sábado, 25 de abril de 2015

44 – Eu Acuso – E. Zola


Um conto que na verdade é uma carta que vale a pena ser lida – exemplo maior de engajamento político de um escritor. Emile Zola (1840-1902), um dos maiores escritores franceses, escreve diretamente ao Presidente da República para denunciar a injustiça que o Estado Maior do exercito francês estava cometendo contra Alfred Dreyfus.
  A carta de Émile Zola (1840-1902), intitulada J'accuse (Eu acuso) e endereçada ao Presidente da República, Félix Faure, é publicada no jornal literário L'Aurore, em 1898, promovendo um inflamado debate público sobre o caso Dreyfus, que mobiliza a França por muitos anos. Em 1894, o oficial de artilharia Alfred Dreyfus (1859-1935), judeu, é julgado por alta traição (espionagem para os alemães) e condenado à prisão perpétua na Ilha do Diabo, na Costa da Guiana Francesa. Em 1898, em função da insuficiência de provas, é realizado um segundo julgamento, que mantém a mesma sentença, provocando a indignação de Émile Zola.
Zola, em sua carta, defende Dreyfus de forma veemente, considerando-o inocente e vítima de uma trama política antissemita. Ele é processado por difamação e condenado a um ano de prisão e 3.000 francos de multa. Zola se refugia na Inglaterra e só retorna à França, quando não há mais risco de ser preso. Apaixonado pela verdade, publica uma série de artigos sobre o caso Dreyfus, reunidos sob o título La Vérité en marche. Em 29 de Setembro de 1902, Zola morre misteriosamente em seu apartamento, na rue de Bruxelles. A causa da morte: inalação de uma quantidade letal de monóxido de carbono proveniente de uma chaminé́ defeituosa. Muitos estudiosos não descartam a possibilidade de Zola ter sido assassinado por inimigos políticos, entretanto, nada é provado.
Zola é enterrado no cemitério de Montmartre em Paris. As suas cinzas são transferidas para o Panthéon, em 4 de Junho de 1908, dois anos depois de Dreyfus ter sido reabilitado. No trajeto, um jornalista, Louis Gregory, dispara dois tiros contra Dreyfus, ferindo-o no braço.

EU ACUSO !
CARTA A M. FÉLIX FAURE, PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Émile Zola

