie de valete ou secretario, um homem chamado Kasparson. Este havia sido ator e aventureiro, e a sua maneira era um individuo brilhante, que falava varias línguas e dedicara-se a todo o tipo de estudos. Era muito devotado ao cardeal, mas parecia um curioso Sancho Pança para o nobre cavaleiro da Igreja.
Na época, o nome de Hamilcar von Sehestedt era famoso em toda a Europa. Fora ordenado cardeal três anos antes, ao completar setenta anos. Era uma estranha flor nascida no venerável e solido tronco da arvore genealógica dos Sehestedt. Essa antiga e nobre estirpe da província havia passado varias centenas de anos dedicando-se apenas às guerras e às suas terras antes de afinal produzir aquele indivíduo. Uma das coisas notáveis a respeito deles é que se haviam apegado, apesar de todas as tribulações, à antiga fé romana e católica da região. Simplesmente não tinham agilidade de espirito para modificar o que lançara raízes em suas cabeças. O cardeal tinha nove irmãos e irmãs, nenhum dos quais jamais demonstrou a menor inclinação para a vida espiritual. Era como se algum lento e pouco usado acumulo de intelectualidade na tribo tivesse aflorado somente naquele rebento. Talvez uma mulher, trazida do exterior, tenha instilado um pensamento no sangue da tribo antes de se tornar uma perfeita Sehestedt, ou talvez alguma ideia em um livro tenha se gravado em um menino antes que lhe inculcassem a inutilidade dos livros e das ideias, e tudo isto fora se acumulando ao longo das gerações.
O extraordinário talento do jovem Hamilcar havia sido reconhecido, não por sua própria gente, mas por seu tutor, que fora tutor também do príncipe herdeiro da Dinamarca. E ele conseguiu levar o menino a Paris e Roma. Ali essa nova luz do gênio subitamente refulgiu em todo o seu esplendor, impossível de ser ignorado. Corria até mesmo uma história de que o próprio papa, após conhecer o jovem sacerdote, vislumbrara em sonho que este fora destinado pela Providência a conquistar de volta à Santa Sé as grandes nações protestantes. Ainda assim, a Igreja impusera duras provas ao jovem, desconfiando de muitas de suas ideias e capacidades, de seu dom visionário e do aspecto mais saliente de sua natureza: uma extraordinária compaixão que abarcava não só os pecadores e os miseráveis, mas até mesmo os potentados e santos do mundo. A severidade com que foi tratado não o prejudicou, pois a obediência estava arraigada em sua natureza. À enorme força de sua imaginação, ele acrescentou um profundo amor da lei e da ordem. Talvez no final esses dois aspectos apontassem na mesma direção: para ele tudo parecia possível, e igualmente capaz de participar do belo e harmonioso esquema do universo.
Mais tarde, o papa diria a respeito dele: "Se, antes da destruição do mundo atual, eu tivesse de encarregar um ser humano da construção de um novo mundo, o único a quem confiaria tal tarefa seria o jovem Hamilcar". Em seguida, contudo, rapidamente fez o sinal-da-cruz duas ou três vezes.
Após ter sido formado pela Igreja, Hamilcar revelou-se um homem do mundo na antiga acepção do termo, mas em um grau novo e mais grandioso. Circulava com a mesma facilidade entre reis e párias. Enviado aos mosteiros missionários no México, conseguira exercer enorme influencia sobre as tribos indígenas e mestiças. Havia nele algo que impressionava a todos, em toda a parte: acreditava-se que era capaz de realizar milagres. Na época de sua estada em Norderney, os rijos e rudes moradores da costa vieram a pensar estranhas coisas a respeito dele. Após a inundação, muitos chegaram até mesmo a dizer que Hamilcar fora visto caminhando sobre as ondas.
É possível que tenha enfrentado alguma dificuldade nessa façanha, pois quase morreu bem no início dos acontecimentos. Quando acorreram para ajudá-lo assim que começou a inundação, os pescadores do vilarejo encontraram sua cabana bastante destruída. No desmoronamento, o tal Kasparson havia morrido. O próprio cardeal ficara gravemente ferido, e, durante todo o seu esforço para resgatar outras pessoas, foi obrigado a usar uma longa e ensanguentada atadura na cabeça.
À despeito disso, o velho dedicou-se o dia todo, com impávida coragem, a ajudar as pessoas arruinadas. À disposição delas colocou todo o dinheiro de que dispunha. Esta foi a primeira contribuição para os fundos que mais tarde seriam reunidos em beneficio dos sofredores de toda a Europa. Porém, ainda maior foi o efeito de sua presença entre os necessitados. Quando demonstrou que podia conduzir um bote, ninguém acreditava na possibilidade de que o barco em que estivesse fosse a pique. Sob o comando do cardeal, remavam por todas as partes entre os edifícios desmoronados, e as mulheres saltavam dos telhados para os barcos, com os filhos nos braços. De tempos em tempos, ele os animava com voz forte e límpida, citando versículos do livro de Jó. Uma ou duas vezes, quando seu barco, atingido por pesados troncos flutuantes, quase emborcou, ele se levantou e estendeu o braço, e, como se recorresse a uma força de equilíbrio sobrenatural, a embarcação voltava a se firmar. Junto a casa de uma propriedade rural, um cão acorrentado, no topo de um canil prestes a ser engolido pela água do mar, tentava livrar-se da corrente em meio a uivos, e parecia ter enlouquecido de terror. Um dos homens tentou agarrá-lo, mas foi mordido pelo animal. O velho cardeal, aproximando o barco, começou a falar com o cão enquanto afrouxava a corrente. Por fim, o animal saltou para bordo. Ganindo, aconchegou-se junto às pernas do velho e recusou-se a deixa-lo.
Muitos lares camponeses foram salvos antes que alguém se lembrasse do balneário. Isto era curioso, uma vez que a vida abastada e alegre dali desempenhara importante papel no espírito da população local. Na hora do perigo, porém, os antigos laços de sangue e convivência revelaram-se mais fortes do que o fascínio mais recente. No balneário havia embarcações leves para excursões, mas poucos sabiam manejá-las. Somente ao meio-dia os barcos mais pesados foram enviados para lá, navegando quase dois metros acima da esplanada.
Ao retornarem à terra firme, um moinho de vento, erguido sobre um talude baixo e um bastião semicircular de grandes pedras, proporcionava um local para se atracar os barcos. Do outro lado do moinho era possível mover-se precariamente por um caminho seco. Por ali, a certa distancia, haviam sido trazidos cavalos e carretas. O moinho constituía um bom ponto de referenda, suas grandes pás alçadas, duras e sombrias, uma grande cruz negra em ruinas destacando-se no céu ocre. Uma multidão acabou se reunindo ali, a espera dos barcos de resgate. Quando voltaram do balneário pela primeira vez, não houve lágrimas de boas-vindas ou reencontro, pois as pessoas que traziam, luxuosamente vestidas - até mesmo naquela hora de pânico - com pesados porta-joias sobre os joelhos, não passavam de estranhos. Por fim, o último barco trouxe noticias de que ainda havia, em Norderney, quatro ou cinco pessoas que tiveram de ser deixadas para trás pois não havia mais lugares na embarcação.
Exaustos, os barqueiros se entreolharam. Tendo enfrentado a maré forte e o mar alto, pensaram que de modo nenhum gostariam de lá retornar. O cardeal Hamilcar estava no meio de um grupo de mulheres e crianças, de costas para os homens, mas, como se pudesse ver seus rostos e corações se endurecendo, ele se calou. Voltando-se, fitou as pessoas que haviam acabado de desembarcar. Até mesmo ele parecia hesitar. Por baixo da atadura esbranquiçada, contemplou-os com uma expressão peculiar e misteriosa. Como não havia comido nada até então, pediu algo para beber e trouxeram-lhe uma jarra com a aguardente local. Virando-se outra vez em direção a água, disse por fim em voz baixa: "Eh bien. Allons, allons". As palavras não foram entendidas pelos camponeses, pois eram termos que os cocheiros da nobreza, treinados no exterior, usavam para espicaçar os quatro cavalos de suas carruagens. Enquanto caminhava até o barco, e a gente do balneário se dispersava à sua frente, algumas das senhoras de repente começaram a bater palmas fervorosamente. Não foi por mal que agiram assim. Habituadas ao heroísmo no palco, só lhes ocorreu louvá-lo com palmas teatrais. Mas o homem idoso imobilizou-se por um instantes sob os aplausos. E inclinou ligeiramente a cabeça, com refinada ironia, a maneira de um herói no teatro. Suas pernas estavam tão rígidas que teve de ser erguido e carregado para bordo.
Já chegava ao fim da tarde de quinta-feira quando o barco pode tomar o caminho de volta. Durante todo o dia uma escuridão opaca descera sobre a larga paisagem. Até onde a vista alcançava, o que antes fora uma extensão ondulante de terra não passava agora de uma ampla planície cinzenta, dotada de alarmante vivacidade. Não parecia haver firmeza em nada. Para os corações aflitos dos homens que remavam por entre prados e campos de trigo, essa instabilidade daquilo que fora seu chão e ponto de apoio era algo insuportável, e nada podiam fazer além de desviar os olhos. As nuvens acumulavam-se perto das aguas. Movendo-se lentamente, o pequeno barco parecia seguir um estreito curso horizontal, espremido entre a densa massa inferior e o que parecia ser uma densa massa acima. Na popa da embarcarão iam quatro pessoas lívidas  como cadáveres, recém-resgatados das ruínas de Norderney
A primeira delas era a idosa senhorita Nat-og-Dag, uma solteirona riquíssima, a última de uma antiga e ilustre estirpe que possuía um brasão bipartido em preto e branco, e cujo nome significava "noite e dia". Com quase sessenta anos, mergulhara poucos anos antes em um estado de confusão mental. Embora fosse uma dama de virtude impoluta, convenceu-se de ter sido uma das maiores pecadoras de sua época. Estava acompanhada de uma jovem de dezesseis anos, a condessa Calypso von Platen Hallermund, sobrinha do erudito e poeta do mesmo nome. Essas duas damas, embora se comportassem em meio ao perigo com evidente sangue-frio, davam apesar disso aquela impressão de ferocidade que, em uma época e uma sociedade pacíficas, é encontrada apenas em uma evanescente e decadente aristocracia. Para o grupo de resgate, era como se tivesse recolhido a bordo duas tigresas, uma idosa e a outra jovem, esta claramente selvagem e a mais velha ainda mais ameaçadora devido a sua aparência de domesticidade. Nenhuma delas demonstrava o menor temor. Quando somos jovens, a ideia da morte e do fracasso nos parece intolerável; não podemos suportar nem mesmo a possibilidade do ridículo. Mas também possuímos uma inquebrantável fé em nossa estrela, e na impossibilidade de algo se voltar contra nós. À medida que envelhecemos, pouco a pouco passamos a crer que tudo ira se resolver em nosso detrimento, e que o fracasso faz parte da natureza das coisas; mas aí pouco nos importa que nos aconteça uma ou outra coisa. Com isso alcançamos um equilíbrio. A senhorita Malin Nat-og-Dag, embora perfeitamente indiferente ao que o destino lhe reservara, também reivindicava para si, devido ao seu desregramento mental, além dessa vantagem de sua idade, o privilegio da juventude, aquele otimismo simplista e arrogante que dá por certo que nada de errado possa lhe ocorrer. É até mesmo de se duvidar que acreditasse que poderia morrer. A jovem de dezesseis anos, espremida ao seu lado, com as escuras tranças a esvoaçar, absorvia com êxtase tudo ao seu redor: os rostos dos companheiros, os balanços do barco, o terrível e pardacento tom da água, enquanto se imaginava como uma poderosa divindade do mar.
O terceiro membro do grupo resgatado era um jovem dinamarquês, Jonathan Maersk, que fora enviado a Norderney por seu médico, a fim de se recuperar de um grave surto de melancolia. O quarto era a criada da senhorita Malin, que estava prostrada no fundo do barco, aterrorizada demais para erguer o rosto acima dos joelhos da patroa.
Essas quatro pessoas, resgatadas no ultimo instante, ainda não haviam escapado completamente das garras da morte. Quando o barco, a caminho de um porto seguro, passou ao lado das construções dispersas de uma fazenda, das quais se viam acima das águas apenas os telhados e a parte superior das paredes, elas avistaram seres humanos que lhes faziam sinais do alto de um dos edifícios. Os barqueiros ficaram surpresos pois tinham certeza de que uma barcaça passara por ali horas antes. Sob os imperiosos olhares da jovem Calypso, que vislumbrara crianças entre os desgarrados, mudaram de rumo e rumaram com dificuldade para o local. Ao se aproximarem, um pequeno celeiro, do qual se via apenas o telhado, subitamente desmoronou, e desapareceu em silencio diante de seus olhos.
Assim que viu isto, Jonathan Maersk ergueu-se no barco. Por um instante tentou seguir com o olhar os destroços que se dispersavam na água. Em seguida, muito pálido, voltou a sentar. O barco raspou pela parede da casa principal e, por fim, pode ser amarrado a uma viga que se projetava, permitindo-lhes conversar com os refugiados no celeiro. Ali estavam duas mulheres, uma velha e a outra jovem, um rapaz de dezesseis anos e duas crianças pequenas, que contaram ter sido visitados pela barcaça de resgate cerca de três horas antes. No entanto, haviam aproveitado a ocasião para salvar uma vaca e seu bezerro, assim como alguns poucos e pobres bens, permanecendo heroicamente ali, em meio as águas que subiam. À mulher mais velha até mesmo fora oferecido um lugar no barco, ao lado dos animais, mas ela se recusara a abandonar a filha e os netos.
Como o barco não poderia receber uma carga adicional de cinco pessoas, era preciso decidir rapidamente quais passageiros trocariam de lugar com os camponeses. Aqueles que fossem deixados no celeiro teriam de ficar ali até que outro barco pudesse retornar. Como estava escurecendo, isto significaria uma espera de seis ou sete horas. A questão era saber se o edifício resistiria por tanto tempo.
Erguendo-se com seu manto escuro esvoaçando, o cardeal declarou que ficaria no celeiro. Ao ouvirem tais palavras, os ocupantes do barco foram lançados em negro desespero, pois temiam retornar sem a presença dele. Os barqueiros largaram os remos e imploraram que não os abandonasse. Mas o cardeal mostrou-se irredutível, e explicou-lhes que ali estaria na mão de Deus tanto quanto em qualquer outra parte, ainda que talvez sob um dedo diferente, e que aquele bem poderia ter sido o motivo de ele ter participado desse ultimo resgate. Eles então se convenceram de que nada obteriam dele, e se conformaram com seu destino. Em seguida, a senhorita Malin resolveu fazer-lhe companhia, e a condessa também decidiu ficar, para não abandonar a velha amiga. Como se despertasse de um sonho, o jovem Jonathan Maersk disse que ali ficaria com os outros. No ultimo momento, a criada exclamou que não abandonaria a patroa, e os homens já começavam a erguê-la do fundo do barco quando a senhorita Malin cravou-lhe um olhar semelhante àquele que, em um jogo de cartas, lançamos a alguém que se oferece para completar uma segunda dupla de jogadores.
– Minha querida – disse ela não há necessidade disso. Além do que, provavelmente você está a caminho de formar uma família e, por isso, o melhor e garantir o futuro, minha cara. Boa noite, Mariechen.
Não foi muito fácil para as mulheres passarem do barco ao celeiro. A senhorita Malin, contudo, era magra e forte, e os homens a ergueram e a depositaram na entrada como se fosse um espantalho em um campo. A pequena e ágil garota a seguiu como um gato. 0 cão negro, ao ver o cardeal deixar o barco, ganiu alto e pulou de repente para o celeiro, onde foi agarrado pela jovem. Chegou então o momento de a família camponesa embarcar, mas só o fizeram depois de ter, chorando copiosamente, beijado as mãos e cumulado de bênçãos os seus salvadores. A mulher mais velha insistiu em lhes deixar uma pequena lamparina de estábulo com algumas velas de reserva, um cântaro com água e um barrilete de gin, juntamente com um pedaço do pão preto duro apreciado pelos camponeses da região de Westerland.
No barco, os homens começaram a remar e, pouco depois, um cinturão de água pardacenta estendeu-se entre a casa e a embarcação.
Da porta do celeiro, os abandonados observaram o barco se afastar pouco a pouco, pois estava bem carregado, através da planície ondulante. Perto da casa, os galhos dos altos choupos boiavam na superfície da água e eram arrastados com violência. O céu escuro, que durante todo o dia oprimira o mundo como uma tampa de chumbo, de repente coloriu-se no oeste, como se uma pequena fresta tivesse sido aberta, permitindo que raios vermelhos flamejantes refletissem no mar. Todos os rostos no barco estavam voltados para o celeiro e, quando estavam prestes a desaparecer, acenaram em despedida. De pé na porta do celei­ro, o cardeal também ergueu solenemente os braços em uma benção. A senhorita Malin agitou um lencinho. Logo depois o barco, esfumando-se na distancia, fundiu-se ao mar e ao céu.
Como se fossem marionetes, movidas pelos mesmos fios, as quatro pessoas se entreolharam.
"Como será que é dançar com ele?" indaga-se uma jovem quando, no baile, o chapeau lhe e apresentado. E talvez até acrescente: "Como seria ele como namorado, como epouseur, como aquele que me foi destinado?".
"Como seria morrer com essas pessoas?", perguntaram a si mesmos os que restaram no celeiro, perscrutando os semblantes alheios. Sempre inclinada a ver o lado luminoso das coisas, a senhorita Malin deu-se por satisfeita com seus parceiros.
Coube ao cardeal dar expressão a esses pensamentos. Permaneceu por instantes em profundo silêncio, como se necessitasse de um tempo para se habituar de novo com a firmeza de uma casa, após passar o dia todo navegando em aguas inquietas, e com uma atmosfera de relativa tranquilidade após tantas horas de perigo constante - afinal, provavelmente nada iria acontecer ali por enquanto - e, também, para se acostumar com a companhia de seus pares, depois de tantos esforços ao lado de camponeses e pescadores abatidos. Pouco a pouco, seu comportamento deixou de ser o de um comandante e tornou-se o de um convive. Sorrindo para os companheiros, disse:
– Minhas irmãs e meu irmão, e para mim uma honra estar entre pessoas tão corajosas. Antevejo com prazer as horas que, pela graça de Deus, vou passar na companhia de vocês. Madame – acrescentou, dirigindo-se a senhorita Malin –, não me surpreende em nada a sua bravura, pois já ouvi falar de sua família. Foi um Nat-og-Dag que, em Warberg, quando o cavalo do rei foi abatido, saltou de sua própria montaria e a ofereceu ao soberano, dizendo "Para o rei, o meu cavalo; para o inimigo, a minha vida; para o Senhor, a minha alma". E, se não me engano, foi um Svinhoved - o seu trisavó - que, na batalha naval de Koege, em vez de expor o resto da esquadra dinamarquesa as labaredas que lhe consumiam o navio, preferiu continuar lutando até o ultimo suspiro, até que  o fogo alcançasse a pólvora no paiol e provocasse uma explosão que acabou com ele e a tripulação. Aqui – prosseguiu, abrangendo em um olhar todo o sótão do celeiro – que me seja permitido dizer o seguinte: Abençoados os de sangue puro, pois eles encontrarão... – fez uma pausa, como se refletisse sobre o tema – ...a morte. Eles contemplarão, verdadeiramente, a face da morte. Para este momento que vivemos, para nós, nossos pais foram adestrados, ao longo de séculos, no uso das armas e na lealdade ao soberano; e nossas mães, na virtude.
Não poderia ter dito nada mais apropriado para fortalecer e inspirar os corações das mulheres, pois ambas eram ferozes demônios em se tratando de orgulho familiar. O jovem Jonathan Maersk, o único burguês do grupo, chegou a ensaiar um gesto de protesto, mas não o completou.
Em seguida tentaram fechar a porta do sótão mas, como estava frouxa e continuava a bater, o cardeal pediu as mulheres que encontrassem algo com que prende-la. A jovem tateou sua cabeça, em busca da fita que usava para prender o cabelo, mas esta se perdera. A senhorita Malin então ergueu a saia e dali retirou uma jarreteira, bordada com botões de rosa.
– O zênite na carreira de uma jarreteira – disse – em geral ocorre ao ser afrouxada, meu senhor, e não quando é apertada. Por esse motivo, a irmã dessa liga, que agora esta sendo santificada pelo contato com sua bendita mão, encontra-se na câmara do Real Museu de Stuttgart.
