A Chave
de Ferro
Pere Calders
Tradução Manuel de
Seabra
A meio da tarde, quando a conversa decaiu, um dos dois
amigos ergueu-se do sofá e percorreu toda a sala lentamente, contemplando os
moveis e os objetos com uma curiosidade que nenhuma norma social podia impedir.
– Tens uma casa muito bonita, — disse.
O outro sorriu, lisonjeado. Acompanhava-o com o olhar,
esperando o momento em que, depois de descobrir a vitrina, se sentiria
intrigado pelo seu conteúdo. O visitante parou, efetivamente, diante do pequeno
aparador e prestou uma grande atenção aos objetos expostos. Finalmente,
perguntou com ar brincalhão :
– As três chaves são para fechar o livro ? Acho demais
e de um tamanho exagerado, a não ser que o Diário de Elena C. tenha um
interesse excepcional. É algum membro da tua família ?
Vou responder-te pela mesma ordem, – disse o amigo
fingindo uma divertida gravidade. — As chaves, como tu próprio pedes ver, não
pertencem ao livro, mas estão relacionadas com ele de uma maneira direta. O diário,
num certo aspecto, tem um interesse excepcional. E Elena C. não é nenhuma dama
de minha família, mas esta fortemente vinculada as recordações do meu pai, mas não
no sentido que tu já estas a designar.
E dirigindo-se a vitrina, acrescentou :
– Não julgues que se trata de um diário banal de
rapariga. Olha.
Pegou no livro e abriu-o no sítio assinalado por uma
fita amarela. Uma letra miúda, de educação conventual, enchia uma pequena parte
da pagina, deixando grandes margens brancas : «4 de fevereiro de 1902. Hoje
abri o armário. Oh, é horrível! Compartilho dum segredo que desejaria nunca ser
descoberto. Procuro em vão palavras para me exprimir. A caneta seca-me ao
tentar descrever o que os meus olhos contemplaram. Renuncio a fazê-lo por agora
e parece-me que nunca me será possível.»
– Que te parece ?
– Que estilo ! Hás-de deixar-me ler todo o diário.
– O resto não te interessaria. Está cheio de uma
afetação insuportável. Mas, mais para diante, volta ao tom misterioso.
Passou algumas folhas e apontou para as seguintes
linhas : «:20 de fevereiro de 1902. Então continha efetivamente qualquer coisa!
Mas, como é possível que eu não tivesse visto ? Trata-se de um fundo falso que
até agora a policia não descobriu ? Portei-me estupidamente. Hoje prenderam-no
e toda a gente julga que eu me verei comprometida na investigação. As minhas
amigas, apesar de ar compungido que fingem a minha frente, tem uma inveja
terrível.»
– E não há mais nada ?
– Não.
– E as chaves ?
– As chaves e o diário serviram ao meu pai num
processo que, no seu tempo, lhe deu uma grande notoriedade. Alguém pagou um
preço muito elevado por um crime de que foi acusado.
– Conta-me.
Pouco posso dizer. O meu pai evitava sempre referir-se
a este caso. Muitas vezes tive a impressão de que ele conservava dúvidas tão
grandes que o inquietavam ainda. Imagina a importância que tudo isto deve ter
tido em determinada época da minha infância. Vês? Há duas chaves de ouro e uma
de ferro. Uma das de ouro é a original e as outras são as copias.
– Como sabes ?
– Foram submetidas a um exame e parece que pelo menos
isso ficou bem esclarecido. O meu pai atalhava todas as perguntas que lhe fazíamos
e as vezes até reagia com violência, o que era realmente extraordinário tendo
em conta o seu caráter pacífico. Mas eu insistia, a despeito de tudo, sem
conseguir nada. Numa ocasião, o meu pai teve um impulso que me surpreendeu.
Agarrou-me por um braço, levou-me diante da vitrina e disse, como se falasse
mais para si próprio do que para mim : «A chave de ferro poderia explicar todo
o mistério. Tenho o pressentimento disso desde o primeiro dia. Mas também tenho
a intuição de que nunca ninguém saberá nada.» Disse estas palavras num tom profético.
Poucos dias depois morreu — já sabes em que circunstâncias — e desde então
convenci-me de que se tratava de uma profecia a sério.
