domingo, 7 de fevereiro de 2016

84 – Velhos – D. Kosztolányi

Dezsö Kosztolányi (1885-1936) escritor húngaro nasceu na cidade de Szabadka que à época fazia parte do império austro húngaro e hoje é parte da Sérvia com o nome de Subotica. Neste conto “Velhos” uma excepcional tradução de Paulo Schiller o autor demonstra uma extraordinária elegância no texto e uma aguda sutileza em expor as emoções humanas


Velhos
 Dezsö Kosztolányi
Tradução Paulo Schiller

— Quarto para alugar?
A velha fez que sim e abriu a porta.
— Queiram entrar.
Dois velhinhos assustados, estranhos, estavam para­dos diante da porta. Moisés e Daniel.
Moisés era completamente careca, nos dias frios usava um chapéu verde-escuro e um xale amarelo em volta do pescoço.
O outro, que estava ficando grisalho, era loiro e alto.
O coração de ambos batia muito forte quando entraram no quarto de estudantes, pobre, de Ferencváros. Na luz amarela cansada da tarde os objetos se desenhavam diante deles com contornos nítidos e escuros. Apertaram as mãos um do outro.
Nada havia mudado.
Diante das janelas escuras a parede que um dia se revestira de dourados incríveis se erguia vertiginosa e despertava neles a ideia de um castelo mal-assombrado ou uma torre de vigia em alerta. Era a mesma. Nas janelas do sótão cochilavam figuras andrajosas que de longe pareciam bruxas. Mais ao longe havia uma casa de dois andares. No quintal, a quadra de tênis. Os móveis do quarto também eram os mesmos. Os armários embutidos, a grande mesa, as camas. Sobre a cristaleira, conservas — tomates vermelhos, amêndoas verdes —, e atrás um vidro enorme com vinagre turvo. Aqui a jarra e os copos. As almofadas escuras, listradas de verde. Sobre uma mesa um bordado interrompido. O encanamento também agora pingava num tédio narcotizante, como um sonífero, como se desde então não tivesse sido fechado.
Olhavam e não conseguiam dizer nada.
A mulher ajeitou os óculos e os encarou com dureza. Ali, em Ferencváros, era preciso tomar muito cuidado com os inquilinos sem dinheiro que chegavam sem bagagem e enganavam sem piedade as velhas pobres, indefesas.
– Gostam? — perguntou insistente.
– Sim —- disse o careca, e logo pôs sobre a mesa o aluguel do primeiro mês. — Viemos do campo. Nossas malas ficaram na estação. De noite nos mudamos.
Com isso os dois velhos cumprimentaram e, sorrindo constrangidos, saíram.
Na escada, porem, a fala deles voltou.
– Você viu?
– Sim, é aqui mesmo.
– Nosso querido quarto.
– A cúpula do abajur.
– A cortina.
– O relógio.
– O bordado sobre a mesa.
– Tudo, tudo.
Falavam excitados. Estavam felizes. Caminharam no asfalto com energia, quase como jovens. Só faltava aquilo para o piano. Os dois velhos, o filosofo amargurado e o botânico, que foram colegas de quarto nos tempos da universidade, haviam planejado que depois de trinta anos deixariam o esconderijo entediante do campo e de novo voltariam a morar em Budapeste, viveriam modestamente, como estudantes, como no passado. Por sorte, a antiga residência estava vazia. Moisés, que não deixava de ter experiência em filosofia mais profunda falou com entusiasmo:
– A vida, a juventude, não está tanto em nós, mas no ambiente. Veja, apenas nos mudamos. Aqui encontramos de novo tudo que pensávamos perdido. Não é, Dani?
O botânico acenou rindo. Esse Dani era um rapaz estranho, magro, que usava o nome de estudante como uma calça que ficara pequena. Apenas ele envelhecera, o nome não. Porém, nessa hora em que caminhava feliz, surpreso e sem rumo, com o mapa oficial de Budapeste na mão, parecia um estudante, lembrava uma criança velha, um simplório do campo que bamboleava triste entre as pessoas e procurava relembrar os labirintos obsessivos das ruas e avenidas que o pai na noite da despedida desenhara sobre a toalha de mesa com a cinza do charuto. Olhava para as pessoas desconfiado. Tinha muito medo de ser enganado. Detestava os comerciantes. Para os garçons, por outro lado, que giravam com tanta habilidade entre as mesas dos cafés, ele olhava como se fossem assassinos. Tinha esse sentimento havia muito, desde quando viera para a capital pela primeira vez. Agora o sentimento despertara nele de novo.
Moisés andava alegre alguns passos a frente. Parecia rejuvenescido. Naquelas ruas havia abundancia de felicidade e de vontade de viver, das quais sobrava um tanto para ele também.
Na grande cidade há algo de familiar. Quando chegamos, ela nos recebe de coração aberto, como se nos esperasse. Somente a cidade pequena se fecha para nós. Aqui, porém, podemos continuar anônimos, e podemos fazer conhecidos. Moisés sentia que eram seus conhecidos os que lá viviam. Espiou a padaria e encontrou as duas senhoras de idade de quem toda noite ele comprava pão e ricota. Estavam de cinza. Os cabelos delas também eram cinzentos, e também então cheios de creme. Embrulhavam disciplinadas o pão e cumprimentavam a todos com um boa noite prolongado e gentil com suas vozes desgastadas e amortecidas. Boa noite, queridas senhoras. Ele também parou diante do açougue. Sorrateiro, como se cometesse um pecado. Um homem gordo, com uma faca brilhante, lascava fatias de presunto de Praga cujo veludo cor de rosa envolvia a gordura fina com um laço branco.
