Um conto que na verdade é uma carta que vale a pena ser
lida – exemplo maior de engajamento político de um escritor. Emile Zola (1840-1902),
um dos maiores escritores franceses, escreve diretamente ao Presidente da
República para denunciar a injustiça que o Estado Maior do exercito francês
estava cometendo contra Alfred Dreyfus.
A carta de Émile Zola (1840-1902), intitulada
J'accuse (Eu acuso) e endereçada ao Presidente da República,
Félix Faure, é publicada no jornal literário L'Aurore, em 1898, promovendo um inflamado debate público sobre o
caso Dreyfus, que mobiliza a França por muitos anos. Em 1894, o oficial de
artilharia Alfred Dreyfus (1859-1935), judeu, é julgado por alta traição
(espionagem para os alemães) e condenado à prisão perpétua na Ilha do Diabo,
na Costa da Guiana Francesa. Em 1898, em função da insuficiência de provas, é
realizado um segundo julgamento, que mantém a mesma sentença, provocando a indignação
de Émile Zola.
Zola, em sua carta, defende
Dreyfus de forma veemente, considerando-o inocente e vítima de uma trama política
antissemita. Ele é processado por difamação e condenado a um ano de prisão e 3.000
francos de multa. Zola se refugia na Inglaterra e só retorna à França, quando não
há mais risco de ser preso. Apaixonado pela verdade, publica uma série de
artigos sobre o caso Dreyfus, reunidos sob o título La Vérité en marche. Em
29 de Setembro de 1902, Zola morre misteriosamente em seu apartamento, na rue
de Bruxelles. A causa da morte: inalação de uma quantidade letal de monóxido
de carbono proveniente de uma chaminé́ defeituosa. Muitos estudiosos não
descartam a possibilidade de Zola ter sido assassinado por inimigos políticos,
entretanto, nada é provado.
Zola é enterrado no cemitério de Montmartre em Paris. As suas cinzas são
transferidas para o Panthéon, em 4
de Junho de 1908, dois anos depois de Dreyfus ter sido reabilitado. No trajeto,
um jornalista, Louis Gregory, dispara dois tiros contra Dreyfus, ferindo-o no braço.
EU ACUSO !
CARTA A M. FÉLIX FAURE, PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Émile Zola
Excelentíssimo Senhor Presidente da República,
permita-me, em gratidão à generosa acolhida que o senhor me deu em uma ocasião
passada, apelar para sua justa glória e dizer que sua estrela, tão honrada até
aqui, está ameaçada pela maior das vergonhas, a mais indelével das manchas.
O senhor livrou-se, são e salvo, das maiores calúnias,
tendo conquistado os corações; saiu apoteótica e radiosamente desta festa patriótica
que foi para a Franca a aliança com a Rússia, e prepara-se para presidir ao
triunfo solene da nossa Exposição Universal, que coroará nosso grande século
cheio de trabalho, verdade e liberdade. Mas é enorme a mancha sob o seu nome –
eu iria dizer sob seu governo – que é esse abominável caso Dreyfus! Uma corte
marcial acaba, por ter recebido ordens nesse sentido, de ousar absolver o tal
Esterhazy, supremo golpe em qualquer verdade, em qualquer justiça. E está
feito: a vergonha está estampada no rosto da França, e a história registará
que foi sob a sua presidência que tamanho crime social foi cometido.
E como foram ousados, serei da minha parte ousada também.
Vou falar a verdade, pois prometi resguardá-la, já que a justiça, conspurcada
diversas vezes, não faz isso, plena e inteiramente. Tenho o dever de falar, eu não
quero ser cúmplice. Minhas noites seriam assombradas pelo espectro de um
inocente que sofre no além-mar, mergulhado na mais dolorosa tortura, por um
crime que ele não cometeu.
E será à sua Excelência, senhor Presidente, que
dirigirei meus clamores, a verdade, com toda força da minha revolta de homem
honesto. Conheço a sua honra e, por isso, sei que ignora a verdade. A quem mais
eu poderia denunciar a turba malfeitora dos verdadeiros culpados, que não à
Sua Excelência, o primeiro magistrado do pais?
A verdade, para começar, sobre o processo e a condenação
de Dreyfus.
