Sadegh Hedayat (1903-1951) escritor iraniano praticamente desconhecido no
Brasil. Profundo conhecedor da literatura ocidental. Escreveu “A coruja cega”
enquanto vivia em Bombai, India um texto que é considerado por muitos como o mais importante
texto literário escrito em persa. Foi censurado em seu pais pelas alusões ao
budismo e ao hinduísmo. Neste texto é evidente a fascinação do autor com a
morte o que em certo sentido explica o seu suicídio em Paris no ano de 1951. Diante da falta de uma tradução em português eu mesmo traduzi.
A coruja cega[1]
Sadegh Hedayat
Tradução Marcelo Antinori[2]
Neste mundo perverso, cheio de infelicidade e miséria,
pensei que ao menos uma vez, um raio de sol iluminara minha vida. Talvez não um
raio de sol, mas quem sabe um lampejo fugaz, ou mesmo uma estrela cadente, que
reluziu sobre mim na forma de uma mulher – ou de um anjo. No brilho daquele momento,
que durou poucos segundos, pude confirmar a má sina de minha vida e conhecer
sua real dimensão e grandeza. Depois, a claridade esvaneceu dentro do sombrio
abismo a que fui predestinado. Não, eu não pude guardar aquele brilho de luz
para mim.
Foi há três meses, não, dois meses e quatro dias atrás,
que eu a perdi. Ainda assim a memoria de seus olhos encantadores, não, a
memoria da envolvente malicia de seus olhos, permaneceu indelével em meus
pensamentos. Como poderia esquecer alguém tão importante para a minha vida?
Não, jamais direi seu nome. Ela, com seu corpo
delicado e aqueles grandes olhos intensos, cheios de magia, que incendiaram
minha vida e depois lenta e dolorosamente a fizeram esvanecer, não mais
pertencem a este mundo infeliz. Não, eu não vou desonrar seu nome com vãs coisas
terrenas.
Assim que ela partiu eu me distanciei de todos, desde
os mais estúpidos até os mais exitosos, e para esquece-la procurei refugio no
vinho e no opio. Minha vida se confinou, e ainda se confina, às quatro paredes
de meu quarto. Passei minha vida entre quatro paredes.
Vivi cada um de meus dias entre os desenhos que fiz na
tampa de caixinhas de canetas e o consumo de vinho e de opio. Fui eu mesmo quem
escolheu está estupida profissão de desenhar em caixinhas de canetas para passar o tempo e iludir a mim mesmo.
Por sorte a casa em que vivo fica fora dos limites da
cidade, em uma vizinhança calma e silenciosa, distante do corre-corre da vida.
Uma propriedade isolada e cercada de antigas ruinas. Entre a casa e o canal
podem se ver algumas poucas casas, mas a cidade apenas começa depois do canal. Às
vezes me pergunto quem foi o idiota – ou louco – que construiu esta casa tempos
atrás, mas o curioso e que, ao fechar os olhos, posso recordar cada detalhe de
sua estrutura e mesmo sentir seu peso sobre meus ombros. É o tipo de casa que
poderia ter sido desenhada na tampa de uma antiga caixinha de canetas.
Preciso descrever estes detalhes para me assegurar de
que não são apenas fantasias de minha imaginação. Preciso explica-los para que minha
sombra que se projeta na parede possa compreende-los.
Começo por dizer que antes do que aconteceu o único
prazer que tinha dentro das quatro paredes de meu quarto era o de fazer
desenhos coloridos na tampa das caixinhas. E era assim que passava meu tempo.
Mas quando vi aqueles olhos, quando a vi, tudo o mais perdeu completamente valor,
importância ou mesmo significado.
O que me parecia estranho era que, por alguma razão
desconhecida, desde que comecei, todos meus desenhos representavam o mesmo
tema. Um cipreste e à sua sombra, um velho homem sentado como um yogi. Ele usava um turbante na cabeça, tinha
o corpo coberto por um manto, e o dedo indicador da mão esquerda estava
encostado em seus lábios demonstrando surpresa. Em frente a ele, uma jovem se
inclinava, com um longo vestido negro, oferecendo-lhe uma flor. Entre os dois, um
pequeno córrego. Seria esta a recordação de uma imagem que realmente vi, ou
seria apenas a lembrança de um sonho? Não sei. Apenas sei que aquele homem e
aquela cena estavam eternamente presentes em minha pintura. Minha mão desenhava
aquela imagem inconscientemente e o que me parecia ainda mais incrível é que as
pessoas compravam meus desenhos. Cheguei mesmo a enviar alguns para Índia,
através de um tio paterno, que os vendia e me mandava o dinheiro.