Era o mesmo que vira também havia muito tempo. Durante os sete anos magros, o açougueiro gordo simbolizara a abundância e a autodisciplina. Moisés tinha a impressão de que a roda da vida girava ao contrário e ele vivia no passado. Sua cabeça zumbia de felicidade. Por um instante ele mergulhou em lembranças. Quantas vezes o açougueiro se levantara de manha cedo no inverno e no verão, quantas vezes se postara junto a mesa de mármore, enquanto ele estivera longe e não pensara nele, quantas vezes se entregara ao mesmo trabalho, talvez apenas para que preservasse nos outros a crença na continuidade da vida. Sentiu uma espécie de gratidão por ele, por todos que o rodeavam. Não era mais um estranho. Aquelas pessoas o acolheram como a um membro da família. Cumprimentaram-no mudos com os olhos. Ele, por sua vez, pode roubar os segredos deles. Moisés continuou andando sonhador.
Uma moça caminhava a frente deles.
— Você viu? — perguntou Moisés a Daniel — O cabelo dela e como o da Mariana. Os olhos também. O nariz também. Incrível.
Os dois pararam e a seguiram espantados. Os dois velhos falaram muitas vezes sobre Mariana, que, um dia, no tempo de estudantes, os visitara, tomara aguardente, e dançara sobre o tampo da mesa. Em seguida, ela desaparecera. Fora a única aventura deles.
Desde então toda moça se parecia com Mariana.
As lembranças despertaram em todas as árvores e pedras. Por onde pisavam o asfalto revivia e começava a tocar musica, a musica do passado. Em frente morava um antigo jurista que todo ano era regularmente reprovado no exame. A janela do segundo andar estava aberta. A luz estava acesa. Será que ele ainda mora lá? Ele costumava deixar as janelas sempre abertas. O merceeiro estava sentado no balcão e contava o dinheiro. Havia engordado e perdera os cabelos.
Andavam, corriam, voavam. Nem notavam que a caminhada lhes pesava. O que mais lhes pesava os abandonara. Pois não sentiam o peso do corpo. Havia trinta anos as suas costas e eles de súbito se transformaram em nada, desapareceram. Tornaram-se trinta anos mais jovens.
Apressaram-se para chegar em casa antes do fechamento do portão. Antes disso, entraram em um café barato da periferia de Ferencváros. Daniel contemplou com aprovação os espelhos chorosos, o sofá de pelúcia desbotado que gemeu e cantou quando se sentaram sobre ele, e o garçom que mancava diante deles num fraque manchado, porque estes eram sinais encorajadores de que o café era mais barato que os outros. Fumaram um charuto e depois pagaram. Os dois deixaram uma gorjeta de quatro centavos sobre a bandeja. O garçom se curvou profundamente diante deles, entregou-lhes os casacos e abriu a porta.
Com esse sucesso seguiram animados para a estação. Lá, porem, eles se decepcionaram. Não receberam as bagagens. Mandaram-nos com grosseria de um guichê para o outro. Os funcionários os dispensavam grunhindo ou com um sorriso, eles por sua vez se entreolhavam horrorizados. Isso também era assim no passado. Eles eram exatamente assim, perdidos. A vida demandava muito sofrimento. Alegraram-se em poder sofrer juntos e por não se envergonharem um do outro.
Por fim estavam com a bagagem na mão. Carregaram-na ofegantes, com o suor escorrendo pela testa. Logo se livraram dos carregadores. Não adiantava terem dinheiro. Achavam que os carregadores eram pessoas astuciosas e mas que esfolavam os viajantes e se fosse possível não deveriam estabelecer relações com eles.
– Não é preciso — disse com firmeza Moisés.
– Não é preciso — repetiu baixo Daniel. Entraram na estação, na plataforma.
Moisés gostava de observar os trens que chegavam, os passageiros que falavam línguas desconhecidas, gos­tava de se misturar na confusão sonolenta e cambaleante para que ele também fosse visto como um estranho triste que a vida arrastava sem morada de um lado para outro.
— A estação — disse em seu tom vacilante — e uma coisa extraordinária. Veja como é bela ao cair da tarde. Como é linda a cúpula de vidro. Essa concha que reproduz o barulho do mar. Contém todos os caminhos e todas as distâncias, e contém o futuro e o passado também. Veja as cores, como se estendem assustadoras a perder de vista. Você as vê quando os olhos não podem mais acompanhá-las, na esteira prolongada de um raio de sol você as vê se alinhando no infinito.
Daniel o deixou só e acenou. Não entendeu uma palavra. Moisés filosofava e ele estava acostumado a não compreendê-lo. A filosofia era o que não se podia compreender.
Mas ele também se curvou e olhou, olhou as cores.