– Não está direito. Se não estas em condições de me
satisfazer a curiosidade não devias tê-la despertado com a exibição da vitrina.
Eu estava tão tranquilo e agora vou ter o nervoso de desconhecer um drama que não
me afeta e que decorreu ha quarenta e cinco anos.
Os dois amigos sentaram-se novamente e a cordialidade não
impediu que uma atitude pesarosa os acompanhasse durante o resto do serão.
Mas quem nos impede, a nós, de sabermos alguma coisa
mais?
Tudo começou numa pequena cidade burguesa, onde os
bons costumes não deixavam lugar para murmúrios e na qual uma plácida maneira
de viver fazia que não acontecesse nada de extraordinário.
Um cidadão insignificante, que uma regular fortuna
punha a coberto das preocupações materiais, sentiu despertar dentro de si uma
ambição que o impelia a significar-se, e inventou um artifício com o qual, ao
princípio, se deu bem. Conhecedor da necessidade de criar um clima de mistério,
dava a entender que sabia muito mais coisas do que as que podia dizer, e quando
conseguia ter em suspenso os seus interlocutores, baixava lentamente a mão que
pusera sobre o peito e deixava-a deslizar pelo colete florido, até encontrar a
corrente suspensa entre os dois bolsos. Metia lá o indicador, mostrava de uma
maneira discreta a chave de ouro pendurada numa das argolas e movia o dedo,
balançando-a.
Esperava. Às vezes a conversa ainda continuava um
bocado, mas havia sempre alguém que acabava por perguntar :
– E esta chave de ouro?
Então, fingia um estremecimento. Deixava a corrente
bruscamente e, com a mesma mão, avançando-a como se quisesse fazer parar
qualquer coisa, impunha silêncio com um gesto e dizia :
— Isso não, por favor ! Todos temos os nossos segredos
para os quais pedimos a discrição dos outros.
E a chave e as palavras seguiam lhe dando um prestígio
que lhe servia para prosperar.
Criou uma técnica de assembleia, de comitê, e de
conselho. Insinuava soluções seguras que o peso de um juramento o impedia de
revelar e, antes das votações, solicitava a palavra e dedicava-se a um pequeno
jogo: tinha solto a corrente das casas que a seguravam e apertava-a com força
no punho cerrado, deixando aparecer a chave por entre os dedos. De pé, entre
toda a gente sentada, girava em redor de um eixo invisível e, mostrando a mão
fechada, pronunciava um discurso incoerente e no fim pedia que a inteligência
dos ouvintes fizesse o esforço de ler ou entender entre as palavras o que a discrição
não lhe deixava dizer claramente. Havia sempre alguém que traduzia em ideias e
projetos elevados as suas frases em conexão.
Depois, esmagado pela tensão desenvolvida, erguia as
abas do sobretudo e sentava-se, semicerrando os olhos enquanto devolvia a
corrente ao seu lugar, fingindo que o movimento dos dedos e dos elos era um
tique inconsciente dos nervos.
Quase sempre saía eleito. Tinha cargos municipais,
presidia a juntas de todas as espécies e, como era o único cidadão com uma
lenda, tinha fama de ser o mais interessante.
Vivia num pequeno palácio rococó, estocado de cor-de-rosa,
com caras de anjos em pedra, espirais e tranças de flores alternando com cestos
e capitéis insolentemente inúteis. No jardim, ao pé dos degraus da entrada,
havia a figura de um cão de bronze, com as orelhas espetadas e a rigidez de uma
vigilância metálica.
Quando alguém se interessava pela figura, ele tinha a
vaidade do proprietário que fala de singularidades da raça canina e de
antecessores inúteis e, com a bengala, apontava para as letras em relevo do
pedestal : «Fundição de Pignone. Firenze.»
A casa tinha dependências para todos os fins e necessidades.
Mas a mais importante era a que continha o armário isabelino, o que era aberto
pela chave de ouro.