Um homem nefasto, responsável por tudo, autor de
tudo, é o comandante du Paty de Clam,
naquele momento um simples oficial. Ele é a personificação do caso Dreyfus;
nada será esclarecido até que uma investigação imparcial tenha estabelecido
claramente seus atos e sua responsabilidade. Ele representa uma figura
nebulosa, a mais complicada, obcecado pelas intrigas romanescas,
comprazendo-se, à maneira dos folhetins baratos, com papéis que desaparecem,
cartas anónimas, encontros e lugares desertos, mulheres misteriosas que
carregam, à noite, provas irrefutáveis. Ele imagina ter ditado o documento a
Dreyfus; é ele que sonha estudá-lo em um cómodo inteiramente revestido de
espelhos, é ele que o comandante Forzinetti nos representa, empunhando uma
lanterna velada, desejando se aproximar do acusado adormecido, para projetar
sobre seus olhos um jato de luz e surpreende-lo então em seu crime, na confusão
do sonho. Não tenho mais nada a dizer: se procurar, alguma coisa aparece.
Declaro simplesmente que o comandante du
Paty de Clam, encarregado de instruir o caso Dreyfus, como representante da
justiça, e, segundo a cronologia e a importância dos fatos, é o primeiro
culpado do erro judicial que foi cometido.
Depois de algum tempo o documento foi parar nas mãos
do coronel Sandherr, diretor do serviço de inteligência, que morreu de
paralisia geral. Então, as coisas começaram a “desaparecer”, papéis sumiram, até
hoje estão sumidos; e foram atrás de saber quem era o autor do documento, e um pré-requisito
foi pouco a pouco se construindo: o culpado teria de ser um oficial do
Estado-Maior e da artilharia: duplo erro manifesto, que mostra a superficialidade
com que o processo foi tratado, pois um exame cuidadoso demonstra que o culpado
necessariamente precisa ser um oficial de tropa.
Foi feita uma busca em domicílio, olharam os papéis,
como se tudo fosse um caso de família, uma tramoia a ser desvendada dentro dos escritórios
mesmo e então os culpados seriam expulsos. E, sem querer aqui contar uma história
já conhecida em parte, entra em cena o comandante du Paty de Clam, quando as primeiras suspeitas começam a recair
sobre Dreyfus. Foi então que ele inventou um Dreyfus, o caso tornou-se o seu
caso, ele se esforçou para confundir o traidor e fazê-lo confessar tudo. Há
ainda o ministro da Guerra, general Mercier, cuja inteligência parece medíocre;
ao chefe do Estado-Maior, general Boisdeffre, que apresenta ter cedido à paixão
clerical, e o subchefe do Estado-Maior, o general Gonse, cuja consciência se
acomoda a quase tudo. Mas, no fundo, não se trata de ninguém além do comandante
du Paty de Clam, que os guia a todos,
que os hipnotiza, pois ele também se ocupa do espiritismo, do ocultismo: ele
conversa com os espíritos. É impossível conceber as situações às quais ele
submeteu o infeliz Dreyfus, as armadilhas nas quais ele quis apanhá-lo, as investigações
delirantes, as invenções monstruosas, uma enorme demência torturante.
Ah! Esse primeiro fato é um pesadelo para quem o
conhece nos seus verdadeiros detalhes! O comandante du Paty de Clam prende Dreyfus e o coloca na solitária. Vai até a
casa da senhora Dreyfus, amedronta-a, e diz que se ela contar alguma coisa para
alguém seu marido estará perdido. Durante esse tempo, o infeliz se desespera,
clamando inocência. E a instrução foi feita dessa forma, como se fosse uma crónica
do século XV, misteriosa, com expedientes cruéis e todo baseado exclusivamente
em uma evidência infantil, esse documento imbecil, que não passa de uma traição
vulgar, a patifaria mais grosseira, pois os maiores segredos transmitidos se
revelaram todos sem nenhum valor. Eu insisto porque é aqui que está a semente
de onde surgirá o verdadeiro crime, a espantosa recusa de justiça que torna a França
um lugar doente. Eu gostaria de entender como esse erro judicial pôde ser possível,
como ele surgiu das maquinações do comandante du Paty de Clam; como o general Mercier e os generais de Boisdeffre
e Gonse puderam se deixar levar e tornar-se pouco a pouco cúmplices desse erro,
que mais tarde acreditaram dever impor como uma verdade santa, uma verdade indiscutível.
A priori, só houve da parte deles falta de cuidado e burrice. De mais a
mais, sentimos que eles cederam às paixões religiosas da comunidade e ao
preconceito corporativista. Permitiram que a estupidez acontecesse.