De alguma forma aquela imagem parecia distante e ao
mesmo tempo curiosamente familiar. Não consigo recordar sua origem mas lembro
que a partir de um certo momento decidi anotar minhas recordações. Aquela
decisão não teve nada a ver com meus desenhos. Foi bem mais tarde. Mas depois
da decisão praticamente deixei de desenhar caixinhas de caneta e passei a
dedicar meu tempo a escrever. Isto ocorreu a dois meses, ou melhor, a dois
meses e quatro dias atrás.
Era o ultimo dia das festas do inicio do ano. Todos
tinham ido festejar no campo e tinha fechado minha janela para me concentrar nos
desenhos. Um pouco antes do por do sol, estava trabalhando, quando subitamente
a porta se abriu e meu tio entrou no quarto. Foi ele quem disse que era meu tio,
pois nunca o tinha visto antes. Aparentemente ele tinha estado viajando desde a
minha infância; era um capitão de navio ou algo parecido. No primeiro momento
imaginei que estivesse ali a negócios. Além de capitão ele era também um
mercador. De qualquer modo, ele era um homem velho e arqueado. Usava um
turbante e um manto amarelo enrugado nas costas. Seu rosto estava parcialmente
coberto por um lenço que levava em torno ao pescoço, mas que deixava à vista
seus olhos inchados e vermelhos, a barba quase inexistente e algumas feridas em
seus lábios. Tinha uma remota semelhança comigo, algo assim como o reflexo de
um espelho distorcido. Sempre imaginei que meu pai tivesse uma aparência como
aquela.
Ao entrar ele atravessou o quarto e sentou-se no chão
com as pernas cruzadas. Pensei em ser gentil. Acendi a luz e procurei
inutilmente alguma coisa que lhe pudesse oferecer. Eu sabia que não havia nada;
tinha consumido todo o vinho e todo opio. De súbito, meu olhar se voltou para a
mais alta das prateleiras. Como se fosse uma revelação, recordei uma velha
garrafa de vinho que recebera de meus pais. Se lembro bem, era um vinho
produzido no ano do meu nascimento. Tinha esquecido aquilo completamente e nem
lembrava que aquela garrafa ainda estava ali.
Para alcançar a prateleira, subi em um pequeno tamborete
e ao pegar a garrafa notei uma abertura, como uma entrada de ar, que me
permitia ver fora da casa. Ali, no jardim, ao lado da minha casa, pude ver um
velho homem sentado de pernas cruzadas sob a sombra do cipreste e uma jovem
mulher – ou melhor, um anjo dos céus – em frente a ele. Ela estava inclinada,
entregando a ele uma flor com sua mão direita enquanto ele parecia morder
levemente o dedo indicador de sua mão esquerda.
A jovem, que estava de frente para mim, não parecia
dar atenção ao que acontecia. Seus olhos estavam abertos mas pareciam olhar o
vazio. Em seus lábios, um sutil sorriso involuntário, como se estivesse
pensando em alguém que não estava ali. Foi ali, equilibrado sobre o tamborete, que pela primeira vez vi
seus olhos aterradores. Eles pareciam expressar simultaneamente encanto e
reprovação, e imediatamente me atraíram, com a expressão de ameaça e promessa,
o tênue lampejar de vida. Sugando e aniquilando em suas profundezas tudo o que
restava de minha existência.