Excelentíssimo Senhor Presidente da República, permita-me, em gratidão à generosa acolhida que o senhor me deu em uma ocasião passada, apelar para sua justa glória e dizer que sua estrela, tão honrada até aqui, está ameaçada pela maior das vergonhas, a mais indelével das manchas.
O senhor livrou-se, são e salvo, das maiores calúnias, tendo conquistado os corações; saiu apoteótica e radiosamente desta festa patriótica que foi para a Franca a aliança com a Rússia, e prepara-se para presidir ao triunfo solene da nossa Exposição Universal, que coroará nosso grande século cheio de trabalho, verdade e liberdade. Mas é enorme a mancha sob o seu nome – eu iria dizer sob seu governo – que é esse abominável caso Dreyfus! Uma corte marcial acaba, por ter recebido ordens nesse sentido, de ousar absolver o tal Esterhazy, supremo golpe em qualquer verdade, em qualquer justiça. E está feito: a vergonha está estampada no rosto da França, e a história registará que foi sob a sua presidência que tamanho crime social foi cometido.
E como foram ousados, serei da minha parte ousada também. Vou falar a verdade, pois prometi resguardá-la, já que a justiça, conspurcada diversas vezes, não faz isso, plena e inteiramente. Tenho o dever de falar, eu não quero ser cúmplice. Minhas noites seriam assombradas pelo espectro de um inocente que sofre no além-mar, mergulhado na mais dolorosa tortura, por um crime que ele não cometeu.
E será à sua Excelência, senhor Presidente, que dirigirei meus clamores, a verdade, com toda força da minha revolta de homem honesto. Conheço a sua honra e, por isso, sei que ignora a verdade. A quem mais eu poderia denunciar a turba malfeitora dos verdadeiros culpados, que não à Sua Excelência, o primeiro magistrado do pais?
A verdade, para começar, sobre o processo e a condenação de Dreyfus.
Um homem nefasto, responsável por tudo, autor de tudo, é o comandante du Paty de Clam, naquele momento um simples oficial. Ele é a personificação do caso Dreyfus; nada será esclarecido até que uma investigação imparcial tenha estabelecido claramente seus atos e sua responsabilidade. Ele representa uma figura nebulosa, a mais complicada, obcecado pelas intrigas romanescas, comprazendo-se, à maneira dos folhetins baratos, com papéis que desaparecem, cartas anónimas, encontros e lugares desertos, mulheres misteriosas que carregam, à noite, provas irrefutáveis. Ele imagina ter ditado o documento a Dreyfus; é ele que sonha estudá-lo em um cómodo inteiramente revestido de espelhos, é ele que o comandante Forzinetti nos representa, empunhando uma lanterna velada, desejando se aproximar do acusado adormecido, para projetar sobre seus olhos um jato de luz e surpreende-lo então em seu crime, na confusão do sonho. Não tenho mais nada a dizer: se procurar, alguma coisa aparece. Declaro simplesmente que o comandante du Paty de Clam, encarregado de instruir o caso Dreyfus, como representante da justiça, e, segundo a cronologia e a importância dos fatos, é o primeiro culpado do erro judicial que foi cometido.
Depois de algum tempo o documento foi parar nas mãos do coronel Sandherr, diretor do serviço de inteligência, que morreu de paralisia geral. Então, as coisas começaram a “desaparecer”, papéis sumiram, até hoje estão sumidos; e foram atrás de saber quem era o autor do documento, e um pré-requisito foi pouco a pouco se construindo: o culpado teria de ser um oficial do Estado-Maior e da artilharia: duplo erro manifesto, que mostra a superficialidade com que o processo foi tratado, pois um exame cuidadoso demonstra que o culpado necessariamente precisa ser um oficial de tropa.
Foi feita uma busca em domicílio, olharam os papéis, como se tudo fosse um caso de família, uma tramoia a ser desvendada dentro dos escritórios mesmo e então os culpados seriam expulsos. E, sem querer aqui contar uma história já conhecida em parte, entra em cena o comandante du Paty de Clam, quando as primeiras suspeitas começam a recair sobre Dreyfus. Foi então que ele inventou um Dreyfus, o caso tornou-se o seu caso, ele se esforçou para confundir o traidor e fazê-lo confessar tudo. Há ainda o ministro da Guerra, general Mercier, cuja inteligência parece medíocre; ao chefe do Estado-Maior, general Boisdeffre, que apresenta ter cedido à paixão clerical, e o subchefe do Estado-Maior, o general Gonse, cuja consciência se acomoda a quase tudo. Mas, no fundo, não se trata de ninguém além do comandante du Paty de Clam, que os guia a todos, que os hipnotiza, pois ele também se ocupa do espiritismo, do ocultismo: ele conversa com os espíritos. É impossível conceber as situações às quais ele submeteu o infeliz Dreyfus, as armadilhas nas quais ele quis apanhá-lo, as investigações delirantes, as invenções monstruosas, uma enorme demência torturante.