Mas então Dreyfus se submete ao Conselho de Guerra.
Exige-se o mais absoluto sigilo. Mesmo que um traidor houvesse aberto a
fronteira ao inimigo para permitir que o imperador alemão tomasse Notre Dame, não seriam tomadas precauções
de sigilo e mistério tão severas. A nação treme de espanto, um diz-que-diz de ocorrências
terríveis, dessas traições monstruosas que indignam a História; e naturalmente
o país se dobra. Não há punição que chegue, ele apoiará a degradação pública,
desejará que o culpado se enterre em um solo imutável de infâmia, devorado
pelo remorso. E, por isso, os fatos indizíveis, as coisas perigosas capazes de
incendiar a Europa e que por isso tiveram de ser em sigilo soterrados serão verdadeiros?
Não! Tudo não passou de fruto da imaginação romanesca e desvairada do
comandante du Paty de Clam. Tudo foi
feito apenas para esconder o mais estapafúrdio dos folhetins. Para que isso
fique claro, basta que o ato de acusação, lido diante do conselho de guerra,
seja analisado com um pouco de cuidado.
Ah! A inutilidade desse ato de acusação! É um prodígio
de iniquidade que um homem tenha condenado por meio desse ato. Desafio todos os
homens corretos a lê-lo sem que seu coração se encha de indignação e não grite
de revolta, vendo o exagero da pena da distante Ilha do Diabo. Dreyfus domina vários
idiomas: crime; não há um papel sequer em sua casa que o comprometa: crime; de
vez em quando ele retorna à sua pátria: crime; trabalha muito, tem o cuidado
de se informar sobre tudo: crime; não perde a calma: crime; perde a calma:
crime. E as platitudes de redação, as assertivas formais do vazio! Falou-se em
14 itens de acusação: no final das contas, não encontramos mais do que um, o
tal documento; e já sabemos que nem com relação a ele os especialistas estão de
acordo; e que um deles, o Sr. Gobert, foi militarmente constrangido porque
ousou chegar a uma conclusão diversa daquela que se desejava. Falou-se ainda em
23 oficiais que teriam arrasado Dreyfus em seus testemunhos. Nada sabemos do
que falaram, mas é fato que parte deles não o acusou; é obrigatório observar,
ainda, que todos pertenciam ao Ministério da Guerra. É um processo interno,
feito entre pares, e não se deve esquecer: o Estado-Maior queria o processo,
levou a cabo o julgamento e termina de fazer outro.
Portanto, nada mais que o documento, a respeito do
qual os especialistas não se entendem. Conta-se que, dentro da sala do
conselho, os juízes estavam na iminência de absolvê-lo. E, então, para
justificar a obstinação desesperada pela condenação, afirma-se hoje que há um
documento secreto, incontornável, um documento que não se pode mostrar, que
legitima tudo, diante do qual devemos nos inclinar, o bom Deus invisível e incognoscível!
Eu o recuso, recuso esse documento, recuso-o como todas as minhas forças! Um
documento ridículo, sim, deve ser o documentos em que se trata de umas
mulherzinhas e se fala de um tal D... que se transforma em figura muito
exigente: algum marido sem dúvida decepcionado porque não lhe pagaram um bom preço
por sua esposa. Mas esse documento, que interessa tanto à defesa nacional, não
poderia ser exibido sem que uma guerra fosse declarada amanhã, não, não! É
mentira! E é de tal maneira odiosa e cínica que essas pessoas mentem
impunemente, sem que nada os convença. Elas amotinam a França, esconde-se atrás
da legítima emoção, fazem calar as bocas confundindo os corações, pervertendo
os espíritos. Não conheço crime cívico maior.
Aqui, está, portanto, senhor Presidente, os fatos
que explicam como um erro judiciário pôde ser cometido; e as provas morais, a situação
do destino de Dreyfus, a ausência de motivos, contínuo clamor de inocência,
exigem que eu o apresente como uma vítima da extraordinária imaginação do
comandante du Paty de Clam, do meio
clerical em que ele está, da perseguição aos “judeus sujos”, que desonram a
nossa época.
E aqui chegamos ao caso Esterhazy. Três anos se
passaram, muitas consciências permanecem profundamente confusas, inquietam-se,
questionam e terminam se convencendo da inocência de Dreyfus.
