Alberto
Moravia (1907-1990) escritor nascido
em Roma, um dos mais importantes escritores italianos do século XX. O conto “O
Palhaço” faz parte dos Contos Romanos publicado em 1954.
O Palhaço
Alberto
Moravia
Tradução
de Alessandra Caramori
Naquele inverno, só para fazer
alguma coisa, comecei a vagar pelos restaurantes tocando violão enquanto meu
companheiro cantava. O companheiro chamava-se Milone apelidado "o
professor" porque ensinara ginástica sueca. Tratava-se de um homenzarrão
de mais ou menos cinquenta anos, não exatamente gordo, mas quadrado, com um
rosto denso e ameaçador e um corpaço maciço que fazia com que as cadeiras
rangessem quando se sentava.
Eu tocava o violão do meu
jeito, isto é, quase sem me mexer, com os olhos baixos, porque sou um artista e
não um bufão; quem bancava o palhaço, ao contrário, era Milone. Começava meio
sem querer, em pé, ereto, apoiado a uma parede, o chapeuzinho em cima dos
olhos, os polegares sob a axila, a barriga fora das calças, o cinto embaixo da
barriga: parecia um bêbado cantando ao luar. Depois, pouco a pouco, esquentava
e, mesmo sem cantar de verdade, porque não tinha voz nem ouvido, acabava dando
um espetáculo de si mesmo, ou melhor, como eu já disse, bancava o palhaço.
Sua especialidade eram cançõezinhas
sentimentais, as mais famosas, as quem normalmente comovem e enternecem, porém
na sua boca aquelas canções não comoviam, mas faziam rir, porque ele sabia
torná-las ridículas, de um jeito todo seu, desagradável e triste.
Eu não sei o que tinha aquele
homem; se na juventude alguma mulher tinha aprontado com ele; ou talvez ele
tivesse nascido daquele jeito, com um caráter que se comprazia em tornar
ridículas as coisas boas e bonitas; o fato é que ele não era só um ator cômico,
não, ele colocava não sei que raiva no que fazia e era necessária toda a
obtusidade das pessoas enquanto comem para não perceberem que ele não era
ridículo, mas digno de penas.
Superava a si mesmo sobretudo
quando se tratava de imitar os movimentos, as caretas e as afetações femininas.
O que faz uma mulher, sorri maliciosamente? E ele, por baixo da aba do chapéu,
esboçava um riso de escárnio, vulgar, de prostituta. Requebrava, como se diz,
um pouco os quadris? E ele começava a dança do ventre, jogando para o lado as
nádegas quadradas e maciças como um pacote. Tinha uma voz suave? E ele,
apertando a boca, emitia uma voz de flauta, melosa, quase estomacal.
Nunca tinha medida,
ultrapassava sempre o limite, tornava-se obsceno, repugnante. De tal maneira,
que eu sempre me envergonhava, porque uma coisa é acompanhar um cantor ao
violão, outra coisa é servir de muleta a um palhaço. Eu me lembrava de ter
tocado não muito tempo atrás as mesmas músicas cantadas seriamente por um
excelente artista; e sentia pena de vê-las reduzidas àquilo, irreconhecíveis e
indecentes.
Falei com ele numa ocasião em
que estávamos batendo perna de rua em rua, de um restaurante a outro. "Mas
o que as mulheres fizeram para você?" Normalmente, depois que bancava o
palhaço, ficava distraído e sombrio, sabe-se lá com que pensamentos rodando
pela sua cabeça. "As mulheres não me fizeram nada." "Eu estou
dizendo isso", expliquei, "porque você tira sarro delas com
gosto." Desta vez ele não disse nada e a conversa acabou por aí.
Teria abandonado Milone se não
tivesse mais interesse por ele; porque, ainda que possa parecer incrível, ele
conseguia mais dinheiro com as suas vulgaridades do que muitos excelentes
músicos ambulantes com as suas belas canções.
Vagávamos principalmente por
aqueles restaurantes não propriamente de luxo, quase cantinas, caseiros, mas
caros, onde as pessoas vão para encher a pança e se divertir. logo que
entrávamos, eu, muito de leve, dedilhava o violão, das mesas abarrotadas
ouvia-se um só grito: "olha o professor... o professor está aí... venha
até aqui, professor".
