Katherine Mansfield (1888-1923) escritora neozelandesa de contos, participou do movimento modernista em Londres no inicio do século XIX. Neste conto "Felicidade" um dos mais conhecidos que escreveu, ela demonstra a mesma elegância de um Chekov ou de um Joyce em descrever simples cenas caseiras, mas o que chama atenção neste conto, é que ela conta tudo, menos o que é o mais importante. A razão do conto – e da (in)felicidade – nunca é mencionada. Leia e você vai entender.
Felicidade
Katherine Mansfield
Embora Bertha Young
já tivesse trinta anos, ainda havia momentos como aquele em que ela queria
correr, ao invés de caminhar, executar passos de dança subindo e descendo da
calçada, rolar um aro, atirar alguma coisa para cima e apanhá-la novamente, ou
ficar quieta e rir de nada: rir, simplesmente.
O que pode alguém
fazer quando tem trinta anos e, virando a esquina de repente, é tomado por um
sentimento de absoluta felicidade — felicidade absoluta! — como se tivesse
engolido um brilhante pedaço daquele sol da tardinha e ele estivesse queimando
o peito, irradiando um pequeno chuveiro de chispas para dentro de cada
partícula do corpo, para cada ponta de dedo?
Não há meio de
expressar isso sem parecer "bêbado e desvairado?" Ah! como a
civilização é idiota! Para que termos um corpo, se somos obrigados a mantê-lo
encerrado em uma caixa, como se fosse um violino raro, muito raro?
"Não, isso de
violino não é exatamente o que eu quero dizer" — ela pensou, correndo escadas
acima e apalpando a bolsa, em busca da chave — que ela esquecera, como sempre —
e sacudindo a caixa do correio. "Não é o que eu quero dizer, pois” —
"obrigada, Mary" — ela entrou no vestíbulo. "A babá voltou?".
"Sim,
senhora".
"E as
frutas?".
"Sim, senhora.
Veio tudo".
"Traga as
frutas para a sala de jantar. Vou dar um arranjo nelas antes de subir".
Estava escuro e
muito frio na sala de jantar. Mesmo assim, Bertha tirou o casaco; não podia
tolerar por mais tempo o aperto da roupa, e o ar frio penetrou em seus braços.
Dentro do peito, no
entanto; havia ainda aquele ponto brilhante, incandescente, de onde saía uma
chuva de pequenas fagulhas. Era quase insuportável. Ela mal tinha coragem de
respirar, por medo de atiçar aquele fogo ainda mais; contudo, respirava
fundo... fundo. Quase não tinha coragem de olhar-se no espelho frio; mas olhou,
e ele mostrou-lhe uma mulher radiante, com lábios trêmulos, sorridentes,
grandes olhos escuros e um ar de quem está à espera de que alguma coisa...
divina aconteça. Ela sabia que iria acontecer infalivelmente.
Mary trouxe as
frutas em uma bandeja, e também uma tigela de louça e uma travessa azul, muito
linda, com um brilho estranho, como se estivesse mergulhada em leite.
"Quer que eu
acenda a luz, senhora?".
"Não, obrigada.
Ainda posso ver bastante bem".
Havia tangerinas,
laranjas e maçãs, misturadas com o vermelho dos morangos. Algumas peras
amarelas, lisas como seda, uvas brancas, cobertas por uma florescência
prateada, e um grande cacho de uvas roxas. Estas últimas, ela havia comprado
para combinar com o tapete novo da sala de jantar. Sim, aquilo parecia bastante
afetado e absurdo, mas era realmente a razão pela qual ela as tinha comprado.
Na loja, havia pensado: "Preciso de algumas frutas cor de púrpura para
aproximar o tapete da mesa." E na ocasião isto pareceu fazer muito
sentido.
Terminado o arranjo,
duas pirâmides de forma arredondada, ela se colocou a certa distância, para ver
o efeito — e estava realmente muito curioso, pois a mesa escura parecia
dissolver-se na luz fosca e tanto a tigela de louça como a travessa azul
pareciam flutuar no ar. Isso, é claro, naquele estado de espírito que ela se
encontrava, era tão incrivelmente belo... Ela começou a rir.