I
O trem partira de Pétervár as três e meia da madrugada. Na noite anterior os dois se deitaram cedo para poder acordar a tempo. Antes, porém, haviam jantado na taverna. Tomaram vinho tinto em uma mesa posta com uma toalha vermelha. Moisés acendera o cachimbo e tragara tossindo. Acariciara sonhador a barba completamente amarelada pela fumaça. Contemplaram a noite e a lua que pendia descuidada, gasta, a moda do campo, de uma cerca, entre as ramagens dos arbustos de morango, imóvel. A poeira irritou a garganta deles. Vez ou outra um gato comedor de ratos saltava sobre a cerca. Não fosse por isso, fazia silencio. Pagaram, se separaram, e foram dormir.
Mas Moisés não conseguiu dormir. Estava com dor de cabeça. A meia-noite, levantou-se e quis fazer chá. Não havia água na chaleira. Teve de sair para o poço, de camiseta. Vagou triste no quintal. Depois voltou para o quarto, sentou-se na cadeira e contemplou a lamparina ofegante. Como era tedioso viver. Os moveis também se entediaram com ele, se cansaram e se deterioraram sob suas mãos. O ar se deteriorara com seu hálito. Muito bem, iria embora dali. Em outro lugar a vida certamente era mais bela. A lua lá também era muito próxima e entediante. Quase adentrava o quarto, como uma visita. Lembrava-se de que antes ele a achava distante e superior. Estendeu os braços e ficou parado, encantado na luz fria. Depois aquilo tudo passou.
Aos poucos a água do chá ferveu.
Mais tarde, também não conseguiu dormir. Ficou largado insone sobre o pequeno travesseiro. Quando viajara pela primeira vez ele se torturara da mesma forma pela excitação da viagem. Pianos agitavam seu cérebro. Pensou nisso até o amanhecer. A lua continuava no céu. Sentiu então uma simpatia dolorida por ela, porque ela se mantinha desperta com ele e esperava pelo amanhecer. Começou a se lavar. Passada meia hora, um pequeno carro parou diante do portão. Alguém bateu em sua janela.
— Você está pronto?
Daniel estava parado na rua e esperava no carro que os levaria ao trem.
Moisés soprou a lamparina. Recolheu a bagagem e entrou no carro.
A viagem logo lhes trouxe decepções. O trem estava lotado. Não encontraram lugar na cabina. Desconfiaram que nessa madrugada lhes aconteceria algo excepcional e triste, a vida sairia dos trilhos e ninguém a recolocaria no lugar. Ficaram parados mudos no corredor. Quase caíram no choro. Sentiam frio nas mãos e nos pés. As bocas se contorciam de frio. Olhavam para os postes telegráficos _e para a lua que, agradecida, corria atrás deles. Por fim, sentaram-se na cabina. Ainda havia muita gente. Viajantes sombrios dormiam encostados nas almofadas sob a luz das lâmpadas cobertas pelas cortinas, malvados e sombrios como assaltantes, ou, cansados, roncando como moribundos. No ar pairava a fumaça de cigarros e charutos. Começaram a tossir e a espirrar. De repente sentiram calor. A fumaça do trem, o aroma azedo da neblina e o cheiro quente do couro dos assentos penetrou em suas narinas e eles ficaram tontos. Vapores pútridos se espalhavam. Eles sentiram náuseas. As orelhas se incendiaram, vermelhas de excitação. Tinham a sensação de que estava tudo perdido, irrecuperável. Olharam para o relógio. Eram seis horas. Nessa hora costumavam tomar um bom café da manhã. Como não lhes serviram café, a vida lhes pareceu sem sentido e árida. O chão se abriu sob seus pés. Mas logo o sol nasceu. Os campos recém-arados brilharam dourados. Alguns pássaros voaram diante deles. As pessoas sombrias também acordaram e começaram a conversar. Uma delas riu. O cobrador os saudou. Tudo ficou melhor. Com o despertar cedo, a agua fresca, na alvorada, olharam embriagados pela janela e espreitaram a chegada triunfante, o objetivo que, mergulhado na neblina, na fumaça, estrepitoso, lhes acenava.

II
Foi um dia difícil.
Não é de admirar que se cansaram.
Da estação chegaram em casa com pacotes e bolsas. Logo foram se deitar. Daniel se deitou na cama antiga e se alegrou por ela continuar boa. Sobre a mesa se exibiam brancas duas garrafas de leite. Tomaram o leite de camisola. Moisés olhou debaixo da cama com uma vela na mão e apalpou os armários para ver se não havia ninguém neles. Depois apagou a vela.
Ficaram deitados e mudos no escuro durante muito tempo. Era como faziam nos tempos de estudante. Moisés falou:
– Você esta dormindo?
– Não — respondeu Daniel.
– Cinco minutos depois Moisés tossiu e falou de novo:
– Você está dormindo?
– Não.
Assim passou um quarto de hora. Os dois pensavam. O relógio bateu a meia-noite.
Moisés perguntou de novo:
– Você está dormindo?
Ninguém respondeu. Apenas o relógio de parede se movia.
Daniel sempre adormecia antes. Isso conferia certa superioridade a Moisés.
Desta vez ele também se alegrou. Acendeu um fosforo e observou o amigo que cochilava mansamente, com uma seriedade de velho, com a cabeça caída de lado, e uma das mãos estendida sobre a colcha.
“Naquele tempo ele também dormia assim” — pensou consigo Moisés, e apagou o fósforo.
Sobre a boca do adormecido duas gotas de leite brilhavam simpáticas e inocentes.