– A senhora – replicou o cardeal – permite-se certa frivolidade. Rogo-lhe que deixe de falar ou pensar assim. Nada santifica, ou melhor, nada é santificado, exceto por um ato do Senhor, pois somente Ele é divino. A senhora fala como alguém que consideraria sagradas apenas algumas notas musicais - por exemplo, o do, o ré e o mi -, relegando o fá, o sol e o si ao âmbito profano, quando na verdade, madame, nenhuma das notas é sagrada por si mesma, sendo divina apenas a musica que elas tornam possível. Se a sua jarreteira é santificada por minha mão velha e frágil, o mesmo se poderia dizer de minha mão por essa bela liga de seda. No vau do rio, o leão fica a espreita do antílope, e tanto o antílope é santificado pelo leão, como este pelo antílope, pois a vontade do Senhor é divina. Nem o bispo, ou o cavalo, ou a poderosa torre são sagrados em si mesmos, mas o xadrez é um jogo nobre e, nele, o cavalo é santificado pelo bispo, assim como este pela rainha. Tampouco seria conveniente que o bispo almejasse as virtudes superiores da rainha, ou a torre, as do bispo. Por isso, somos consagrados toda vez que a mão de Deus nos coloca em uma posição definida por Sua vontade. E mesmo aqui, talvez Ele esteja jogando conosco um jogo sutil, no qual serei santificado pela senhora, assim como a senhora por qualquer um de nós.
Cerrada afinal a porta do sótão, o local foi invadido pela escuridão, só aliviada pela luz suave da pequena lamparina no chão. O sótão parecia um lar para o coração dos abandonados, que sentiam como se tivessem vivido ali por um longo tempo. Os camponeses haviam acabado de colher o feno, que ocupava metade do sótão e exalava um cheiro adocicado; estava limpo e macio para quem quisesse se acomodar. Exausto, o cardeal logo se deitou sobre ele, com o longo manto espalhando-se à sua volta. A senhorita Malin ficou diante dele, no lado oposto à lampari­na. Ao lado dela, sentou-se de pernas cruzadas a jovem condessa, como um pequeno ídolo oriental. O rapaz, quando afinal se juntou aos outros, acomodou-se em um degrau da escada que havia no piso, o que o colocou em uma posição ligeiramente superior. 0 cão permaneceu junto do cardeal. Sentado, com as orelhas voltadas para trás, de quando em quan­do ele parecia tragar, com um movimento perceptível, o seu medo e a sua solidão. O grupo manteve-se nessa disposição quase toda a noite. Na verdade, o cardeal e a senhorita Malin ficaram no mesmo lugar, como se verá, até romperem os primeiros raios da aurora. Todas as sombras, formando um circulo cujo centro estava na lamparina, estendiam-se até as vigas que sustentavam o telhado. Ao longo da noite, muitas vezes as compridas sombras deram a impressão de estarem de fato vivas, mantendo a animação e a conversa do grupo, atrás das pessoas exaustas.
– Madame – disse o cardeal à senhorita Malin -, muito ouvi falar de seu salão, no qual a senhora consegue fazer com que todos se sintam à vontade e, ao mesmo tempo, dispostos a dar o melhor de si. Como gostaríamos de experimentar o mesmo esta noite, rogo que seja a nossa anfitriã e exerça seu talento neste sótão.
A senhorita Malin aceitou sem hesitar a sugestão e assumiu o comando do grupo. Durante toda essa noite, ela cumpriu tal papel, regalando os convivas com os raros requintes da solidão, das trevas e do perigo, ao mesmo tempo que guardava na manga um trunfo, como uma celebridade em voga ou um extraordinário tenor italiano, inacessíveis as anfitriãs rivais: era a própria morte, que aguardava no outro lado da porta para fazer uma entrada triunfal e garantir o sucesso da noite. Há quem consiga se refestelar em um trono; a senhorita Malin, pelo contrario, sentou-se sobre o feno como se estivesse sobre um daqueles tamboretes reservados apenas às duquesas. Ela encarregou Jonathan de partir o pão e servi-lo. Para seus companheiros, que nada haviam comido durante o dia, as crostas duras e negras exalavam a fragrância dos campos de trigo. E, durante a noite, o cardeal e ela, que eram os mais idosos e mais debilitados, consumiram juntos a maior parte do gin que havia no barrilete, enquanto os mais jovens nem sequer o tocaram.
De início, ela conseguiu mais do que se imaginaria possível em sua tarefa de tornar confortáveis os companheiros, pois, assim que terminou de falar, o cardeal perdeu completamente os sentidos. As mulheres, que não se arriscavam a afrouxar o curativo em torno de sua cabeça, decidiram borrifa-lo com agua do cântaro. Assim que voltou a si, ele os fitou atordoado e pôs as mãos na cabeça, mas, ao recuperar a presença de espirito, desculpou-se gentilmente pelo incômodo que havia causado, acrescentando que tivera um dia exaustivo. Era visível, contudo, que algo mudara nele após o desfalecimento, como se estivesse mais fraco do que antes e, transferindo parte de sua liderança e responsabilidade para a senhorita Malin, acomodou-se mais perto dela.
Talvez seja conveniente nessa altura fazer um breve relato a res- peito da senhorita Malin Nat-og-Dag:
Já se disse que ela manifestava um ligeiro desequilíbrio mental. Mesmo assim, para quem a conhecia melhor, às vezes era duvidoso se tal loucura era deliberada ou apenas um de seus caprichos, pois certamente era uma mulher caprichosa. Tampouco ela sempre fora louca. Antes, até mesmo se mostrara uma mulher dotada de muito bom senso, que estudava filosofia e zombava das paixões humanas. Se agora lhe tivessem oferecido a possibilidade de recuperar sua sensatez anterior, e caso fosse sido capaz de entender o sentido dessa oferta, é provável que a recusasse, argumentando que, na verdade, a vida torna-se bem mais divertida quando se é um pouco amalucado.
A senhorita Malin era uma mulher rica, mas, também nesse caso, nem sempre fora assim. Órfã, fora criada na casa de parentes abastados. O altaneiro e antigo nome sempre fora dela, assim como seu alentado e altaneiro nariz.
Fora criada por uma governanta beata, da seita dos Hernhuten, que valorizava ao máximo a virtude feminina. Naquela época, o ser de uma mulher tinha um único centro de gravidade, e por isso sua vida era bem mais simples do que se tornaria mais adiante. Mesmo apos envenenar os parentes e roubar no jogo de cartas, ela continuaria sendo uma honnete femme desde que não tolerasse a menor heresia na esfera de sua especialidade. Em sua época, as próprias damas definiam o preço de seus corações, de seus espíritos e de suas almas, caso decidissem tratar com o demônio; porém, no que se referia aos corpos, estes eram seus instrumentos indispensáveis, e qualquer aviltamento de seu preço sagrado e padronizado era considerado competição desleal, e um pecado mor­tal, pela guilda das honnetes femmes. Na verdade, quanto mais alto uma jovem conseguia fixar tal preço, mais intenso seu odor de santidade. E era preferível que comentassem que havia tornado infelizes muitos homens, do que tivesse feito a felicidade de muitos deles.
Impelida por sua índole e formação, a senhorita Malin abraçou vigorosamente tal doutrina, adotando uma atitude não só de defesa, mas da mais audaciosa ofensiva. Imaginativa por natureza, não via motivo para ser moderada e elevou as nuvens seu preço. Na verdade, no que se refere a valorização exagerada do próprio corpo, ela foi vítima de uma espécie de megalomania. A antiga rainha norueguesa Sigrid, a Soberba, convocou todos os seus pretendentes entre os potentados da região e depois ateou fogo ao palácio e os queimou a todos, afirmando que assim ensinaria a pequena nobreza da Noruega como se devia fazer-lhe a corte. A senhorita Malin também poderia ter agido assim, e o faria com a mesma consciência tranquila. Em seu coração estava gravado um versículo da Bíblia que lhe fora lido pela governanta, segundo o qual "todo aquele que olha para uma mulher com desejo já cometeu adultério em seu coração", e passara a se considerar a contrapartida feminina do consciencioso rapaz do Evangelho. Para a senhorita Malin, tal como provavelmente para a rainha Sigrid, o desejo de um homem não passava de terrível impertinência, uma ofensa tão grave quanto uma tentativa de violação. Não demonstrava nenhum esprit de corps feminino, pois não parecia dar nenhuma importância ao fato de que, em geral, seria terrível para as jovens decentes adotar rigidamente tal princípio, uma vez que todo o campo de ação delas estende-se entre as duas ideias, e, caso sejam amalgamadas, coloca-se um ponto final à sua atividade com tanta rapidez quanto o faria um tocador de concertina ao fechar o instrumento e juntar os dois teclados. Ela desempenhava um papel, portanto, ligeiramente patético, como todos aqueles que, neste mundo, tomam au pied de la lettre as palavras da Escritura. Mas o fato era que pouco se importava com a opinião alheia.
Em sua juventude, contudo, essa virgem fanática era uma figura nada desprezível na sociedade, devido ao seu extraordinário talento e vivacidade. Embora a beleza não fosse um de seus atributos, possuía o dom maior de assim parecer e, em sociedade, comportava-se como uma beldade entre mulheres que, embora muito mais formosas, não conseguiam se mostrar tão atraentes. A atenção de que era alvo era acolhida por ela como o tributo natural a uma Nat-og-Dag, e não se mostrava insensível quando recebia elogios por seu espirito ou coragem, ou por seu refinado talento para a musica e a dança. E até preferia escolher suas amizades entre os homens, pois considerava as mulheres um tanto estupidas. Ao mesmo tempo, contudo, sempre estava à espreita, como um touro à espera de uma capa vermelha ou como um cruzado atento ao pavilhão estampado com o crescente, por qualquer mirada de desejo, pronta para aniquilar sem piedade o dono daqueles olhos.
Apesar disso, a senhorita Malin não escapou ao destino comum a todos os seres humanos. Também a ela coube viver um romance. Aos vinte e sete anos, já uma solteirona, decidiu afinal casar. Nessa posição, sentiu-se como uma cadela avantajada rodeada de minúsculos e ofegantes cãezinhos de colo. Ainda estava preparada para atear fogo aos pequenos reis que se aventurassem a cortejá-la, mas preferiu fazer a sua escolha. E nisso mostrou-se igual a rainha Sigrid, que conquistou o herói cristão, Olav Trygveson, cuja saga relata o trágico resultado do encontro desses dois corações altaneiros.
A escolha da senhorita Malin recaiu sobre o príncipe Ernest Theodore, de Anhalt, um jovem idolatrado na época. Da mais alta estirpe e fabulosamente rico, pois era filho de uma grande duquesa russa, ele era formoso como um anjo, um bel-esprit, e um leão de Judá nos campos de batalha. Possuía até mesmo um coração nobre, e ninguém adivinhava a menor frivolidade em sua natureza. Por isso, ele próprio sofria quando despertava paixões fatais nas belas mulheres que o rodeavam. Além disso, era um observador atento e arguto. Um dia viu a senhorita Malin e por um tempo não conseguiu ver mais nada.
Tudo em sua vida - sobretudo as mulheres -, ele o conseguira sem qualquer esforço. Beleza, talento, charme, virtude não lhe custaram mais que um movimento do menor dos seus dedos. Quanto a senhorita Malin, a única coisa extraordinária era o valor que atribuía a si mesma. Que essa jovem magra, nariguda e sem um tostão, dois anos mais velha do que ele, tivesse a ousadia de pedir em troca não só o seu nome principesco e a plena participação em seu futuro brilhante, mas também a adoração incondicional, a fidelidade eterna, e a sujeição a ela tanto na vida como na morte, não se entregando a ele por nada menos - foi isto o que impressionou o jovem príncipe.
Algumas pessoas são acometidas de uma irresistível paixão pelos enigmas. Mesmo quando tem a oportunidade de ouvir a voz da razão, ou daquela sabedoria que entende a vida, nada disto importa, elas não conseguem se conter nem deixar de estafar o cérebro em torno de um enigma, exatamente por não conseguirem penetrar seu sentido. O fato de que, muito provavelmente, a solução seja algo tolo não faz a menor diferença para quem é arrebatado por essa paixão peculiar. E assim acontecia com o príncipe Ernest, que, ainda criança, passava dias imerso em enigmas e quebra-cabeças - um passatempo que, no seu caso, era visto como um sinal de extraordinária inteligência. Portanto, quando ele topou com aquele osso duro de ser roído, todas as beldades mais facilmente decifráveis esmaeceram diante de seus olhos.
Tão aflito ficou o príncipe Ernest diante dessa primeira possibilidade de recusa que a vida lhe apresentava - e só Deus sabia se isto era o que o jovem mais temia ou mais desejava -, que só reuniu coragem para pedir a mão de Malin Nat-og-Dag na derradeira noite em que a veria antes de partir para a guerra. Uma quinzena depois foi morto no campo de batalha de Iena, com sua mão agarrada a um pequeno medalhão de ouro no qual havia um cacho de cabelos loiros. Muitas loiras adoráveis encontraram conforto ao pensarem nesse medalhão. Nenhuma delas imaginava que, de todas as ricas e sedosas tranças que lhe haviam passado pelas mãos, apenas esse cachinho da cabeça de uma solteirona fora equivalente para ele à pena da asa de uma valquíria, a única capaz de erguê-lo do chão.
Se fosse católica, Malin teria se recolhido a um convento apos a batalha de Iena, a fim de salvar, se não a alma, pelo menos o respeito próprio, pois, digam o que quiserem, nenhuma donzela contrai núpcias tão brilhantes quanto aquela que se torna noiva do Senhor. No entanto, como boa protestante, com inclinação para os ensinamentos dos Hernhuten, ela simplesmente aceitou sua cruz e a carregou com toda a galanteria de que era capaz. O fato de ninguém no mundo saber de sua tragédia só confirmou a opinião que fazia dos outros, ou seja, que ninguém tinha a menor ideia do que era verdadeiramente importante. E foi assim que abandonou qualquer perspectiva de casamento.
Aos cinquenta anos de idade, o destino lhe colocara, inesperadamente, uma imensa fortuna nas mãos. Havia pessoas que a entendiam tão pouco que viram nisto o motivo de ter começado a confundir a realidade e a fantasia. Não foi bem assim. Ela não teria ficado nem um pouco transtornada ao se ver de posse dos tesouros do Grande Sultão. O que a mudou foi o que muda todas as mulheres aos cinquenta anos: a passagem do serviço ativo - com aposentadoria ou honras militares, dependendo do caso - ao estado passivo de mera espectadora da vida. Um fardo fora retirado de seus ombros; e ela voou para um galho mais alto e deu um pequeno trinado. A fortuna a ajudou apenas na medida em que foi o golpe de vento sob as suas asas, permitindo que voasse e trinasse um pouco mais alto, embora o dinheiro também tenha contribuído para calar as criticas por parte dos que a rodeavam. Mas não há dúvida de que, em sua gargalhada de libertação, havia um grão de loucura.
Tal loucura adquiriu, como foi dito, a curiosa forma de uma crença inabalável em sua colossal licenciosidade no passado. Ela acreditava ter sido a grande cortesã de sua época, quando não a grande rameira do Apocalipse. Via sua fortuna, sua casa e suas joias como a recompensa do pecado, acumulada em uma longa carreira de desregramento. Por isso era muito generosa com seu dinheiro; aquilo que fora obtido de maneira frívola devia ser gasto do mesmo modo. Ela não conseguia abrir a boca sem fazer referenda a época de sua devassidão imaginaria. Até mesmo o jovem príncipe Ernest, o casto amante a quem ela recusara até mesmo um beijo de despedida, figurava em sua coleção de bonecos de cera como outra vítima da astúcia e ferocidade que demonstrara como sereia.
É duvidoso que um espetáculo possa ser desfrutado do mesmo modo por quem é capaz de, no final das contas, correr o risco de se tornar parte daquilo e, de outro lado, por aqueles que, devido às circunstâncias não tem a menor possibilidade de participar. Até o imperador de Roma poderia, após um espetáculo especialmente excitante, reencontrar em um de seus pesadelos o tridente e a rede. Já as vestais, estas se recolheriam a seus leitos de mármore e, com conhecimento apurado, repassariam todos os detalhes das lutas, imaginando-se elas próprias no lugar de seus gladiadores favoritos. Do mesmo modo, e improvável que uma beata acompanhasse o julgamento e a morte de uma feiticeira com a mesma impassibilidade dos homens reunidos em torno da fogueira.
Seria impossível para uma jovem, mesmo confinada a cela de um convento, lançar-se sem temor e tremor nos excessos imaginativos da senhorita Malin. Mas a mulher idosa, cuja segurança estava garantida, podia atirar-se em um abismo de corrupção com a graça de um mergulhão. Fiel por natureza, ela se agarrava ao ponto de vista de sua juventude no que concernia as palavras do Evangelho sobre o adultério. A própria Bíblia atestava que uma multidão de rapazes cometera tal pecado em relação a ela. Mas a senhorita Malin virava os versículos pelo avesso, como o faria uma mulher cujo vestido estivesse começando a desbotar. Era a imagem invertida da grande pecadora arrependida, cujas faltas se tornam tão brancas como a lã, e obtinha um prazer genuíno ao tingir de cores vivas a alva lã de carneiro de sua vida. Ciúme, engano, sedução, estupro, infanticídio e crueldade, assim como todas as perversidades das paixões humanas, até mesmo as maladies galantes, sobre as quais revelava surpreendente conhecimento - tudo isso assemelhava-se, para a senhorita Malin, a pequenos bombons que podia escolher, um apos o outro, em sua bonbonniere mental e consumi-los com genuína gourmandise. Em todas as suas fantasias, cabia a ela o papel de heroína, percorrendo as esferas dos sete pecados capitais com o entusiasmo de um garotinho que participa dos grandes páreos do mundo em seu cavalinho de madeira. Nenhum perigo infundia-lhe temor, nenhuma angustia de consciência perturbava sua paz. Ninguém despertava tanto o seu desprezo quanto a Maria Madalena do Evangelho, que só conseguiu suportar o fardo de seus suaves pecados refugiando-se no deserto da Líbia em companhia de um crânio. Já a senhorita Malin carregava o fardo de seus pecados com a agilidade de um atleta, e dispunha-se até mesmo a brincar com ele como se fosse um bilboquê.
Seu rosto passou a refletir essa grande revolução espiritual e, naquela altura em que outras mulheres recorrem ao ruge e à beladona, sua leniência diante da fraqueza humana conferia-lhe um rubor mais intenso e um suave fulgor no olhar. Nunca antes esteve ela tão perto de ser uma bela mulher. Sempre lembrara uma feiticeira, mas agora, na segunda infância, a aparência dela evocava antes a fada má dos contos infantis do que a Medusa, o anjo vingador com sua espada de fogo que resistira as investidas do príncipe Ernest. Guardara a silhueta esguia e a leveza de um elfo e, graças ao seu talento para a dança, ainda podia ser considerada uma beldade em qualquer grande baile. Por baixo disso, seu casco fendido agora estava delicadamente dourado, como o da cabra de Esmeralda. Era essa aura de gentil loucura e segunda juventude que a envolvia naquele momento, em meio ao feno de um celeiro de camponeses, conversando animadamente com o cardeal Hamilcar.
– Ainda menino, passei algum tempo em Coblença, na corte em exílio do duque de Chartres – contou o cardeal, pensativamente, após breve pausa. – Ali conheci o grande pintor Abildgaard, em cujo ateliê costumava passar as manhãs. Quando as damas da corte o procuravam para que lhes pintasse os retratos - pois era muito requisitado por aquelas lindas mulheres interessadas em imortalizar a própria beleza -, quantas vezes não o ouvi dizer "Lavem o rosto, mesdames. Tirem o pó-de-arroz, o ruge e o kohl. Pois como poderei pinta-las se vocês mesmas pintam seus rostos?". Ao longo da vida, muitas vezes refleti sobre isto. E cheguei a conclusão de que o Senhor está sempre repetindo para nós, frágeis e vaidosos mortais: "Limpem o rosto. Pois se vocês mesmos o pintam, sobrepondo camadas de humildade e renuncia, caridade e castidade, o que me resta fazer?". Na verdade, nesta noite – prosseguiu o velho, sorrindo, enquanto uma onda mais forte sacudia o celeiro –, o Senhor está nos lavando com suas próprias mãos, sem economizar agua. No entanto, cabe a nós buscar conforto no pensamento de que não há honra ou felicidade maiores do que isto: termos os nossos retratos pintados pela mão do Senhor. Isto, e só isto, é o que sempre desejamos, e chamamos de imortalidade.