"Não, não.
Estou ficando histérica". Pegou sua bolsa e seu casaco e subiu correndo
para o quarto da filha.
A babá estava
sentada ao lado de uma mesa baixa dando o jantar da pequena B., depois do
banho. A criança vestia uma camisola de flanela branca e um casaquinho azul, de
lã. Os cabelos finos e escuros estavam escovados formando um topetinho
engraçado. Ela olhou para cima e começou a pular quando viu a mãe.
"Agora, meu
benzinho, coma direito, como uma boa menina", disse a babá torcendo a boca
num jeito bem conhecido dela, como a dizer que ela havia chegado em hora
inoportuna, mais uma vez.
"Ela tem estado
bem, Nanny?".
"Ela se
comportou muito bem durante toda a tarde" murmurou Nanny. "Fomos ao
parque; eu me sentei em uma cadeira e tirei-a do carrinho. Um cachorro enorme
veio até nós, e pôs a cabeça sobre meus joelhos. Ela agarrou a orelha dele, e
puxou. Ah! a senhora devia ter visto."
Bertha teve vontade
de perguntar se não seria perigoso deixar que a criança puxasse a orelha de um
cão desconhecido, mas não se atreveu. Permaneceu observando-as, os braços largados
ao longo do corpo, qual uma menina pobre frente à menina rica com sua boneca.
O bebê olhou para
ela outra vez; fixou os olhos nela, sorriu com tanto encanto, que ela não se
conteve.
"Ah! Nanny,
deixe que eu termine de dar o jantar dela, enquanto você arruma o
banheiro".
"Bem, madame.
Ela não devia mudar de mãos enquanto come" — disse Nanny, ainda
murmurando. "Isso a perturba e muito. ?muito provável que ela vá ficar
agitada".
Que absurdo! Para
que ter uma criança, se ela deve ser guardada — não em uma caixa, como um
violino raro, mas nos braços de uma outra mulher?
"Não, é assim
que eu quero!".
Muito ofendida,
Nanny entregou a criança.
"Bem, não a
excite depois da comida. A senhora sabe que a excita, madame. E depois ela me
dá um trabalho!".
Graças a Deus! Nanny
saiu do quarto, levando as toalhas de banho.
"Agora eu a
peguei para mim, minha coisinha preciosa" — disse Bertha, enquanto o bebê se
inclinava para ela.
A criança comeu
fazendo festa, abrindo a boca para receber a colher e depois agitando as mãos.
Às vezes prendia a colher na boca e outras, logo que Bertha enchia a colher,
lançava a comida aos quatro ventos.
Terminada a
refeição, Bertha virou-se para a lareira.
"Você é linda,
muito linda!" disse, beijando seu bebé "Sou tão louca por você.
E, realmente, ela a
amava tanto! — Seu pescoço, quando ela o inclinava para a frente, os artelhos delicados,
quase transparentes à luz do fogo... Todo aquele sentimento de felicidade
voltou e, ainda uma vez, Bertha não sabia como expressar essa sensação, nem o
que fazer com ela.
"Telefone para
a senhora" — disse Nanny, voltando em triunfo e pegando a sua criança.
Bertha desceu
correndo. Era Harry.
"Ah, é você
Bertha. Olhe, vou chegar tarde. Tomarei um táxi e irei tão depressa quanto
puder; mas sirva o jantar dez minutos mais tarde, sim? Tudo bem?".
"Sim,
perfeitamente. Ah, Harry!".
"Sim?".
O que tinha ela para
dizer? Nada. Queria apenas prolongar aquele contato. Não podia só gritar
absurdamente: "O dia hoje foi tão maravilhoso!"
"O que ?"
— tornou a voz de longe.
"Nada. Entendi"
— disse Bertha, colocando o fone no lugar e pensando o quanto a civilização é idiota.