Aquele irresistível espelho, sorveu meu ser com uma
força inumana. Seus olhos curvados, com um brilho sobrenatural, me aterrorizavam
e ao mesmo tempo atraiam, como se ela tivesse presenciado com eles,
acontecimentos sobrenaturais, muito além da compreensão de meros mortais. Sua
testa era larga e suas sobrancelhas finas se encontravam acima do nariz. Seus
lábios carnudos e ligeiramente entreabertos como se apenas tivessem terminado
um longo e apaixonado beijo e ainda estavam insatisfeitos. Seus cabelos estavam
despenteados e alguns fios caiam sobre seu rosto. A delicadeza de seus braços e
a desatenção em seus movimentos pareciam indicar que ela não continuaria neste
mundo por muito tempo. Apenas as dançarinas de templos hindus conseguiam se
movimentar com a mesma graça e leveza.
Sua atitude plácida evidenciava uma felicidade cheia
de dor e a distinguia de qualquer outro ser. Para mim ela era como a imagem de
uma alucinação de opio capaz de me despertar paixão. Seu corpo magro e alto parecia
ter uma linha ao centro separando simétrica e perfeitamente seus ombros,
braços, seios e pernas. Usava um vestido negro que amoldava e envolvia seu
corpo. Quando a vi, senti que ela queria saltar o pequeno córrego que a
separava do velho homem, mas hesitava. O velho começou a gargalhar histericamente.
Sua gargalhada era repugnante e me arrepiava. Como a expressão de seu rosto não
se alterava, a gargalhada parecia surgir de dentro dele.
Com medo, saltei de cima do tamborete com a garrafa de
vinho nas mãos. Tremia de medo e prazer. Como se tivesse acordado de um sonho ao
mesmo tempo agradável e assustador. Coloquei a garrafa no chão e com as duas
mãos cobri meus olhos. Por quantos minutos, ou quantas horas, fiquei ali eu não
sei. Quando abri os olhos outra vez, meu tio tinha saído, deixando a porta do
quarto escancarada como a boca aberta de um cadáver. O som da gargalhada seca do
velho homem continuava ecoando em meus ouvidos.
Estava começando a escurecer e a luz da lamparina
tremulava. Aquele agradável e assustador tremor que sentira, não tinha
desaparecido e foi a partir daquele momento que minha vida mudou radicalmente
de rumo. Um rápido olhar tinha sido suficiente para provocar àquela mudança.
Aquele anjo celestial, tinha me tocado mais profundamente do que qualquer ser
humano poderia compreender.
Perdi qualquer controle que ainda tivesse sobre mim.
Além do que, sentia como se soubesse de há muito tempo seu nome. A força de
seus olhos, sua expressão, seu perfume e seus movimentos; tudo me parecia
familiar. Como se minha alma em uma outra existência e dentro de um universo de
sonhos, tivesse caminhado lado a lado à sua, e nossas almas tivessem a mesma
origem e substancia e por esta razão estivessem predestinadas a se unir outra
vez. Devo ter vivido muito próximo a ela.
Em nenhum momento pensei em toca-la. Me satisfazia com
aqueles raios invisíveis que emanavam de nossos corpos e se fundiam no ar.
Seria este um daqueles momentos compartilhados por amantes ao sentir que antes
já se haviam encontrado e que uma misteriosa relação existia entre eles? Neste
mundo, tudo o que queria era o seu amor. Será que outra pessoa poderia provocar
aquela sensação em meu peito? Mas a gargalhada seca e repugnante daquele velho
homem tinha rompido o elo que havia entre nós.
Passei a noite pensando nela. Varias vezes me
aproximei da estante onde estava a abertura na parede mas o temor à gargalhada
do velho me fez recuar. No dia seguinte, a mesma coisa. Não conseguia pensar em
mais nada. Deveria desistir de vê-la outra vez. Finalmente no terceiro dia, com
muito medo e hesitação, decidi colocar a garrafa de volta a prateleira, mas
quando subi e olhei, vi apenas a parede escura e negra, uma parede tão negra
quanto a escuridão que sempre permeou minha vida. Não havia abertura, orifício
ou passagem para o exterior. Aquela abertura retangular que havia visto passara
a ser parte da solida parede como se nunca tivesse existido. Permaneci em cima
do tamborete examinando a parede e ainda que batesse com meus punhos, e examinasse
com atenção cada um dos cantos, ajudado pela luz da lamparina, não encontrei o
menor traço daquela abertura. Minhas batidas eram inúteis, aquela solida e
grossa parede parecia ser feita de chumbo.