III
Planejaram acordar cedo no dia seguinte. A vida de estudante não comporta a preguiça. Eles se lavariam com agua fria, se vestiriam com disciplina militar, e em seguida se entregariam a seus afazeres. Moisés acertara o despertador para as seis em ponto. Mas quando o alarme tocou nenhum deles se levantou. Estavam com sono e, virados para a parede, continuaram dormindo.
A casa despertou.
Era uma casa diferente, amarela, da cor de uma caserna, e a primeira vista causava uma impressão inamistosa. As paredes descascavam, as pedras gastas, antigas, apontavam para o passado. Mas a fonte de mármore vermelho no meio do quintal, e uma ou outra janela de vidro colorido faziam esquecer a pobreza, os quartos bolorentos, e, as vezes, em especial nas tardes nubladas, quando embaixo rangiam realejos, a imaginação ia longe em busca de vidas desconhecidas, rastros e romances de pessoas mortas. Moisés no passado vivera lá um clima de história. Sentado o dia todo entre livros antigos, folheando velhos documentos, tinha inclinação para isso. Quando escreveu a dissertação sobre o Anônimo, não se espantaria se ao sair para o quintal ele se encontrasse com um padre medieval ou um doutor magro, de cartola, que o examinaria através das lentes e falaria sobre magia e escarros.
O sol estava alto quando acordaram.
– Daniel! — gritou Moisés com força. — Acorde!
Estavam verdes e amarelos da excitação da véspera.
Vestiram-se em silêncio. O primeiro dia não havia dado certo. Tomaram-no como mau sinal. Uma certa tontura também surgiu, como depois das noites com muito cigarro. Entretanto, a luz do sol da manhã envolveu o quarto num vapor brilhante. Na pia nadava um arco-íris. Uma coluna de poeira dançava enlouquecida entre a janela e a cama. Os copos, as garrafas, os castiçais e as maçanetas brilhavam. Somente nas manhãs de Natal se sentem assim as crianças pequenas que veem a luminosidade se extinguindo e sentem o cheiro do pinheiro maduro e da fumaça que se alça das velas.
– Daniel!
– Moisés!
Gritaram os dois ao mesmo tempo.
Apreciaram o quarto com avidez. Revistaram, febris, os armários. Reviraram todos os cantos, afastaram os móveis, retiraram os quadros, e procuraram, procuraram o passado. É verdade que desde então houvera uma grande aniquilação. Moradores desconhecidos andaram por lá, deixaram seus rastros, talharam nos móveis as marcas próprias de suas vidas, embeberam o quarto todo com seu perfume, seus sentimentos e suas almas. Um oficial aspergira tudo com colônia. O porta-retratos novo de bambu também fora dele. Dentre os muitos moradores se destacara um estudante de farmácia cujo retrato se podia reconstruir com fidelidade pelos sinais pessoais indeléveis que deixara. O rapaz, com certeza, seguia a moda. Muitas lembranças espalhadas por todo lado. Além disso, ele gostava de gravatas, das quais tinha uma lista precisa na porta do armário, com a definição de qual usaria em dias diferentes. Ele as pendurava em um barbante de prender açúcar cristal esticado com muito cuidado. Por outro lado, havia um nome de mulher riscado no armário: “Malvin”. Também na parede: “Malvin”. Também no espelho: “Malvin”. Era a amada fria e impiedosa do farmacêutico.
— Ah, Malvin, Malvin — gritaram sonhadores e irônicos. — Onde estará você, Malvin?
Mas a expedição prosseguiu. Debaixo da colcha encontraram os rastros antigos deixados por eles quando certa noite embriagados cortaram o piso a machadadas. Depois encontraram outros sinais também. Daniel havia esquecido um peso de papeis no armário. Ele — parece — passara de geração em geração e a dona da casa, como agenciadora, não sem valor, da mobília, o passara aos sucessores. Acariciaram-no com amor. Puseram-no diante deles e o observaram para ver se havia nele alguma mudança. Não havia mudado. Depois abriram os armários com portas de vidro. Moisés sentiu o aroma das conservas de framboesa que foram um dia postas ali enfileiradas. O cravo também se fazia sentir com intensidade. Certa vez, Daniel tivera uma dor de dente muito forte. Moisés correra para a farmácia e o farmacêutico lhe dera gotas de cravo. O remédio se derramara pelo armário e dai em diante tudo adquirira o cheiro, que reinou no saguão de entrada, no corredor, e até na escadaria.
Agora que o inalaram de novo, ficaram tontos. Era o perfume da juventude. Uma vertigem terrível, embriagadora tomou conta de seus cérebros. Deram pulos. Fizeram piruetas sobre o divã, dançaram em volta da mesa, e em seguida se atiraram ao chão, arteiros e estúpidos, como crianças brincando. Esqueceram-se de tudo. Não sentiram fome e não notaram que haviam perdido o almoço. Foram almoçar bem tarde. Logo voltaram. Ao anoitecer abriram as janelas e contemplaram a vida do quintal, as jovens empregadas que incendiavam os ferros de passar e espiavam das janelas do andar.
Quando escureceu, o quintal ficou mais silencioso. Nas diferentes alas da casa soou um violino.
– Você esta ouvindo? — perguntou de repente Moisés.
Era a Lenda de Wieniawski, de que os dois tanto gostavam. Ecoou triste e profundamente desejante de um quarto de estudante escuro. Com certeza, era tocada por um estudante sóbrio, de cabeleira densa. Ele a tocava no quarto nas horas de devaneio e cansaço, antes do acender das luzes, apertando o violino com força contra o peito, prosseguindo de onde os demais a deixaram havia muito tempo, anos atrás. Milhares se postavam atrás dele. Milhares se postavam diante dele, que um dia receberiam o violino para continuar a melodia. Esse concerto do violino ao fundo, na confusão das discussões mesquinhas, representava a melodia da juventude, a eterna melodia da juventude.
– Você esta ouvindo? — disse Moisés mais uma vez, um pouco mais baixo.