Notando que o rosto do cardeal ainda estava envolto em ataduras manchadas de sangue, a senhorita Malin quase fez um comentário, mas logo se conteve, pois não sabia o quanto aquele nobre semblante fora desfigurado. O cardeal captou o pensamento dela e o expressou com um sorriso,
– É verdade, madame – disse ele –, o Senhor achou por bem lavar com mais vigor o meu rosto. Mas não fomos criados no respeito a força purificadora do sangue? Madame, agora sei que Ele é muito mais forte do que imaginávamos. E talvez as minhas feições necessitem tal tratamento. Quem mais, além do Senhor, sabe de todos os pós e ruges que nele coloquei durante setenta anos? Na verdade, com essas ataduras sinto que se aproxima o momento em que Ele ira afinal pintar o meu retrato.
A senhorita Malin corou um pouco ao se ver surpreendida em evidente falta de tato e, lepidamente, voltou ao momento anterior da conversa, como alguém que acerta um relógio.
– Sou muito grata – disse ela –  de jamais ter, em minha vida, usado ruge ou pó no rosto. Portanto, monsieur Abildgaard poderia ter me pin­tado a qualquer momento. Todavia, quanto a esse meu retrato divino, para ser exibido nas galerias celestiais quando eu estiver morta e desaparecida - permita-me dizer, meu senhor, que neste ponto as minhas ideias divergem um pouco das suas.
– As ideias dos críticos de arte – replicou o cardeal – costumam divergir. Foi uma das coisas que aprendi naquele ateliê. Vi o próprio mestre lançar ao rosto de um grande pintor francês um pincel de pelo de castor encharcado de cádmio, quando ambos se desentenderam a respeito das leis da perspectiva. Esclareça-me então suas concepções, para que eu aprenda com a senhora.
– Bem, então – disse a senhorita Malin –, de onde o senhor tirou a ideia de que o Senhor quer a verdade a nosso respeito? Esta é uma ideia muito curiosa e original, meu senhor. Ora, Ele esta cansado de saber tal verdade, e talvez mesmo a encontre um tanto insípida. A verdade só interessa aos alfaiates e aos sapateiros, meu senhor. Eu, ao contrario, sempre sustentei que o Senhor tem uma inclinação pelas mascaradas. Não são os senhores, os diretores espirituais, que consideram nossas tribulações como nada mais do que bênçãos disfarçadas? E de fato é assim. Também comprovei isso, à meia-noite, nessa hora em que caem as mascaras. Por outro lado, ninguém pode negar que elas foram embelezadas por um especialista incomparável. Com sua permissão, diria que o próprio Senhor deve ter usado livremente uma mascara na época em que tomou corpo e passou a conviver em nosso meio. Na verdade, se fosse eu a anfitriã das bodas de Canã, talvez tivesse me ressentido um pouco da façanha - talvez, eu insisto, meu senhor - caso tivesse convidado aquele jovem brilhante, o filho do carpinteiro, para lhe regalar com o meu excelente vinho Berncastler Doktor, e ele, quando mais lhe conviesse, tivesse transformado a agua da fonte em um vinho muito melhor! E ainda assim a dama não tinha a menor ideia, claro, de tudo o que Ele era capaz, sendo o Todo-Poderoso.
– Na realidade, meu senhor - prosseguiu ela -, de todos os monarcas de quem já ouvi falar, aquele que, ao meu ver, mais se aproximou do verdadeiro espírito de Deus foi o califa Haroum, de Bagdá, que, como o senhor sabe, adorava se disfarçar. Ah, ah! Se tivesse vivido naquela época, eu mesma não ficaria atrás dele nesse jogo, mesmo que tivesse de recolher nas ruas quinhentos mendigos antes de bater a porta do Comandante dos Fiéis sob os trapos de um deles. E quando, em minha própria existência, pouco faltou para que desempenhasse o papel de uma divindade, a ultima coisa que gostaria ouvir de meus adoradores era a verdade. "Façam versos", disse a eles, "usem a imaginação, disfarcem a verdade. Vocês a costumam revelar cedo demais" - com sua permissão, meu senhor - "e cedo demais o jogo chega ao fim".
– E, agora – perguntou a velha dama –, o que pensa o senhor do recato feminino? Sem duvida, é uma qualidade divina, mas não se trata também de um engano por princípio? Como aqui estamos acompanhados de um jovem e uma donzela, nos dois, que já contemplamos a vida dos melhores observatórios - o senhor, do confessionário; e eu, da alcova vamos nos esforçar para não levar em conta a verdade; é melhor falarmos apenas de pernas. Vou lhe dizer, então, que é possível classificar todas as mulheres de acordo com a beleza de suas pernas. Aquelas que possuem belas pernas, e sabem que a verdade oculta é mais doce que todas as ilusões, essas são as mulheres verdadeiramente galantes, que nos encaram de frente, com a coragem genuína de uma boa consciência. Mas se começarem a usar calças compridas, o que seria de sua galanteria? Os rapazes de hoje, ao preferirem as calças apertadas que os obrigam a ter dois criados para que possam vesti-las, um para cada perna...
– E mesmo assim não é nada fácil - interrompeu o cardeal, pensativo.
– A fim de se pavonearem como missionários da verdade - retomou a senhorita Malin talvez sejam mais humanos, mas com certeza nada tem de divinos. Talvez estejam mais afinados com a dura realidade, ao passo que as pernas das mulheres, sob as anáguas, não passam de ideias. Mas só quem é movido por ideias conhece o verdadeiro heroísmo. Pois a consciência de uma força oculta dá coragem. Mas peço-lhe perdão, meu senhor, por ser tão tagarela.
– Madame – retorquiu afavelmente o cardeal – não há de que se desculpar. Foram muito proveitosas suas colocações. Mas não me convenceram de que a senhora e eu tenhamos no fundo opiniões incompatíveis. Este mundo é como aquele jogo infantil do pão e do queijo; sempre existe algo por baixo - verdade, engano; engano, verdade! Quando o califa se vestiu como um de seus súditos miseráveis, todo o seu esplendor oculto não conseguiria ofuscar o péssimo gosto da brincadeira caso não houvesse por trás uma preocupação para com os pobres. Do mesmo modo, quando o Senhor, durante cerca de trinta anos, disfarçou-se de filho do homem, pouco sentido haveria nisto se ele não tivesse, afinal, um coração compassivo, e até mesmo, madame, simpatia pelos apreciadores de um bom vinho. A mulher espirituosa, minha senhora, escolhe como fantasia de carnaval aquilo que engenhosamente revela algo de seu espirito ou coração, ocultos sob as convenções do dia-a-dia. Quando usa a medonha mascara veneziana com um imenso nariz, está nos dizendo não apenas que possui de fato um nariz clássico, como também algo mais, que pode ser apreciada por outros motivos além de sua mera beleza. Pois assim determinou o arbitro da mascarada: "É pela mascara que se conhece a pessoa".
– Mas estamos de acordo, madame – prosseguiu ele em que o Dia do Juízo não trará, como nos tentam impingir os pregadores insossos, o desvendamento de nossas pobres tentativas de engano, mas, pelo contrario, será a hora em que o próprio Todo-Poderoso irá retirar a Sua mascara. Que acontecimento momentoso! Ó, minha senhora, mesmo que tivéssemos de esperar por isso durante um milhão de anos Valeria a pena. O céu irá soar e ressoar com o riso, puro e inocente como o de uma criança, límpido como o de uma noiva, triunfante como o de um fiel guerreiro que deposita os estandartes inimigos aos pés de seu soberano, ou como alguém afinal libertado da masmorra e dos grilhões, inocentado das calunias de um difamador!
– Por outro lado, madame, não arranjou para nós o Senhor, aqui e agora, um dia do juízo em miniatura? Logo será meia-noite. Que esta seja a hora da retirada da máscara. Se não for a sua máscara, ou a minha, que seja a do destino e da vida. Quanto a morte, é provável que logo tenhamos de enfrentá-la, sem nenhuma máscara. Enquanto isto, nada nos resta além de recordar a vida tal como ela é. Vamos, minha senhora, e meus jovens irmão e irmã! Uma vez que não conseguiremos dormir, e estamos confortavelmente instalados, digam-me quem são vocês, e contem francamente suas historias.
– Ao ver desmoronar o celeiro – prosseguiu o velho, dirigindo-se a Jonathan Maersk –, o senhor ficou de pé no barco, mesmo com o risco de virá-lo. Isto me leva a crer que algo imponente em sua vida também ruiu, despedaçando-se diante dos seus olhos. Conte-nos o que aconteceu.
– E não pude deixar de notar, quando há pouco mencionei a pureza do nosso sangue, que o senhor se retraiu diante das minhas palavras, tal como antes perto do celeiro. Talvez o jovem seja partidário das ideias revolucionárias de sua geração. Não creia, porém, que tais teorias sejam estranhas para mim. Na verdade, tenho com elas um contato mais íntimo do que se imaginaria. Todavia, neste momenta, vale a pena deixarmos uma discrepância política afastar nossos corações? Vamos, vou me dirigir ao senhor com suas próprias palavras: que vigorem entre nós a liberdade, a igualdade e a fraternidade, todas as três, ainda que a maior de todas seja a fraternidade.
– Ou então – prosseguiu – talvez o senhor esteja, meu caro, padecendo sob o triste fardo da condição de bastardo. Mas, quem, mais do que o bastardo, precisa gritar para encontrar a própria identidade? Por isso, confie em nós. Conte-nos agora, antes do amanhecer, a historia de sua vida.
Ao ouvir tais palavras, o jovem, cujo semblante exibia o tempo todo a marca da solidão que assinala a genuína melancolia, ergueu os olhos para o cardeal. A grande dignidade das maneiras do velho impressionara a todos desde o primeiro instante. Agora era a vez do rapaz cair sob o fascínio da estranha lucidez daqueles olhos. Por alguns momentos os dois se encararam. Então as bochechas pálidas do jovem se ruborizaram, e ele exalou um profundo suspiro.
– Está bem –  disse, como se tivesse uma inspiração –, vou contar a vocês a minha historia. Talvez possa entendê-la melhor se conseguir colocá-la em palavras.
– Lave o rosto, meu jovem amigo - disse a senhorita Malin -, e o seu retrato, gravado em nossos corações, ira lhe conferir a imortalidade.
– Vou chamar a minha historia - começou o jovem - de "O relato de Timon de Assens''.

"Se vocês tivessem morado em Copenhague, certamente teriam ouvido falar de mim, pois ali, em certa época, muito se comentou a meu respeito. Até me deram um apelido, justamente 'Timon de Assens'. E tinham razão, uma vez que de fato sou de Assens, que é, como devem saber, um vilarejo a beira-mar na ilha de Funen. Ali eu nasci, como filho de um casal muito respeitável, o capitão naval Clement Maersk e sua mulher Magdalena, que vivia em uma bela casa com jardim.
"Não sei se isto vai lhes parecer curioso, mas, durante todo o tempo que vivi em Assens, nunca me ocorreu que algo ou alguém pudesse me fazer mal. Na verdade, nem sequer imaginava que alguém pudesse se ocupar de mim. Pelo contrario, estava convencido de que cabia a mim cuidar do mundo. Meu pai estava sempre navegando e passei muitos verões ao lado dele, conhecendo até Portugal e a Grécia. Quando estávamos no mar, o barco e sua carga exigiam toda a nossa atenção e, para nós dois, eles eram a coisa mais importante no mundo.
"Minha mãe era uma pessoa adorável. Embora eu tenha, desde algum tempo, circulado pela sociedade mais refinada, jamais encontrei quem se comparasse a ela, tanto em beleza como nas maneiras. No entanto, ela não se dava com as mulheres dos outros capitães, nem gostava de fazer visitas. O pai dela fora assistente do grande botânico sueco Lineu e, para ela, as flores, e tudo o que as circundava, como . abelhas e suas colmeias, eram mais importantes do que qualquer coisa referente aos seres humanos. Enquanto vivi ao lado dela, também eu estava convicto de que as plantas, as flores e os insetos eram o que havia de mais importante no mundo, e que os seres humanos só existiam para cuidar deles.
"No jardim da casa em Assens, minha mãe e eu vivíamos numa espécie de idílio. Nossos dias eram todos repletos de inocência e deleite.”
A senhorita Malin, que o ouvia atenta, sempre ávida por qualquer tipo de relato, interrompeu o narrador com um breve suspiro.
- Ah! – exclamou. – Sei tudo sobre os idílios. Mais moi je n’aime pas plaisirs innocents.5
"Em Assens, tinha um amigo, ou pelo menos assim o considerava", prosseguiu Jonathan. "Rasmus Petersen era um jovem despachado, alguns anos mais velho do que eu, e mais alto por uma cabeça.
Estava destinado a ser pastor, mas meteu-se em uma confusão e jamais foi ordenado, ainda que, enquanto fazia seus estudos em Copenhague, tenha servido como tutor em casas de escol. Ele sempre demonstrou grande interesse por mim. No entanto, embora eu o admirasse, nunca me senti bem em sua companhia. Ele sempre era aguçado demais, como uma navalha; ninguém que o conhecesse deixava de cortar um pouco os dedos, ainda que imediatamente não se dessem conta. Eu estava com dezesseis anos quando ele insistiu com meu pai que eu deveria me juntar a ele em Copenhague, a fim de estudar com os sábios que ali conhecia, pois me considerava muito inteligente."
– E o senhor era mesmo brilhante? – indagou surpresa a senhorita Malin.
– Infelizmente não, minha senhora – replicou Jonathan.
"Quando me instalei em Copenhague" continuou, "senti-me muito solitário, pois não tinha nada para fazer. Parecia-me que ali não havia nada além de gente. E as pessoas, por sua vez, demonstravam escasso interesse por mim. Após trocar com elas algumas palavras, em geral preferiam se afastar. No entanto, após um tempo, comecei a me interessar pelos imensos viveiros e estufas dos palácios, tanto da realeza como da nobreza. Dentre estes, os mais renomados eram os do barão Joachim von Gersdorff, o primeiro-ministro do reino, e ele próprio um exímio botânico, que viajara por toda a Europa, a Índia, a África e a América, a fim de coletar plantas raras.
"Vocês já ouviram falar desse homem, ou talvez até mesmo o conheçam Ele era de família russa e sua riqueza era tal como nunca se vira na Dinamarca. Além disso, era poeta e musico, e um diplomata, um sedutor de mulheres, até mesmo em sua velhice. Porem, não era isso o que mais chamava a atenção nele, e sim o fato de ser um homem da moda. Ou, seria melhor dizer que a moda era, pelo menos em Copenhague, uma simples criada do barão Gersdorff. Tudo o que ele fazia logo era imitado por todo o mundo. Bem, não pretendo descrevê-lo. Creio que todos vocês tem uma ideia do que significa ser um homem da moda. Eu mesmo não demorei a perceber. E era bem isto o que ele era.
"Eu já visitara suas estufas varias vezes, graças aos préstimos de Rasmus, antes de ali conhecer o barão em uma tarde. Rasmus fez as apresentações, e ele me cumprimentou com afabilidade, oferecendo-se para me mostrar o lugar, o que fez com muita paciência e bondade. Depois daquele dia, quase sempre eu o encontrava por lá. E ele me contratou para compilar um catalogo de seus cactos. Passamos bastante tempo jun­tos naquela estufa. Eu apreciava a companhia do barão, pois ele vira mui­ta coisa do mundo e podia me falar das flores e insetos que conhecera em suas viagens. Às vezes notava que minha presença o deixava curiosamente emocionado. Certa tarde, quando lia para ele um tratado sobre a boca do tubo do Epiphyllum, notei que fechara os olhos. Em seguida, tomou minha mão e a segurou; quanto terminei, ele ergueu os olhos e disse: 'O que lhe darei, Jonathan, como uma espécie de comissão?'.
Ri e disse que ainda não achava que havia descoberto algo de excepcional.
'O, Deus, este verão de 1814 bem vale uma recompensa!'
"Foi depois desse dia que começou a falar de minha voz. Dizia que eu tinha uma voz extraordinariamente doce, e perguntou-me se não me incomodaria de que combinasse com monsieur Dupuy para que este me desse aulas de canto."
– E o senhor tinha mesmo uma voz adorável? – indagou a senhorita Malin com ar de incredulidade, pois agora a voz do jovem era grave e rouca.
– Tinha, minha senhora, naquela época minha voz era muito boa. Aprendi a cantar com minha mãe.
– Ah! – disse a senhorita Malin – não existe nada mais adorável no mundo do que uma bela voz de menino. Quando estive em Roma, havia um rapaz chamado Mario, no coro da igreja de Jesus, que cantava com a voz de um anjo. Foi o próprio papa quem me recomendou ouvi-lo, e eu bem sabia o motivo, pois ele tinha a esperança de me converter ao catolicismo, e achava que o canto daquele anjo dourado seria capaz de vencer a minha resistência. Do banco em que estava acomodada, vi o próprio papa romper em lágrimas quando, como um cisne alçando voo, Mario ergueu a voz no imortal recitativo do Carissimi: "Afasta-te de mim, Satanás!". Oh, aquele bom Pio VIII. Dois dias depois, ele seria perversamente envenenado por três pílulas de cantárida. Não tenho nenhuma simpatia pelo catolicismo, mas devo admitir que ele era um belo papa, e morreu como um homem. Mas então o senhor teve suas aulas e tornou-se um virtuoso, monsieur Jonathan?
– Foi assim, senhora - replicou Jonathan com um sorriso de fato tive aulas.
"E como sempre apreciara a musica, não medi esforços e fiz grandes progressos. No início do terceiro inverno, o barão, que por essa época nunca parecia gostar de ficar longe de mim, apresentou-me às grandes casas de seus amigos, fazendo com que eu cantasse para eles. Assim que chegara em Copenhague, eu costumava, nas noites de inverno, passear diante das grandes casas, contemplando as flores e os candelabros dos bailes, e as jovens que desciam das carruagens. Agora eu mesmo frequentava aquelas casas, e as damas, jovens e idosas, me acolhiam tão bem como se eu fosse um filho ou um irmão mais novo. Cheguei até a cantar na Corte, para o rei Frederico e a rainha Maria, que me agraciou com um sorriso bondoso. Eu era muito feliz naquela época. E pensava comigo: como são tolos aqueles que nos dizem que a gente poderosa das cidades não se interessa por nada além de riquezas e honrarias mundanas. Todas essas damas e grandes cavalheiros apreciam a musica tanto quanto eu - na verdade até mais - e, ao ouvi-la, esquecem de todo o resto, pois não supera o amor pelo belo."
– O senhor se apaixonou? - perguntou a senhorita Malin.
– De certo modo, me apaixonei por todos eles - disse Jonathan.
"Ficavam com os olhos marejados quando eu cantava; me acompanhavam com a harpa ou se juntavam a mim em duetos; tiravam flores de seus cabelos e as ofereciam a mim. Mas e bem provável que estivesse apaixonado pela condessa Atalanta Danneskjold, a mais jovem das irmãs Danneskjold, conhecidas como os nove cisnes de Samso. A mãe dela nos fez posar juntos em uma charada, como Orfeu e Eurídice. Todo aquele inverno foi um sonho perfeito, pois às vezes não sonhamos que podemos cantar a nota que quisermos, e percorrer de cima abaixo toda a escala tonal, como os anjos na escada de Jacó? Até mesmo hoje tenho sonhos assim.
"No entanto, com a aproximação da primavera, ocorreu algo que me pareceu um enorme infortúnio, pois então não sabia o que de fato significa um infortúnio. Fiquei doente e, quando estava me restabelecendo, o medico da Corte, que cuidava de mim, contou-me que eu perdera a voz e não havia a menor esperança de recuperá-la. Ainda preso ao leito, isto me deixou muito preocupado, não apenas pela perda de minha voz, mas ao me dar conta de que, com isso, decepcionaria e perderia meus amigos, o que tornaria muito triste a minha vida. Estava derramando lagrimas por esse motivo quando recebi a visita de Rasmus Petersen. Abri para ele o meu coração, carente de simpatia em meio a tanto sofrimento. Notei, porém, que ele teve de levantar da cadeira e fingir que olhava pela janela a fim de disfarçar seu riso. Aquilo me pareceu cruel de sua parte e não lhe disse mais nada.
'"Ora, Jonathan', disse ele, 'tenho um bom motivo para rir, pois acabei de ganhar uma aposta. Disse que você era de fato o simplório que aparentava, ao contrario do que pensavam todos os outros. Eles o consideram muito perspicaz. Para você, não fará a menor diferença o fato de ter perdido a voz.'
"Não entendi o que queria dizer. Creio que fiquei pálido, ainda que suas palavras me reconfortassem de algum modo.