Ah! Esse primeiro fato é um pesadelo para quem o conhece nos seus verdadeiros detalhes! O comandante du Paty de Clam prende Dreyfus e o coloca na solitária. Vai até a casa da senhora Dreyfus, amedronta-a, e diz que se ela contar alguma coisa para alguém seu marido estará perdido. Durante esse tempo, o infeliz se desespera, clamando inocência. E a instrução foi feita dessa forma, como se fosse uma crónica do século XV, misteriosa, com expedientes cruéis e todo baseado exclusivamente em uma evidência infantil, esse documento imbecil, que não passa de uma traição vulgar, a patifaria mais grosseira, pois os maiores segredos transmitidos se revelaram todos sem nenhum valor. Eu insisto porque é aqui que está a semente de onde surgirá o verdadeiro crime, a espantosa recusa de justiça que torna a França um lugar doente. Eu gostaria de entender como esse erro judicial pôde ser possível, como ele surgiu das maquinações do comandante du Paty de Clam; como o general Mercier e os generais de Boisdeffre e Gonse puderam se deixar levar e tornar-se pouco a pouco cúmplices desse erro, que mais tarde acreditaram dever impor como uma verdade santa, uma verdade indiscutível. A priori, só houve da parte deles falta de cuidado e burrice. De mais a mais, sentimos que eles cederam às paixões religiosas da comunidade e ao preconceito corporativista. Permitiram que a estupidez acontecesse.
Mas então Dreyfus se submete ao Conselho de Guerra. Exige-se o mais absoluto sigilo. Mesmo que um traidor houvesse aberto a fronteira ao inimigo para permitir que o imperador alemão tomasse Notre Dame, não seriam tomadas precauções de sigilo e mistério tão severas. A nação treme de espanto, um diz-que-diz de ocorrências terríveis, dessas traições monstruosas que indignam a História; e naturalmente o país se dobra. Não há punição que chegue, ele apoiará a degradação pública, desejará que o culpado se enterre em um solo imutável de infâmia, devorado pelo remorso. E, por isso, os fatos indizíveis, as coisas perigosas capazes de incendiar a Europa e que por isso tiveram de ser em sigilo soterrados serão verdadeiros? Não! Tudo não passou de fruto da imaginação romanesca e desvairada do comandante du Paty de Clam. Tudo foi feito apenas para esconder o mais estapafúrdio dos folhetins. Para que isso fique claro, basta que o ato de acusação, lido diante do conselho de guerra, seja analisado com um pouco de cuidado.
Ah! A inutilidade desse ato de acusação! É um prodígio de iniquidade que um homem tenha condenado por meio desse ato. Desafio todos os homens corretos a lê-lo sem que seu coração se encha de indignação e não grite de revolta, vendo o exagero da pena da distante Ilha do Diabo. Dreyfus domina vários idiomas: crime; não há um papel sequer em sua casa que o comprometa: crime; de vez em quando ele retorna à sua pátria: crime; trabalha muito, tem o cuidado de se informar sobre tudo: crime; não perde a calma: crime; perde a calma: crime. E as platitudes de redação, as assertivas formais do vazio! Falou-se em 14 itens de acusação: no final das contas, não encontramos mais do que um, o tal documento; e já sabemos que nem com relação a ele os especialistas estão de acordo; e que um deles, o Sr. Gobert, foi militarmente constrangido porque ousou chegar a uma conclusão diversa daquela que se desejava. Falou-se ainda em 23 oficiais que teriam arrasado Dreyfus em seus testemunhos. Nada sabemos do que falaram, mas é fato que parte deles não o acusou; é obrigatório observar, ainda, que todos pertenciam ao Ministério da Guerra. É um processo interno, feito entre pares, e não se deve esquecer: o Estado-Maior queria o processo, levou a cabo o julgamento e termina de fazer outro.
Portanto, nada mais que o documento, a respeito do qual os especialistas não se entendem. Conta-se que, dentro da sala do conselho, os juízes estavam na iminência de absolvê-lo. E, então, para justificar a obstinação desesperada pela condenação, afirma-se hoje que há um documento secreto, incontornável, um documento que não se pode mostrar, que legitima tudo, diante do qual devemos nos inclinar, o bom Deus invisível e incognoscível! Eu o recuso, recuso esse documento, recuso-o como todas as minhas forças! Um documento ridículo, sim, deve ser o documentos em que se trata de umas mulherzinhas e se fala de um tal D... que se transforma em figura muito exigente: algum marido sem dúvida decepcionado porque não lhe pagaram um bom preço por sua esposa. Mas esse documento, que interessa tanto à defesa nacional, não poderia ser exibido sem que uma guerra fosse declarada amanhã, não, não! É mentira! E é de tal maneira odiosa e cínica que essas pessoas mentem impunemente, sem que nada os convença. Elas amotinam a França, esconde-se atrás da legítima emoção, fazem calar as bocas confundindo os corações, pervertendo os espíritos. Não conheço crime cívico maior.
Aqui, está, portanto, senhor Presidente, os fatos que explicam como um erro judiciário pôde ser cometido; e as provas morais, a situação do destino de Dreyfus, a ausência de motivos, contínuo clamor de inocência, exigem que eu o apresente como uma vítima da extraordinária imaginação do comandante du Paty de Clam, do meio clerical em que ele está, da perseguição aos “judeus sujos”, que desonram a nossa época.
E aqui chegamos ao caso Esterhazy. Três anos se passaram, muitas consciências permanecem profundamente confusas, inquietam-se, questionam e terminam se convencendo da inocência de Dreyfus.