Não farei o histórico da dúvida e da posterior
certeza do Sr. M. Scheurer-Kestner. Mas, enquanto ele investigava por conta própria,
passavam-se fatos graves no próprio Estado-Maior. O coronel Sandherr morre, e o
tenente-coronel Picquart lhe sucede na chefia do serviço de inteligência. E,
por sua vez, no exercício de suas funções foi que chegou às mãos desse último
um telegrama, endereçado ao comandante Esterhazy, remetido por um agente a serviço
no exterior. Seu estrito dever era o de abrir uma sindicância. Fato é que ele
nunca deixou de obedecer a seus superiores. Ele apresentou, pois, suas
suspeitas aos seus superiores hierárquicos, o general Gonse, e depois o general
Boisdeffre e, por fim, o general Billot, que ocupou o lugar do general Mercier
no Ministério da Guerra. O famoso dossiê Picquart, de que tanto se fala, nunca
foi além do que o dossiê Billot, um dossiê feito por um subordinado para o seu
ministro, dossiê que deve estar ainda no Ministério da Guerra. As investigações
duraram de maio a setembro de 1896, e o que é preciso, dizer em alto e bom som
é que o general Gonse estava convencido da culpabilidade de Esterhazy e que o
general Boisdeffre e o general Billot não tinham nenhuma dúvida de que o autor
do documento era Esterhazy. A investigação do tenente-coronel Picquart tinha
conduzido a essa constatação certeira. Mas o constrangimento era grande, pois a
condenação de Esterhazy acarretaria necessariamente a revisão do processo
Dreyfus; e isso é que o Estado- Maior queria evitar a qualquer custo.
Deve ter havido um instante cheio de angústia psicológica.
É fato que o general Billot não estava comprometido com nada, ele tinha
acabado de saber de tudo, podia, portanto, dizer a verdade. Ele não ousou,
temendo sem dúvida a opinião pública, certamente também acreditando que
livraria todo o Estado-Maior, o general Boisdeffre e o general Gonse, sem falar
dos inferiores. Depois, houve apenas um minuto de combate entre a sua consciência
e o que ele acreditava ser um interesse militar. Quando esse minuto passou, já era
muito tarde. Ele estava engajado, já estava comprometido. E, desde então, sua
responsabilidade não para de crescer. Ele tomou para si o crime de outrem, é tão
culpado quanto os outros, é mais culpado que os outros, pois tinha a
oportunidade de fazer justiça, e não a fez. Veja isso! Faz um ano que o general
Billot, os generais Boisdeffre e Gonse sabem que Dreyfus é inocente, e guardam
para si essa verdade aterradora! E dormem tranquilos em casa, com suas esposas
e filhos que os amam!
O tenente-coronel Picquart estava cumprindo suas obrigações
de homem honesto. Insistia com seus superiores, em nome da justiça. Respondia,
dizia quanto suas decisões eram apolíticas, diante da terrível tempestade que
se construía, que se daria quando a verdade fosse conhecida. Essa foi, mais
tarde, a argumentação que M. Scheurer-Kestner dirige igualmente ao general
Billot, conclamando-o, por patriotismo, a pegar o caso com as mãos, não
deixá-lo mais se agravar para evitar um desastre público. Não! O crime estava
cometido, o Estado-Maior não poderia mais evitar seu crime. E o tenente-coronel
Picquart foi enviado para o exterior, cada vez mais distante, até a Tunísia,
onde se quis até mesmo certa vez honrar sua bravura, encarregando-o de uma missão
que o teria seguramente massacrado, em lugares em que o Marques de Mores
encontrou a morte. Ele não caiu em desgraça, o general Gonse manteve com ele
uma correspondência amigável. Apenas não era muito conveniente divulgar alguns
segredos.
Em Paris, a verdade começava irresistivelmente a
aparecer e sabia-se que em algum momento a tempestade explodiria. M. Mathieu
Dreyfus denuncia o comandante Esterhazy como verdadeiro autor do documento, no
mesmo momento em que M. Scheurer-Kestner colocava, nas mãos do Ministério da Justiça,
um pedido de revisão do processo. E aqui aparece o comandante Esterhazy.