"'Saiba então', continuou ele, 'que o barão Gersdorff é o seu pai. Eu intui algo nesse sentido, antes mesmo de leva-lo às estufas, ao ver um retrato dele quando criança, no qual também ele exibe uma cabeça de anjo. Quando ele próprio se deu conta, ficou mais contente do que eu jamais o vira e comentou: 'Nunca tive um filho em minha vida. Parece-me muito curioso que agora tenha um descendente. Ainda assim, creio que este rapaz é de fato o sangue do meu sangue e vou recompensá-lo por isso. Mas se me convencer de que minha alma ira sobreviver graças a ele, Deus bem sabe que irei reconhecê-lo como um filho legítimo e herdeiro de tudo o que tenho. Caso não seja possível fazer dele um barão Gersdorff, pelo menos me empenharei para que se torne um cavaleiro de Malta, com o nome de De  Réssurection.'
"'É por esse motivo', disse Ramus, 'que os círculos refinados de Copenhague se mostraram tão acolhedores para com você, Jonathan. Eles o vem observando desde o início para ver se a alma do barão Gersdorff se manifestava em você, o que o tornaria o homem mais rico, e o melhor partido, meu caro Jonathan, de toda a Europa do Norte.'
"Em seguida, ele me relatou uma conversa que tivera com o barão Gersdorff a meu respeito:
"'Você bem sabe, meu caro Rasmus, que sou um poeta', dissera-lhe o barão. 'Bem, agora vou lhe dizer que espécie de poeta eu sou. Em toda a minha vida, nunca escrevi um verso sem me colocar no lugar de algum outro poeta que eu conheça. Já compus poemas à maneira de Horácio ou de Lamartine. Do mesmo modo, não sou capaz de escrever uma carta de amor a uma mulher sem que me imagine ser o corsário Lovelace ou então Oneguin. As damas foram incensadas, adoradas e seduzidas por todos os heróis de Chateaubriand e lorde Byron. Nada em minha vida foi feito de maneira inadvertida, sem que eu tivesse plena consciência de meus atos. A única exceção foi esse rapaz, esse Jonathan, a quem gerei sem que tivesse a menor ideia disso. Ele esta fadado a ser, não um personagem criado por Firdusi, ou mesmo Oehlenschlaeger, e sim uma verdadeira e genuína obra de Joachim Gersdorff. Isso e algo curioso, muito curioso, para acontecer a Joachim Gersdorff. Esse é um fenômeno da maior relevância para Joachim Gersdorff. Se o rapaz revelar ter a verdadeira fibra de um Joachim Gersdorff, não haverá limites para minha recompensa. Riquezas, casas, mulheres, vinhos e todas as honrarias mundanas estarão ao alcance dele.
"Fiquei sabendo de tudo isso enquanto estava prostrado no leito.
"Não sei se acharão estranho, meu senhor ou minha senhorita Nat-og-Dag, que a emoção mais forte despertada em mim por tais palavras foi um sentimento de profunda vergonha. Nunca, em toda a minha vida, eu experimentara algo assim tão forte.
"Se o barão tivesse me seduzido, como creio que seduziu outros belos jovens, só me restaria enrubescer diante das pessoas honestas. Mas teria me refugiado dessa vergonha em meu próprio coração, pois de certo modo eu o amava. Porém, da vergonha que agora sentia não me parecia haver refugio em parte alguma. Pela primeira vez na vida, sentia o âmago de minha alma trespassado pelos olhares de todo o mundo.
"Deus criou o mundo, meu senhor, e o contemplou e viu que era bom. Muito bem. Mas, e se o mundo O tivesse contemplado, a fim de ver se Ele era ou não bom? Creio que foi isto o que Lúcifer na verdade fez a Deus: ele 0 contemplou e fez o Senhor sentir que estava sendo julgado por um crítico. E era Ele bom? Antes eu... eu era tão inocente quanto Deus. Agora me tornara um verdadeiro Joachim Gersdorff. Em todas as minhas veias corria o sangue desse homem, um homem elegante, o tipo de homem que atrai todos os olhares do mundo. Deus não podia suportar aquilo. Por isso, como sabemos, lançou Lúcifer em um abismo. Deus estava certo; aquilo era intolerável. Também para mim aquilo era insuportável, mas não havia como fugir.
"Para comprovar se Rasmus dissera a verdade, realizei, creio eu, algo corajoso, até mesmo heroico, o que na minha opinião atesta que eu fora bem criado pelo capitão e sua mulher. Compareci a uma gran­de festa na casa da condessa Danneskjold e voltei a cantar para eles. Repassei todo o meu velho repertorio, ouvindo minha própria voz, ou o que dela restava. Vocês, que agora me escutam, devem imaginar o quão lamentável deve ter sido tal ocasião. Antes já me apresentara para eles e, esforçando-me ao máximo, proporcionara-lhes o melhor de mim. Agora, enquanto cantava, em nenhum daqueles rostos que me rodeavam notei o menor sinal de pena ou desapontamento. Todos foram, como sempre, antes, bondosos e lisonjeiros. Percebi então que nunca lhes proporcionara nada, que nunca lhes afetara em nada. O mundo à minha volta é que estava me observando e pretendia fazer algo em relação a mim. Todos me fitavam, pois eu era um legítimo Joachim Gersdorff, um jovem elegante. Saí daquela casa à meia-noite, e foi aquela hora, meu senhor, que me voltou a lembrança quando vi desmoronar o celeiro.
"Na mesma noite escrevi ao barão uma carta de despedida. Estava de tal modo tomado de aversão por ele e todo o seu mundo que, ao reler o que havia escrito, notei que usara o termo 'elegante' nada menos que nove vezes. Encarreguei Rasmus de entregar-lhe a carta. Quando ele estava saindo, lembrei-me que nada havia dito a respeito da fortuna que o barão pretendia me deixar. Então pedi ao meu amigo que lhe comunicasse minha recusa de qualquer centavo vindo dele.
"Não podia suportar o espetáculo das ruas. Após deixar meus elegantes aposentos nas proximidades do Palácio Gersdorff, tomei no porto um barco para a pequena ilha fortificada de Trekroner e ali aluguei um quarto com o oficial-intendente. De minha janela não se via nada além do mar. Rasmus me acompanhou e levou minha bagagem. Durante todo o tempo, tentou me dissuadir. Tínhamos de passar diante do portão do Palácio Gersdorff, e era tal a repulsa que sentia por aquele local que ali cuspi, tal como meu pai - tal como o capitão Clement Maersk de Assens - me ensinara a cuspir quando eu era menino.
"Passei alguns dias em Trekroner, tentando reencontrar o mun­do tal como antes me pertencia - não buscava a mim mesmo, pois nada me interessava menos do que eu mesmo. Pensei no jardim de Assens, mas jamais poderia voltar para lá. Uma vez que provamos da arvore do conhecimento, e abrimos os olhos para nos mesmos, todos os jardins se fecham para nós. Viramos uma pessoa elegante, tal como ocorreu com Adão e Eva quando passaram a se preocupar com sua aparência.
"Todavia, alguns dias mais tarde, Rasmus veio me visitar. Embora morresse de medo do mar, ele tomou um escaler para me encontrar.
'"Ah, meu amigo', disse ele, esfregando as mãos, 'você nasceu sob uma estrela da sorte. Entreguei sua carta ao barão e, à medida que a lia, ele foi ficando cada vez mais excitado e encantado. Por fim ele se levantou e, andando de um lado para o outro, exclamou: 'Meu Deus, tanta misantropia, tanta melancolia! Conheço tão bem tudo isso! São exatamente como as minhas! Uma semana após me tornar amante da imperatriz Catarina, senti tudo isso que ele esta sentindo agora. Queria apenas entrar para um mosteiro. É o jovem Joachim Gersdorff sem tirar nem pôr, mas pintado em cores negras, uma gravura baseada no original colorido. Mas Deus do Céu, que força tem esse rapaz, que negrume profundo e requintado! Com sua voz aguda, nunca o imaginaria capaz disso. Essa é a noite de inverno na Rússia, os lobos vagando pelas estepes'. Apos reler a carta, ele prosseguiu: 'Ele não quer ser um homem elegante? Mas nós, os Gersdorff, somos assim; assim foi o meu pai na corte da jovem imperatriz. Por que este não seria o destino do meu filho? Não há duvida de que será nosso herdeiro, o espelho da moda, o molde da forma'.
"'Ouça o que digo, Jonathan', disse-me Rasmus, 'sua melancolia agora está em grande voga. Os jovens elegantes de Copenhague se vestem de preto e se referem ao mundo com amargura, enquanto as damas só falam da sepultura.'
"Foi nessa época que começaram a me chamar de Timon de Assens.
"'Você disse a ele', perguntei a Rasmus, 'que em hipótese alguma aceitaria um centavo de seu dinheiro?' Ao que Rasmus respondeu: 'Claro que sim. Ele ficou tão contente que cheguei a pensar que teria um ataque, fazendo de você seu herdeiro naquele exato momento. 'Muito bom', disse ele, 'muito bom, esse meu filho Timon. Vamos ver ele dissipar esse dinheiro. Distribui-lo a torto e a direito. Mostrar seu desprezo pelo dinheiro a maneira de um verdadeiro Gersdorff. Que as heteras tomem conta dele; não há nada melhor para anunciar um homem elegante e melancólico. Elas o acompanharão por toda a parte, proporcionando um encantador contraste para o seu negrume retinto. Como eu amo esse rapaz', exclamou ele, acrescentando: 'Minha coleção de esmeraldas não tem igual na Europa. Para começo de conversa vou enviar-lhe isto. Aqui está o que ele mandou para você'", disse Rasmus, entregando-me, com todo o cuidado, um pequeno cofre de joias.
'"Todavia, quando o barão soube', continuou Rasmus, ‘que você cuspiu na porta de sua casa, ele ficou muito sério.' 'Foi exatamente isto', disse ele, 'o que fiz diante da casa de meu pai, no portão do Palácio Gersdorff em São Petersburgo.' Em seguida, mandou chamar seu advogado e redigiu um documento reconhecendo-o como filho e herdeiro de toda a sua fortuna. Do mesmo modo, já iniciou as gestões para que lhe seja concedido o titulo de cavaleiro de Malta, com o nome de De Résurrection.'"
"Nessa altura eu estava de tal modo deprimido que pensava na morte com ânsia e nostalgia. Voltei à cidade com Rasmus, a fim de saldar minhas dívidas, de modo que o alfaiate e o chapeleiro não fizessem comentários ao meu respeito depois que estivesse morto, e caminhei pela ponte de Langebro, contemplando a água e os barcos ali ancorados, alguns dos quais originários de Assens. Esperei até que não houvesse muita gente por ali. Era um daqueles entardeceres azulados de abril em Copenhague. Uma barcarola composta por Salvadore e que eu costumava cantar passou-me pela cabeça. Isto me acalmou bastante, assim como a ideia de que logo deixaria este mundo. Enquanto ali estava de pé, uma carruagem que passava diminuiu sua velocidade e, pouco depois, uma dama vestida de renda preta veio em minha direção, olhou em torno e me dirigiu a palavra, resfolegante, em voz baixa.
"'O senhor não é Jonathan Maersk?', perguntou. Ao dizer que sim, ela se aproximou mais.
"'Ó, Jonathan, eu o conheço. Estou seguindo-o e sei muito bem o que esta prestes a fazer. Permita-me que o acompanhe. Há muito quero morrer, mas não tenho coragem de fazer isso sozinha. Permita que eu morra ao seu lado. Sou tão pecadora quanto o próprio Judas, e como ele também eu traí, traí. Vamos, vamos juntos embora deste mundo.'
"No crepúsculo de primavera, ela tomou minha mão e a apertou. Tive de me soltar e sair correndo "Ocorreu-me que, provavelmente, sempre havia em Copenhague quatro ou cinco mulheres a beira do suicídio, talvez até mais. Se eu me tornara o homem da moda para elas, como seria capaz de escapar delas e morrer em paz? Seria agora obrigado a morrer em companhia elegan­te, e dar o tom adequado de elegância a ponte de Langebro? Terei de afundar até o fundo do mar ao lado de mulheres incapazes de distinguir um tom menor de um maior e, no meu ultimo suspiro, ser..."
"Le dernier cri", completou a senhorita Malin, com um risinho verdadeiramente diabólico.
"Voltei a Trekroner", disse Jonathan após breve pausa, "e fiquei sentado em meu quarto. Não conseguia comer nem beber nada.
"Foi então que recebi a visita inesperada do capitão Clement Maersk, de Assens. Ele navegara até Trankebar e, assim que chegou, decidira me procurar.
"'O que é isso que as pessoas comentam de você, Jonathannerl? Então pretendem fazer de você um cavaleiro de Malta? Conheço bem Malta. Quando entramos no porto, o castelo de Sant'Ângelo fica à direita, e é preciso muito cuidado para não batermos nas rochas à caminho do cais.'
'"Meu pai', disse eu, lembrando-me de como havíamos velejado juntos, 'é verdade que sou filho do barão Gersdorff? O senhor conhece esse homem?'
"'Deixe de lado esse assunto de mulheres' respondeu ele. 'O importante é que você se tornou um barco de alto-mar, seja quem for que o construiu’
"Contei-lhe então tudo o que me havia ocorrido.
"'Meu pequeno Jonathan', comentou ele, 'você caiu entre mulheres.'
"Disse-lhe que na verdade não conhecera muitas mulheres.
"'Isto não quer dizer nada', replicou ele. 'Conheço bem os homens de Copenhague. Todos aqueles ansiosos por fazer com que as coisas aconteçam são mulheres, ainda que disfarçadas por um novo modelo de nariz de cera. De uma coisa tenho certeza: em se tratando de navios, se não fossem as mulheres que ficam nos portos esperando por sedas, chá, cochinilha e pimenta - tudo o que necessitam para fazer com que as coisas aconteçam – os barcos continuariam a navegar tranquilamente, contentes de estarem ao largo e nunca pensariam em aportar.
"'A sua mãe’, prosseguiu pouco depois, 'foi a única mulher que conheci que não tinha interesse em fazer com que algo ocorresse.'
'"No entanto, até mesmo ela não foi bem-sucedida', disse eu, 'e ago­ra que Deus me ajude.'
"Contei-lhe em seguida que o barão Gersdorff manifestara a intenção de me legar sua fortuna. Meu pai, porem, estava ficando surdo. Só depois de um instante, ele disse:
'"Você falou de dinheiro? Você precisa de dinheiro, Jonathan? Seria curioso se fosse assim, pois sei onde tem muito dinheiro. Oito anos atrás fiquei preso em uma calmaria ao largo de uma ilhota perto do Haiti. Quando desembarquei em uma de suas praias para conhecer o lugar, e recolher plantas raras que pretendia trazer para sua mãe, topei com o tesouro enterrado pelo capitão L'Olonois. Eu o desenterrei e, como queria me exercitar, voltei a enterra-lo, mas com mais cuidado do que fizera o flibusteiro. Sei o lugar exato em que ele está. Se quiser, posso trazê-lo para você daqui a algum tempo. Se não consegue evitar que o barão lhe dê o seu dinheiro, você poderia presenteá-lo com esse tesouro, mais valioso do que a fortuna dele.'
"'Meu pai!', exclamei, 'o senhor não tem ideia do que está dizendo. O senhor nunca viveu nesta cidade. Que gesto maravilhoso seria esse! Isto me transformaria em um homem da moda para sempre - aí então eu seria mesmo Timon de Assens. Traga-me um papagaio do Haiti, mas não dinheiro.'
"'Acho que você é infeliz, Jonathan.’
"'Sim, meu pai, sou infeliz. Amei esta cidade e seus moradores. Eu os engoli com prazer. Mas eles carregam um veneno que não consigo tolerar. Agora, só de pensar neles, minha alma e invadida pela náusea. O senhor conhece algum remédio para isso?'
"'Sei de um remédio bom para tudo: água salgada.'
"'Água salgada?'
"'Água salgada, seja como for: no suor, nas lágrimas ou na água do mar.'
'"Lagrimas e suor eu já tentei. Pretendia experimentar a água do mar, mas uma mulher vestida de renda negra me impediu.'
'"Você fala de maneira insensata, Jonathan', disse ele, e pouco depois sugeriu:
"'Por que não vem comigo? Estou a caminho de São Petersburgo’
"'Não, para São Petersburgo não vou.'
"'Bem, e para lá que estou indo. Mas trate de se recuperar enquanto eu estiver longe, pois está com uma péssima aparência. Quando voltar, eu o levarei comigo, vamos para o alto-mar’
"'Não posso ficar em Copenhague', disse eu.
"'Então vá para algum lugar recomendado pelos médicos e depois me encontre em Hamburgo.'
"E foi assim, meu senhor e minha senhorita Nat-og-Dag", concluiu rapaz, "que acabei vindo para cá, por sugestão do capitão Maersk, seja ou não ele o meu verdadeiro pai, a fim de fazer uma cura de agua salgada.”
– Ah, ah, ah – exclamou a senhorita Malin quando o jovem terminou sua história, que a essa altura capturara sua atenção. Esfregou as mãozinhas uma na outra, tão satisfeita quanto uma criança diante de um brinquedo novo.
– Que história maravilhosa, monsieur Timon. E que lugar maravilhoso é este! Como nós somos interessantes! Somente agora me dou conta  de minha identidade: sou a própria mademoiselle Diógenes, e esta lamparina, deixada por aquela gorda e velha camponesa, é a mesma e famosa lamparina à luz da qual saí em busca de um homem, e que me ajudou a encontrá-lo. O senhor é esse homem, Timon! Se tivesse procurado por toda a Europa com uma lamparina não teria sido mais bem-sucedida.
– E para que a senhora me quer? - perguntou-lhe Jonathan.
– Ó, não para mim mesma. Hoje a noite, não estou com humor para namoros. Na verdade, poderia ter tido, como ceia, uma infusão da árvore-da-castidade, da qual se encontra um espécime em Guinenne. O senhor me interessa mais como Calipso.
– Esta vendo essa jovem? – perguntou então, contemplando com orgulho e ternura a bela criatura ao seu lado. – Ela não é minha filha, mas, pelo Espírito Santo, estou empenhada em criá-la, tanto quanto o meu velho amigo, o barão Gersdorff, empenhou-se em moldá-la. Eu a acolhi no meu coração e no meu espírito, e suspirei sob esse fardo. Agora esses dias estão contados e logo ficarei livre, e aqui temos o estabulo e a manjedoura. Mas quando eu a trouxer á luz, vou precisar de uma babá, e também uma governanta, um tutor e um maestro para ela \ - e o senhor pode ser tudo isso.
Ai, ai, e o que poderia ensinar a ela? - perguntou Jonathan.
É preciso ensiná-la a ser vista - disse a senhorita Malin. - O senhor queixa-se de que as pessoas o fitavam. Mas como seria se estivesse vergado sob o infortúnio oposto? Imagine que ninguém pudesse ou quisesse vê-lo, ainda que o senhor mesmo estivesse firmemente convencido de sua própria existência? Existem outros martírios além do que o aflige, meu caro misantropo de Assens. Talvez o senhor já tenha lido o conto sobre as roupas novas do imperador, por esse brilhante e jovem autor em ascensão, Hans Andersen. Mas aqui se trata da situação inversa: o imperador está caminhando em todo o seu esplendor, empunhando o cetro e o globo, e ninguém em toda a cidade ousa dirigir-lhe o olhar, pois temem ser considerados inadequados para seus cargos, ou intoleravelmente tacanhos. Eis portanto o meu pequeno imperador; quanto às consequências dos atos de um homem terrível, já vou lhe contar a historia; e o senhor, monsieur Timon, o senhor é a criança inocente que grita: "Mas aquele e o imperador!"
A divisa da família Nat-og-Dag – prosseguiu a senhorita Malindiz 'Tanto o amargo como o doce'. Por respeito a meus antepassados, provei muitos dos pratos variados da vida: a sopa de miúdos de ave do sr. Swedenborg, a salada do amor platônico, e até o sauerkraut do divino marques. Adquiri o refinado paladar de uma genuína Nat-og-Dag; e passei a apreciar tais iguarias. Exceto o amargor da vida, que é um alimento pífio, sobretudo para um coração jovem. Nos prados de Westerland, encontra-se uma espécie de carneiro que se alimenta de relva salgada, e que produz uma carne de excelente gosto conhecida no mundo da culinária como pré-salé. Essa jovem foi criada nesses prados salgados, com salmoura e ervas amargas. Seu pequeno coração não teve nenhum outro alimento. Ela é, na verdade, em termos espirituais, um agneau pré-salé, o meu cordeirinho pré-salgado.
A jovem, que permanecia sentada e acabrunhada ao lado de sua idosa amiga, recompôs-se quando a senhorita Malin começou a contar sua história. Então se empertigou. Seus olhos cor-de-âmbar, sob as longas e delicadas sobrancelhas que mais pareciam marcas nas asas de uma borboleta, ou um par de asas baixas estendidas, continuaram a fitar o ar, altivos demais para pousarem sobre a audiência. A despeito do semblante suave, ela era um animal perigoso, pronto para dar um bote. Mas sobre o quê? Para dar um bote na vida, simplesmente.