Poderia eu abandonar a esperança de vê-la outra vez? Certamente
que não. Mas como? A partir daquele momento passei a viver como uma alma
atormentada. Todo meu desejo, minha espera e minha busca foram em vão. Como o
assassino que regressa à cena do crime, caminhei em torno da casa e por toda
vizinhança; não apenas uma ou duas vezes, mas sim por dois meses e quatro dias.
Tantas vezes caminhei em círculos, como uma galinha degolada que era capaz de
identificar cada pedra e cada graveto das redondezas, mas nunca pude encontrar
o cipreste, o córrego ou as duas pessoas que tinha visto ali.
Por noites e noites me ajoelhei no chão e olhando para
a lua pedi e supliquei. Quem sabe poderia encontrar nas arvores, nas folhas ou
nas pedras algum sinal daquela mulher, mas foi inútil. Ela não pertencia a este
mundo. A água com que ela molhava os cabelos provinha certamente de uma fonte única
e desconhecida, talvez magica. O tecido de seu vestido não era de lã ou algodão
e tampouco tinha sido costurado por mãos humanas. Ela era um ser diferente e
especial, e mesmo as flores que carregava na mão não eram iguais àquelas que
florescem nos jardins. Compreendi que seu rosto empalideceria se fosse molhado
pela água de um rio qualquer e que seus finos dedos esfarelariam como velhas
pétalas se ela fosse forçada a colher as flores comuns de um jardim. Compreendi tudo. Compreendi que aquela jovem,
aquele anjo, era uma fonte de perfeição e inspiração para mim. Um ser delicado
e intangível que despertou em mim uma adoração e que, sua beleza, provavelmente
se esvaneceria diante do olhar de outra pessoa qualquer.
Desde o dia em que a perdi. Desde o momento em que
aquela abertura se fechou e uma pesada e solida parede, tão impenetrável quanto
o chumbo, se ergueu entre nós, minha existência perdeu qualquer sentido ou
direção. Apesar da beleza de seus olhos e da profundeza com que eles me tocaram
– ainda que tenha sido um encontro fugaz em que ela nem chegou a me ver – a
necessidade de reencontrar aqueles olhos me consumia. Bastaria vê-los outra vez
para que todos os enigmas teológicos e filosóficos se resolvessem e não
houvesse mais em todo mundo um único segredo ou mistério que eu não fosse capaz
de compreender.
A partir daquele momento passei a beber mais e a
consumir mais opio, mas tampouco estes remédios que aliviam o desespero
conseguiram paralisar meus pensamentos. Não conseguia esquecê-la e dia apos
dia, hora apos hora e mesmo a cada minuto sua imagem e seu rosto se
materializavam frente a mim ainda mais fortes e mais significativos do que
antes.
Como poderia esquece-la? Pouco importa se meus olhos
estavam abertos ou fechados, se estava desperto ou dormindo, sua imagem
permanecia em frente a mim. Não consegui
descansar. Como poderia? Criei o habito da caminhar todos os dias ao por do
sol. Ainda que não pudesse explicar a razão, necessitava encontrar outra vez o
cipreste, o córrego e as flores. Me habituei àquelas caminhadas como me
habituara com o opio.
Era como se uma força desconhecida me impulsasse em sua
direção e a cada passo da caminhada era apenas nela que pensava recordando a
imagem que vi naquele dia. Queria encontrar o lugar em que a tinha visto
naquele último dia das festas do inicio do ano. Se encontrasse, se fosse
permitido a mim sentar à sombra daquele cipreste, minha alma voltaria a ter
paz. Mas tudo o que vi por onde andava era desolação, a areia escaldante, a
carcaça de um cavalo e um cachorro que cheirava o lixo. É verdade que a tinha
encontrado? Não. Eu apenas a tinha visto furtivamente através de uma maldita abertura na parede atrás da
prateleira. Me sentia como aquele cachorro cheirando, fuçando e procurando em
meio ao lixo. E quando as pessoas chegavam com mais lixo, ele fugia e se
escondia com medo, voltando depois para continuar sua procura. Me sentia como
ele, apenas que não podia voltar pois a abertura tinha desaparecido. Para mim
era como se ela fosse um ramalhete de flores recém colhidas, jogada por cima de
uma pilha de lixo.