Eles tinham
convidados para o jantar: os Norman Knights, um casal muito distinto — ele
estava abrindo um teatro e ela tinha muito entusiasmo por decoração de
interiores; um jovem, Eddie Warren, que acabava de publicar um pequeno livro de
poemas a quem todo mundo vinha convidando para jantar, e um "achado"
de Bertha, uma moça chamada Pearl Fulton. O que ela fazia, Bertha ignorava.
Haviam-se encontrado no clube e Bertha se apaixonara por ela; isso sempre
acontecia quando ela encontrava mulheres bonitas que revelassem algo incomum em
sua personalidade.
O que a intrigava
era que, embora tivessem estado juntas frequentemente e conversado muito,
Bertha não podia ainda ter um conceito formado sobre Pearl Fulton. Até certo
ponto, ela era de uma franqueza rara e maravilhosa, mas além desse ponto ela
não passava.
E haveria alguma
coisa além disso? Harry dizia que não. Julgava-a um tanto maçante e "fria
como todas as louras, com um toque, talvez, de anemia cerebral". Mas
Bertha não concordava com isso; pelo menos, ainda não.
"Não, sua
maneira de sentar-se, com a cabeça levemente inclinada para o lado, sorridente,
esconde alguma coisa, Harry, e eu hei de descobrir que coisa ?essa".
"O mais
provável ?que seja estômago pesado", disse Harry.
Ele se empenhava em
pegar Bertha pelo pé com respostas daquele teor... "fígado gelado, minha
querida", ou "pura flatulência", ou "doença dos
rins"... e assim por diante. Por alguma estranha razão, Bertha gostava
disso e quase o admirava por falar desse modo.
Ela entrou na sala
de estar e acendeu a lareira; depois pegou as almofadas que Mary havia arrumado
com todo cuidado e atirou-as de volta aos sofás e cadeiras. Foi o bastante para
dar vida à sala. No momento de atirar a última almofada, ela se surpreendeu
apertando-a contra si apaixonadamente. Mas isso não apagou o fogo em seu peito.
Ah, pelo contrário!
As janelas da sala
abriam-se para um balcão, e davam para um jardim. No fundo, perto do muro,
havia uma esguia pereira, toda florida, esplêndida, que permanecia imóvel
contra o céu verde-jade. Bertha não podia deixar de sentir, mesmo a essa distância,
que não havia um só botão por abrir, nem uma pétala murcha. Embaixo, nos
canteiros do jardim, as tulipas vermelhas e amarelas, carregadas de flores,
pareciam inclinar-se na penumbra: Um gato cinzento, arrastando-se de barriga,
esgueirava-se através do gramado, e um gato preto, como se fora sua sombra, ia
logo atrás. Ela tremeu, curiosamente, ao vê-los tão atentos e rápidos.
"Gato, um bicho
horrível!" — ela pensou, e, saindo da janela, começou a andar de um lado
para outro. Como era forte o perfume dos junquilhos dentro da sala quente!
Forte demais? Não, não demais. E então, como que vencida, ela atirou-se sobre
um sofá e cobriu os olhos com as mãos.
"Estou muito
feliz, muito feliz" — murmurou.
E parecia-lhe ver
por entre as pálpebras a linda pereira, com aquela abundância de flores, como
símbolo de sua própria vida.
Realmente —
realmente — ela tinha tudo. Era jovem, Harry e ela se amavam como nunca,
davam-se muito bem e eram realmente bons companheiros. Ela tinha um adorável
bebê. Não precisavam se preocupar com dinheiro. Tinham esta casa e este jardim,
que eram absolutamente satisfatórios. E amigos modernos, interessantes; amigos
escritores, pintores e poetas ou pessoas voltadas para as questões sociais,
justo a espécie de amigos que eles queriam. Além disso, havia os livros, havia
a música, e ela encontrara aquela costureirinha maravilhosa, sua cozinheira
nova fazia omeletes deliciosos, e eles iam fazer uma viagem ao exterior, no
verão.