IV
Ainda assim, faltava alguma coisa.
Passou um dia e o feitiço se suavizou. Passou uma semana e eles se cansaram. Passou um mês e eles se tornaram tristes.
Alguma coisa faltava.
– O que está faltando? — perguntaram-se.
– A cortina amarela — disse Daniel.
No mesmo dia foram a uma loja de tecidos e compraram um corte de tecido amarelo, exatamente igual ao que ficava na janela deles. Logo o penduraram. Uma amarelidão morna tomou conta do quarto.
– O que você acha? — riu Moisés.
– Pomposa. Só que a cor é um pouco diferente.
– Como assim?
– É um pouco mais clara.
– Para mim parece um tanto mais escura.
O problema não era esse. No dia seguinte Moisés bateu na testa.
– O xadrez.
– Sim, vamos jogar xadrez.
Arranjaram um xadrez. O jogo começou difícil. Os dois haviam perdido a prática. Daniel havia até se esquecido um pouco dos movimentos. Depois começaram longas discussões. Daniel não queria reconhecer que Moisés era melhor jogador, e no final do jogo procurou demonstrar que na verdade ele tinha ganhado, ninguém tinha razão para duvidar, pois reunira argumentos lógicos e convincentes.
Deixaram o xadrez de lado. Ficaram deitados letárgicos na cama durante uma semana.
– Falta mulher — disseram os dois ao mesmo tempo.
– Uma mulher, uma mulher.
Em pouco tempo teriam de arrumar uma mulher.
No dia seguinte, à noite, saíram para a rua, quando as mulheres que trabalhavam voltavam das oficinas de costura, das lojas e das fábricas. Daniel vestiu as luvas de linho e prendeu uma rosa de outono na lapela. Moisés arranjou um perfume na drogaria e açúcar cristal na mercearia.
Entretanto a empreitada acabou em fiasco. A maioria das mulheres passou por eles sem dizer uma palavra. Algumas os afastaram irritadas, outras deram de ombros, e houve uma que riu.
Voltaram para casa exaustos.
No dia seguinte ficaram de novo a espreita. Sem resultados. No terceiro dia Daniel ficou em casa. Somente Moisés foi a capa.
– Você sabe que sou valente — disse.
– Você não muda nunca — resmungou com sono Daniel. — Seu velho mulherengo.
Porem, nessa noite. Moisés irrompeu no quarto radiante.
– Temos mulher.
– Não diga.
– Uma mulherzinha pequena, querida.
– Loira?
– Acertou.
Moisés começou a jantar.
– Você imagina como ela se chama?
– Não é...
– Sim. Ela se chama Mari.
– Impossível. Isso é coisa de romance.
– Não entrava na cabeça deles que ela também se chamasse Mari.
No nome havia todo o encanto de uma fada num sono leve.
A questão era onde encontrá-la porque ela marcara um encontro para o domingo. Fariam um passeio no bosque? Moisés não gostava de excursões. Tinha experiências pesarosas. Gente como ele sufoca na poeira e o calo arde. Os bondes estão cheios e levam sempre na direção contrária. Além disso, a comida é sempre imperfeita. Da última vez, mandaram a dona da casa assar um frango, que levaram embrulhado num jornal. Mas as formigas entraram no frango. Não conseguiram diferenciar se comiam a pele do frango ou a crônica do domingo. Nem comiam, contemplavam a pobre carcaça, o pescoço tristemente alongado e os olhos caídos, como se perguntassem por que o mataram tão jovem, na flor da idade. Quase o prantearam.
Portanto, não excursionariam. Prefeririam trazer a moça para a casa deles. Como no passado. Era mais pecaminoso e também mais elegante.
Decidiram que comprariam três doces. Eram em três, mas eles prefeririam não comer, e deixariam os três para a moça. Depois arranjariam açúcar de framboesa e — naturalmente — aguardente de ameixa.
No domingo a moça veio. Era uma mocinha desajeitada e sem ambições, uma gansa boba e muda que não tinha outra aventura e se alegrava com aquela promessa triste. Quando ria exibia os pequenos dentes e as gengivas lilases, anêmicas.
— Mari — sussurrou Moisés emocionado.
A mulher cumprimentou e se sentou. Era uma pequena de Budapeste que sabia o que eram bons modos, o que era um comportamento de camponesa, o que era constrangimento, mas por isso tudo era preconceituosa.
Moisés tentou conversar.
– Sente-se.
– Obrigada, já me sentei.
Nisso a conversa emperrou.
Daniel tossiu. Tinha pela frente uma decisão corajosa. Ele se sacrificaria e os salvaria do mal-estar.
– Sim? — disse baixo. — Já está sentada? Interessante.
E riu.
O mal-estar piorou. Os três tossiram. Moisés de repente se voltou para a moça.
– Deseja dizer alguma coisa?
A moça engoliu em seco, e disse apenas
– Não.
Agora não havia mais saída.
Moisés, desesperado, olhou com muita gravidade para a reprodução pendurada na parede. No quadro um veleiro se debatia em meio a espumas de tempestade. Os três pensaram em como prefeririam estar na embarcação que naufragava, nas garras da morte certa, ou no fundo do mar a esse quarto onde havia paz e aguardente de ameixa.
De súbito, como se fosse um ataque, começaram a servir a moça. Ela procurou se livrar a todo custo. Parece que nem ela sabia o que queria, e quando viu que os outros também não sabiam, ficou ainda mais aterrorizada. Ficou constrangida pelo constrangimento. Pegou pedacinhos do açúcar de framboesa com a ponta dos dedos. Quase os derrubou na colcha. Depois de muitas súplicas, por fim os levou à boca. Sorriu. Depois fez cara de quem havia mordido a língua.
Mas acenou com a mão:
– Não foi nada, nada.
Foram momentos difíceis. Daniel ficou com palpitação pelo nervosismo. Porém. a aguardente ajudou. Beberam animados. Moisés entoou uma canção antiga. A moça ouviu enlevada, não sabia se era uma marcha alegre ou fúnebre, se tinha de chorar ou rir.
A visita durou duas horas. Por fim se despediram. A moça prometeu que viria sempre.
Os dois velhos ficaram sós. Andaram pelo quarto em silencio.
Moisés acendeu o velho cachimbo esvaziado.
Os dois tinham a mesma sensação. De que acontecera algo muito triste.
Mas nenhum deles teve coragem de falar.
Por fim, Moisés rompeu o silêncio.
– Bem, o que você achou? — Daniel o encarou.
– Moça simpática.
– Muito simpática — disse Moisés depois de pensar um pouco.
– Muito.
De novo andaram pelo quarto.
– Mas nos cometemos um erro — disse Moisés. — Pelo menos eu acho. Faltou alguma coisa.
Sim, alguma coisa não foi bem.
– Talvez a aguardente.
– Pode ser... Hoje em dia se falsifica tudo...
– Tudo.
Moisés se deitou no divã. Estava muito abatido. O divã foi envolvido em uma nuvem de fumaça.
– Você — disse por fim — não se lembra? Como era mesmo?...