Ao colocá-lo ali, chamou todos os criados e disse :
– Fiquem sabendo que tem a minha confiança, o solido
bem pensar das pessoas justas. Deixo-os por e dispor segundo o trabalho de cada
um e têm chaves que abrem todas as fechaduras. Nunca lhes perguntei por que
razão entram ou saem de uma sala, nem que espécie de pó escondido os faz
remexer nas gavetas. Mas de hoje em diante proíbo-lhes uma coisa: ninguém se
aproximara deste armário, nem mesmo com o pretexto de procurar limpezas de
conjunto. Mantenham tudo em bom estado, que o brilho das madeiras caras, da
prata e do mosaico traduzam o bem estar deste lar. Varram, esfreguem, a passem
tudo a pano, mas que ninguém se aproxime deste armário! Que o vosso cuidado
prolongue a vida dos objetos, que tudo apresente a cara da limpeza, ainda que
estes cuidados tornem mais visível o abandono em que teremos o armário. Só eu
possuo chave que o abre (mostrou-a). Se alguém tentar arrombá-lo, os meus bons
sentimentos transformar-se-iam em maldade e não descansaria enquanto não me
vingasse. Agora, vão as vossas obrigações e nunca se esqueçam das minhas
ordens.
Assim nasceu a lenda. Os criados divulgaram-na e as
outras pessoas tomaram a seu cargo o trabalho de a tornarem mais completa.
Na cidade havia homens ilustres pelo sangue, que toda
a gente respeitava. Havia outros que, pelo talento e estudos, ou pela riqueza,
ou porque haviam trabalhado em qualquer atividade que servia o interesse
publico, recebiam honras e considerações. Mas só ele tinha um armário proibido
e uma chave de ouro para o abrir.
Muitas imaginações trabalharam para tentar explicar as
coisas que ele sugeria. As pessoas pouco inclinadas a fazer esforços atribuíam-lhe
uma fortuna ciosamente guardada, mas o cheque com a logica mais elementar
desarmava-os. Outros inclinavam-se a acreditar na existência de uns documentos
que não podiam vir a publico, sem explicar por que razões. Mas, como no caso do
dinheiro, que sentido teria substituir o cofre forte pelo armário?
Circulava também a versão de um amor infeliz, e o móvel
guardaria, então, as suas relíquias: cartas e presentes sentimentais,
miniaturas com retratos, floras secas e, talvez, pedaços de roupa com poder
evocador. Aqueles que eram partidários desta historia, aplicavam o seu engenho
em relacionar a figura pouco elegante do protagonista com uma história romântica.
Um pequeno circulo inclinava-se a crer que o armário
continha um cadáver, habilmente embalsamado, e que muitos anos se passariam
antes de se poder saber a quem pertencia. E os mais sutis murmuravam que tudo
aquilo escondia uma grande vergonha, sem que eles próprios regateassem o prestígio
que significava guardar tal vergonha com uma chave de ouro.
E ele, guarda do mistério, conhecia todas as
interpretações e flutuava na fama que estas lhe criavam, mantendo-se a boiar
numa situação invejável.
Não conseguia evitar tomar um partido. Ele próprio, e
bem a sós, sentia-se possuidor de um segredo de sangue vertido e, enquanto lhe
durava esta visão íntima, comportava-se sombriamente, passando muitas vezes a mão
pela testa, enquanto cerrava os lábios. Em certa ocasião, vivendo o seu papel,
deixou sem pinga de sangue um grupo de amigos com o seguinte solilóquio:
– Por mais débil que seja o lago entre a vida e a morte,
apenas Deus o pode desfazer. Só Deus ! Quem se atrever a tomar por suas mãos
esta prerrogativa divina conhecera o peso duma maldição terrível...
Baixou a cabeça, sem encarar o olhar de ninguém
durante muito tempo.
Outra vezes, inclinava-se para aqueles que acreditavam
em documentos escondidos e agia como se lhes desse razão! Tomava um ar ausente
e dizia, por exemplo : «Que poder o da palavra escrita ! Quantas linhas de
tinta vermelha sobre papel amarelo poderiam modificar o curso das coisas se as
divulgasse! A responsabilidade de quem tenha ao seu arbítrio conservá-las
secretas ou dá-las a conhecer é uma triste herança.»
Havia épocas em que a sua maneira de agir desorientava
e o armário revestia-se de uma importância mítica. Parecia que continha ao
mesmo tempo as relíquias de um amor, o cadáver, os documentos de interesse público
e o dinheiro.
Mas, como as suas faculdades de paixão eram escassas e
não se podiam dispersar, o fato de se concentrar num único objetivo acabou por
dominá-lo. Em redor do armário, na sua imaginação, ia-se formando um halo que o
afastava das coisas conhecidas.