Testemunhas o descrevem de início descontrolado, disposto a se suicidar ou
fugir. Depois, de repente, cria coragem e assusta Paris pela violência de sua
atitude. É que tinha chegado ajuda, ele havia recebido uma carta anónima
advertindo-o das manobras de seus inimigos, uma dama misteriosa chegou mesmo a
se abalar durante a noite para roubar do Estado-Maior um documento que o
salvaria. E aqui eu não posso deixar de lembrar a imaginação fértil do
comandante du Paty de Clam. Sua obra,
a culpabilidade de Dreyfus, estava em perigo, e ele quis seguramente defender a
própria criação. A revisão do processo, seria esse o desfecho do extravagante e
trágico folhetim, cujo abominável desenlace realizou-se na Ilha do Diabo! Isso
ele não podia permitir. Então, o duelo ocorrerá entre o tenente-coronel
Picquart e o comandante du Paty de Clam,
um de cara aberta, o outro mascarado. Nós os reencontraremos em breve, diante
da justiça civil. No fundo, é sempre o Estado-Maior que se defende, que não
quer admitir seu crime, cuja abominação cresce a cada hora.
Com espanto, perguntou-se quem eram os protetores
do comandante Esterhazy. Em primeiro lugar, na surdina, o comandante du Paty Clam, que maquinou e coordenou a
coisa toda. Ele foi traído pelos seus próprios métodos bizarros. Depois, é o
general de Boisdeffre, o general de Gonse, e o próprio general Billot, que são
obrigados a absolver o comandante, já que não podem deixar que a inocência de
Dreyfus seja reconhecida sem que o Ministério da Guerra caia em descrédito. E o
fantástico resultado dessa prodigiosa situação é que o honesto tenente-coronel
Picquart, que apenas cumpriu seu dever, será ele a vítima, o ridicularizado e o
punido. Ah!, justiça, que terrível desespero rasga o coração! Chega-se ao cúmulo
de dizer que ele é o falsificador, que fabricou o telegrama para incriminar
Esterhazy. Mas, ó Deus! Por quê? Com que razão? Dai-me um motivo. Ele também
foi pago pelos Judeus? O mais engraçado é que ele é justamente o antissemita!
Sim! Assistimos a esse espetáculo infame, homens perdidos em divida e crimes
que se proclamam inocentes, enquanto se mancha a honra de um homem de vida irresponsável.
Quando uma sociedade chega a esse ponto, está desintegrada.
Eis, portanto, senhor Presidente, o caso Esterhazy:
um culpado que era preciso inocentar. Retroagindo dois meses, podemos
acompanhar hora por hora esse admirável serviço. Vou abreviar, pois aqui não
trago nada mais que um resumo da história, cujas páginas vibrantes serão um dia
escritas na integra.
E, então, vimos o general de Pellieux, depois o
comandante Ravary, conduzir uma investigação criminosa em que os canalhas foram
purificados, e os honestos, manchados. Logo depois, o Conselho de Guerra foi
convocado.
Como se pode esperar que um Conselho de Guerra
corrija o erro de outro Conselho de Guerra?
E nem estou me referindo aqui à escolha dos juízes.
A ideia superior de disciplina, que ocorre no sangue desses soldados, não
bastaria por si só invalidar sua capacidade de julgar imparcialmente? Quem fala
disciplina, fala obediência. Quando o ministro de Guerra, a principal
autoridade, estabeleceu publicamente, sob os aplausos da representação
nacional, a autoridade do julgamento, não se pode esperar que um Conselho de
Guerra o desminta. Hierarquicamente, é impossível. O general Billot
influenciou os juízes com a sua declaração, e eles a julgaram como se devessem
partir para o ataque, sem refletir. A opinião preconcebida, que levaram para
julgamento, é evidentemente essa: “Dreyfus foi condenado por traição por um
Conselho de Guerra, é, portanto, culpado; e nós, O Conselho de Guerra, não
podemos declará-lo inocente, pois sabemos que reconhecer a culpa de Esterhazy
é proclamar a inocência de Dreyfus”. Nada os demoveria dessa ideia.
Proclamaram uma sentença iniqua, que pesará para
sempre sobre os nossos conselhos de guerra e que manchará a suspeita daqui em
diante todas as decisões. O primeiro Conselho de Guerra não foi inteligente;
mas o segundo é forçosamente criminoso. Sua desculpa, repito, é que a
autoridade principal já tinha decidido, declarando inatacável o julgamento
anterior, santo e superior aos homens, de modo que os inferiores não podiam
dizer o contrario.