"Estou ficando
maluca! Maluca!" Ela sentou-se, mas sentiu-se inteiramente atordoada,
inteiramente bêbada. Devia ser a primavera.
Sim, era a
primavera. Agora, ela sentia-se tão cansada que mal poderia subir a escada,
para vestir-se.
Um
vestido branco, um fio de contas de jade, sapatos verdes e meias. Era
coincidência. Ela havia decidido esse arranjo horas antes de ter estado à janela
da sala.
As dobras de sua saia produziram um suave farfalhar ao deslizar rente
ao chão, quando ela foi à porta de entrada e beijou a senhora Norman Knight,
que estava tirando o mais estranho casaco cor de laranja, com uma fileira de
macacos pretos em volta da barra, subindo na parte da frente.
"Por quê
Por quê! Por que a classe média é tão tola, tão completamente desprovida de
senso de humor?! É por pura sorte que estou aqui, minha querida, e Norman é meu
anjo protetor. Meus queridos macacos chocaram tanto as pessoas do trem que elas
simplesmente se puseram a me devorar com os olhos. Não riram, não estavam
achando graça, o que eu teria gostado. Apenas olharam-me fixamente e me
fuzilaram com os olhos."
"Mas
o melhor de tudo" — disse Norman, apertando contra o olho o monóculo de
aro de tartaruga — "você não se importa que eu conte, Face, se
importa?" (Na intimidade eles se chamavam Face e Mug.) "O melhor de
tudo foi quando ela, furiosa, virou-se para a mulher que estava ao seu lado e
disse: "A senhora nunca viu um macaco antes?".
"Ah,
sim" — a senhora Norman Knight juntou—se aos que riam. "Não foi mesmo
genial?".
E,
mais engraçado ainda era que agora, sem o agasalho, ela parecia um macaco muito
inteligente, cujo vestido de seda amarela fora feito com cascas de bananas. E
os brincos de âmbar pareciam duas nozes bamboleantes.
"It
is a sad, sad fall!"?— disse Mug, parando em frente ao carrinho do
bebê "When the perambulator comes into the hall" — e ele
deixou de lado o resto da citação.
A
campainha tocou. Era o esbelto e pálido Eddie Warren, em estado de completa
desgraça, como sempre.
"É
esta casa mesmo, não ?" — perguntou ele.
"Bem,
acho que sim. Pelo menos assim o espero" — disse Bertha, com animação.
"Acabo
de ter uma experiência muito desagradável com um motorista de táxi. Ele era
terrivelmente sinistro. Não pude conseguir que ele parasse. Quanto mais eu lhe
chamava a atenção e lhe pedia que parasse, mais depressa ele ia. E à luz do
luar aquela figura bizarra, com a cabeça achatada, debruçando-se sobre o
minúsculo volante...".
Ele
estremeceu, tirando um imenso cachecol de seda branca. Bertha notou que ele
usava meias também brancas, muito vistosas.
"Mas,
que coisa horrível!" disse ela em voz muito alta.
"Sim,
foi mesmo" — disse Eddie, seguindo-a até a sala de estar. — "Eu me vi
decolando para a eternidade num táxi alado".
Ele
conhecia os Norman Knight. Na verdade ia escrever uma peça para Norman Knight,
quando o esquema do teatro começasse a funcionar.
"Bem,
Warren, como está a peça?" — perguntou Norman Knight, deixando cair o
monóculo e dando, assim, oportunidade ao olho de vir `å tona, antes de ser
ocultado outra vez.
A
Sra. Knight interveio:
"Mas
que meias lindas, Sr. Warren!"
"Que
bom que a senhora tenha gostado delas", disse ele, olhando para os pés.
"Parece que elas ficaram muito mais brancas desde que a lua
apareceu". Virou para Bertha o rosto magro e triste. "Há uma lua, a
senhora sabe?".
Ela
teve vontade de gritar: "É claro que sei! Muitas vezes, frequentemente!".