Não farei o histórico da dúvida e da posterior certeza do Sr. M. Scheurer-Kestner. Mas, enquanto ele investigava por conta própria, passavam-se fatos graves no próprio Estado-Maior. O coronel Sandherr morre, e o tenente-coronel Picquart lhe sucede na chefia do serviço de inteligência. E, por sua vez, no exercício de suas funções foi que chegou às mãos desse último um telegrama, endereçado ao comandante Esterhazy, remetido por um agente a serviço no exterior. Seu estrito dever era o de abrir uma sindicância. Fato é que ele nunca deixou de obedecer a seus superiores. Ele apresentou, pois, suas suspeitas aos seus superiores hierárquicos, o general Gonse, e depois o general Boisdeffre e, por fim, o general Billot, que ocupou o lugar do general Mercier no Ministério da Guerra. O famoso dossiê Picquart, de que tanto se fala, nunca foi além do que o dossiê Billot, um dossiê feito por um subordinado para o seu ministro, dossiê que deve estar ainda no Ministério da Guerra. As investigações duraram de maio a setembro de 1896, e o que é preciso, dizer em alto e bom som é que o general Gonse estava convencido da culpabilidade de Esterhazy e que o general Boisdeffre e o general Billot não tinham nenhuma dúvida de que o autor do documento era Esterhazy. A investigação do tenente-coronel Picquart tinha conduzido a essa constatação certeira. Mas o constrangimento era grande, pois a condenação de Esterhazy acarretaria necessariamente a revisão do processo Dreyfus; e isso é que o Estado- Maior queria evitar a qualquer custo.
Deve ter havido um instante cheio de angústia psicológica. É fato que o general Billot não estava comprometido com nada, ele tinha acabado de saber de tudo, podia, portanto, dizer a verdade. Ele não ousou, temendo sem dúvida a opinião pública, certamente também acreditando que livraria todo o Estado-Maior, o general Boisdeffre e o general Gonse, sem falar dos inferiores. Depois, houve apenas um minuto de combate entre a sua consciência e o que ele acreditava ser um interesse militar. Quando esse minuto passou, já era muito tarde. Ele estava engajado, já estava comprometido. E, desde então, sua responsabilidade não para de crescer. Ele tomou para si o crime de outrem, é tão culpado quanto os outros, é mais culpado que os outros, pois tinha a oportunidade de fazer justiça, e não a fez. Veja isso! Faz um ano que o general Billot, os generais Boisdeffre e Gonse sabem que Dreyfus é inocente, e guardam para si essa verdade aterradora! E dormem tranquilos em casa, com suas esposas e filhos que os amam!
O tenente-coronel Picquart estava cumprindo suas obrigações de homem honesto. Insistia com seus superiores, em nome da justiça. Respondia, dizia quanto suas decisões eram apolíticas, diante da terrível tempestade que se construía, que se daria quando a verdade fosse conhecida. Essa foi, mais tarde, a argumentação que M. Scheurer-Kestner dirige igualmente ao general Billot, conclamando-o, por patriotismo, a pegar o caso com as mãos, não deixá-lo mais se agravar para evitar um desastre público. Não! O crime estava cometido, o Estado-Maior não poderia mais evitar seu crime. E o tenente-coronel Picquart foi enviado para o exterior, cada vez mais distante, até a Tunísia, onde se quis até mesmo certa vez honrar sua bravura, encarregando-o de uma missão que o teria seguramente massacrado, em lugares em que o Marques de Mores encontrou a morte. Ele não caiu em desgraça, o general Gonse manteve com ele uma correspondência amigável. Apenas não era muito conveniente divulgar alguns segredos.
Em Paris, a verdade começava irresistivelmente a aparecer e sabia-se que em algum momento a tempestade explodiria. M. Mathieu Dreyfus denuncia o comandante Esterhazy como verdadeiro autor do documento, no mesmo momento em que M. Scheurer-Kestner colocava, nas mãos do Ministério da Justiça, um pedido de revisão do processo. E aqui aparece o comandante Esterhazy. Testemunhas o descrevem de início descontrolado, disposto a se suicidar ou fugir. Depois, de repente, cria coragem e assusta Paris pela violência de sua atitude. É que tinha chegado ajuda, ele havia recebido uma carta anónima advertindo-o das manobras de seus inimigos, uma dama misteriosa chegou mesmo a se abalar durante a noite para roubar do Estado-Maior um documento que o salvaria. E aqui eu não posso deixar de lembrar a imaginação fértil do comandante du Paty de Clam. Sua obra, a culpabilidade de Dreyfus, estava em perigo, e ele quis seguramente defender a própria criação. A revisão do processo, seria esse o desfecho do extravagante e trágico folhetim, cujo abominável desenlace realizou-se na Ilha do Diabo! Isso ele não podia permitir. Então, o duelo ocorrerá entre o tenente-coronel Picquart e o comandante du Paty de Clam, um de cara aberta, o outro mascarado. Nós os reencontraremos em breve, diante da justiça civil. No fundo, é sempre o Estado-Maior que se defende, que não quer admitir seu crime, cuja abominação cresce a cada hora.
Com espanto, perguntou-se quem eram os protetores do comandante Esterhazy. Em primeiro lugar, na surdina, o comandante du Paty Clam, que maquinou e coordenou a coisa toda. Ele foi traído pelos seus próprios métodos bizarros. Depois, é o general de Boisdeffre, o general de Gonse, e o próprio general Billot, que são obrigados a absolver o comandante, já que não podem deixar que a inocência de Dreyfus seja reconhecida sem que o Ministério da Guerra caia em descrédito. E o fantástico resultado dessa prodigiosa situação é que o honesto tenente-coronel Picquart, que apenas cumpriu seu dever, será ele a vítima, o ridicularizado e o punido. Ah!, justiça, que terrível desespero rasga o coração! Chega-se ao cúmulo de dizer que ele é o falsificador, que fabricou o telegrama para incriminar Esterhazy. Mas, ó Deus! Por quê? Com que razão? Dai-me um motivo. Ele também foi pago pelos Judeus? O mais engraçado é que ele é justamente o antissemita! Sim! Assistimos a esse espetáculo infame, homens perdidos em divida e crimes que se proclamam inocentes, enquanto se mancha a honra de um homem de vida irresponsável. Quando uma sociedade chega a esse ponto, está desintegrada.