– Vocês já ouviram falar – perguntou a senhorita Malin – do conde August Platen-Hallermund?
Ao ouvir esse nome, a jovem começou a tremer e empalideceu. Uma sombra escura toldou-lhe os olhos translúcidos.
– Silêncio - disse a senhorita Malin -, não vamos pronunciar de novo esse nome. Como não se trata propriamente de um homem, e sim de um anjo, seria melhor chama-lo de conde Serafina. E esta noite vamos trazer o conde à barra de um tribunal. Que pelo menos está ocasião sirva para dizermos a verdade a respeito dele. Quando era menina e aprendia francês – a velha dama dirigiu-se ao cardeal, ignorando os mais jovens em um pequeno e súbito acesso de familiaridade –, a primeira frase de meu livro era "Le lit est une bonne chose; si l’on n'y dort, l’on s'y repose". Como muita coisa que nos ensinaram na infância, a vida comprovou o quanto havia de tolice nisso. Seja como for, ainda se aplica ao leito da justiça Para dizer a verdade, já li a poesia e a filosofia do conde August – comentou o cardeal.
Não é o meu caso – retorquiu a senhorita Malin. – No Dia do Juízo, quando tiver de explicar as incontáveis horas que desperdicei, ainda poderei me justificar, dizendo "mas afinal não perdi tempo lendo os poemas do conde August von Platen". E quantos poemas ele compôs, meu senhor?
Ah, quanto a isto, não tenho a menor ideia – respondeu o cardeal à senhorita Malin, que retrucou: “Cinq ou six mille? C'est beaucoup. Combien y-a-t-ils de bons? Quinze ou seize. C'est beaucoup, dit Martin".
Sem duvida o senhor já ouviu falar – prosseguiu ela – daquele infeliz jovem que foi transformado por uma bruxa em um cãozinho, e não podia recuperar sua antiga forma a não ser que uma virgem imaculada, que nunca tivesse conhecido um homem, conseguisse, na noite de são Silvestre, ler os poemas de Gustav Pfizer sem cair no sono? E sua amiga, solidária ao lhe contarem isso, responde: "Lamento muito, então, mas não posso ajudá-lo. Antes de tudo, não sou virgem. Depois, nunca poderia, ao ler os poemas de Gustav Pfizer, me impedir de ser arrebatada pelo sono". Se o conde August for transformado em um cãozinho, pelos mesmos motivos não poderei ajudá-lo.
Esse homem, então, esse conde Serafina – disse ela, retomando o fio da meada apos a breve digressão – era o tio dessa jovem, aquele que a criou em sua casa após ela ter perdido os pais. Por isso, agora, meus caros amigos, vou amenizar a escuridão desta noite para vocês, nela inscrevendo o negrume mais profundo da historia de Calipso:
"O conde Serafina meditou exaustivamente sobre as questões celestiais. E, como o senhor deve saber, por ter lido seus poemas, ele estava convencido de que a nenhuma mulher seria permitido entrar no céu. Pois tinha ojeriza e desconfiança à tudo o que era feminino; isto lhe provocava arrepios.
"A ideia que fazia do paraíso era, portanto, a de uma longa fila de belos rapazes, vestidos com túnicas brancas e transparentes, caminhando aos pares e declamando seus poemas ao som de sua musica, em agudos tão maviosos quanto os que o senhor mesmo já foi capaz de produzir, ou então, discutindo sua filosofia ou estudando absortos seus livros sobre aritmética. Quanto a propriedade que possuía em Angelshorn, em Mechlenburg, tinha a intenção de transformá-la em um céu desse tipo, um campo elísio de figuras de cera Von Platen, cujo centro absoluto era ocupado, da maneira mais constrangedora para si mesmo e para ela própria, por essa pequena jovem, a respeito da qual o conde entretinha muitas duvidas sobre se seria ou não capaz de passar por um anjo.
"Enquanto ela era criança, ele encontrou prazer em sua companhia, pois era sensível à beleza e à graça. Insistiu para que vestisse roupas de menino, todas de veludo e rendadas, e permitiu-lhe que deixasse crescer o cabelo, com cachos tão violeta como os do jovem Ganimedes na corte de Júpiter. Ele se preocupava sobretudo com a ideia de se mostrar ao mundo como um feiticeiro, um nobre adepto da magia branca, capaz de transmutar aquela garota, uma gota de sangue do próprio demônio, em uma adorável criatura mais próxima dos anjos, ou seja, em um menino. Ou talvez até mesmo sonhasse em criar um ser de sua própria espécie, um objeto de arte nem masculino nem feminino, um genuíno Von Platen. Essa ideia, portanto, deve ter, em certos momentos, agitado um pouco seu sensível sangue de artista. Fez questão de ensinar grego e latim à menina. E tentou incutir-lhe a ideia da beleza da matemática superior. Porém, quando a instruiu sobre a infinita beleza do circulo, ela lhe perguntou: 'se ele é de fato tão belo, qual é a sua cor - não seria talvez o azul?'. Ah, não’, replicou o conde, 'o circulo não tinha absolutamente nenhuma cor'. Foi então que começou a temer que ela nunca se transformaria em um rapaz.
"Ele ficava a contempla-la, roído por terríveis dúvidas, cada vez mais virtuosamente indignado diante dos sinais de seu equívoco. E quando se convenceu de que não mais restava a menor dúvida, e seu fracasso era inevitável, com um tremor afastou-a para sempre de seus olhos, aniquilando-a. A sentença de morte da jovem foi sua formosura. Isto se dera dois ou três anos atrás. Desde então, ela deixou de existir. Senhor Timon, não se acanhe de invejá-la.
"O conde Serafina tinha enorme fascínio pela Idade Média. O imenso castelo de Angelshorn remontava àquela época, e seu proprietário empenhara-se ao máximo para que tanto a parte interna como a externa não destoassem da era das Cruzadas. Tanto quanto o próprio conde, ele não fora construído de modo a se espalhar pelo terreno; antes, suas altas torres aspiravam ao céu, uma revoada de corvos circundando-as como uma fina fumaça, e as profundos arcos parecendo se enterrar nas profundezas. A luz do dia coava-se, através de muros com quase dois metros de espessura, por antigos vitrais em tons de canela e sangue-de-boi, ao longo das paredes dos aposentos, nos quais, em tapeçarias esmaecidas, unicórnios eram abatidos e os magos, acompanhados de seu séquito, levavam ouro e mirra a Belém. Ali o conde ouvia, quando não tocava, a viol de gamba e a viol d'amore, e aperfeiçoava sua habilidade como arqueiro. Jamais lia livros impressos, preferindo fazer com que os autores da época fossem copiados a mão em letras violáceas e ultramarinas.
“Ele gostava de se imaginar como o abade de um mosteiro muito exclusivo, onde eram admitidos apenas monges jovens e belos, de talento excepcional e maneiras refinadas. Ele e seus jovens amigos sentavam-se para cear em velhos bancos de carvalho entalhados, e vestiam capuzes de seda púrpura. A casa era uma abadia em terras setentrionais, um monte Atos no qual não se permitia a entrada de nenhuma vaca ou galinha, e nem mesmo das abelhas selvagens, por causa da abelha-rainha. Sim, o conde era mais zeloso do que os monges de Atos, pois quando ele e o serralho de jovens tomavam vinho em um crânio, para manter presente a ideia de morte e eternidade, ele tinha como ponto de honra nunca usar o crânio de uma dama. Oh, que o nome desse homem tenha de desonrar os meus lábios! Para um homem de verdade, melhor seria que matasse uma mulher, a fim de ter um crânio com o qual tomar seu vinho, do que se comprazer ao bebê-lo, por assim dizer, de seu próprio crânio
"Era nesse castelo sombrio que vagava a jovem aniquilada. A criatura mais adorável do lugar, ela teria adornado a corte da soberana Vênus, que, é bem provável, a teria encarregado de cuidar de suas pombas, sendo ela própria uma pomba. Mas ali ela sabia que não existia, pois ninguém jamais lhe dirigia um olhar. Onde, meu senhor, nasce a musica - no instrumento ou dentro do ouvido? A beleza da mulher está no olho do homem. O senhor mencionou Lúcifer ofendendo a Deus ao procurar vê-lo tal como era. Isto revela que o senhor venera uma divindade masculina. Aos seus adoradores, uma deusa perguntaria primeiro: 'Como estou?'.
"Talvez o senhor me pergunte agora: 'E nenhum dos untuosos sequazes do castelão arriscou-se a olhar por conta própria, dando-se conta do quanto ela era formosa?'. Pois bem, não foi assim. Esta é a historia da roupa nova do imperador, e tem como objetivo demonstrar o poder da vaidade humana. Esses lindos jovens temiam sobretudo ser considerados terrivelmente prosaicos e inadequados para sua função. Estavam ocupados demais discutindo Aristóteles e dissertando sobre as doutrinas e os mistérios escolásticos da Antiguidade e da Idade Média.
"O próprio imperador, como vocês certamente se lembram, acreditava estar primorosamente ataviado. Do mesmo modo, a donzela achava que não merecia ser vista por ninguém. Mesmo assim, em seu íntimo, mal podia crer nisso, sendo devorada por esse conflito perpétuo entre o instinto e a razão, tal como o próprio Hercules, ou qualquer outro herói convencional da tragédia. Às vezes, ficava de pé contemplando as imponentes armaduras nos corredores de Angelshorn. Aqueles sim haviam sido homens de verdade. Ela sentia que teriam sido seus defensores, não fossem tão ocos. Ela se tornou reticente diante de todos, e selvagem, em meio a solidão da brilhante sociedade da casa. Mas ela também se tornou feroz e poderia muito bem, em uma noite escura, ter incendiado o castelo.
"No final, tal como o senhor Timon, que não mais conseguia suportar a existência e pensou em saltar de Langebro para a água, também ela não mais conseguia suportar essa não-existência em Angelshorn. Mas a tarefa do senhor era mais fácil, uma vez que queria apenas desaparecer ao passo que ela precisava criar a si mesma. Por tanto tempo vivera sob a influencia das perversas heresias daqueles falsificadores da verdade, e fora tão insistentemente torturada e ameaçada pela fogueira, que estava pronta para negar qualquer divindade. Abu Mirrah tinha um anel que o tornava invisível, mas, quando quis se casar com a princesa Ebadu e não conseguia tirá-lo, teve de cortar o dedo. Assim foi que Calipso decidiu cortar seu longo cabelo, e também seu seio juvenil, de modo a ficar mais parecida com seus companheiros. E foi numa noite de verão que ela cometeu esse ato tenebroso."
Nessa altura do relato da senhorita Malin, a jovem, que até então mantivera o olhar fixo à sua frente, fitou a narradora com olhos esgazeados, e prestando-lhe atenção com renovado interesse, como se ouvisse a história pela primeira vez. A senhorita Malin era dotada de uma opulenta força imaginativa. Ainda assim, verdadeira ou não, para sua protagonista, a história era um símbolo, uma imagem mais elaborada do que se havia passado na realidade, e isto ela reconhecia pela maneira clara e profunda com que contemplava a mulher mais velha.
meia-noite, meu senhor", prosseguiu a narradora, "a donzela levantou-se para realizar seu tenebroso intento. Numa das mãos levava uma vela e, na outra, uma machadinha afiada, tal como Judite ao sair para matar Holofernes. Mas que escuridão, meus amigos, que escuridão no castelo de Angelshorn, em comparação com a tenda de Dotain. Os anjos devem ter virado as costas e chorado.
"Ela atravessou toda a casa e dirigiu-se a um aposento em cuja parede havia um grande espelho. Esse quarto nunca era usado; ninguém a perturbaria ali. A jovem desconsolada despiu-se até a cintura e contemplou o espelho, sem se permitir qualquer pensamento, a fim de não ser desviada de seu proposito.
"Naquela mesma hora noturna, jovens recém-casados, no interior de câmaras nupciais, estavam tremendo, desvendando, acariciando e beijando os corpos de suas noivas igualmente jovens. À luz de quinhentas velas de cera, grandes damas mudavam os destinos das nações ao exibirem os ombros em vestidos decotados. Até mesmo nas casas de má fama de Nápoles, as velhas madamas morenas, arrastando as meninas para perto das pequenas velas nos criados-mudos, e desatando seus corpetes, naquele mesmo instante barganhavam tarifas mais altas com os fregueses. Enquanto baixava os olhos para a alvura de seu peito no espelho obscuro, pois nunca se vira nua, Calipso experimentava com o dedo o gume do machado.
"Foi então que entreviu no espelho um grande vulto atrás de seu reflexo. Como ele parecia se mover, ela se virou. Não havia ninguém, mas na parede estava dependurado um enorme quadro antigo, escurecido pelo tempo, mas no qual, graças a vela, sobressaíam trechos mais claros. Era a representação de uma cena baseada na vida de ninfas, faunos e sáti­ros, com centauros brincando em grutas e prados floridos. Muitos anos antes, o quadro fora trazido da Itália pelos antigos proprietários do castelo, mas, tendo sido considerado indecente antes mesmo da época do atual conde, fora retirado da sala de estar. Embora não fosse uma boa pintura, havia nela uma profusão de figuras. No primeiro plano, três ninfas jovens, argênteas como alvas rosas, seguravam galhos de arvores.
"Calipso andou de uma ponta a outra do imenso quadro, empunhando a vela e examinando-o circunspecta. Que era uma pintura escandalosa, ela não poderia saber; tampouco desconfiar que não se tratava de uma representação fidedigna de criaturas reais. Em sua existência solitária, ela havia adquirido uma ardente ternura pelos animais. Na opinião do conde August, a existência de criaturas bestiais era um enigma e uma tragédia, e por isso nenhum animal era tolerado em Angelshorn. Todavia, para a jovem, os animais pareciam mais agradáveis que os seres humanos, e ficou encantada ao descobrir que havia gente dotada de tantas características animais. Mas o que a deixou mais admirada e assombrada era o fato de que tais seres fortes e adoráveis estavam obviamente empenhados em perseguir, adorar e abraçar jovens da mesma idade que ela própria, com corpos e rostos semelhantes aos seus, enfim, que tudo aquilo era uma homenagem a essas jovens e inspirado por seus encantos.
"Ela permaneceu diante do quadro por muito, muito tempo. No final, voltou para diante do espelho e ali ficou a contemplar seu reflexo. Ela possuía a mesma sensibilidade para a arte que distinguia o tio e sabia, como que por instinto, reconhecer aquelas coisas que se harmonizavam. E um sentimento até então desconhecido, de uma grande harmonia, tomou conta dela.
"Agora sabia que tinha amigos no mundo. Graças a sua aparência, ela poderia penetrar na branda luz dourada, no céu azul, nas nuvens cinzentas, e nas profundas sombras pardas dessas planícies e bosques de oliveiras. Seu coração transbordava de gratidão e orgulho, pois ali todos olhavam para ela e a reconheciam como um deles. O próprio deus Dioniso, que estava presente, ria e a encarava diretamente.
"Então ela examinou o quarto e seus olhos distinguiram, em mostruários, algo que jamais vira em Angelshorn: roupas femininas, leques, jóias e sapatos delicados. Tudo aquilo havia pertencido a sua bisavó. Pois, por mais estranho que pareça, também o conde tivera uma avó. Tivera até mesmo uma mãe e existira uma época em que, bon gré mal gré, mantivera estreito relacionamento com o corpo de uma bela e jovem mulher. Ele até guardara ternura pela avó, que costumava castigaá-lo com vara de vidoeiro quando menino. No âmago mesmo de sua abadia, deixara intacto o boudoir da velha senhora, no qual pairava um débil perfume de altar de rosas.
"A jovem passou a noite naquele quarto. Experimentou um apos o outro os vestidos de gala, os colares de pérolas e os diamantes. E virava-se do espelho para o quadro em busca dos aplausos dos centauros - qual daqueles vestidos eles achavam que lhe caía melhor? Ela não tinha a menor dúvida a esse respeito. Por fim, a jovem saiu e dirigiu-se aos aposentos do castelão. Porém, antes de fechar a porta, delicadamente beijou as ninfas, tão alto quanto alcançava, como se fossem amigas queridas.
"Galgou em silêncio os degraus e aproximou-se do imenso leito do tio. Ali estava ele, entre os cortinados de seda amarela, os olhos cerrados, o nariz erguido, pálido em um alvo e fino camisolão. A jovem ainda vestia um majestoso vestido de brocado amarelo, e postou-se ao lado da cama como Psiquê junto ao leito de Eros. Psiquê tivera medo de ver um monstro e deparara com o deus do amor. Mas Calipso tomara o tio por um ministro da verdade, um árbitro do gosto, um Apolo, e o que encontrou? Um pobre boneco recheado de serragem, uma caricatura de crânio. Ela corou profundamente. Então tivera medo dessa criatura - ela, que era irmã das ninfas e brincava com os centauros? Ela era cem vezes mais forte que o tio.
"Se ele tivesse despertado naquele instante, e visto a jovem ao lado da cama, ainda com a machadinha na mão, talvez desfalecesse de terror, ou talvez isto lhe tivesse feito bem de algum modo. Mas ele continuou ressonando - só Deus sabe com o que sonhava - e ela não teve de lhe decepar a cabeça. Em vez disso, declamou-lhe um rápido e breve epigrama de seu livro de francês, composto no passado para um rei que se imaginava muito amado:
Ci-git Louis, ce pauvre roi.
L’on dit qu'il fut bon - mais a quoi?
"Ela não sentia o menor rancor em relação ao tio; pois não era uma escrava liberta, mas uma conquistadora, à frente de um poderoso séquito, que podia se dar ao luxo de esquecer.
"Deixou então o quarto tão sorrateiramente quanto entrara, e apagou a vela, pois na noite estival não precisaria dela para encontrar seu caminho. à volta, todo o serralho estava silencioso; só ao passar diante de uma porta entreouviu dois jovens discutindo sobre o amor divino. Poderiam estar todos mortos que isto não faria a menor diferença para ela. Enquanto levantava a pesada trave medieval da porta da frente sentiu que tirava um peso do coração.
"Ao sair do castelo estava chovendo. A própria noite queria tocá-la. Ela caminhou pela charneca, séria como a própria Ceres empunhando um raio emprestado de Júpiter; Ceres que, mesmo quando cerra as sobrancelhas, exala um aroma de morango e mel. Sobre o horizonte, relâmpagos de calor faiscavam em sua homenagem. Ela deixou que seu vestido se arrastasse pelas urzes. E por que não o faria? Se cruzasse com um jovem salteador, teria feito dele seu marido ali mesmo, até que a morte os separasse; ou poderia decepar-lhe a cabeça, e só Deus sabe qual destes destinos teria sido mais invejável.
"Nenhuma cantiga alegre pendia dos lábios da jovem. Ela fora criada severamente, como boa protestante, e a vida não lhe ensinara nenhuma frivolidade. Em seu coração ressoava o hino do bom Paul Gerhardt, alterando-lhe apenas o pronome pessoal:
Contra mim quem há de se erguer?
Trago o relâmpago na mão.
Quem ousa infortúnio trazer
Ali onde decido abençoar?
"No início da manha ela bateu a porta de uma casa onde eu me hospedava. Estava tão molhada quanto uma arvore do jardim. Ela me conhecia, pois sou sua madrinha, e imaginava que eu tivesse algum conhecimento ou pudesse lhe dizer algo a respeito de ninfas e centauros. E quando me encontrou eu estava prestes a tomar a carruagem para vir ao balneário de Norderney. Foi assim que o destino nos reuniu, a fim de que, no final, tal qual o senhor, Timon, pudéssemos nos curar com a água salgada."
– E para que brilhassem sobre essa água – disse o cardeal, com a mesma afabilidade que mantivera ao ouvir a historia da velha mulher como uma Stella Maris na escuridão de nosso paiol.
Não sei se a senhora vai achar isto estranho – disse Jonathan – mas em toda a minha vida, jamais me ocorrer, até ouvir sua história, que as mulheres belas também podiam sofrer. Sempre as considerei como flores preciosas, que precisavam ser tratadas com o máximo de cuidado E agora que lhe contei tudo isso, qual e a sua opinião? – perguntou-lhe a senhorita Malin.
– Madame – respondeu o jovem após refletir um pouco acho extremamente edificante a ideia de que, em relação às mulheres, sempre estamos equivocados.
– Sua franqueza é louvável – replicou a senhorita Malin. – E agora sente dores no corpo, bem ali onde no passado uma costela lhe foi retirada.
– Se eu estivesse presente no castelo de Angelshorn – continuou ele, muito agitado – não teria me importado de morrer a serviço dessa dama.