A tarde quando sai para minha caminhada diária, o céu
estava encoberto e começava a garoar. A neblina e as gotas de chuva pareciam
suavizar a intensidade das cores e os detalhes das formas, o que transmitia uma
sensação de alivio e tranquilidade. Como
se a chuva estivesse lavando meus pensamentos sombrios. E aquela noite, o que
não deveria ter acontecido, aconteceu.
Caminhava sem direção e sem mesmo dar atenção ao que
havia em minha volta. Naqueles momento de solidão vi, por alguns breves
minutos, o seu rosto com um olhar vazio, como se um daqueles desenhos que fazia
nas caixinhas de canetas, estivesse tomando forma em meio a nevoa que me
cercava.
Apenas regressei tarde da noite. A nevoa tinha se
tornado mais densa e mal podia ver o chão em que pisava. Ainda assim, por hábito
ou instinto, consegui encontrar o caminho de volta até a casa e quando me
aproximei vi uma mulher vestida de negro sentada no terraço em frente a casa.
Acendi um fosforo e ao olhar aquela figura reconheci
seus olhos curvados – dois grandes olhos negros em um rosto delicado da cor do
luar. Procuravam olhar com intensidade, como se nada vissem e mesmo que nunca
antes a tivesse visto, eu a teria reconhecido. Não, aquilo não era uma ilusão.
Aquela mulher vestida de negro era ela. Fiquei paralisado, ao mesmo tempo fascinado
e amedrontado. Me senti como em um daqueles sonhos em que lutamos para
despertar e não conseguimos. O fosforo queimou meus dedos, trazendo-me de volta
à realidade. Coloquei a chave, abri a fechadura e permaneci em pé ao lado da
porta.
Ela se levantou e como se aquilo fosse algo habitual,
caminhou até a porta, abriu e entrou. Eu a segui. Acendi a lamparina e pude
vê-la caminhado em direção a cama e deitando sobre ela. Permaneci sem saber se
ela estava me vendo ou se ouvia a minha voz. Ela não demonstrava medo e
tampouco hesitação. Parecia ter sido levada ali por alguma força qualquer. Será
que ela estava doente? Será que ela estava perdida? Ela caminhava como uma
sonambula e não parecia estar ali por sua própria vontade.
O que senti naquele momento é algo que ninguém mais
poderia compreender. Senti uma agradável e indescritível dor. Não, aquilo não
era uma ilusão. Aquela mulher que sem hesitação e sem palavras tinha entrado no
meu quarto era a mesma mulher que antes tinha visto pela abertura da parede. Sempre
imaginara nosso primeiro encontro exatamente como ele estava acontecendo. Me
sentia como em um interminável e profundo sono, pois apenas em um sono profundo
poderia ter um sonho como aquele. O silencio pesava sobre mim como a vida
eterna; pois no plano da eternidade, sem inicio e sem final, não creio que
exista algo como a palavra.
Ela possuía algo sobrenatural. Quando olhava para seu
rosto parecia esquecer de todos os demais rostos. Bastava olhar para que meu
corpo tremesse e minhas pernas fraquejassem. Eu podia ver toda dolorosa
historia de minha vida através de seus olhos, imensos e brilhantes como dois
enormes diamantes, umedecidos em lagrimas. Em seus negros olhos encontrei a
noite eterna e a escuridão impenetrável que vinha buscando, e mergulhei sem
medo naquela extasiante e maravilhosa escuridão. Senti como se a energia fosse
drenada de meu corpo e o chão se abrisse sob meus pés. Sabia que ao cair sentiria
um prazer indescritível e prolongado com a queda.
Meu coração parou. Segurei minha respiração. Tinha
medo que se respirasse ela desapareceria como uma nuvem. Seu silencio era
devastador. Era como se uma parede de vidro tivesse sido erguida entre nós e aquele
segundo, aquela hora, ou aquela eternidade estivessem me sufocando.
Seus olhos foram lentamente se fechando, exaustos,
talvez por estar vendo coisas que ninguém mais tinha o poder de ver, muito além
da vida e da morte. E quando finalmente eles se cerraram, me senti como um náufrago
que em luta desesperada conseguira subir outra vez à superfície para respirar.