Ele
era, na verdade, uma pessoa muito atraente. Mas atraentes eram também Face,
agachada em frente ao fogo, no seu vestido de cascas de bananas, e Mug, fumando
um cigarro e dizendo, enquanto batia as cinzas: "Por que o noivo está demorando
tanto?".
"Ei-lo
que chega!".
A porta da frente abriu e fechou com estrondo. Harry gritou:
"Olá pessoal. Volto em cinco minutos!"
Subiu
correndo a escada. Bertha não pôde deixar de sorrir; ela sabia como ele gostava
de agir sempre sob alta pressão. Afinal, que importância teriam cinco minutos a
mais? Mas ele sustentava para si mesmo que cinco minutos tinham, sim, muita
importância. E fazia questão, depois, de chegar e ficar na sala numa postura
serena, tranquila.
Harry
tinha um tal gosto pela vida... Ah, como ela apreciava isso nele! E sua paixão
pela luta, por encontrar em cada coisa que se lhe opunha um outro teste para
seu poder e sua coragem, também isso ela compreendia. Mesmo quando, vez por
outra, ele pudesse parecer talvez um tanto ridículo, aos olhos dos que não o
conheciam bem... Pois às vezes ele se atirava em batalhas que não existiam...
Ela conversava e ria, realmente esquecida, até a chegada dele à sala (tal como
ela imaginara), de que Pearl Fulton não viera ainda.
"Será
que a Pearl esqueceu?".
"Não
me estranharia", disse Harry. "Ela tem telefone?"
"Está
chegando um táxi". E Bertha sorriu, com aquele divertido ar de posse que
sempre assumia quando suas descobertas femininas eram novas e misteriosas.
"Ela
vive em táxis".
"Assim vai engordar" — disse Harry com frieza,
tocando a campainha para que o jantar fosse servido. "Um perigo assustador
para mulheres louras".
"Harry,
não diga isso" — advertiu Bertha, rindo.
Veio outro breve momento,
enquanto esperavam rindo e conversando, talvez um pouquinho á vontade demais,
um pouquinho descontraídos demais. Pearl Fulton entrou, toda prateada, com uma
tira de prata prendendo seus cabelos loiros, sorrindo, com a cabeça pendendo um
pouco para o lado.
"Estou
atrasada?".
"Não,
absolutamente" — disse Bertha, pegando-a pelo braço. "Venha
comigo". E entraram na sala de jantar.
O
que havia naquele braço frio, que podia avivar — começar a atiçar — atiçar — o
fogo da felicidade com o qual Bertha não sabia o que fazer?
Pearl
Fulton não olhava para ela; quase nunca olhava as pessoas diretamente. Suas
pálpebras pesadas estavam sempre semicerradas, e em seus lábios um estranho
sorriso ia e vinha, como se ela, em vez de ver, preferisse ouvir. Mas Bertha
soube, de repente, como se o mais longo, o mais íntimo olhar tivesse sido
trocado entre elas, como se tivessem dito uma à outra "Você também?",
que Pearl, ao mexer a bela sopa vermelha em seu prato cinza, sentia exatamente
o que ela estava sentindo.
E
os outros? Face e Mug, Eddie e Harry, suas colheres subindo e descendo, tocando
os lábios com os guardanapos, fazendo bolotas com miolo de pão, brincando com
garfos e copos, conversavam.
"Eu
a encontrei no show do Alpha — uma figurinha muito esquisita. Ela havia não
apenas cortado rente os cabelos, mas também parecia ter tirado um bom pedaço
dos braços e das pernas, do pescoço e do pobre narizinho também".
"Ela
não está ligada a Michael Ost?".
"O
homem que escreveu Love in False Teeth?.
"Agora ele quer escrever
uma peça para mim. Um ato. Um homem. Ele decide suicidar-se; discute todas as
razões pró e contra. E exatamente quando chega a uma conclusão sobre o que
fazer... cai o pano. Uma ideia nada mal.
"Como
ele vai chama-la? Dor de estômago?".