– Venham para cá, Jonathan e Calipso – disse a senhorita Malin – seria algo pecaminoso e blasfemo se os dois morressem solteiros. Vocês foram trazidos de Angelshorn e Assens para que caíssem nos braços um do outro. O senhor pertence a ela, assim como ela pertence ao senhor, e o cardeal e eu, que aqui ocupamos o lugar de seus pais, daremos nossa benção a essa união.
Os jovens se entreolharam.
– Se uma pessoa mencionar – continuou a senhorita Malin – que o senhor não está à altura dela por nascimento, direi que o senhor pertence a ordem de cavalaria do paiol de Norderney, fora da qual nenhum de seus membros pode se casar.
Tomada de grande excitação, a jovem ergueu-se um pouco e apoiou-se nos joelhos.
– Não é evidente, Calipso – falou ternamente a senhorita Malin –, a maneira pela qual ele a seguiu até aqui e que, ao ouvir você dizer que ficaria ao meu lado, nada no mundo poderia induzi-lo a partir com o barco? Muita água não basta para saciar o amor, mas tampouco pode afogá-lo uma enchente.
– Isto é verdade? – indagou a jovem, fixando em Jonathan um olhar intenso e desvairado, como se a resposta dele fosse uma questão de vida ou morte.
– É verdade, sim - respondeu Jonathan.
Isto, contudo, estava muito longe da verdade. Até então ele mal se dera conta da presença da jovem. Mas o poder da imaginação da velha dama era forte o bastante para arrebatar qualquer pessoa. Ao ouvir tais palavras, o rosto da moça empalideceu, adquirindo o tom de um raro branco perolado. Os olhos ficaram arregalados e mais escuros. Velados por uma umidade mais espessa do que as lágrimas, cintilaram como estrelas na direção do rapaz. A vista dessa mudança, Jonathan caiu de joelhos no feno diante dela.
­– Oh, Jonathan – exclamou a senhorita Malin – promete que também se ajoelhará diante do barão em agradecimento por tudo o que ele lhe fez?
– Prometo, minha senhora – respondeu o jovem.
– E você, Calypso – perguntou à jovem –, gostaria de ser contemplada por este homem para todo o sempre?
– Nada me agradaria mais – respondeu a jovem.
A senhorita Malin fitou-os com uma expressão de triunfo.
– Então, meu senhor – dirigiu-se ao cardeal – consente em unir essas duas pessoas, que disso tem grande necessidade?
O cardeal examinou gravemente os semblantes dos jovens, tão ruborizados quanto se tivessem ficado diante de uma grande lareira.
– Consinto – disse ele. – Ajudem-me a ficar de pé
Jonathan o ajudou a se erguer.
– O senhor será casado – disse a senhorita Malin – por um cardeal e terá uma Nat-og-Dag como dama de honra, algo que não se repetirá depois desta noite. O casamento de vocês deve ser, sob todos os aspectos, mais ardoroso que as mornas uniões que se costumam celebrar à nossa volta, pois cabe ao senhor contemplar, escutar, sentir e conhecer sua esposa com a mesma energia com que iria se lançar ao mar em Langebro. Um singelo beijo será equivalente ao nascimento de gêmeos e, ao amanhecer, celebraremos suas núpcias douradas.
– Meu senhor –  disse ela ao cardeal –, uma vez que as circunstâncias são incomuns, e na impossibilidade de procriação, pois o barco não poderá levar ninguém mais e não creio que estejamos correndo um risco de fornicação; e, no que se refere a nossa presença, dela não poderíamos escapar ainda que quiséssemos - por tudo isso, acho que o senhor terá de conceber aqui algum novo rito nupcial.
– Estou bem consciente disso – replicou o cardeal.
De modo a abrir um espaço no centro do círculo, a senhorita Malin ergueu a pequena lamparina com sua mão parecida com uma garra, enquanto Calypso afastava dali o pão e o barrilete de gin. Com o rearranjo do grupo, o cão levantou-se inquieto e passou a circular entre as pessoas. No final, acomodou-se ao lado da jovem noiva.
– Ajoelhem-se, meus filhos – conclamou o velho padre, que permaneceu de pé, sua grande e pesada figura avultando sobre o grupo naquela ampla semiobscuridade. Nesse instante, o vento começou a soprar mais forte, e ouviu-se o sussurro das águas em volta e abaixo.
– Nesta noite, não me será possível – começou lentamente o cardeal – evocar a imponência da catedral ou a presença da congregação para que testemunhem este pacto. Tampouco terei tempo para ensiná-los ou prepará-los para as obrigações matrimoniais. Portanto, devem me aceitar somente com base em minha autoridade.
– Vocês dois, como hoje ficamos sabendo – prosseguiu após uma pausa –, tiveram abalada sua fé na coesão e na justiça da vida. Por isso peço que agora tenham fé em mim; vou ajudá-los. Vocês tem um anel?
Os jovens não traziam consigo nenhum anel, e ficaram muito desapontados com isso, mas a senhorita Malin retirou de seu dedo um magnifico anel de diamante e o entregou ao velho cardeal.
– Jonathan, tome este anel e coloque-o no dedo dessa jovem.
Assim que o rapaz o atendeu, o cardeal colocou as mãos sobre as cabeças dos jovens ajoelhados.
– Jonathan – repetiu o cardeal –, você acredita agora que está casado?
– Acredito – respondeu o jovem.
– E você, Calipso?
– Sim, acredito - sussurrou ela.
E também que vocês irão, a partir de agora, se amar e se respeitar até o final de suas vidas, e mesmo na morte e na eternidade?
Sim, acreditamos - disseram ambos.
Então – concluiu o cardeal considerem-se casados.
De pé, ao lado, a senhorita Malin segurava a lamparina como uma sibila.
As horas de descanso no paiol de feno não haviam revigorado o cardeal, cuja força provavelmente já se esvaíra toda. Ele não tinha mais a mesma firmeza nos movimentos que manifestara ao deixar o barco. Sua figura parecia cambalear, curiosamente no mesmo ritmo do ruído da água.
– Quanto a instituição do casamento – disse ele – e a questão do amor, suponho que nenhum dos dois saiba algo a respeito.
Os jovens assentiram com a cabeça.
– Nesta noite, não me será possível – retomou o cardeal – recorrer à Escritura e aos padres da Igreja para que atestem estas minhas palavras. Tampouco tenho condições, pois estou cansado demais, de mencionar os textos e exemplos que lhes serviriam de esclarecimento e instrução. Por isso, pego-lhes que, de novo, acatem o que lhes digo com base em minha autoridade enquanto um homem muito idoso que foi, durante toda sua longa e variada vida, um estudioso das questões divinas. E essas questões, insisto, não são nada menos que divinas. Você, Jonathan, espera e considera que elas sejam assim?
– Assim é - respondeu o jovem.
– E quanto a você, Calipso?
– Também creio nisso – respondeu a noiva.
– Então isto é tudo - concluiu o cardeal.
E como parecia que ele não iria dizer mais nada, o jovem casal ergueu-se após um instante, mas estavam tomados de uma emoção forte demais para que pudessem se afastar. Ali de pé, olharam-se pela primeira vez desde que haviam sido convocados a se casar, e esse olhar dissipou todo o constrangimento que os tolhia. Em seguida, retomaram seus lugares no feno.
Quanto a nós, minha senhora – disse o cardeal, deixando de lado os jovens e dirigindo-se a senhorita Malin, aparentemente esquecido de que não mais estava no púlpito, pois continuou a falar com a mesma solenidade que adotara na cerimônia nupcial que não passamos de espectadores nesta ocasião, e sabemos mais a respeito do casamento e do amor, vamos considerar o quanto tais questões, acima e antes de todas as coisas, nos revelam da tremenda coragem do Criador deste mundo. Todo ser humano, creio eu, já entreteve a ideia de também ser o criador de um mundo. Com intuito lisonjeiro, o papa instilou em mim tais pensamentos quando eu era jovem. Na época, refleti que seria capaz, caso tivessem me concedido onipotência e carta branca, de criar um mundo maravilhoso. Sem duvida teria criado árvores e rios, diferentes notas musicais, outras formas de amizade e inocência. Todavia, dou minha palavra que jamais teria ousado dispor essas questões de amor e casamento tais como são, e com isso meu mundo teria sofrido de modo lamentável. Que lição tremenda para todos os artistas! Não temam o absurdo; não evitem o fantástico. Diante de um dilema, escolham a solução mais inusitada, a mais perigosa. Sejam corajosos e bravos! Ah, minha senhora, ainda temos muito a aprender.
Em seguida, mergulhou em profunda meditação.
Quando voltaram a se acomodar, não se alteraram muito as posições anteriores, exceto que agora os recém-casados ficaram juntos e de mãos dadas. As vezes também viravam os rostos e se entreolhavam, diante da lamparina no chão. A senhorita Malin e o cardeal, após o esforço para unir os jovens, permaneceram meia hora calados, enquanto tomavam goles do barrilete de gin.
Sentada e ereta, a senhorita Malin agora exibia uma palidez cadavérica. Estava profundamente emocionada e feliz, como se de fato tivesse dado uma filha em casamento. Longos arrepios percorriam-lhe o corpo dos pés a cabeça. Quando por fim retomou a conversa, com voz débil, trazia um sorriso nos lábios. Provavelmente estivera meditando sobre o casamento e o jardim do Éden.
– O senhor acredita na Queda do homem? – perguntou ao cardeal.
Este refletiu um instante e então inclinou-se adiante, com os cotovelos apoiados nos joelhos, afastando um pouco da testa as ataduras
Esta é uma questão – disse com a voz um pouco alterada, mais carregada do que antes, mas também mais vigorosa, como se ao mesmo tem­po tivesse remoçado dez anos – sobre a qual já meditei muito. É agradável que esta noite tenha uma oportunidade de falar sobre isso. Estou convencido de que houve de fato uma Queda, mas não creio que tenha sido o homem a cair. Parece-me, antes, que a Queda se refere a própria divindade. E que hoje somos servidores de uma dinastia inferior dos céus.
A senhorita Malin havia se preparado para ouvir uma argumentação engenhosa, mas essa colocação a deixou chocada e, por um momento, chegou a cobrir os ouvidos com suas mãos delicadas.
– Para os ouvidos de uma legitimista, tais são palavras terríveis – exclamou.
– E o quão mais terríveis seriam - perguntou com solenidade o cardeal - nos lábios de um legitimista? Eu as guardei por setenta anos. Mas a senhora me fez uma pergunta e, se é o caso de ser franco, este é um bom lugar e uma boa noite para tanto. Em algum momento ocorreu no céu uma tremenda reviravolta, equivalente a Revolução Francesa e suas consequências na terra. O mundo de hoje esta, assim como a França atual, nas mãos de um Luís Filipe. Ainda restam tradições do Grand Monarque e do Grand Siècle. Mas não é possível que um ser humano sensível a grandeza acredite que o mesmo Deus que criou as estrelas, o mar e o deserto, o poeta Homero e a girafa, e Aquele que agora está criando e sustentando o rei da Bélgica, a escola poética da Suábia e as concepções morais correntes. Nos dois podemos afinal falar sobre isso. Estamos servindo a Luís Filipe, uma divindade humana, por mais que o soberano francês seja um rei burguês.
A senhorita Malin o fitou, pálida, com a boca entreaberta.
– Madame – continuou o cardeal –, nós, que somos por nascimento os grandes do reino, e os titulares hereditários de sua corte, que trazemos o cerimonial do Grand Monarque nas veias, nós temos um dever em relação ao rei legítimo, seja qual for nossa opinião a seu respeito. Cabe a nós manter a sua gloria. Pois o povo não pode colocar em dúvida a grandeza do rei, ou vislumbrar nele a menor debilidade, e a responsabilidade pela manutenção dessa crença cabe a nós, a senhora e a mim. O barbeiro de Midas não foi capaz de se manter calado, e teve de sussurrar aos caniços sobre as orelhas de burro do soberano. Mas nos - somos nos barbeiros? Não, minha senhora, não somos barbeiros.
– E não demos, nesse sentido, o melhor de nós? – perguntou com orgulho a senhorita Malin.
– Isto não se pode negar – respondeu o cardeal –, fizemos tudo o que estava ao nosso alcance. Quando olhamos em torno, madame, vemos por toda a parte as realizações dos súditos anônimos, que se esforçaram por resguardar a honra do rei. Poderia citar muitos exemplos extraídos da história, mas vou me restringir a alguns poucos. Deus criou a concha, que é um belo objeto, mas não mais impressionante do que algo que até Luís Filipe poderia ter concebido ao brincar com um compasso. A partir da concha criamos toda a arte do rococó, essa pilheria encantadora no genuíno espírito do Grand Monarque. E se lermos a historia dos grandes povos, veremos que os cavalheiros e as damas da câmara régia sempre estiveram atarefados, servindo o nosso mestre de abençoada memoria. Segundo as mais recentes pesquisas históricas, o papa Alexandre e seus filhos eram um grupo de pessoas agradáveis, interessadas em jardinagem e decoração interior, e repletas de afeto familiar... et voilà tout - obviamente uma obra de Luís Filipe. Mas foi desse material indiferente que criamos as nossas figuras dos Bórgia. Quase sempre encontramos coisas assim ao examinarmos os fatos relativos às grandes reputações da história. Ou mesmo, se a senhora não se incomodar com tal menção, veja o caso da morte: o que ela se tornou, atualmente, nas mãos de Luís Filipe? Uma negação, uma degenerescência de gosto duvidoso. Mas nós, os súditos fieis do gran­de Monarca, conseguimos realizar muito em um espirito adequado: o mausoléu imperial do Escorial, minha senhora, a Marcha fúnebre de Herr Ludwig von Beethoven. De que outro modo poderíamos ter concebido tais coisas - pobres criaturas que somos, e, além disso, condenadas a viver nesta época diminuída - se não abrigássemos no coração um amo insaciável pelo nosso senhor desaparecido, o grande aventureiro, ao qual nossas famílias primeiro prestaram juramento de felicidade?
Após uma pausa, prosseguiu muito serio.
– Todavia, a despeito disso, o fim se aproxima. Já ouço os galos cantarem. O rei Luís Filipe está com os dias contados. Em seu favor, até mesmo o sangue de Rolando seria derramado em vão. Ele possui todas as qualidades de um bom burguês, e nenhum dos vícios de um Grand Seigneur. Não reivindica para si nenhuma honra além da condição de primeiro cidadão do reino, e nenhum privilegio exceto os baseados em seu respeito pelo código moral dos burgueses. Quando se chega a esse ponto, os dias da realeza estão contados. Arrisco-me a fazer uma profecia, minha senhora: a de que o bom rei da França não ira durar mais do que treze anos. E o bom Deus, hoje venerado por Luís Filipe e sua burguesia, Ele reúne todas as virtudes de um honrado ser humano; Ele próprio não reivindica outro privilegio além daqueles advindos de suas virtudes. Nós, por outro lado, nunca esperamos de nosso Deus uma atitude moral, assim como nunca responsabilizamos nosso grande soberano pelo código penal. O Deus humanitário terá de partilhar o destino do rei burguês. Eu mesmo fui criado por pessoas humanitárias que tinham fé em um Deus humanitário. Para mim, nao havia nada mais intolerável do que isso. Ah, madame, que revelação, que contentamento para o coração, quando, nas noites do México, senti reerguerem-se as tradições de um Deus que não dava a mínima para os nossos mandamentos. Por isso, madame, estamos dando nossas vidas por uma causa perdida.
– Para obtermos nossa recompensa no paraíso – replicou a senhorita Malin.
– De jeito nenhum, madame - disse o velho. - Nenhum de nós, nem a senhora nem eu, vamos para o paraíso. Veja essa gente a quem o rei Luís Filipe condecora, a quem confere títulos de nobreza e eleva aos grandes cargos. São todos rematados burgueses, todos eles; nenhum nome da velha aristocracia consta da lista. Nem a senhora nem eu conseguiríamos agradar ao Senhor nos dias de hoje; até mesmo iriamos irritá-Lo um pouco, e Ele não se furtaria em nos deixar isto evidente. A antiga nobreza, cujas maneiras e cujos nomes remetem as tradições do Grande Monarca, certamente são intoleráveis para o rei Luís Filipe.
– Então não resta, para o senhor e para mim, nenhuma esperança de alcançar o céu? -–perguntou altivamente a senhorita Malin.
– Eu me pergunto se a senhora teria mesmo interesse em lá acabar – disse o velho cardeal –, caso lhe fosse permitido antes dar uma espiada no lugar. O céu deve ser o ponto de encontro da burguesia. Madame, estou convencido de que nunca existiu um grande artista que não fosse um pouco charlatão; tampouco um grande soberano, ou uma divindade. A charlatanice é uma qualidade indispensável na corte, no teatro ou no paraíso. Trovão e relâmpago, a lua nova, um rouxinol, uma rapariga - tudo isso supõe uma charlatanice, uma divina fanfarronice. O mesmo se da com a Galerie des Glaces, em Versalhes. Mas o rei Luís Filipe não possui no corpo nem sequer uma gota de sangue do charlatão; ele é absolutamente confiável dos pés a cabeça. E hoje o paraíso provavelmente também é assim. A senhora e eu não fomos criados para sermos razoáveis. Nós nos daremos bem melhor no inferno. Fomos criados para ele... E uma satisfação, madame, fazer algo que se aprendeu bem. Deve ser uma satisfação para a senhora, não tenho a menor duvida, dançar o minueto. Digamos, por exemplo, que eu tenha sido treinado desde a infância para fazer algo, como me equilibrar sobre a corda bamba. Desde o começo me adestraram para isso, até mesmo com pancadas. Quando caía e quebrava os ossos, era forçado a voltar para a corda. Minha mãe derramou lágrimas por mim e, ainda assim, sempre me incentivou. E teve de passar fome para pagar as aulas que me dava o equilibrista. Depois de tudo, acabo por me tornar um excelente equilibrista, o melhor do mundo. E sou amplamente recompensado quando, em uma ocasião de gala, na recepção a um grande monarca estrangeiro, o meu soberano assim se dirige ao régio convidado: "Isto é algo absolutamente imperdível, meu senhor e meu irmão, o melhor espetáculo do meu reino, o meu criado Hamilcar, o equilibrista!" Porem, madame, o que aconteceria se o rei dissesse: “Que sentido ha em alguém se equilibrar sobre uma corda? Tais espetáculos grosseiros são intoleráveis". Como eu reagiria a essa atitude do meu soberano? A senhora conhece a Espanha, madame?
Oh, sim, conheço muito bem – respondeu a senhorita Malin. – E um pais maravilhoso, meu senhor. Fiz com que serenatas fossem cantadas sob a minha janela, e com que meu retrato fosse pintado pelo próprio monsieur Goya.
E lá a senhora teve a oportunidade de ver uma tourada?
Certamente – disse a senhorita Malin. – É um espetáculo muito pitoresco, ainda que não seja do meu gosto.
Sim, é bem pitoresco – disse o cardeal. – E o que lhe parece, mada­me, que os touros pensam de tal coisa? Um touro plebeu talvez pensasse: "Que Deus tenha misericórdia de mim nesse transe terrível. Que desastre, que maré de azar para mim. No entanto, só me resta suportar isso". E ficaria profundamente grato, emocionado a ponto de derramar humildes lagrimas, se o rei, movido pela compaixão durante a tourada, desse ordens para que esta fosse interrompida. Mas o touro puro-sangue entende de imediato do que se trata e exclama: "Afinal, uma toura­da!", e de imediato o sangue dele ira ferver, pronto para a luta e a morte, pois de outro modo não haveria ali nenhuma tourada. E ficara famoso por muitos anos como aquele touro negro que lutou com bravura e deu cabo do matador. Todavia, se, no meio da contenda, quando o sangue do touro já começava a ser derramado, o rei decidisse interromper o combate, o que acharia disso o genuíno touro bravo? E possível que se virasse para o publico, ou até mesmo para o mestre de cerimonias. E iria bradar: "Vocês deveriam ter pensado nisso antes!". Madame, o rei deve ter o seu espetáculo. Ele me gerou e me criou para isso, e estou pronto para lutar e morrer pelo Grande Monarca, quando ele me receber vestido de gala. Mas nem morto - exclamou com veemência, após uma pausa – eu me prestaria a uma exibição diante de Luís Filipe.
– Ah, espere um pouco – disse a senhorita Malin. – Agora me ocorreu outra coisa. Talvez o senhor esteja equivocado em suas ideias a respeito do senso de humor do rei Luís Filipe. É possível que ele tenha um gosto muito diverso do nosso, e prefira o mundo de ponta-cabeça, como aquela imperatriz da Rússia que, para se divertir, fazia com que seus idosos conselheiros, com os rostos molhados de lágrimas, dançassem para em ela um balé, enquanto os dançarinos reuniam-se no conselho. Talvez seja esta ideia que ele faz de uma piada, meu senhor. Vou lhe contar uma pequena história para me fazer mais clara, e ela se encaixa muito bem aqui, uma vez que estamos falando de equilibristas.