Eis, portanto, senhor Presidente, o caso Esterhazy: um culpado que era preciso inocentar. Retroagindo dois meses, podemos acompanhar hora por hora esse admirável serviço. Vou abreviar, pois aqui não trago nada mais que um resumo da história, cujas páginas vibrantes serão um dia escritas na integra.
E, então, vimos o general de Pellieux, depois o comandante Ravary, conduzir uma investigação criminosa em que os canalhas foram purificados, e os honestos, manchados. Logo depois, o Conselho de Guerra foi convocado.
Como se pode esperar que um Conselho de Guerra corrija o erro de outro Conselho de Guerra?
E nem estou me referindo aqui à escolha dos juízes. A ideia superior de disciplina, que ocorre no sangue desses soldados, não bastaria por si só invalidar sua capacidade de julgar imparcialmente? Quem fala disciplina, fala obediência. Quando o ministro de Guerra, a principal autoridade, estabeleceu publicamente, sob os aplausos da representação nacional, a autoridade do julgamento, não se pode esperar que um Conselho de Guerra o desminta. Hierarquicamente, é impossível. O general Billot influenciou os juízes com a sua declaração, e eles a julgaram como se devessem partir para o ataque, sem refletir. A opinião preconcebida, que levaram para julgamento, é evidentemente essa: “Dreyfus foi condenado por traição por um Conselho de Guerra, é, portanto, culpado; e nós, O Conselho de Guerra, não podemos declará-lo inocente, pois sabemos que reconhecer a culpa de Esterhazy é proclamar a inocência de Dreyfus”. Nada os demoveria dessa ideia.
Proclamaram uma sentença iniqua, que pesará para sempre sobre os nossos conselhos de guerra e que manchará a suspeita daqui em diante todas as decisões. O primeiro Conselho de Guerra não foi inteligente; mas o segundo é forçosamente criminoso. Sua desculpa, repito, é que a autoridade principal já tinha decidido, declarando inatacável o julgamento anterior, santo e superior aos homens, de modo que os inferiores não podiam dizer o contrario.
Falam-nos da honra do exército, querem que nós o amemos e o respeitemos. Há!, claro, o exército que se erguerá diante da primeira ameaça, que defenderá o território francês, ele é o povo, e não sentimos por ele nada além de ternura e respeito. Mas não se trata dele, quem, em nossa necessidade de justiça, desejamos justamente a dignidade. Trata-se aqui do sabre, o senhor que, quem sabe, nos dará amanhã. Mas beijar com devoção seu punho, ó deus, isso não!
Já o demonstrei: o caso Dreyfus foi o caso do Ministério da Guerra; um oficial de Estado-Maior, denunciado por seus colegas do Estado–Maior, condenado sob pressão dos chefes do Estado-Maior. E mais uma vez: ele não pode ser inocentado sem que todo o Estado-Maior seja culpado. Também os ministérios, por todos os meios imagináveis, com campanhas nos jornais, com comunicados e tráfico de influência, só cobriram Esterhazy para culpar Dreyfus uma segunda vez. Ah! o governo republicano deveria pôr no olho da rua esse bando de jesuítas, como o próprio general Billot os chama!
Onde está o ministério verdadeiramente forte, de um patriotismo sábio, que terá a coragem de tudo renovar e recriar? Quanta gente não conheço que, diante de uma possível guerra, treme de angústia sabendo em que mãos está a defesa nacional? E a que ninho de baixarias, fofocas e esbanjamentos está entregue esse lugar sagrado, onde se decide o futuro da pátria? Assusta o que o caso Dreyfus acabou revelando, esse sacrifício humano de um infeliz, de um “Judeu porco”! Ah!, que agitação de demência e imbecilidade, de imaginações estúpidas, de práticas de políticas mesquinhas, de costumes inquisitoriais e tirânicos, a satisfação de alguns oficiais agaloados esmagando a nação com suas botas, enfiando goela abaixo seu grito de verdade e justiça, sob o pretexto mentiroso e sacrílego da razão de estado!
E é um crime ainda terem se apoiado na impressa imunda, terem se deixado defender por toda a canalha de Paris, de modo que é essa canalha que triunfa insolentemente, diante da derrota do direito e da simples probidade. É um crime terem acusado de perturbar a França aqueles que a querem generosa, na vanguarda das nações livres e justas, quando tramaram eles próprios a impudente conspiração para impor o erro ao mundo inteiro. É um crime confundir a opinião pública, utilizar para uma sentença fatal essa opinião pública que foi corrompida até o delírio. É um crime envenenar os pequenos e humildes, exasperar as paixões de reação e de intolerância, abrigando-se atrás de um odioso antissemitismo, de que a grande França liberal dos direitos do homem sucumbirá, se não for curada. É um crime explorar o patriotismo para as obras do ódio; é um crime, por fim, fazer do sabre o deus moderno, quando toda a ciência humana está a serviço da obra iminente da verdade e da justiça.