"Acho
que encontrei a mesma ideia numa revistinha francesa inteiramente desconhecida
na Inglaterra".
Não,
eles não compartilhavam. Mas eram queridos — queridos — e ela gostava muito de
tê-los ali, em sua mesa, oferecendo-lhes comida e vinho deliciosos. Na verdade,
ela desejava dizer-lhes o quanto eles eram encantadores e que grupo decorativo
formavam; como eles pareciam avivar uns aos outros e como eles lhe faziam
lembrar uma peça de Tchekov!
Harry
estava gostando do jantar. Era próprio dele — bem, não sua natureza,
exatamente, e não, certamente, uma pose — bem, um pouco de cada coisa — falar
sobre comida e alardear sua paixão "impudica por carne branca de lagosta e
o verde dos sorvetes de pistache, verdes e frios como pálpebras de bailarinas
egípcias".
Quando ele levantou os olhos para ela e disse:
"Bertha,
este suflê está maravilhoso!", ela quase poderia ter chorado, com prazer
infantil.
Ah!
O que fazia com que ela se sentisse tão terna com todo mundo, hoje? Tudo era
bom, tudo estava certo. Tudo o que acontecia parecia encher de novo até a borda
sua taça de felicidade.
E
havia ainda, no fundo de sua mente, a pereira. Ela estaria prateada, agora, sob
a luz da lua do pobre Eddie, prateada como Pearl Fulton, que lá estava,
sentada, fazendo girar uma tangerina com seus dedos finos e tão pálidos que um
raio de luz parecia sair deles.
O
que, na verdade, não podia compreender, o que era miraculoso, era como
percebera o estado de espírito de Pearl Fulton de modo tão rápido e exato.
Porque ela não tinha a menor dúvida de estar certa e, no entanto, em que podia
se basear? Menos que nada.
"Acho
que isso acontece muito, muito raramente entre mulheres. Nunca entre
homens", pensou Bertha. "Mas enquanto eu estiver fazendo o café
talvez ela me "dê um sinal", da sala de jantar."
O que queria
dizer com isto ela não sabia, e o que viria a acontecer ela não podia
imaginar.
Enquanto
pensava, ela se via conversando e rindo. A vontade de rir fazia-a
conversar.
"Eu preciso rir ou morrer".
Mas,
ao notar o hábito engraçado que tinha Face de empurrar alguma coisa pelo decote
abaixo — como se ela tivesse ali uma reserva de nozes ou algo assim — teve de
fechar as mãos com tanta força a ponto de enterrar as unhas nas palmas das
mãos, para não rir demais.
Tinham
acabado, por fim. "Venham ver minha máquina de fazer café, disse Bertha.
"Á
cada quinze dias temos uma nova máquina de fazer café nesta casa", disse
Harry.
Desta
vez Face pegou Bertha pelo braço; Pearl Fulton inclinou a cabeça e
seguiu-as.
O fogo tinha-se reduzido na sala, para tornar-se um crepitante e
rubro "ninho de filhotes de Fênix", segundo Face.
"Não
acendam as luzes, por enquanto. Está tão agradável!".
Ela
agachou-se perto do fogo. “Sempre tinha frio quando estava sem sua jaqueta de
flanela vermelha de mico de realejo", pensou Bertha.
Naquele
momento Pearl Fulton "deu o sinal".
"Vocês têm um jardim?"
disse a tranquila voz sonolenta.
Foi
tão refinado da parte dela que tudo o que Bertha pode fazer foi obedecer;
atravessou a sala, afastou as cortinas e abriu aquelas longas janelas.
"Lá,
suspirou.
E as duas mulheres permaneceram de pé uma ao lado da outra, olhando
para a esguia árvore florida. Embora o ambiente estivesse tão tranquilo, a
pereira parecia a chama de uma vela a alongar-se, apontar para o alto, tremer
no ar brilhante, tornando-se cada vez mais alta enquanto elas olhavam, até quase
tocar os bordos prateados da lua redonda.