"Vinte anos atrás, quando eu morava em Viena", começou ela, "um belo rapaz com grandes olhos azuis lá provocou grande agitação ao se equilibrar na corda bamba com venda no rosto. Ele dançava com uma graça e uma habilidade extraordinárias e a venda não era nenhum truque pois a tira de pano sempre era amarrada sobre seus olhos por algum espectador. Seu espetáculo foi a grande sensação da temporada, e acabou sendo convocado para dançar diante do imperador e da imperatriz, dos arquiduques e das arquiduquesas, diante de toda a corte. Nessa ocasião estava presente o professor Helmholz, que havia sido convidado, pelo imperador, pois todos então discutiam o problema da clarividência. Todavia, ao término da exibição, o sábio levantou-se e exclamou, muito agitado: 'Vossa Majestade, e Vossas Altezas Imperiais, tudo isso não passa de um embuste e de uma farsa'.
'"Não pode ser um embuste', retorquiu o medico da corte, 'eu mesmo coloquei, com todo o cuidado, a venda sobre os olhos do rapaz.'
"'Tudo isso não passa de um embuste e de uma farsa', insistiu indignado o grande professor. ‘Esse rapaz nasceu cego.'"
Nessa altura, a senhorita Malin fez uma pausa e dirigiu-se cardeal com um sorriso.
– Bom, e se o seu Luís Filipe disser, ao nos ver tão bem adaptados ao inferno, que "tudo isto não passa de um embuste, pois essa gente já nasceu no inferno"?
– Madame – respondeu o cardeal após um instante –, é inegável que a senhora tem um extraordinário poder de imaginação, e uma coragem a toda prova.
– É que sou uma Nat-og-Dag – respondeu modestamente a senhorita Malin.
– Mas a senhora não é – prosseguiu o cardeal – um pouco...
– Louca? – completou a velha dama. – Estava certa que o senhor já notara algo.
– Não, não era bem isso o que eu queria dizer – disse o cardeal. – É sim que madame talvez tenha sido um pouco dura demais para com o rei da França. Talvez eu esteja em melhor situação para entendê-lo. Sem dúvida ele é burguês, mas não canaille. Permita-me narrar uma historia, uma vez que ainda não contribuí para o entretenimento desta noite. E a contarei apenas para ilustrar o fato de que existem - com sua permissão, madame - coisas ainda piores do que a perdição, e vou chamá-la... vou chamá-la de "O Vinho do Tetrarca".
“Deu-se que, na primeira quarta-feira após a Pascoa", começou o cardeal, "o apostolo Simão, conhecido como Pedro, vagava pelas ruas de Jerusalém, tão absorto na ideia da ressurreição que nem mais sabia se caminhava sobre o pavimento ou pairava no ar, quando notou, ao passar diante do Templo, que um homem parado junto a uma coluna parecia estar à sua espera. Quando seus olhares se cruzaram, o estranho aproximou-se e dirigiu-lhe a palavra.
'"Você não era um dos que estavam com Jesus de Nazaré?'
"'Assim é', respondeu Pedro desatento.
'"Pois eu gostaria de conversar um pouco com você', disse o homem. 'Não sei mais o que fazer. Você se importaria de ir a uma estalagem aqui perto, onde há algo para beber?'
"Incapaz de se desembaraçar de suas ruminações e de balbuciar uma desculpa, Pedro acabou por aceitar o convite e logo os dois esta­vam sentados na estalagem.
"O forasteiro parecia ser conhecido ali. Obteve sem demora uma mesa no fundo do salão e longe dos ouvidos dos outros frequentadores que, de tempos em tempos, entravam e saíam do local. 0 homem pediu o melhor vinho da casa para si e para o apóstolo. Pedro pode então examinar com atenção o homem e o achou uma figura esplendida. Era um jovem moreno, forte e altivo. Estava mal vestido, com um casaco de pele de cabra muito remendado, mas por outro lado exibia um elegante lenço de seda carmesim e uma corrente de ouro ao pescoço, e em suas mãos viam-se pesados anéis de ouro, um dos quais engastado com uma imensa esmeralda. Então ocorreu a Pedro que já o vira antes, em meio ao pavor e a terrível turbulência; mas não conseguia lembrar-se exata- mente em que lugar.
'"Se você é de fato um dos discípulos do Nazareno", começou ele, "gostaria de lhe fazer duas perguntas. A medida que conversarmos, eu lhe direi por que elas são importantes para mim.'
"'Ficarei feliz se puder ser de alguma ajuda', respondeu Pedro, ainda distraído.
"'Bem' disse o homem, 'primeiro queria saber se e verdade o que dizem desse rabino a quem você seguia, que ele se ergueu dentre os mortos?'
"'É verdade, sim', disse Pedro, que sentiu inchar o coração ao pronunciar essas palavras.
'"Ouvi os rumores a respeito disso', disse o outro, 'mas queria ter certeza. E é verdade que ele próprio afirmou, antes de ser crucificado, que retornaria de entre os mortos?'
"'É assim’, respondeu Pedro, 'foi o que nos disse. Nos já sabíamos que isto iria acontecer.
"'Você acredita então', continuou o estranho, 'que tudo o que ele disse irá acontecer?'
"'Nada no mundo e tão certo quanto isso', respondeu Pedro.
"O outro ficou calado por um tempo.
"'Já lhe digo por que me interessam tais coisas’. disse de repente. 'É por causa de um amigo meu que, na sexta-feira, foi crucificado ao lado dele no lugar conhecido como o Calvário. Você certamente o viu lá. Pois esse seu rabino prometeu a ele que o reencontraria no paraíso naquele mesmo dia. Então você acredita que ele subiu ao paraíso naquela sexta-feira?'
'"Acredito, ele certamente foi para lá, onde deve estar neste exato momento', confirmou Pedro.
"O homem voltou a ficar calado.
'"Bem, isso é bom. Ele era meu amigo.'
"Nesse momento, um menino da estalagem trouxe o vinho que fora pedido. O homem serviu um pouco nos copos, observou-o com atenção e colocou seu copo de volta sobre a mesa.
"'E este', disse, 'é o outro assunto que gostaria de falar com você. Provei muitos vinhos nos últimos dias, e todos me deixaram com um gosto ruim na boca. Não sei o que houve com o vinho de Jerusalém. Eles já não tem mais aroma ou corpo. Talvez isto se deva ao tremor de terra que ocorreu na tarde de sexta-feira; ele fez com que tudo ficasse ruim.'
"'Não me parece ruim este vinho', comentou Pedro, tentando animar o estranho, que parecia mortalmente triste.
"‘Você não acha?', disse esperançosamente o estranho, e tomou um gole de seu copo. 'Não, também este está ruim', e voltou a colocar a taça na mesa. 'Se você considera isto bom, talvez seja porque não saiba muito a respeito de vinhos. Eu sou um conhecedor, e um bom vinho é o meu maior prazer. Agora não sei mais o que fazer.'
"'A respeito daquele amigo meu, Fares', retomou ele o fio da conversa, 'vou lhe contar o que o levou a ser preso e condenado à morte. Ele era um bandoleiro no caminho entre Jericó e Jerusalém. Nessa estrada passou um carregamento de vinho que o imperador romano enviara como presente ao tetrarca Herodes e, no meio dele, havia um tonel com vinho tinto de Capri, de valor incalculável. Certa noite, neste mesmo lugar em que estamos, eu estava conversando com Fares e lhe disse: 'Eu daria tudo para experimentar esse vinho tinto do tetrarca'. Ele então me falou: ‘Pelo amor que lhe devoto, e para lhe mostrar que não fico a lhe dever em nada, vou matar o responsável por esse carregamento e enterrar o tonel de vinho tinto sob um cedro na montanha, e mais tarde beberemos junto  o vinho do tetrarca'. E de fato ele fez como prometeu, mas, ao retornar a Jerusalém para me encontrar, acabou sendo reconhecido por um dos membros da caravana que conseguira escapar com vida, e em seguida foi jogado na prisão e condenado a morte por crucificação.
'"Quando soube do que lhe acontecera, vaguei pelas ruas de Jerusalém à noite, buscando um meio de ajudá-lo a fugir. Pela manhã, ao passar pelos degraus do Templo, ali encontrei um velho mendigo, a quem já vira inúmeras vezes, que perdera o juízo e exibia uma perna enferma, toda coberta de ataduras. Em sua loucura, ele gritava e profetizava, queixando-se de seu destino e amaldiçoando as autoridades da cidade, berrando insultos vários contra o tetrarca e sua mulher. Como era louco, ninguém mais prestava atenção no que dizia. Naquela manhã, porém, aconteceu de um centurião passar por ali com suas tropas e, ao ouvir o que o mendigo dizia da mulher do tetrarca, ficou furioso. Disse ao mendigo que, se o ouvisse dizer aquilo de novo, ele o mandaria para a prisão de Jerusalém, e faria com que fosse açoitado com uma vara vinte e cinco vezes a noite e vinte e cinco vezes pela manhã, para que aprendesse a falar com reverencia das pessoas graúdas.
"'Eu ouvi aquilo e pensei: aí esta minha oportunidade. Por isso, du­rante o dia, mandei cortar minha barba e meu cabelo, tingi o rosto com óleo de amêndoa e me vesti com farrapos. Também coloquei ataduras em minha perna direita, mas nessas ataduras ocultei uma lima forte e aguçada e um comprido pedaço de corda. À noite, quando me dirigi para os degraus do Templo, vi que o velho mendigo ficara tão assustado a ponto de não ter voltado a seu lugar; por isso, me acomodei ali. E exatamente quando a patrulha estava passando, gritei bem alto, imitando a voz do mendigo enlouquecido, as piores maldiçoes que consegui imaginar contra o Cesar na própria Roma e, tal como previ, o centurião me agarrou e levou para a prisão, sem que ninguém me reconhecesse sob aqueles andrajos. Na prisão recebi vinte e cinco chibatadas e, pensando no futuro, não deixei de gravar na memoria o rosto do homem que me açoitou. Com uma moeda de prata, subornei o carcereiro para que naquela noite me colocasse na mesma cela com Fares, uma cela que ficava na parte de cima da prisão que, como você sabe, foi construída sobre um rochedo.
'"Ao me reconhecer, Fares prostrou-se, beijou-me os pés e ofereceu-me um pouco de água; mais tarde, nos pusemos a trabalhar com a lima a fim de serrar as barras de ferro da janela. Como esta era bem alta, ele teve de se apoiar sobre os meus ombros, e eu sobre os dele, mas no início da manhã conseguimos serrar a barra e, em sua extremidade, prender a corda. Fares foi o primeiro a descer e, quando a corda chegou ao fim, pois não era comprida o suficiente, ele se deixou cair. Em seguida foi a minha vez, mas, como estava debilitado e incapaz de me mover com rapidez, quis o azar que, bem naquele momento, um grupo de soldados passasse pelo local com um prisioneiro. Eles carregavam tochas e um deles me avistou, pendurado junto ao muro. Nesse instante, Fares poderia ter escapado, se tivesse corrido, mas não quis se afastar antes de saber o que aconteceria comigo. Por isso, nos dois fomos capturados de novo e aí eles me reconheceram.
'"Foi assim que tudo aconteceu', disse o estranho. 'Mas agora você me diz que Fares esta no paraíso.'
"Tudo isso', comentou Pedro que, no entanto, prestara pouca atenção ao relato, 'me parece corajoso de sua parte, e foi uma boa coisa arriscar sua vida pela de seu amigo.'
Então suspirou profundamente.
"'Passei tempo demais nos bosques e até uma coruja me assusta', disse o estranho. 'Já não lhe disseram que sou do tipo que foge do perigo?'
"'Não, não me disseram', respondeu Pedro. 'Mas agora você estava me dizendo que também foi feito prisioneiro. No entanto, uma vez que aqui está, imagino que tenha escapado de algum modo.'
“’ É isso, consegui escapar', respondeu, e lançou a Pedro um olhar curioso e intenso, 'e então queria vingar a morte de Fares. Mas como ele esta no paraíso, não preciso mais me preocupar. Só que agora não sei o que fazer. E me pergunto se não deveria desencavar esse tonel com o vinho do tetrarca a fim de prová-lo.
"'Será muito triste para você fazer isso sem o seu amigo', disse Pedro, e seus olhos se encheram com as lágrimas que ainda lhe restavam depois daquela última semana. Ocorreu-lhe que talvez devesse censurar aquele homem pelo roubo do vinho do tetrarca, mas seu coração transbordava de recordações.
"'Não, não era nisso em que pensava', disse o forasteiro. 'O que me incomoda e o seguinte: se o vinho estiver estragado e não me proporcionar nenhum prazer, o que me restará então?'
"Pedro permaneceu imóvel, absorto em seus pensamentos.
'"Meu amigo’, disse afinal, 'há muitas outras coisas na vida que dão prazer além do vinho do tetrarca.'
"'Claro, sei disso', respondeu o outro, 'mas e se a mesma coisa acontecer a elas? Tenho duas esposas adoráveis que me esperam em casa e, pouco antes disso tudo acontecer, adquiri uma virgem de doze anos. Desde então, não a vi mais. Se quisesse, poderia experimentar com elas. Mas é possível que tenham sido afetadas pelo tremor de terra, talvez tenham perdido também o aroma e o corpo, e então o que seria de mim?'
"Nessa altura, Pedro começou a desejar que o homem parasse com suas queixas e o deixasse em paz.
"'Por que motivo', perguntou, 'você me conta tudo isso?'
"'Agora que tocou nesse assunto', disse o forasteiro, 'vou lhe dizer. Me disseram que o seu rabino, na noite da véspera de sua crucificação, deu uma festa para seus seguidores, e que nessa ocasião foi servido um vinho especial, muito raro e dotado de um corpo excepcional. Você não teria, por acaso, um pouco desse vinho? Não estaria disposto a vendê-lo para mim? Pago o que você quiser.
"Pedro fitou o estranho.
'"O Deus, ó Deus', exclamou, tão perturbado que derrubou seu copo, fazendo o vinho escorrer pelo chão, 'você não tem ideia do que está dizendo. Esse vinho que bebemos na noite de quinta, nem mesmo o imperador de Roma poderia pagar por uma gota dele.'
"Seu coração estava tão terrivelmente transtornado que começou a balançar o corpo para a frente e para trás. Mesmo assim, em meio a tanto pesar, voltaram-lhe a lembrança as palavras do Senhor, dizendo-lhe que seria um pescador de homens. Refletiu então que talvez fosse seu dever ajudar esse homem, mas, ao contemplá-lo, sentiu que, de todas as pessoas do mundo, esse jovem era a única que não poderia ajudar. Para se fortalecer, recorreu as palavras do próprio Senhor.
'"Meu filho', disse, afável e serio, 'carregue a sua cruz e vá atrás Dele.'
"No mesmo instante, o forasteiro começava a dizer algo. Mas então se calou e encarou Pedro com olhos sombrios.
'"Minha cruz!', exclamou. 'Onde está a minha cruz? Quem irá carregar a minha cruz?'
"'Ninguém mais além de você pode carregar a sua cruz', disse Pedro, 'mas Ele o ajudará a suportar esse fardo. É preciso paciência e força. Vou lhe contar muito mais a respeito disso.'
"'Mas o que poderia me dizer?', indagou o forasteiro. 'Tenho a impressão de que nada sabe a respeito. Ajuda? Quem se interessa por carregar o tipo de cruz que os carpinteiros de Jerusalém costumavam fazer? Não eu, pode ter certeza. Aquele cirenaico de pernas arqueadas nunca teria tido a oportunidade de exibir sua força em meu beneficio.'
"'Você fala de força e paciência', prosseguiu pouco depois, ainda agitado, 'mas nunca conheci ninguém cuja força se comparasse a minha. Veja isto', disse e, despindo a túnica, mostrou a Pedro o peito e os ombros, cobertos de cicatrizes terríveis, profundas e esbranquiçadas.
"'Minha cruz! A cruz de Fares ficava à direita, e a cruz daquele fulano Achaz, que não valia nada, estava à esquerda. Eu teria suportado a minha cruz melhor do que qualquer um deles. Você não acha que eu teria durado mais de seis horas? Para mim, isso pouco importa. Por toda a parte, sempre fui um líder, e os homens sempre me respeitaram. Não creia, só pelo fato de que agora não sei o que fazer, que eu não esteja acostumado a fazer com que me obedeçam.'
"Diante do tom desdenhoso dessas palavras, Pedro estava prestes a perder a paciência com o estranho, mas havia se comprometido, desde que decepara a orelha de Malco, a manter seu humor sob controle, e por isso manteve-se calado.
"Depois de um tempo, o homem o encarou, como se estivesse impressionado por seu silêncio.
'"E vocês, seguidores desse profeta, agora o que acham que provavelmente vai lhes acontecer?'
"O semblante de Pedro, desfigurado pela dor, recompôs-se e ficou mais brando. A esperança irradiava de toda a sua figura.
" 'Confio e creio que minha fé, ainda que seja provada pelo fogo, será merecedora de elogio e respeito. Espero que me seja concedido sofrer e morrer por meu Senhor. Muitas vezes, ate mesmo nessas ultimas noites, prosseguiu com um sussurro, 'ocorreu-me que, no final do caminho, uma cruz estava à minha espera.'
"Apos falar, não ousou erguer a cabeça para encontrar o olhar do outro.
"'Embora você possa achar que estou me vangloriando e que sou indigno de tal coisa', acrescentou apressadamente.
"'Não', respondeu o outro, 'na verdade acho bem provável que tudo isso que mencionou vá de fato lhe acontecer!
"Tal confiança em suas próprias esperanças pareceu a Pedro como um gesto de amizade inesperado e generoso por parte do outro. Seu coração se abrandou gratificado, e ele corou como uma jovem noiva. Pela primeira vez, o companheiro despertou-lhe um vivo interesse, e sentiu que devia fazer algo em troca das palavras gentis que o forasteiro lhe dirigira.
"'Lamento', disse gentilmente, 'não ter sido capaz de ajudá-lo naquilo que lhe perturba a alma. Mas a verdade e que eu mesmo mal consigo me controlar, após tudo o que me aconteceu nesses últimos dias.'
"'Não importa', disse o estranho, 'eu não esperava outra coisa.'
"'Durante a nossa conversa’, disse Pedro, 'você disse várias vezes que não sabia o que fazer. Conte-me mais sobre essa questão que lhe traz tantas dúvidas. Mesmo no que se refere a esse vinho, que tanto o preocupa, tentarei ajudá-lo de alguma forma.'
"O homem o fitou  "'Não estava me referindo a nenhuma questão em particular. Simplesmente não sei o que devo fazer. Não tenho a menor ideia de onde encontrar um vinho que seja capaz de alegrar de novo meu coração. Mas suponho', prosseguiu apos uma pausa, ‘que seria melhor se fosse desenterrar aquele vinho do tetrarca, e me deitar com essa menina da qual lhe falei. Não custa nada tentar’
"Com essas palavras levantou-se da mesa e ajeitou a túnica.
'"Não vá ainda', disse Pedro. 'Creio que há muitas coisas sobre as quais precisamos conversar.'
'"Seja como for, preciso ir', respondeu o homem. 'Um carregamento de azeite esta a caminho de Hebron e preciso alcança-lo.'
"'Você também negocia com azeite, então?'
"'De certo modo', respondeu o homem.
"'Antes de partir, porem, diga-me uma coisa', disse Pedro. 'Qual é o seu nome? Pois não poderíamos voltar a conversar, mais tarde, se eu souber como encontra-lo?'
"O forasteiro já se dirigia para a porta. Ele se voltou e olhou para Pedro com altivez e ligeiro desdém. Sua aparência era magnífica.
"'Mas você não sabe mesmo quem eu sou?', perguntou. 'Meu nome foi gritado por toda a cidade. Não houve nenhum dos pacatos moradores de Jerusalém que não tenha berrado com toda a forca. Barrabás!, gritavam eles, Barrabás! Barrabás! Que nos entreguem Barrabás. Barrabás é o meu nome. Fui um grande chefe e, como você mesmo disse, um homem corajoso. Meu nome será lembrado.'
"E com essas palavras partiu."

Como o cardeal havia concluído seu relato, Jonathan levantou-se e substituiu o que restava da vela na lanterna, pois ela já estava quase se apagando, bruxuleando descontroladamente em seus derradeiros estertores.