V
Daniel e Moisés estavam sentados em um banco do jardim do museu. Nas manhãs gostavam de passar o tempo ali.
– Veja — prosseguiu Moisés —, ontem à noite me ocorreu algo. Um jovem, certa vez, matou-se com um tiro na testa. Na ultima carta, escreveu que se matara porque naquele ano havia se tornado um ano mais velho. Não suportava a ideia de que no ano anterior tinha vinte e cinco anos e então vinte e seis. Se pensarmos bem, ele fez uma bobagem. Os médicos disseram que era doente do juízo. Mas, pensando melhor, ele foi sábio.
Daniel ouviu as bobagens entediado. Pessoas amargas, cansativas, vagavam diante dele.
No final da manhã, porém, a vida ganhou novo ânimo. Despertou a vontade e com os raios quentes do sol a neurastenia da manhã evaporou. Vinham estudantes e decoravam as anotações que as pessoas velhas conheciam tão bem. As babás apareciam, os garotos corriam atrás de rodas e as meninas brincavam com bolas imensas.
– Veja a menina vermelha com a bola vermelha e a sombrinha vermelha — gritou Moisés. — Você se lembra dela? Houve um tempo em que a espiávamos toda manhã abrindo a sombrinha liliputiana sob o sol. Tinha nove anos. Agora também. Não tente saber quem é, não pergunte seu nome, não tem nome nem idade, sempre existiu e sempre vai existir igual, e ela ri, feliz e vermelha, hoje e amanhã, e nasce em todo lugar como a papoula. Veja a menina vermelha.
O rosto de Moisés se iluminou e brilhou no reflexo da sombrinha.
Daniel apertou a mão contra o peito.