Percebi que estava com febre e com a manga limpei as gotas de suor de minha
testa.
Seu rosto mantinha a mesma expressão tranquila, mas
parecia ainda mais frágil. Ela, ali em
minha cama, mordia ligeiramente o dedo indicador da mão esquerda com seu corpo
encolhido como a lua. Por baixo de seu fino vestido eu podia perceber suas
pernas, seus braços, seus seios e cada detalhe de seu corpo.
Como seus olhos estavam fechados, inclinei me sobre
ela, mas ainda que estivesse próximo, sentia que ela estava infinitamente
distante. Repentinamente me dei conta de que não sabia nada sobre os segredos
de seu coração e que nenhuma relação havia entre nós. Tentei dizer algo, mas
tive medo que o som de minha voz pudesse ferir seus ouvidos acostumados a suave
e distante musica celestial.
Pensei que talvez ele estivesse com fome ou com sede.
Busquei inutilmente por algo que lhe pudesse oferecer. Eu sabia que não tinha
nada na casa. Subitamente, como em uma revelação, recordei a velha garrafa de
vinho que recebera de meus pais. Subi no tamborete para pega-la. Caminhei na
ponta dos pés até a cama. Ela estava dormindo como uma criança exausta. Dormia
profundamente. Abri a garrafa e, docemente, entornei o vinho em sua boca.
Uma sensação de paz tomou conta de mim. Olhando para
aqueles olhos fechados senti como se o demônio que sempre me torturara e o
tormento que pressionava minhas entranhas com suas garras de ferro tivessem
adormecido. Aproximei a cadeira da cama para poder olhar de perto seu rosto.
Que rosto infantil! Que expressão indecifrável! Seria possível que aquela jovem
mulher, ou talvez aquele anjo torturador – de que mais poderia chama-la? –
Seria possível que ela tivesse uma dupla natureza? Como podia ela estar tão
tranquila e tão entregue?
Eu podia sentir o calor de seu corpo e o perfume que
exalava de seus cabelos. Já não era mais
capaz de controlar minhas mãos. Toquei com elas os fios que caiam sobre sua testa
e depois deixei que meus dedos acariciassem seus cabelos. Eles estavam frios e
pastosos. Extremamente frios. Como se ela estivesse morta há dias. Eu não estava
enganado. Ela estava morta! Coloquei minha mão, por dentro de seu vestido,
sobre seu peito e sobre seu coração. Ele não palpitava. Coloquei o espelho em
frente a seu nariz para ver se respirava e não havia o menor traço de vida.
Pensei em aquece-la com o calor do meu corpo,
transferindo-lhe minha vida e recebendo em troca a frieza da morte, talvez
assim conseguisse que minha alma se juntasse a seu corpo. Tirei minhas roupas e
deitei na cama ao lado dela. Como a raiz da mandrágora, macho e fêmea, nossos
corpos se uniram. Sua boca estava gélida e amarga. Todo seu corpo estava frio
como uma pedra de gelo. Senti meu sangue congelando nas veias e o frio
penetrando profundamente em meu coração. Ao perceber a inutilidade de meu
esforço, sai da cama e me vesti. Não, aquilo não era uma ilusão. Ela tinha
vindo até meu quarto e à minha cama para entregar seu corpo. Ela me entregou
seu corpo e sua alma. Ambos.
Enquanto ela estava viva, e enquanto seus olhos
transbordavam com vida, eu fui torturado pela memoria daqueles olhos, mas
agora, sem movimentos nem sensações, fria e com os olhos fechados, foi ela quem
se entregou a mim – com seus olhos fechados.
Aquela era a mesma criatura que tinha envenenado minha
vida; ou talvez minha própria natureza me predestinara a ser envenenado e não poderia ter qualquer outro tipo de
existência. E ali, em meu quarto, ela entregou seu corpo e sua sombra.
Lentamente sua frágil e transitória alma, que não
possuía nenhuma relação com o mundo material, deixou seu vestido negro e
enrugado – o corpo a que tinha sido condenada – para juntar-se ao mundo das
sombras errantes e talvez tenha levado consigo minha alma.