Essa verdade, essa justiça, que tão apaixonadamente desejamos, que aflição vê-las assim esbofeteadas, mais desprezadas e mais obscurecidas! Desconfio do desmoronamento que deu na de Scheurer-Kestner, e acredito que ele acabará sentido remorsos, o de não ter agido revolucionariamente no dia da interpelação no Senado, revelando o que sabia, para pôr tudo abaixo. Foi o grande homem de bem da história, o homem de vida leal, acreditou que a verdade se bastaria a si própria, sobretudo quando ela lhe aparecia clara como a luz do dia. De que valeria todo o transtorno, se logo o sol a tudo esclareceria? E foi por essa serenidade confiante que foi tão cruelmente punido. O mesmo para o tenente-coronel Picquart, que, por um sentimento de grande dignidade, não quis publicar as cartas do general Gonse. Esses escrúpulos o tornam ainda mais honrado quando sabemos que, enquanto ele se mantinha respeitoso na disciplina, seus superiores o faziam cobrir-se de lama, instruindo eles mesmos o processo, da maneira mais inesperada e ultrajante. Há duas vítimas, dois homens corajosos, dois corações simples, que se entregaram a Deus, enquanto o Diabo se movimentava. E até mesmo se viu, da parte do tenente-coronel Picquart, essa ignomínia: um tribunal francês, depois de ter permitido que o promotor atacasse publicamente uma testemunha, acusando-a de todos os crimes, apesar à audiência secreta justamente quando a testemunha começou a se explicar e a se defender. Afirmo ser este mais um crime, um crime que provocará a indignação da consciência universal. Decididamente, nossos tribunais militares têm uma ideia muito particular de justiça.
Essa é, pois, a simples verdade, senhor Presidente, e ela é assustadora, e marcará sua presidência como uma mancha. Desconfio que o senhor não pode fazer nada esse respeito, que é prisioneiro da Constituição e de seus assessores. Mas tem ainda assim um dever como homem, no qual pensa, e que cumprirá. Não que eu duvide, aliás, nem um pouco, que a verdade triunfará. Repito-o, e com uma certeza ainda mais veemente: a verdade está apenas a caminho e ninguém a deterá́. As coisas estão apenas começando, pois apenas agora os fatos estão claros: de um lado, os culpados que não querem que a justiça se faça; de outro, os honestos que darão sua vida para que ela se faça. Já o disse antes, e vou repeti-lo aqui: quando a verdade fica soterrada, ela toma corpo, e ganha tal força explosiva que, quando explode, leva tudo consigo. Veremos se o que acaba de ser preparado não será́ mais tarde o mais retumbante dos desastres.
Mas essa carta já vai longe, senhor Presidente, e é hora de concluí-la.
Acuso o comandante du Paty de Clam de ter sido o criador diabólico do erro judicial, inconscientemente, quero crer, e ter saído em defesa de sua obra nefasta, durante três anos, por maquinações as mais estapafúrdias e as mais culposas.
Acuso o general Mercier de ter se tornado cúmplice, ainda que por franqueza de carácter, de uma das maiores iniquidades do século.
Acuso o general Billot de ter tido entre as mãos as provas indubitáveis da inocência de Dreyfus e de tê-las ocultado, tornando-se, pois, culpado de crime de lesa-humanidade e lesa–justiça, por motivos políticos e para livrar um Estado-Maior comprometido.
Acuso o general de Boisdeffre e o general Gonse de tornarem-se cúmplices do mesmo crime, um sem dúvida por paixão clerical, o outro por esse corporativismo que faz do Ministério da Guerra uma arca santa inatacável.
Acuso o general de Pellieux e o comandante Ravary de terem feito uma investigação criminosa, um inquérito da mais monstruosa parcialidade e do qual temos, no relatório do segundo, um monumento perene da mais ingênua audácia.
Acuso os três especialistas sem grafologia, os senhores Belhomme, Varinard e Couard de terem emitido pareceres mentirosos e fraudulentos, a menos que um laudo médico os declare tomados por alguma patologia da vista e do juízo.
Acuso o Ministério da Guerra de ter promovido na imprensa, particularmente no L’éclair e no L’Écho de Paris, uma campanha abominável, para manipular a opinião pública e acobertar sua falha.
Acuso por fim o primeiro Conselho de Guerra de ter violado o direito, condenando um acusado com base em um documento secreto, e acuso o segundo Conselho de Guerra de ter encoberto essa ilegalidade, por ter recebido ordens, cometendo por sua vez o crime jurídico de absolver conscientemente um culpado.
Fazendo essas acusações, não ignoro enquadrar-me nos artigos 30 e 31 da lei de imprensa de 29 de julho de 1881, que pune os delitos de difamação. E é voluntariamente que eu me exponho.
Quanto às pessoas que eu acuso, não as conheço, nunca as vi, não nutro por elas nem rancor nem ódio. Não passam para mim de entidades, de espíritos da malevolência social. O ato que aqui realizo não é nada além de uma ação revolucionária para apressar a explosão de verdade e justiça.
Não tenho mais que uma paixão, uma paixão pela verdade, em nome da humanidade que tanto sofreu e que tem direito à felicidade. Meu protesto inflamado nada mais é que o grito da minha alma. Que ousem, portanto levar–me perante ao tribunal do júri e que o inquérito se dê à luz do dia!
É o que espero.
Receba, senhor Presidente, minhas manifestações de mais profundo respeito.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ZOLA, Émile (1840-1902). Zola /Rui Barbosa Eu acuso! O Processo do Capitão Dreyfus. Org. e trad. Ricardo Lísias. São Paulo: Hedra, 2007. p. 35 a 53