VI
Não o fez porque era sentimental, mas porque nos últimos tempos o coração dele lhe pregava peças.
Pregava-lhe peças infernais. As vezes, tinha a impressão de que sairia voando. Em outras, ele de súbito caía em porões profundos, rios escuros, redemoinhos. Sua mão ficava fina e transparente, como uma asa. Muitas vezes ele a olhava a luz de uma vela. A vertigem era estranha. Era como uma brincadeira, um teatro demoníaco, em que se alternavam luz e sombra. Mais tarde, quando estava tudo bem, sentia a terra sob os pés e o céu acima dele, pensar no que acontecera era quase agradável e ele se divertia.
Só era melhor não ter de voltar para casa. Ultimamente a casa era desagradável. Os andares eram altos, o corredor estreito, as janelas não fechavam bem. A lareira produzia fumaça. Na cozinha o leite muitas vezes fervia e transbordava, espalhando um mau cheiro terrível por todo lado. A rua estava sendo asfaltada. A calçada estava tremendamente revirada diante das casas. Na escuridão as camadas rasgadas pareciam feridas abertas. E o quarto todo recendia a cânfora. Vidros de remédio por todo lado. De madrugada era preciso deixar potes de cerâmica e saquinhos de sal quente para a dona da casa que se cansara deles. Os vizinhos se odiavam. O zelador não os cumprimentava quando eles chegavam. Odiava os moradores que não lhe davam gorjeta. Dizia que eram espiões. A razão de tudo era com certeza os óculos pretos de Moisés. No segundo andar os mais cultos sussurravam que eles eram adversários do governo e copiavam documentos secretos.
Quando possível. eles não ficavam em casa.
Vagavam pela cidade.

Procuravam algo.
Às vezes, os dois velhos andavam como se estivessem perdidos. As crianças muito pequenas bamboleiam assim, sem rumo e com medo. Esticavam o pescoço e olhavam uma janela ou um quintal onde crianças dançavam, ficavam largadas, preguiçosas, sobre os tijolos verdes, sujas, em camisetas de ginástica com listras azuis e vermelhas. De outras vezes, paravam em uma esquina. Ficavam parados durante horas. Apertavam-se as mãos e olhavam fixamente em certa direção. Não conheciam ninguém e, ainda assim, era como se esperassem e procurassem alguém, indecisos, na nevoa torturante de um pesadelo. Depois iam para casa.
Na escadaria se cansavam. Deitavam no divã pálidos e ofegantes. Entreolhavam-se.
Os olhos diziam:
“Também hoje não encontramos. Não está em lugar algum. Temos de procurar em outra parte... ”
Contudo, havia horas e minutos em que de seus rostos amarelados surgiam rugas de impaciência, rugas vermelhas, as rugas terríveis de uma febre. Nessas horas eles sentiam medo. Nessas horas os exploradores loucos começavam a correr. Nessas horas corriam para frente com as velhas pernas ruins, trôpegos, como se estivessem sendo perseguidos, e a testa calva transpirava, empalidecia, murchava. Corriam e os coraçõezinhos velhos batiam forte pela corrida. Daniel pela magreza, Moisés pela gordura.
Uma vez se pesaram na estação.
– Emagreci dez quilos desde que cheguei — suspirou Daniel. Em seguida, Moisés subiu na balança. Desceu resmungando.
– Engordei dez quilos — disse, ainda mais desanimado.

Um dia almoçaram no restaurante dos estudantes.
Chegaram tarde e, por assim dizer, estavam sós. Fora, a chuva começou a pingar. As lâmpadas a gás foram acesas. Nessa luz tudo ficou mais triste. O retrato do rei no uniforme vermelho de hussardo os incomodou. Era desprezível e despretensioso como um pedinte. A pompa pobre das palmeiras empoeiradas doía. Tudo se mostrava diferente do que haviam imaginado.
A chuva se derramou sobre o Danúbio.
Depois de muito tempo veio o garçom para limpar as migalhas de pão e tirar os pratos da mesa.
Em seguida, passou de novo uma eternidade antes de ele voltar. Os garfos e facas chocalhavam alto no recinto abandonado.
Os pratos também estavam frios. A carne, intragável. Sobre a massa, a gordura resfriara.
Ficaram sentados os dois, sem vontade de nada, observando a chuva de outono.
Na luz cinza pareciam dois mortos sentados a mesa, cansados e tristes.
Um estudante os observava.
A seus olhos, um deles parecia um fantasma alongado que um dia se assustara com alguma coisa e agora olhava a sua frente, eternamente sobressaltado. A dor recobrira o rosto de branco. O outro rosto, gordo e barbado, com seus pelos e verrugas, lembrava um túmulo mal cuidado que, tornado pelo mato, afundara e ganhara uma corcunda, enquanto apenas dois olhos piscavam nele gordurosos e brilhantes, como dois pavios alimentados pelos cabelos. Não sabia dizer qual era o mais triste.
O estudante, que ia para uma apresentação. ficou durante muito tempo parado diante da janela espelhada e se horrorizou um pouco. Depois ergueu a gola e seguiu apressado na chuva.