Assim que acabou de fazer isso, a jovem ao seu lado ficou lívida. Com os olhos cerrados, toda a sua figura parecia se desvanecer. Gentilmente, a senhorita Malin perguntou-lhe se estava sonolenta, mas a jovem negou com veemência, e com razão. Nessa noite, ela vivera como nunca. Havia afrontado a morte e se lançado nobremente nas garras do perigo em prol de seus semelhantes. Ocupado o centro de um circulo brilhante, e também se casara. Não queria perder um único instante dessas horas seminais. No entanto, nos dez minutos seguintes, de tempos em tempos era vencida pelo sono, a despeito de todos os esforços, com sua jovem cabeça cambaleando para diante e para trás.
Por fim, consentiu em deitar e descansar um pouco, e seu esposo preparou-lhe um leito de feno e depois a cobriu com o casaco. Ainda segurando a mão dele, a jovem mergulhou no sono, e dava a impressão, no chão escuro, de uma adorável estátua em mármore do anjo da morte. O cão, que permanecera ao seu lado nessa ultima hora, seguiu-a de imediato e, enroscando-se, aninhou-se junto a jovem, apoiando a cabeça em seus joelhos.
O jovem ficou por instantes a contemplá-la, mas não demorou para que também começasse a cambalear de sono e se deitasse ao lado, próximo o suficiente para continuar agarrando-lhe a mão. Até dormir, lançou olhares que iam da jovem às figuras eretas da senhorita Malin e do cardeal. Quando por fim o sono o venceu, seu corpo fez um movimento súbito, retesando-se para a frente, de modo que sua cabeça quase encostou na da jovem, e os cabelos de ambos, sobre o travesseiro de feno, se mesclaram. Logo em seguida, mergulhou no mesmo sono profundo em que jazia sua mulher.
Os dois velhos permaneceram em silencio diante da luz da nova vela, que, no início, lançava uma luz muito débil. A senhorita Malin, que dava a impressão de que não iria mais fechar os olhos por toda a eternidade, fitou o casal adormecido com a benevolência de um criador satisfeito de sua obra. O cardeal a encarou e logo desviou o olhar. Em seguida, passou a desfazer os curativos que lhe rodeavam a cabeça, mantinha agora os olhos, nos quais reluzia um brilho estranho, fixos no rosto da velha dama.
– Acho melhor me livrar disso – disse –, agora que o dia esta prestes a romper.
Mas isto não vai prejudica-lo? – indagou ansiosa a senhorita Malin
De maneira nenhuma – replicou, enquanto continuava a se desfazer das ataduras. – Esse sangue nem sequer é meu. A senhorita, uma Nat-og-Dag, que possui uma percepção tão aguçada para o verdadeiro sangue nobre, sem duvida reconhece nele o sangue azul do cardeal Hamilcar.
A senhorita Malin permaneceu imóvel, mas empalideceu um pouco.
– O sangue do cardeal Hamilcar? - perguntou com ligeiro tremor na voz.
– É isso mesmo, o sangue daquele homem nobre e venerável. Na minha cabeça. E também em minhas mãos. Pois eu o golpeei na cabeça com uma viga que havia caído, antes de o barco nos resgatar no inicio da manhã.
Durante dois ou três minutos, um silencio profundo tomou conta do celeiro. Apenas o cão se mexeu, ganindo um pouco em seu sono enquanto enfiava mais a cabeça nas roupas da jovem. O homem com os curativos e a velha dama ficaram o tempo todo com os olhares travados um no outro. Lentamente ele acabou de tirar as longas faixas de linho manchadas de vermelho, e as colocou ao seu lado. Sem estas, dava para ver seu rosto amplo, inchado e corado, e que tinha cabelos escuros.
– Que Deus abençoe a alma daquele nobre homem – disse por fim a senhorita Malin. – E quemée o senhor?
Ao ouvir tais palavras, uma sombra passou pelo semblante do homem.
– E isto o que a senhorita quer saber de mim? – exclamou ele. – A senhorita esta preocupada comigo, e não com o cardeal?
– Oh, não precisamos nos preocupar com ele, nem o senhor nem eu – respondeu ela. – Mas quem é o senhor?
– Meu nome – disse ele – e Kasparson. Sou o criado do cardeal.
– Conte-me mais a seu respeito – pediu a senhorita Malin com firmeza. - Gostaria muito de saber com quem passei a noite.
Posso lhe contar muito, se isto a agrada - disse Kasparson -, pois já estive em muitos continentes, e devo confessar que me agrada revi­ver o passado - Sou um ator, madame, tal como a senhorita é uma Nat-og-Dag. Isto significa que continuamos a ser assim independentemente do que fizermos e, quando tudo o mais nos falha, sempre podemos depender disso.
"Mas quando pequeno era bailarino e, aos treze anos, fui adotado - devido ao fato de ter uma extraordinária graciosidade, e sobretudo por possuir, em grau incomum, aquilo que, na técnica do bale, é conhecido como ballon, ou seja, a capacidade de saltar, de me elevar acima do chão e das leis da gravitação - pelos grandes e veneráveis nobres de Berlim. Meu padrasto, o famoso tenor Herr Eunicke, responsável por me introduzir naqueles círculos, acreditava que eu seria uma mina de ouro para ele. Durante cinco anos eu soube o que significa ser uma mulher adorável, alimentada com iguarias, vestida de seda e um turbante dourado, cujos caprichos são leis para o mundo. Mas Herr Eunicke, como costumam fazer os tenores, preferiu não levar em conta as leis da passagem do tem­po. A idade sempre nos surpreende quando menos esperamos, abreviando minha carreira de cortesã.
"Em seguida fui para a Espanha e tornei-me barbeiro. Durante sete anos fui barbeiro em Sevilha, e gostava demais disso, pois sempre senti uma atração por sabões e lavandas, e sempre apreciei todo o tipo de coisas limpas e bem arrumadas. Por esse motivo, quantas vezes não causou espécie o fato de o cardeal pouco se importar em sujar as mãos com suas tintas pretas e vermelhas. E posso lhe assegurar, madame, que me tornei um excelente barbeiro.
"Mas também fui impressor de panfletos revolucionários em Paris, negociante de cães em Londres, traficante de escravos em Alger e amante de uma principessa viúva em Pisa. Graças a ela, tive a oportunidade de acompanhar o professor Rosselini e o grande orientalista francês Champollion em sua expedição ao Egito. Pois é, já estive até mesmo no Egito, madame. Fiquei sob a imensa sombra triangular da grande pirâmide e, do topo dela, quatro mil anos me contemplaram."
A senhorita Malin, eclipsada como viajante pelo criado, preferiu se refugiar no amplo domínio de sua imaginação Ah - disse ela no Egito, sob a imensa sombra triangular da gran­de pirâmide, enquanto o burro pastava, são Jose disse a Virgem Maria: "Minha doce e jovem querida, que tal apenas por um instante fechar os olhos e fazer de conta que sou o Espírito Santo?".
Kasparson prosseguiu em seu relato.
"Morei até mesmo em Copenhague" contou, "mas no final as coisas não me saíram tão bem. Tornei-me cavalariço na estalagem do gordo e velho Bolle Bandsat - o que significa, com perdão da palavra, o maldito ou o amaldiçoado - onde, por um níquel, era possível dormir no chão e, por meio níquel, dormir em pé mesmo, sustentado por uma corda sob os braços. Quando afinal tive de fugir dos braços da lei, adotei o nome de Kasparson, em homenagem aquele altivo e desafortunado jovem de Nürnberg que se matou com uma punhalada a fim de convencer lorde Stanhope de que ele era de fato o filho ilegítimo da grã-duquesa Stephanie de Baden.
"Todavia, caso a senhorita esteja interessada na realidade em saber algo de minha família, tenho a honra de informá-la de que sou um bastardo do mais puro sangue bastardo que existe. Minha mãe era uma autentica mulher do povo, filha de um honesto artesão: a adorável atriz Johanna Handel-Schutz que, no palco, deu vida a todos os ideais clássicos. Mesmo assim, era de índole melancólica. Dos meus dezesseis irmãos e irmãs, nada menos do que cinco cometeram suicídio. Mas se lhe disser quem era o meu pai, sem duvida despertarei seu interesse. Quando mudou-se para Paris, com dezesseis anos, a fim de seguir a carreira artística, Johanna caiu nas graças de um grande senhor.
– Sou filho daquele duque de Orleans - que mais tarde tomaria o partido do povo de outro modo, insistia em ser chamado de citoyen, votou pela morte do rei da Franga e adotou o nome de Égalité. O bastardo de Égalité! Pode alguém ser mais bastardo do que isso, madame?
 Não – replicou a velha senhora, com os lábios pálidos e rígidos, incapaz de pronunciar uma palavra de conforto para o homem a sua frente O pobre rei Luís Filipe – continuou Kasparson – por quem sinto pena, e a respeito do qual lamento ter dito palavras tão duras nesta noite; bem, ele é meu irmão mais novo.
A senhorita Malin, mesmo diante dos maiores infortúnios, jamais conseguia permanecer calada por muito tempo. Após um instante de silencio, ela disse:
– Diga-me então, pois talvez não nos reste muito tempo, primeiro por que o senhor matou o cardeal?. E, depois, por que se deu ao trabalho de me enganar, quando viemos para cá, e de zombar de mim naquela que talvez seja a derradeira noite de minha vida? O senhor não corre nenhum perigo aqui. Não lhe ocorreu que eu tivesse bastante espírito, ou familiaridade com os recessos obscuros do coração, para entender o que o senhor fez?
– Ah – disse Kasparson – por que não lhe contei antes? Aquele momento em que tirei a vida ao cardeal assinalou as núpcias de minha alma com o destino, com a eternidade, com a alma de Deus. Pois não guardamos silencio no limiar da câmara nupcial? Ou mesmo, ainda que o imperador exija publicidade, não pode Pitágoras preferir o decoro? E por que motivo matei meu senhor? Madame, havia pouca esperança que nós dois pudéssemos ser resgatados, e ele certamente teria se sacrificado para que eu fosse salvo. Deveria eu ter sobrevivido como o criado pelo qual se sacrificara seu senhor, ou deveria simplesmente ter me afogado e desaparecido, como um triste aventureiro? Já lhe disse: sou um ator. Não deve um ator desempenhar um papel? Se, o tempo todo, o administrador do teatro insiste em nos negar bons papeis, não é aceitável que nos preparemos em silêncio para substituir as estrelas? A prova de nosso empenho e o êxito ou o fiasco. Creio ter desempenhado bem o papel. O próprio cardeal teria me aplaudido, pois era um requintado conhecedor da arte. Sir Walter Scott, madame, divertiu-se muito com o romance Walladmor, que Willibald Alexis publicou sob o nome do gran­de autor, e até mesmo o considerou o mais deleitável mistério do século. O cardeal também teria se reconhecido em mim Citando a grande tragédia Axel e Walburg, ele declamou lentamente:
Meu honrado senhor, santo Olaf aqui está em pessoa,
Ele toma conta de mim, reveste-se das minhas cores.
Sou o fantasma dele, a larva de seu espírito;
A transitória casca de uma mente imortal...
– O único reparo – continuou depois de uma pausa – que ele poderia ter feito é o seguinte: talvez dissesse que me excedi no papel. Decidi ficar neste celeiro para resgatar as vidas de camponeses embrutecidos, que antes haviam preferido salvar seus animais em vez de si mesmos. Duvido que o cardeal tivesse agido assim, pois era um homem de impecável sensatez. Já não poderemos saber. Mas sempre há um tanto de charlatanice em toda grande arte, e o próprio cardeal não estava imune a isso.
– Seja como for – concluiu ele, erguendo a voz e levantando-se –, no dia do juízo final Deus não mais irá me dizer: "Kasparson, seu ator medíocre! Como explica não ter sido capaz, nem mesmo quando a morte rondava seu coração, de representar o gladiador agonizante?".
Mais uma vez, a senhorita Malin ficou imóvel, imersa no longo e profundo silêncio que tomou conta do imenso e escuro aposento.
­ – E por que – disse afinal –, por que o senhor queria tanto esse papel?
– Vou lhe fazer uma confidência – respondeu Kasparson, pronunciando lentamente as palavras. – Não é pela expressão que se deve conhecer o homem, e sim pela máscara. Foi isso o que disse no inicio desta noite.
"Sou um bastardo, e carrego em mim a maldição do bastardo, da qual a senhorita nada sabe. O sangue de Égalité é um sangue arrogante, repleto de vaidade - algo difícil, muito difícil de suportar, sobretudo quando circula por nossas veias. Ele reivindica o esplendor, madame; não tolera qualquer rivalidade; e nos faz sofrer terrivelmente à menor desfeita.
"Mas esses camponeses e esses Pescadores são a gente da minha mãe. A senhorita não vai acreditar, mas já derramei lágrimas de sangue diante da dureza da existência deles e de seus filhos depauperados Ao pensar em suas migalhas endurecidas de pão e em suas facas gastas, em suas roupas remendadas e rostos pacientes, meu coração é oprimido pela angústia. Além deles, nada mais no mundo consegui amar. Se tivessem feito de mim o seu senhor, eu os teria servido por toda a vida. Se tivessem se prostrado e me venerado, eu teria dado minha vida por eles. Mas não o fizeram. Reservaram isto para o cardeal. Somente esta noite eles se convenceram. Pois viram o semblante de Deus em meu rosto. E vão dizer a todos, daqui para a frente, que havia uma luz branca sobre o barco em que nos arriscamos juntos. Bem, que seja assim, madame.
"A senhora faz ideia", prosseguiu, "a senhora sabe por que sempre me volto para Deus, por que anseio por Ele? Por que não consigo passar sem Ele? O motivo é que não há outro ser pelo qual não preciso, não posso, não devo sentir misericórdia. Ao contemplar todas as outras criaturas desse mundo, sou torturado, sou devorado pela misericórdia, e acabo curvado e esmagado sob o peso de seus infortúnios. Senti pena do cardeal, muita pena daquele velho que tinha de ser grande e bom, e que, como uma pequena aranha pendurada no imenso espaço, escreveu um livro sobre o Espirito Santo. Todavia, no que se refere a Deus e a mim, se há alguma misericórdia a ser sentida, cabe a ele fazer isso. Ele é que deve sentir pena de mim.
"Ora, madame, o mesmo deveria se dar com nossos soberanos. No entanto, Deus me perdoe, sou eu que sinto pena de meu irmão, o rei da França. Meu coração sofre um pouco pelo homenzinho.
"Só me resta Deus, pois d'Ele não terei nenhuma pena. Permita-me, pelo menos, ficar com Deus, humanos de brando coração."
– Nesse caso – disse subitamente a senhorita Malin –, não há a menor possibilidade de que lhe importe muito o fato de sermos ou não salvos. Perdoe-me por lhe dizer isto, Kasparson, mas não fará a menor diferença para o seu destino se este celeiro irá resistir até a volta do barco de resgate.
– É verdade, senhorita Nat-og-Dag – retrucou ele –, seu espirito arguto foi direto ao ponto. Isto é o que vale a minha bela coragem. Mas tenha um pouco mais de paciência e irei lhe esclarecer o caso. Raros são aqueles, eu disse antes, que poderiam dizer de si mesmos que estão livres da crença de que poderiam ter criado o mundo. Não, vamos mais além, madame: raros são os que podem dizer de si mesmos que estão livres da crença de que o mundo que os rodeia e, na realidade, obra de sua própria imaginação. Então, estamos contentes e orgulhosos dele? As vezes é assim. Ao cair da noite, no começo da primavera, em companhia de crianças e de belas mulheres espirituosas, surpreendi-me satisfeito e orgulhoso de minha criação. Outras vezes, porém, em meio à gente comum, fui assaltado pelo terrível remorso por ter produzido coisas tão vulgares, insípidas e tediosas. Talvez até tivesse procurado eliminá-las, como o monge que, em sua cela, tenta se livrar das imagens degradantes que lhe perturbam a paz de espírito e o orgulho de servir a Deus. Ora, madame, estou contente de ter criado esta noite aqui. Estou genuinamente orgulhoso de ter criado a senhora, não tenha a menor duvida quanto a isto. Mas o que dizer dessa figura isolada que também se vê no quadro, esse tal Kasparson? É ele um sucesso? Valeria a pena preservá-lo? Não seria melhor talvez considera-lo uma mácula no quadro? O monge pode até mesmo se flagelar a fim de afastar a imagem que o ofende. Meus cinco irmãos, dentre os dezesseis filhos de minha mãe que cometeram suicídio, talvez se sentissem assim, pois, como já lhe disse, minha mãe tinha um profundo sentimento e instinto pelos clássicos, pela harmonia cósmica. Talvez eles tenham dito para si mesmos: "Essa obra e em si mesma refulgente. Minha única falha é essa figura isolada em seu interior, que agora irei eliminar, mesmo que a um custo".
– Bem – disse a senhorita Malin em seguida –, afinal o senhor gostou de desempenhar o papel do cardeal quando teve sua oportunidade? Foi algo agradável?
Enquanto Deus existir, madame, guardarei isto comigo, uma noite e um dia inteiros. Pois, a esta altura, já vivi o suficiente para ter aprendido que, quando o demônio me sorri, não deixa de sorrir para ele. E se isto - sorrir de volta quando o demônio nos sorri - for na realidade a mais exaltada, a única alegria genuína em todo o mundo? E se tudo o mais, tudo aquilo que as pessoas chamam de alegria, não passar de um pressentimento, de um prenúncio desta verdadeira alegria? Neste caso, Valeria a pena aprender essa arte.
– É verdade, e bem verdade - replicou a senhorita Malin, com uma voz que, embora contida, era intensa e estridente, e parecia se alçar no ar como uma cotovia. Como se quisesse acompanhar em pessoa aquela ascensão, ela se ergueu e ficou ereta, com a leveza e a dignidade de uma dama que já se divertiu o bastante com um entretenimento agradável e decide partir.
– Eu também sorri de volta para o demônio. E, sem duvida, é uma arte que vale a pena aprender.
O ator havia se levantado junto, seu cavaliere servante, e agora estava de pé Ela o fitou com olhos radiantes.
– Kasparson, magnifico ator – disse ela –, bastardo de Égalité, dê-me um beijo.
– Ah, isso não, madame – respondeu Kasparson –, estou doente, há veneno em minha boca.
– Nesta noite, isto pouco importa – disse a senhorita Malin com um sorriso.
E de fato ela parecia estar imune a qualquer tipo de veneno. Trazia aos ombros aquela imagem da caveira com ossos cruzados que os farmacêuticos usam nos rótulos dos frascos de veneno, algo pouco atraente para qualquer homem beijar. No entanto, encarando o homem a sua frente, pronunciou lenta e graciosamente:
"Fils de St. Louis, montez au ciel!"
O ator a tomou nos braços e, apertando-a contra seu corpo, deu-lhe um beijo. Com isso a altiva solteirona virgem não iria para o túmulo sem ter beijado um homem.
Em um gesto majestoso e cheio de graça, ela tomou a bainha de sua saia e a colocou na mão de Kasparson. A seda, que se arrastara pelo chão, gotejava de tão molhada. Ele compreendeu que aquele fora o motivo de ela ter se levantado.
Ao mesmo tempo, os olhos de ambos voltaram-se para o piso do celeiro. Sobre as tabuas, via-se uma figura escura, como uma comprida e grossa serpente, e um pouco mais além, onde havia uma leve inclinação no chão, ela se alargava em uma mancha preta que quase chegava aos pés da menina adormecida. A água chegara ao nível do celeiro. Na verdade, quando se moviam, sentiam as pesadas tabuas balançando e flutuando suavemente.
De repente, o cão sentou-se com um espasmo. Inclinou para trás a cabeça, com as orelhas achatadas e o focinho no ar, e emitiu um ganido grave.
– Silencio, Passup – disse a senhorita Malin, que ouvira os pescado­res chamando-o por esse nome.
Em seguida, ela tomou uma das mãos do ator.
– Espere um pouco – sussurrou, de modo a não acordar os jovens. – Quero lhe dizer algo ainda. Eu, também, já fui uma menina. Passeava pelos bosques e, enquanto espiava as aves, pensava: é terrível que as pessoas prendam as aves em gaiolas. E também que, se eu pudesse viver e servir o mundo de tal modo que, depois de mim, jamais fossem presos em gaiolas, então todos eles seriam livres...
Ela se calou e fitou a parede. Entre as tabuas via-se uma estria nova de azul-escuro, ao lado da qual a pequena lâmpada mais parecia uma mancha avermelhada. Rompia a aurora.
Lentamente, a velha senhora soltou seus dedos da mão do homem e colocou um deles sobre o lábio.
“A ce moment de sa narration", disse então, "Scheherazade vit paraitre le matin, et, discrete, se tut”