sábado, 18 de abril de 2015

43 – O vampiro de Curitiba – D. Trevisan

Publicado em 1965, há cinquenta anos, “O vampiro de Curitiba” do escritor paranaense Dalton Trevisan (1925- ) é um dos grandes contos escritos em nosso pais. Meio aparentado com o “Feliz Ano Velho” do Ruben Fonseca, mostra a imagem vista do outro lado da janela. Um texto que sai lá de dentro, diretamente do fundo das tripas, sem restriçnoes e sem necessidade de elaboração.
O vampiro de Curitiba
Dalton Trevisan
Ai, me dá vontade até de morrer. Veja, a boquinha dela está pedindo beijo, beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita vinte e
quatro horas e desmaia feliz. É uma que molha o lábio com a ponta da língua para ficar mais excitante. Por que Deus fez da mulher o suspiro do moço e
o sumidouro do velho? Não é justo para um pecador como eu. Ai, eu morro só de olhar para ela, imagine então se. Não imagine, arara bêbada. São onze da manhã, não sobrevivo até à noite. Se fosse me chegando, quem não quer nada - ai, querida, é uma folha seca ao vento - e encostasse bem devagar
na safadinha. Acho que morria: fecho os olhos e me derreto de gozo. Não quero do mundo mais que duas ou três só para mim. Aqui diante dela, pode que se encante com o meu bigodinho. Desgraçada! Fez que não me enxergou: eis uma borboleta acima de minha cabecinha doida. Olha através de mim e lê o cartaz de cinema no muro. Sou eu nuvem ou folha seca ao vento? Maldita feiticeira, queimá-la viva, em fogo lento. Piedade não tem no coração negro de ameixa. Não sabe o que é gemer de amor. Bom seria pendurá-la cabeça para baixo, esvaída em sangue.
Se não quer, por que exibe as graças em vez de esconder? Hei de chupar
a carótida de uma por uma. Até lá enxugo os meus conhaques. Por causa de
uma cadelinha como essa que aí vai rebolando-se inteira. Quieto no meu
canto, ela que começou. Ninguém diga sou taradinho. No fundo de cada
filho de família dorme um vampiro - não sinta gosto de sangue. Eunuco,
ai quem me dera. Castrado aos cinco anos. Morda a língua, desgraçado. Um
anjo pode dizer amém! Muito sofredor ver moça bonita - e são tantas.

Perdoe a indiscrição, querida, deixa o recheio do sonho para as formigas? O,
você permite, minha flor? Só um pouquinho, um beijinho só. Mais um, só
mais um. Outro mais. Não vai doer, se doer eu caia duro aos seus pés. Por
Deus do céu não lhe faço mal - o nome de guerra é Nelsinho, o Delicado.

Olhos velados que suplicam e fogem ao surpreender no óculo o lampejo
do crime? Com elas usar de agradinho e doçura. Ser gentilíssimo. A impaciência
é que me perde, a quantas afugentei com gesto precipitado? Culpa
minha não é. Elas fizeram o que sou - oco de pau podre, onde floresce
aranha, cobra, escorpião. Sempre se enfeitando, se pintando, se adorando no
 espelhinho da bolsa. Se não é para deixar assanhado um pobre cristão por
que é então? Olhe as filhas da cidade, como elas crescem: não trabalham nem
fiam, bem que estão gordinhas. Essa é uma das lascivas que gostam de se
coçar. Ouça o risco da unha na meia de seda. Que me arranhasse o corpo
inteiro, vertendo sangue do peito. Aqui jaz Nelsinho, o que se finou de
ataque. Gênio do espelho, existe em Curitiba alguém mais aflito que eu?

Não olhe, infeliz! Não olhe que você está perdido. É das tais que se
divertem a seduzir o adolescente. Toda de preto, meia preta, upa lá lá. Órfã
ou viúva? Marido enterrado, o véu esconde as espinhas que, noite para o dia,
irrompem no rosto - o sarampo da viuvez em flor. Furiosa, recolhe o leiteiro
e o padeiro. Muita noite revolve-se na cama de casal, abana-se com leque
recendendo a valeriana. Outra, com a roupa da cozinheira, à caça de soldado
pela rua. Ela está de preto, a quarentena do nojo. Repare na saia curta,
distrai-se a repuxá-la no joelho. Ah, o joelho... Redondinho de curva mais
doce que o pêssego maduro. Ai, ser a liga roxa que aperta a coxa fosforescente
de brancura. Ai, o sapato que machuca o pé. E, sapato, ser esmagado pela
dona do pezinho e morrer gemendo. Como um gato!