Sem que ninguém pudesse adivinhar as razões, um medo
cheio de pureza convertia-se no tema central da sua vida. De noite, quando o
sono de todos os objetos inanimados punha mais silêncio na casa, ele tapava a
cara com a dobra do lençol e via, como se pudesse penetrá-la com o olhar, a
penumbra de todas as peças, o rosto inimigo dos móveis e os ornamentos espiando
alguma presa indefinível e ao centro de tudo, irradiando fosforescência, o armário
com a gravidez de um verdadeiro mistério.
«É o medo verdadeiro», — pensava. — «0 medo de sempre
que acompanha a noite. A lenda não passa de uma criação tua e podes destrui-la
agora mesmo, torná-la clara, para abrir o teu espirito a chegada do sono.»
Mas a sua fantasia, incapaz de se desenvolver em duas
atividades contraditórias, teimava em fornecer-lhe os elementos que o conservavam
mais inquieto. Faltava-lhe a coragem de fechar os olhos, no receio de que as coisas
imóveis estivessem só a espera que a vontade o abandonasse para se entregarem a
terríveis lutas.
Quando a luz do dia devolvia o aspecto habitual à casa
e a tudo que continha censurava-se gravemente, porque o orgulho de saber que a
lenda tinha bastante força para o dominar a si próprio, dava-lhe uma visão mais
extensa da maneira de servir-se dela Apesar disso, a companhia dos criados era
insuficiente e, de uma maneira lenta e inconfessa, com se quisesse fazer uma
surpresa a si mesmo, veio-lhe a ideia de se casar.
Dedicou-se a uma escolha em que o sentimento amoroso não
participava e estabeleceu um plano de acordo com a técnica que lhe era mais
familiar. Escolheu uma menina de boas famílias, pouco solicitada. e pediu-a de
uma maneira singular, no curso de uma entrevista com a rapariga e os pais.
– Ainda não me
decidi a tomar novo estado, – disse-lhes. – Mas, no dia em que o fizer, a minha
esposa entrara de posse dum pequeno império. Certas indiscrições dos meus criados,
que a bondade me impede de reprimir, fazem que seja conhecido o bem estar da
minha casa e a liberalidade que uso na administração doméstica. A minha mulher
compartilhará tudo comigo, será dona, e só lhe proibirei uma coisa : nunca fará
perguntas sobre o armário, e muito menos tentará abri-lo. E até onde lhe for possível,
nem sequer se aproximará dele. Acham que, com estas condições, poderei arranjar
mulher?
A menina acedeu e, quando as amigas lembravam a maneira
como o seu noivo se afastara de todos os ideais que tinham forjado, ela provocava
a inveja delas respondendo que isso era verdade, mas que teria oportunidade de
saber qualquer coisa do armário.
Celebraram o casamento atendendo a todas as
conveniências e iniciaram a sua curta vida matrimonial.
Um dia, enquanto o marido estava a rever uns ofícios,
ouviu um grito que se espalhou por toda a casa. Ergueu-se de um golpe e a borla
do seu barrete de veludo ficou a dançar-lhe diante dos olhos.
«E lá em baixo», — pensou. — «No armário.» Instintivamente,
relacionava com aquele móvel qualquer coisa insólita. Correu, arregaçando com
as mãos as abas da bata e desceu a escada aos pequenos saltos.
Os criados corriam levando-lhe vantagem, e ao ver de
longe o armário com o batente meio aberto, fê-los parar com um grito: «Que ninguém
dê um passo mais!»
Os criados ficaram quietos e ele abriu caminho com os
cotovelos, afastando-os. A sua esposa estava estendida por terra, desmaiada. Um
remoinho de roupa e rendas envolvia o pouco de carne visível: os braços, com a
pele muito pálida, e o rosto, tão encerado que a morte se podia refletir lá.
Saltou por cima do corpo e fechou a porta do armário,
sem se atrever a olhar lá para dentro. Introduziu a chave de ouro na fechadura
e deu duas voltas, inseguras pelo desconhecimento do que guardavam.
Baixou-se para assistir a mulher e, ao fazê-lo, indicou
com um gesto aos criados que o ajudassem. Levaram a senhora para um sofá e um
foi a procura de sais aromáticos.