Quanto tempo elas ficaram ali? Ambas
como que presas àquele círculo de luz sobrenatural, compreendendo-se
perfeitamente uma à outra, criaturas de um outro mundo, e perguntando-se o que
iriam fazer neste mundo com todo aquele alegre tesouro de felicidade que
queimava em seus peitos e caía, como flores de prata, de seus cabelos e
mãos?
Para sempre? Por um momento?
E
Pearl Fulton pareceu ter murmurado: "Sim, isso mesmo." Ou Bertha
sonhara isto?
Então
a luz foi acesa, Face fazia o café e Harry dizia:
"Minha
querida Senhora Norman Knight, não me pergunte pela minha filha. Eu jamais a
vejo. Não terei por ela o menor interesse até o dia em que tenha um
amante", e Mug tirou o monóculo, e tornou a coloca-lo, e Eddie Warren
tomou seu café e colocou a xícara no lugar com um rosto angustiado, como se ele
tivesse engolido uma aranha e percebido o que fizera.
"O
que eu quero é dar lugar aos outros jovens. Acho que Londres está fervilhando
com excelentes peças ainda não escritas. Quero lhes dizer: Aqui está o teatro;
vão em frente!".
"Sabe,
querida? Vou decorar uma sala para os Jacob Nathan. Estou muito tentada a fazer
um projeto tipo peixe-frito, com o encosto das cadeiras em forma de frigideiras
e lindas batatas fritas espalhadas por toda parte nas cortinas".
"A
dificuldade com nossos autores jovens é que eles são ainda demasiadamente
românticos. Ninguém deve se lançar ao mar contando que não vai enjoar e
dispensando uma bacia. Bem, por que não terão eles a coragem de usar essas
bacias?".
"Um
poema chocante sobre uma menina que foi violentada por um mendigo sem nariz,
num pequeno bosque".
Pearl
Fulton sentou-se á vontade na poltrona mais baixa e mais funda, e Harry
ofereceu cigarros a todos.
Pela
maneira como ele se pôs à frente dela, sacudindo a caixa de prata dizendo
asperamente "Egípcio? Turco? Virginiano? Estão todos misturados",
Bertha constatou que ela não apenas o aborrecia; ele realmente não gostava
dela. E deduziu, pelo modo com que Pearl disse "Obrigada, não vou
fumar", que ela também o sentira, e se magoara.
"Não
tenha essa antipatia por Pearl, Harry! Você está redondamente enganado a
respeito dela. Ela é maravilhosa, maravilhosa! Além disso, como você pode
pensar de modo tão diferente de mim, sobre alguém que significa tanto para mim?
Tentarei contar-lhe mais tarde, quando estivermos na cama, o que está acontecendo.
O que eu e ela estamos compartilhando".
A
essas últimas palavras, alguma coisa estranha e quase aterrorizante penetrou na
mente de Bertha. E essa coisa cega e sorridente sussurrou-lhe: "Logo essas
pessoas irão embora. A casa ficará tranquila, tranquila. As luzes serão
apagadas. E você e ele ficarão a sós um com o outro, no quarto escuro, a cama
quente...".
Ela
saltou da cadeira e correu para o piano.
"Que
pena que ninguém toque!" — bradou. "Que pena que ninguém
toque!".
Pela
primeira vez na vida Bertha Young desejou seu marido.
Ah! Ela o amava! Ela o
amara sempre, É claro, mas com outras formas de amor, não com o que sentia
agora. E também, é claro, ela havia compreendido que ele era diferente. Haviam
discutido isto inúmeras vezes. Ela havia se afligido horrivelmente, a
princípio, ao descobrir sua própria frigidez, mas, com o passar do tempo, isso
deixara de incomodá-la. Havia tanta franqueza entre os dois, eles eram tão bons
companheiros! Nisso estava a grande vantagem de serem modernos.
Mas
agora — era o desejava com tesão! Com tesão! A palavra doía em seu corpo em
brasa. Era a isto que o seu sentimento de felicidade tinha levado? Mas então,
então...