Carrancudo, debochado,
desvairado, puxa-saco, Milone se apresentava, dizendo: "Podem pedir",
e aquele "podem pedir" já era tão ridículo ao seu modo, que todos
morriam de rir. Nisso chegava o macarrão e, enquanto o dono do restaurante
esfalfava-se para servir, Milone, com uma voz idiota, anunciava: "Uma
canção muito bonita: Quando Rosina desce do vilarejo... eu vou fazer a
Rosina" Imaginem os clientes: quando o viam representando Rosina, com as
gagues e as obscenidades de sempre, ficavam com os espaguetes pendurados no
garfo, entre a boca e o prato. E não se tratava de grupos de açougueiros ou
coisa parecida, eram todos grã-finos: os homens de terno azul escuro,
engomados, uma pérola espetada na gravata; as mulheres de casaco de pele,
cobertas de joias, delicadas, preciosas. Falavam entre si, enquanto Milone
bancava o palhaço: "É bom... é realmente bom", ou até mesmo alguém,
alarmado, gritava: "Atenção, não contem por aí que nos o descobrimos... se
não a coisa desanda".
Entre as suas vulgaridades,
Milone tinha uma canção em que, em uma determinada hora, para tornar o
personagem mais ridículo, fazia com a boca um certo barulho que eu nem lhes
conto. E você acreditam? Eram exatamente as madames mais afetadas que
pediam bis para esta música.
É preciso dizer que, por ser
ver tão aplaudido, o sucesso tinha subido à cabeça de Milone. Morava na casa de
uma costureira, em um quarto mobiliado, escuro e úmido, na via Cimarra. Agora,
todas as vezes que eu ia pegá-lo alguma nova grosseria, uma nova vulgaridade.
Acrescentava um certo escrúpulo mórbido, como se tratasse de um grande ator
preparando-se para a apresentação; e eu, sentado na cama, olhando-o
simular a dança do ventre na frente do espelho da cômoda, perguntava-me se, pro
acaso, ele não fosse meio louco.
"Mas não seria
hora", perguntei-lhe num certo dia, "de inventar alguma coisa
graciosa, comovente?" E ele: "pra ver que você não entende nada... as
pessoas quando comem querem rir e não se comover... e eu", acrescentou
rancoroso, "faço elas rirem". Algum tempo depois, sempre por causa
dessa mania de se aperfeiçoar, inventou de levar em uma maleta algumas roupas
femininas por exemplo, um chapeuzinho, uma echarpe, uma sainha para vestir na
hora, para tornar a paródia mais cômica ainda. Esta ideia de travestir-se de
mulher, nele, era quase uma mania; não podem imaginar que dureza era vê-lo
chacoalhar-se com o chapeuzinho sobre os olhos e a saia amarrada na cintura,
por cima das calças. Finalmente, não sabendo mais o que inventar, sugeriu que
eu também bancasse o palhaço, mesmo continuando a dedilhar o violão. E aí eu me
recusei.
Percorríamos o maior número de
restaurantes que conseguíamos, do meio-dia às três e das oito à meia-noite.
Visitávamos vários, dependendo do dia: um dia os restaurantes dos lados da Piazza
di Spagna; um dia aqueles ao redor da Piazza Venezia; outro dia os restaurantes
de Trastevere, outro dia ainda aqueles próximos da estação de trem. Entre um
restaurante e outro, sempre correndo pelas ruas, não conversávamos: não havia
intimidade entre nós. No fim da noite, íamos a uma cantina e dividíamos o
dinheiro. Depois, em silêncio, eu fumava um cigarro e Milone bebia um quarto de
vinho. à tarde, Milone ensaiava os seus números à frente do espelho; eu, por
minha vez, dormia ou ia ao cinema.