O marido observou que ela tinha a mão. direita
fechada, apertando qualquer coisa com força. Abriu-lhe e retirou uma chave de
ouro como a sua. «Uma cópia, — pensou. —
Mas, como pode ser isto ? Ah, sim ! Um molde em cera. Aproveitando a intimidade
para me apanhar de surpresa!»
Quando a esposa deu sinais de retomar o domínio dos
sentidos, lançou a chave diante dos seus olhos e perguntou-lhe :
– Que significa isto ?
– Oh, monstro !—gritou ela. — Quero voltar
imediatamente para casa da mamãe!
Aquilo era desconcertante. Em múltiplas reflexões,
planeara uma atitude para todas as situações previsíveis. Sabia que lhe seria difícil
dominar o estupor do curioso que, furtivamente, comprovasse a ausência de
elementos misteriosos no armário, e de que insinuações teria de servir-se para
lhe dar a entender que a aparência de normalidade encobria muitas vezes os segredos
mais impenetráveis.
Retirou-se para um canto da sala e, aguentando o
queixo com a mão direita, começou a meditar diante do busto de Julio Cesar que
o fitava com um olhar de mármore sem pupilas, tão ausente como o seu. «Com que então,
— pensou, — deve ser verdade a versão do cadáver oculto. Nem
dinheiro, nem documentos, nem recordações produziriam um efeito destes ao serem
descobertos. Sou um homem devorado pela minha própria lenda!»
A dama ergueu-se de um salto, dirigiu-se para o quarto
e saiu imediatamente embrulhada num xale.
– Amanha mando buscar as coisas que me pertencem.
– Para onde vais ?
– Para casa !
Teve vontade de lhe dizer que a queria acompanhar, que
não era capaz de resistir sozinho à proximidade do armário, mas ela fê-lo parar
manifestando-lhe repugnância.
Depois da porta ter batido, os criados retiraram-se e
ele experimentou a sensação de solidão e desamparo diante do enigma fechado
entre paredes de madeira.
Nem por um momento lhe ocorreu a possibilidade de
abrir o móvel e enfrentar corajosamente o seu conteúdo. A simples menção de uma
desgraça fazia-o perder a saúde, e só de pensar na existência de um corpo morto
em sua casa fazia-lhe andar a cabeça à roda e tinha de se encostar a mesa ou
cadeira que estava mais perto.
Seguiram-se dias durante os quais uma nova angustia o
foi dominando. O cheque regular da pulsação arterial sincronizava-se
obscuramente com um bater que, na sua opinião, tinha origem no armário e ecoava
por toda a casa. Com um sorriso amargo, evocava a imagem de um explorador
perdido na selva, perseguido dia e noite por um tantã que lhe indicava um
perigo sem lhe mostrar o caminho da fuga.
De manha, à luz do sol, tentava serenar dando uma nota
favorável às suas reflexões, e repetia que ele próprio comprara o imóvel, o
colocara ali, e que ele próprio, também, era o autor do logro primário a que
devia o prestígio. Mas a lembrança da conduta da esposa destruía subitamente as
cogitações amáveis : «Não, não !»— murmurava. — «0 grito e o desmaio foram
causados por qualquer coisa a margem da minha fantasia. Ouvi dizer que, muitas
vezes o homem é apanhado pelas ratoeiras que arma para os outros, e foi
precisamente isso que me aconteceu.» A curiosidade que durante tanto tempo
cultivara nos outros, conhecia-a agora ele, com uma força superior
Esperava que a esposa contasse a experiência que
vivera e que alguém, animado de bons ofícios, lhe desse a conhecer o segredo.
Na própria noite da separação, os pais mostraram uma
insistência lógica por saber as causas que a tinham motivado, mas ela evitou as
perguntas com as seguintes palavras :
– A ninguém direi o que aconteceu. Nunca mais quero
voltar para o meu marido, e as pessoas que me estimem a serio, será melhor que
desde este momento não façam mais referencias ao meu casamento.
Depois fechou-se no quarto, sentou-se diante numa
pequena secretaria e abriu a gaveta onde guardava o seu diário. Folheou-o com
saudade, releu algumas linhas, riscou outras e, por fim, escreveu : «0 armário
estava vazio. Só esta tarde consegui ter a copia da chave. Esperei a melhor
ocasião, abri-o e ao verificar que não continha nada, que a única coisa que me
impelira ao matrimônio com um homem como ele, era um logro, dei um grito de
raiva e perdi os sentidos. Não direi nada a ninguém, porque as minhas amigas
ligar-me-iam para sempre a uma historia grotesca. Mas não voltarei nunca mais
para o meu marido.»