"Querida"
— disse a Sra. Knight —, "É uma pena, mas você sabe que somos vítimas do
tempo e do horário do trem. Moramos em Hampstead. Foi uma noite tão
agradável!".
"Vou
acompanha-los até a porta", disse Bertha. "Foi um prazer tê-los
conosco, mas vocês não podem perder o último trem. É tão desagradável isto, não
é mesmo?".
"Antes
de sair, você aceita um uísque, Knight?" convidou Harry.
"Não,
obrigado, amigo velho".
Àquelas palavras, Bertha despediu-se dele com um
forte aperto de mão.
"Boa-noite,
até outra vez!" gritou ela do alto da escada, sentindo como se uma parte
de si estivesse se despedindo deles para sempre.
Ao
chegar á sala, encontrou os demais convidados preparando-se para sair.
"Então,
você pode fazer parte do trajeto em meu táxi...".
"Eu
lhe agradeço muitíssimo por não ter outra vez de enfrentar sozinho uma corrida
de táxi depois da terrível experiência da vinda até aqui".
"Vocês
podem tomar um táxi logo no fim da rua, há um ponto lá. Não terão de andar mais
que uns poucos metros".
"É
mesmo? Que bom! Vou vestir meu casaco".
Pearl
Fulton encaminhou-se para o vestíbulo e Bertha a ia seguindo, quando Harry se
adiantou.
"Permita-me
ajudá-la".
Bertha
viu que ele tinha se arrependido de sua rudeza e deixou-o á vontade. Em certas
coisas ele era um menino — tão impulsivo — tão simples.
Ela
e Eddie permaneceram perto da lareira.
"Você
já viu o novo poema de Bilke "Mesa de Convidado"?" perguntou
Eddie, baixinho.
"É
tão maravilhoso! Na última Antologia. Você tem um exemplar? Gostaria muito de
mostra-lo a você. Começa por uma belíssima linha: "Por que deve ser sempre
sopa de tomate?".
"Sim",
disse Bertha. Em silêncio, encaminhou-se para uma mesa, no lado oposto à porta,
e Eddie acompanhou-a, também silencioso.
Ela
pegou o livro e entregou-o ao amigo; não tinham feito o menor ruído.
Enquanto
ele o folheava, ela levantou a cabeça, olhando para o vestíbulo. E viu... Harry
com o agasalho de Pearl Fulton nos braços e esta, de costas para ele, com a
cabeça inclinada. Ele atirou o casaco para um lado, colocou as mãos nos ombros
dela, e virou-a com violência para ele. Seus lábios diziam: "eu te
adoro", e Pearl pousou os dedos finos sobre o rosto dele e sorriu aquele
seu sorriso sonolento. As narinas de Harry tremiam; os lábios ficaram repuxados
para trás, numa crispação horrível, enquanto ele sussurrava: "amanhã— e,
piscando os olhos, Pearl disse: "sim".
"Aqui
está, disse Eddie. "Por que deve ser sempre sopa de tomate?". É uma
verdade tão profunda, não acha? Sopa de tomate é tão incrivelmente
eterna!".
"Se
você preferir", dizia a voz de Harry, bem alto, no vestíbulo, "posso
chamar um táxi pelo telefone".
"Não é necessário", disse Pearl
Fulton e, chegando até Bertha, estendeu-lhe os dedos delicados.
"Até logo.
Muito obrigada."
"Até
logo", disse Bertha.
Pearl
conservou os dedos da amiga entre os seus por um momento.
"Como é linda,
a sua pereira", disse ela, baixinho.
E se foi, seguida por Eddie, como o
gato preto acompanhando o gato cinzento.
"Vou
fechar a casa", disse Harry, estranhamente tranquilo e contido.
"Sua
linda pereira...".
Bertha correu para as janelas largas do jardim.
"Deus! O que vai acontecer agora?".
Mas a pereira estava tão linda
como sempre, tão imóvel e florida como sempre.
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