Falam-nos da honra do exército, querem que nós o
amemos e o respeitemos. Há!, claro, o exército que se erguerá diante da
primeira ameaça, que defenderá o território francês, ele é o povo, e não
sentimos por ele nada além de ternura e respeito. Mas não se trata dele, quem,
em nossa necessidade de justiça, desejamos justamente a dignidade. Trata-se
aqui do sabre, o senhor que, quem sabe, nos dará amanhã. Mas beijar com devoção
seu punho, ó deus, isso não!
Já o demonstrei: o caso Dreyfus foi o caso do Ministério
da Guerra; um oficial de Estado-Maior, denunciado por seus colegas do
Estado–Maior, condenado sob pressão dos chefes do Estado-Maior. E mais uma vez:
ele não pode ser inocentado sem que todo o Estado-Maior seja culpado. Também os
ministérios, por todos os meios imagináveis, com campanhas nos jornais, com
comunicados e tráfico de influência, só cobriram Esterhazy para culpar Dreyfus
uma segunda vez. Ah! o governo republicano deveria pôr no olho da rua esse
bando de jesuítas, como o próprio general Billot os chama!
Onde está o ministério verdadeiramente forte, de
um patriotismo sábio, que terá a coragem de tudo renovar e recriar? Quanta
gente não conheço que, diante de uma possível guerra, treme de angústia sabendo
em que mãos está a defesa nacional? E a que ninho de baixarias, fofocas e
esbanjamentos está entregue esse lugar sagrado, onde se decide o futuro da pátria?
Assusta o que o caso Dreyfus acabou revelando, esse sacrifício humano de um
infeliz, de um “Judeu porco”! Ah!, que agitação de demência e imbecilidade, de imaginações
estúpidas, de práticas de políticas mesquinhas, de costumes inquisitoriais e tirânicos,
a satisfação de alguns oficiais agaloados esmagando a nação com suas botas,
enfiando goela abaixo seu grito de verdade e justiça, sob o pretexto mentiroso
e sacrílego da razão de estado!
E é um crime ainda terem se apoiado na impressa
imunda, terem se deixado defender por toda a canalha de Paris, de modo que é
essa canalha que triunfa insolentemente, diante da derrota do direito e da
simples probidade. É um crime terem acusado de perturbar a França aqueles que
a querem generosa, na vanguarda das nações livres e justas, quando tramaram
eles próprios a impudente conspiração para impor o erro ao mundo inteiro. É um
crime confundir a opinião pública, utilizar para uma sentença fatal essa opinião
pública que foi corrompida até o delírio. É um crime envenenar os pequenos e
humildes, exasperar as paixões de reação e de intolerância, abrigando-se atrás
de um odioso antissemitismo, de que a grande França liberal dos direitos do
homem sucumbirá, se não for curada. É um crime explorar o patriotismo para as
obras do ódio; é um crime, por fim, fazer do sabre o deus moderno, quando toda
a ciência humana está a serviço da obra iminente da verdade e da justiça.
Essa verdade, essa justiça, que tão apaixonadamente
desejamos, que aflição vê-las assim esbofeteadas, mais desprezadas e mais
obscurecidas! Desconfio do desmoronamento que deu na de Scheurer-Kestner, e
acredito que ele acabará sentido remorsos, o de não ter agido
revolucionariamente no dia da interpelação no Senado, revelando o que sabia,
para pôr tudo abaixo. Foi o grande homem de bem da história, o homem de vida
leal, acreditou que a verdade se bastaria a si própria, sobretudo quando ela
lhe aparecia clara como a luz do dia. De que valeria todo o transtorno, se logo
o sol a tudo esclareceria? E foi por essa serenidade confiante que foi tão
cruelmente punido. O mesmo para o tenente-coronel Picquart, que, por um
sentimento de grande dignidade, não quis publicar as cartas do general Gonse.
Esses escrúpulos o tornam ainda mais honrado quando sabemos que, enquanto ele
se mantinha respeitoso na disciplina, seus superiores o faziam cobrir-se de
lama, instruindo eles mesmos o processo, da maneira mais inesperada e
ultrajante. Há duas vítimas, dois homens corajosos, dois corações simples, que
se entregaram a Deus, enquanto o Diabo se movimentava. E até mesmo se viu, da
parte do tenente-coronel Picquart, essa ignomínia: um tribunal francês, depois
de ter permitido que o promotor atacasse publicamente uma testemunha,
acusando-a de todos os crimes, apesar à audiência secreta justamente quando a
testemunha começou a se explicar e a se defender. Afirmo ser este mais um
crime, um crime que provocará a indignação da consciência universal.