O que tinha restado ali era apenas seu corpo, sem
sensações ou movimentos. Seus músculos relaxados, suas veias, seus tendões e
ossos prontos para serem enterrados e apodrecer em um delicioso banquete de
ratos e formigas em baixo da terra. E naquele maldito e miserável quarto que
mais parecia um tumulo, em meio a escuridão da noite eterna que me envolvia,
enterrado entre aquelas paredes, tive de passar uma longa, sóbria e infindável
noite ao lado de um corpo – o corpo dela.
Senti como se durante a eternidade, de seu inicio até o
final, e desde o momento de minha própria criação, dividira aquele quarto
escuro com um corpo morto, um cadáver imóvel sem sentimentos.
Naquele momento uma nuvem cobriu meus pensamentos. Dentro
de mim senti uma nova – e especial – forma de vida. De alguma forma minha
existência estava conectada com tudo o que existia a minha volta, até mesmo as
sombras que me cercavam. Me senti em intima e inviolável comunhão com a natureza e todas as criaturas que nela viviam.
Como uma corrente elétrica que continuamente transferisse impulsos entre os
elementos da natureza e eu. Nenhum pensamento ou imagem era estranho para mim. Me
sentia capaz de entender, sem dificuldade, os segredos das antigas pinturas, os
mistérios de complexas filosofias e a eterna renovação das formas e dos costumes.
Tinha me tornado parte da evolução da terra e dos planetas, participava do
crescimento das plantas e de todas atividades do reino animal. Passado e
futuro, o próximo e o distante, tudo se fundia com minhas emoções e
sentimentos.
Em momentos como este somos tentados a nos refugiar em
antigos hábitos ou paixões. O bêbado se embriaga, o escritor escreve, o
escultor esculpe, cada um deles alivia sua ansiedade e sua dor, refugiando–se
em sua obsessão, e é este o momento em que os verdadeiros artistas são capazes
de se superar e produzir a obra de suas vidas. Mas que poderia fazer? Eu que
nunca tive talento, um pobre desenhador de caixinhas de canetas. Como poderia
criar uma obra prima se tudo o que fazia eram pequenos desenhos sem vida, cada
um idêntico ao outro. Mas ainda assim sentia uma explosão de talento e energia
em meu peito, um entusiasmo e uma criatividade indescritíveis. Queria desenhar
em um pedaço de papel aqueles olhos que agora estavam fechados para sempre e
guarda-lo apenas para mim. Aquele acumulo de sensações me obrigava a agir. Como
poderia resistir àquela inspiração sendo um artista trancado em um quarto com
um cadáver? E aquele pensamento me encheu de prazer.
Apaguei a lamparina e acendi algumas velas em torno a
seu rosto. Com a luz tremula das velas e aquele oscilar de luz e sombra, seu
rosto parecia ainda mais tranquilo, etéreo e misterioso. Com meu material de
trabalho e algumas folhas de papel me aproximei da cama – naquele momento era
sua cama. Queria, com minhas próprias mãos, reproduzir as formas que via e que
estavam condenadas a uma lenta e irreversível degradação. Sem movimentos e nem
emoções. Queria transmitir sua essência para o desenho. Queria escolher em sua
expressão aquelas linhas que me sensibilizavam. Uma pintura, não importa se um
simples desenho ou rascunho, deve causar impacto. Deve ter alma. E eu,
acostumado apenas a reproduzir um único desenho na tampa das caixinhas, tinha
de superar aquele desafio. Tinha que dar uma forma concreta, visível e
compreensível, a imagem daquela jovem mulher que se formara em minha mente.
Iria olhar apenas uma vez mais e depois fecharia os olhos para desenhar no
papel apenas os traços gravados em minha mente. Desta forma talvez eu poderia
encontrar alivio para meus tormentos. Estava inconscientemente buscando refugio
em um mundo sem movimentos, onde apenas existiam linhas e formas.
O objeto de minha pintura – o cadáver de uma mulher –
tinha uma curiosa afinidade com minha sinistra forma de desenhar. Sempre fui um
pintor de naturezas mortas. Mas ali havia um desafio: seria capaz de desenhar
aqueles olhos que agora estavam cerrados? Será que minha memoria os tinha
guardado com claridade?