Em uma noite de muito frio,
depois de ter rodado as trattorias de Trastevere, entramos, mais para nos
aquecermos do que para tocar, numa cantina atrás da Piazza Mastai. Tratava-se
de um espaço comprido, quase um corredor, com as mesas alinhadas ao longo da
parede e, nas mesas, quase só gente pobre, bebendo vinho da casa e comendo
comida embrulhada em jornal. Não sei por que, a vaidade, já que não podia ser
interesse, levou Milone a se exibir também naquela cantina. Escolheu então uma
das suas músicas mais bonitas e, com os modos de sempre, reduziu-a, à força dos
escárnios e das contorções, a uma porcaria. Logo que acabou, recebeu um aplauso
bastante frio e depois, de uma daquelas mesas, escutou-se uma voz: "Agora,
quem vai cantar esta música sou eu".
Virei e vi que se aproximava
um rapaz loiro, com um macacão de mecânico, bonito como um anjo, olhando para
Milone com olhar furioso, como se quisesse comê-lo. "Você, comece a
tocar", disse-me com autoridade, "do início." Milone, fingindo
que estava cansado, deixou-se cair em uma cadeira perto da porta. O rapaz me
fez sinal com a mão para começar e então se pôs a contar. Não digo que ele
cantasse como um verdadeiro cantor, mas cantava com sentimento, com uma voz
bonita, quente e tranquila, enfim, cantava como se deve cantar e como a música
pedia para ser cantada. Além disso, como eu já disse, era bonito, com aqueles
seus cachos, especialmente se comparado a Milone, tão maciço e sórdido. Cantava
virado para a cantina, olhando para uma mesa onde estava sentada uma moça
sozinha, como se estivesse cantando para ela. Quando terminou, fez um gesto
para Milone, com a mão estendida, como se dissesse: "é assim que se
canta", e voltou para a mesinha onde o esperava a moça, que em seguida
colocou os braços em volta do seu pescoço. Na cantina para dizer a verdade,
aplaudiram por que ele tinha se incomodado em cantar. Mas eu o entendera; e,
desta vez, Milone também tinha entendido.
Enquanto eu tocava, olhara frequentemente
para Milone; tinha visto ele passar muitas vezes a mão no rosto e sob os
cabelos que lhe caíam na testa, como quem não está suportando ficar acordado e
está caindo de sono. Mas não conseguia esconder uma expressão amarga que eu
nunca tinha visto; a cada nova estrofe que o moço acertava, parecia que sua
amargura crescia. Finalmente se levantou, espreguiçando-se e fingindo que
bocejava e disse: "Bem, está na hora de ir dormir... estou com um sono...".
Despedimo-nos na esquina, com
o habitual encontro marcado para ao dia seguinte. O que aconteceu durante
a noite, reconstruí depois, mas são suposições. Eu disse que o sucesso tinha
subido à cabeça de Milone, imaginando ser sabe-se lá que grande artista quando
na verdade era um pobre coitado que bancava o palhaço para divertir as pessoas
enquanto comiam; de modo que foi grande o tombo que aquele rapaz loiro de
macacão lhe deu com o seu gesto. Acredito que, enquanto o rapaz cantava, de
repente, deve ter visto a si próprio como era e não como tinha até então
acreditado ser: um homenzarrão de cinquenta anos que colocava um babador e
recitava a Vispa Teresa. Mas acho também que ele se julgava incapaz de cantar,
mesmo tendo feito um pacto com o diabo. Ele, em suma, só conseguia fazer rir
ridicularizando certas coisas. E estas certas coisas, por coincidência, eram
exatamente aquelas que ele, na sua vida, nunca tinha conseguido ter.
Mas, como eu disse, são
suposições. O certo é que a costureira que lhe alugava o quarto no dia seguinte
o encontrou enforcado entre a janela e a cortina, no lugar em que geralmente ficavam
penduradas as gaiolas dos passarinhos. Foram algumas transeuntes a notá-lo, da
via Cimarra, vendo, através dos vidro, as pernas e os pés balançando no
vazio. Despeitado como todo suicida, tinha fechado a porta à chave e apoiado na
porta a cômoda com o espelho: talvez quisesse se ver, como quando ensaiava,
enfiando o pescoço no laço. Em suma, tiveram que arrombar a porta, o espelho
caiu e se quebrou. Levaram-no ao cemitério Verano e eu fui o único que o
acompanhou, desta vez sem violão. A costureira recolocou o espelho, mas se
consolou vendendo, a uma certa quantia o metro, a corda.
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