Decididamente, nossos tribunais militares têm uma ideia muito particular de justiça.
Essa é, pois, a simples verdade, senhor
Presidente, e ela é assustadora, e marcará sua presidência como uma mancha.
Desconfio que o senhor não pode fazer nada esse respeito, que é prisioneiro da
Constituição e de seus assessores. Mas tem ainda assim um dever como homem, no
qual pensa, e que cumprirá. Não que eu duvide, aliás, nem um pouco, que a
verdade triunfará. Repito-o, e com uma certeza ainda mais veemente: a verdade
está apenas a caminho e ninguém a deterá́. As coisas estão apenas começando,
pois apenas agora os fatos estão claros: de um lado, os culpados que não querem
que a justiça se faça; de outro, os honestos que darão sua vida para que ela se
faça. Já o disse antes, e vou repeti-lo aqui: quando a verdade fica soterrada,
ela toma corpo, e ganha tal força explosiva que, quando explode, leva tudo
consigo. Veremos se o que acaba de ser preparado não será́ mais tarde o mais
retumbante dos desastres.
Mas essa carta já vai longe, senhor Presidente, e
é hora de concluí-la.
Acuso o comandante du Paty de Clam de ter sido o criador diabólico do erro judicial,
inconscientemente, quero crer, e ter saído em defesa de sua obra nefasta,
durante três anos, por maquinações as mais estapafúrdias e as mais culposas.
Acuso o general Mercier de ter se tornado cúmplice,
ainda que por franqueza de carácter, de uma das maiores iniquidades do século.
Acuso o general Billot de ter tido entre as mãos as
provas indubitáveis da inocência de Dreyfus e de tê-las ocultado, tornando-se,
pois, culpado de crime de lesa-humanidade e lesa–justiça, por motivos políticos
e para livrar um Estado-Maior comprometido.
Acuso o general de Boisdeffre e o general Gonse de
tornarem-se cúmplices do mesmo crime, um sem dúvida por paixão clerical, o
outro por esse corporativismo que faz do Ministério da Guerra uma arca santa inatacável.
Acuso o general de Pellieux e o comandante Ravary
de terem feito uma investigação criminosa, um inquérito da mais monstruosa
parcialidade e do qual temos, no relatório do segundo, um monumento perene da
mais ingênua audácia.
Acuso os três especialistas sem grafologia, os
senhores Belhomme, Varinard e Couard de terem emitido pareceres mentirosos e
fraudulentos, a menos que um laudo médico os declare tomados por alguma
patologia da vista e do juízo.
Acuso o Ministério da Guerra de ter promovido na
imprensa, particularmente no L’éclair
e no L’Écho de Paris, uma campanha abominável,
para manipular a opinião pública e acobertar sua falha.
Acuso por fim o primeiro Conselho de Guerra de ter
violado o direito, condenando um acusado com base em um documento secreto, e
acuso o segundo Conselho de Guerra de ter encoberto essa ilegalidade, por ter
recebido ordens, cometendo por sua vez o crime jurídico de absolver
conscientemente um culpado.
Fazendo essas acusações, não ignoro enquadrar-me
nos artigos 30 e 31 da lei de imprensa de 29 de julho de 1881, que pune os
delitos de difamação. E é voluntariamente que eu me exponho.
Quanto às pessoas que eu acuso, não as conheço,
nunca as vi, não nutro por elas nem rancor nem ódio. Não passam para mim de
entidades, de espíritos da malevolência social. O ato que aqui realizo não é
nada além de uma ação revolucionária para apressar a explosão de verdade e justiça.
Não tenho mais que uma paixão, uma paixão pela
verdade, em nome da humanidade que tanto sofreu e que tem direito à
felicidade. Meu protesto inflamado nada mais é que o grito da minha alma. Que
ousem, portanto levar–me perante ao tribunal do júri e que o inquérito se dê
à luz do dia!
É o que espero.
Receba, senhor Presidente, minhas manifestações de
mais profundo respeito.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ZOLA, Émile (1840-1902). Zola /Rui Barbosa Eu
acuso! O Processo do Capitão Dreyfus. Org. e trad. Ricardo Lísias. São
Paulo: Hedra, 2007. p. 35 a 53
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