Nesse dia Moisés parou diante de uma casa de que ele nunca falara para ninguém.
Ficou parado diante da casa como um pilar e não se mexeu. Não se sabe o que o levara para lá. Não se sabe o que ele esperava.
O estranho chamou a atenção dos moradores da casa. As janelas se abriram uma após a outra e cabeças curiosas espiaram para fora para olharem o velho cavalheiro bizarro que fazia a corte sob a janela de uma mulher desconhecida, ou sabe-se lá quem, e havia horas não se mexia. Um senhor furioso abriu a janela varias vezes e lançou olhares ameaçadores em sua direção. Moisés não cedeu.
De repente o homem furioso apareceu na rua. Estava em mangas de camisa. Tinha o rosto vermelho do vinho do domingo. Via-se que estivera bebendo ou jogando cartas e estava contrariado por ter de interromper o que fazia.
– O que você quer aqui?
Moisés não respondeu.
– O que esta procurando?
Moisés pensou um pouco e, com simplicidade e sereno, só quis dizer.
“A minha juventude.”
Mas não o disse, e preferiu se retirar. Consigo, porem, em silencio, formulou a fala:
“Sim, senhor, busco a minha juventude sob os tijolos, a minha doce e bela juventude. Os senhores se surpreendem e se revoltam com isso. Chamam-me de sentimental. Mas viemos de terras distantes em busca de lembranças, das cores, e eu também vim para cá pelos cachos castanhos, a cintura fina e o beijo dos lábios jovens, e quero procurá-los, e vou achá-los, porque é impossível que tenham desaparecido. Por isso estou aqui. E impossível que algo me tenha escapado assim das mãos. Veja o meu rosto. Como se apenas o meu corpo de vinte anos tivesse partido para a extinção. E incompreensível. Somente os senhores acham isso natural, beberrões vulgares, burgueses protestantes, domingueiros, que são cumplices da vida revoltante, e, por isso, aceite, senhor, o senhor e todos que pensam assim, em nome de todas as dores da humanidade, a minha maldição e o meu desprezo.”
Moisés, porem, não disse nada disso.
Disse apenas:
– Boa noite.
Depois tirou a cartola, e balbuciou mais alguma coisa. O senhor enfurecido por sua vez gritou de novo:
– O que quer aqui?

X
Moisés não queria mais nada.
Foi para casa.
Em casa o pobre amigo se encolhia entre saquinhos de sal. A vela ardera até o fim. O quarto estava banhado numa luz desagradável, avermelhada. Pelas janelas penetrava um ar frio. Os moveis rangiam.
Moisés desabou sobre uma cadeira e disse para si mesmo:
– Não pode ser.
A seu redor, tudo lhe ecoava o pensamento, aos gritos ou em voz baixa.
O vidro sujo da luminária disse rouco:
– Não pode ser.
O vento sacudiu a janela:
– Não pode ser.
O outono também se pronunciou:
– Não pode ser.
Depois ele se viu encolhido, com o rosto manchado, no espelho. A imagem também o remeteu à mesma coisa:
– Não, não, não.
Moisés se voltou para o amigo. Sentou-se na beirada da cama e acariciou seus cabelos.
– Daniel... — começou num tom tímido. — Dani... Raramente o chamava assim.
Sentia-se muito próximo dele.
No tempo de estudante não o vira tão indefeso e pequeno, e jamais gostara tanto do velho, do velho rapaz, como naquela hora.
– Você — disse — não acha que este quarto não serve para nós?
O velho olhou para ele e assentiu.
– E muito alto.
– Difícil de aquecer.
– As janelas fecham mal.
– Não tem uma entrada separada.
– Não serve para nos.
Pensavam nisso havia meses. Por fim puderam dizer tudo que se abrigava em seus corações. O quarto em cinco minutos se tornara desagradável. Caro, e também ruim. A dona da casa era amistosa, mas invasiva. Durante uma hora desconstruíram tudo.
Murmuraram alguma coisa muito baixo. Em seguida, Moisés saiu e disse apenas:
– O quarto não serve. Vamos rescindir o contrato. Hoje de noite vamos embora.
Daniel se levantou da cama. Sentia certa alegria com a mudança. Vestiu-se.
Arrumaram as coisas em um instante. Tinham pressa, fugiam. A dona da casa assistiu espantada a prepararão pelo buraco da fechadura. Tiveram de amassar algumas peças de roupa no cesto e estavam prontos. Daniel caminhava pesadamente com a bengala.
– Não esquecemos nada?
Moisés vestiu o sobretudo. Examinou uma vez mais o quarto e depois abraçou com o olhar a cidade toda, a faculdade, os jardins, as moças, e de repente se viu jovem, pairando na distância, e sentiu que deixava tudo, tudo ali. e, agora, quando ia embora, não levava nada consigo. Ainda assim tinha de ir embora.
O trem partia as oito horas.
Enrolou o xale amarelo no pescoço e vestiu o chapéu verde-escuro.
– Não esquecemos nada aqui? — gemeu mais uma vez o companheiro de quarto na escadaria.
Moisés se apoiou no corrimão.
Depois disse baixo:
– Não.

(1910)

Um comentário:

  1. Marcelo estou me deliciando com sua ideia de publicar contos. Muito interessante a escolha que voc~e faz. Aos pouquinhos vou lendo.

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