Mordeu delicadamente a ponta da caneta e ergueu os
olhos numa atitude meditativa. De súbito, lembrou-se que a intimidade dos
diários acaba sempre por ser violada (que graça haveria em escreve-los se assim
não fosse?—pensou), e tomou outra resolução. Arrancou a pagina e queimou-a.
«Hoje abri o armário. Oh, e horrível ! Compartilho de
um segredo que desejaria nunca ter descoberto. Procure em vão as palavras para
me exprimir. A caneta seca-me ao tentar descrever o que os meus olhos contemplaram.
Renuncio a fazê-lo por agora e parece-me que nunca me será possível.»
Desta vez ficou verdadeiramente satisfeita. Guardou o
diário e estendeu os braços para dar as boas vindas ao sono. Despiu-se,
sonhadora, e meteu-se na cama.
Quinze dias depois, o amor próprio produziu-lhe uma
outra preocupação. Para se libertar, redigiu uma breve nota, protegeu-a com am
sobrescrito fechado e entregou-a a uma criada de confiança para que a levasse
ao marido.
As pancadas rítmicas não tinham parado um só momento.
Tentando evadir-se, andava de um lado para o outro da casa cantando com uma voz
fina e assustada as canções que mais companhia lhe podiam fazer.
Mas que logro tão fraco para uma obcecação tão
importante ! O armário estava ali, à espreita, e o medo acompanhava-o por toda
a parte. Muitas vezes, levado pelo desespero, aproximava-se do armário disposto
a abri-lo, mas faltava-lhe a coragem e deixava-se cair em qualquer assento, de
cabeça baixa e as mãos agarradas apertando os dedos.
Assim foi surpreendido pela criada que lhe trazia a carta.
Ouviu uma ligeira discussão à porta, uma voz que insistia em lhe entregar uma
coisa pessoalmente, e dai pouco lia:
«Surpreendi o vosso segredo. Sei que o armário não
contém nenhum elemento misterioso, ou melhor: não contém nada. Tive necessidade
de lhe dizer isto para que não fizesse especulações a volta de uma pretensa
parvoíce minha. E além disso porque tenho de o incitar a continuar indefinidamente
essa história.
«A minha reputação, neste caso, está tão ligada ao
armário como a sua, e a verdade encher-me-ia de ridículo. Queime esta carta,
considere definitiva a nossa separação e tome todas as precauções para que essa
farsa inventada continue a suscitar o interesse das pessoas, como até agora.»
Seguiam-se umas frias palavras de despedida, mas ele
nem as leu. Ergueu-se, radiante, enchendo os pulmões com uma grande inspiração.
«Então não passava de uma parvoíce minha!»— exclamou. Rasgou a carta e atirou-a
para a lareira.
Passou do abatimento mais profundo a uma euforia que
abarcava todas as suas esperanças. Pensou ir imediatamente ao clube rever os
velhos amigos; balançaria a chave de ouro e mostrar-se-ia mais sutil do que
nunca. Aproximava-se a eleição do novo presidente da Câmara e voltou-lhe uma
antiga ambição.
Vestiu o sobretudo de gola de pele e o chapéu cor de
café. Antes de sair parou diante do armário e pensou : «Amanhã de manhã
abri-lo-ei, num ato simbólico de afastamento de todos os receios.» Fez-lhe, com
a mão, um gesto carinhoso e, ao aproximar-se, pisou uma poça de sangue. Pela
fresta inferior do batente da porta, caiam gotas lentamente e a mancha
aumentava. Mas ele nem reparou.
Deixou pegadas vermelhas nos azulejos do vestíbulo e
pequeno tapete da entrada. O cascalho do jardim limpou-lhe as solas, e ao
carregar todo o seu peso sobre a pedra do passeio, com os passo seguros de um
homem que fugia a um pesadelo, já não o delatava nenhum vestígio.
Achou que a noite estava muito agradável e afirmou o
propósito de ir ao clube com a assiduidade de antes. Mas estava escrito que
nunca mais lá voltaria.
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