Veja, parou um carro. Ela vai descer. Colocar-me em posição. Ai, querida,
não faça isso: eu vi tudo. Disfarce, vem o marido, raça de cornudo. Atraio
pobre
rapaz que se deite com a mulher. Contenta-se em espiar ao lado da cama - acho
que ficaria inibido. No fundo, herói de bons sentimentos. Aquele tipo do bar,
aconteceu com ele. Esse aí um dos tais? Puxa, que olhar feroz. Alguns preferem
é o rapaz, seria capaz de? Deus me livre, beijar outro homem, ainda mais de bigode e catinga de cigarro? Na pontinha da língua a mulher filtra o mel que
embebeda o colibri e enraivece o vampiro.

Cedo a casadinha vai às compras. Ah, pintada de ouro, vestida de
pluma, pena e arminho - rasgando com os dentes, deixá-la com os cabelos
do corpo. O bracinho nu e rechonchudo - se não quer por que mostra em vez de esconder? -, com uma agulha desenho tatuagem obscena. Tem piedade, Senhor, são tantas, eu tão sozinho.

Ali vai uma normalista. Uma das tais disfarçada? Se eu desse com o famoso bordel. Todas de azul e branco - ó mãe do céu! - desfilando com meia preta e liga roxa no salão de espelhos. Não faça isso, querida, entro em levitação: a força dos vinte anos. Olhe, suspenso nove centímetros do chão, desferia vôo não fora o lastro da pombinha do amor. Meu Deus, fique velho depressa. Feche o olho, conte um, dois, três e, ao abri-lo, ancião de barba branca. Não se iluda, arara bêbada. Nem o patriarca merece confiança, logo mais com a ducha fria, a cantárida, o anel mágico - conheci cada pai de família!
Atropelado por um carro, se a polícia achasse no bolso esta coleção de
retratos? Linchado como tarado, a vergonha da cidade. Meu padrinho nunca
perdoaria: o menino que marcava com miolo de pão a trilha na floresta. Ora
uma foto na revista do dentista. Ora na carta a uma viuvinha de sétimo dia.
Imagine o susto, a vergonha fingida, as horas de delírio na alcova - à palavra
alcova um nó na garganta.

Toda família tem uma virgem abrasada no quarto. Não me engana, a
safadinha: banho de assento, três ladainhas e vai para a janela, olho
arregalado
no primeiro varão. Lá envelhece, cotovelo na almofada, a solteirona na sua
tina de formol.

Por que a mão no bolso, querida? Mão cabeluda do lobisomem. Não olhe
agora. Cara feia, está perdido. Tarde demais, já vi a loira: milharal ondulante
ao
peso das espigas maduras. Oxigenada, a sobrancelha preta - como não roer
unha? Por ti serei maior que o motociclista do Globo da Morte. Deixa estar,
quer
bonitão de bigodinho. Ora, bigodinho eu tenho. Não sou bonito, mas sou
simpático, isso não vale nada? Uma vergonha na minha idade. Lá vou eu atrás
dela, quando menino era a bandinha do Tiro Rio Branco.

Desdenhosa, o passo resoluto espirra faísca das pedras. A própria égua
de Átila - onde pisa, a grama já não cresce. No braço não sente a baba do
meu olho? Se existe força do pensamento, na nuca os sete beijos da paixão.
Vai longe. Não cheirou na rosa a cinza do coração de andorinha. A loira,
tonta, abandona-se na mesma hora. O morcego, ó andorinha, ó mosca! Mãe
do céu, até as moscas instrumento do prazer - de quantas arranquei as asas?
Brado aos céus: como não ter espinha na cara?

Eu vos desprezo, virgens cruéis. A todas poderia desfrutar - nem uma
baixou sobre mim o olho estrábico de luxúria. Ah, eu bode imundo
e chifrudo, rastejariam e beijavam a cola peluda. Tão bom, só posso morrer.
Calma, rapaz: admirando as pirâmides marchadoras de Quéops, Quéfren e
Miquerinos, quem se importa com o sangue dos escravos? Me acuda,
á Deus. Não a vergonha, Senhor, chorar no meio da rua. Pobre rapaz na
danação dos vinte anos. Carregar vidro de sanguessugas e, na hora do perigo,
pregá-las na nuca?

Se o cego não vê a fumaça e não fuma, ó Deus, enterra-me no olho a
tua agulha de fogo. Não mais cão sarnento atormentado pelas pulgas, que
dá voltas para morder o rabo. Em despedida - á curvas, ó delícias -
concede-me a mulherinha que aí vai. Em troca da última fêmea pulo no
braseiro - os pés em carne viva. Ai, vontade de morrer até. A boquinha dela pedindo beijo - beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo. Você grita
vinte e quatro horas e desmaia feliz.