Não sei quantas vezes naquela madrugada desenhei o seu
rosto. Apenas lembro que nenhum deles me satisfez e por isso rasguei todos tão
pronto terminava de desenha-las. Não sentia cansaço e tampouco percebi o tempo
passar.
Quando os primeiros lampejos de claridade entraram
dentro do quarto eu trabalhava em um desenho que me parecia melhor do que os
outros. Mas e os olhos? Aqueles olhar que me encarava com reprovação como se eu
tivesse cometido um pecado imperdoável. Não conseguia desenhar aqueles olhos.
Toda lembrança deles desaparecera. Qualquer esforço era inútil. Não importava o
tempo que passasse olhando para seu rosto. Não conseguia recordar a expressão
daquele olhar.
Foi então que seu rosto começou a tomar cor.
Enrubesceu e se avermelhou quase como a cor da carne. Ela voltou a vida. Seus
olhos exuberantes foram lentamente se abrindo. Brilharam como se tivessem luz
própria e olhavam diretamente para mim. Foi a primeira vez em que a senti
consciente da minha presença. Ela olhou para mim e voltou a fechar os olhos.
Ainda que tudo tenha durado apenas um breve momento, foi suficiente para que
pudesse capturar a imagem de seus olhos e reproduzi-la no desenho. Desenhei com
cuidado e aquele desenho não precisei rasgar.
Levantei e me aproximei. Pensei que estava viva e que talvez
por causa de meu amor a vida tivesse renascido em seu corpo, mas ao me
aproximar senti o cheiro de um corpo em decomposição. Alguns vermes já eram
visíveis em sua pele e dois insetos circulavam próximos a luz das velas. Mas se
ela estava morta como é possível que tivesse visto seus olhos? Teria sido uma
alucinação?
Prefiro nem pensar nisto. Para mim o importante era
seu rosto, ou melhor, seus olhos, e agora eu os tinha reproduzido em meu
desenho. Tinha capturado a essência de seu olhar e não necessitava mais aquele
corpo condenado à decomposição e à alimentar ratos e insetos em baixo da terra.
A partir daquele momento eu a podia controlar e não mais dependia dela. A
qualquer momento que desejasse poderia rever seu olhar capturado em meu
desenho. Com carinho guardei a folha de papel dentro de um pequeno cofre onde
costumava guardar meu dinheiro e o escondi dentro do armário.
Os vestígios da longa noite já desapareciam. A noite
tinha cumprido seu destino. Os primeiros gorjeios de alguns pássaros ou talvez
o som das vegetação crescendo já se faziam ouvir. Pálidas estrelas desapareciam
do céu ao mesmo tempo em que sentia o suspiro da manhã em meu rosto e um galo
cantava a distancia.
Que poderia fazer com seu corpo que já começava a se
decompor? O primeiro que me ocorreu foi queima-lo ou quem sabe joga-lo dentro
de algum poço cercado de flores. Mas como faze-lo sem atrair a atenção dos
vizinhos. Além do que não queria que nenhum estranho pudesse vê-la. Teria de
fazer tudo sozinho. Não que aquilo fosse importante para mim, pois minha existência
já não tinha nenhum significado depois de sua morte, mas sim por ela. Ninguém
além de mim deveria ver aquele corpo. Ela veio a meu quarto, entregou a mim seu
corpo frio e sua sombra para que ninguém mais pudesse vê-la e sua imagem não
fosse jamais maculada pelo olhar de estranhos.
Finalmente tive uma ideia, dividir seu corpo em
pequenos pedaços, coloca-lo em uma velha valise e então levar a valise para
algum lugar distante, longe da vista de todos, e ali enterra-la. Sem hesitação,
peguei um longo facão que guardava e, cuidadosamente, rasguei o vestido
negro que como uma teia de aranha a
envolvia e aprisionava. Aquele vestido era a única coisa que a cobria e sem
ele, seu corpo parecia crescer. Separei a cabeça e gotas de sangue frio coagulado
jorraram de sua garganta. Cortei seus braços e pernas e coloquei os pedaços de
seu corpo, tronco e cabeça dentro da valise. Cobri tudo com seu vestido negro,
fechei a valise e coloquei a chave em meu bolso. Senti um alivio. Levantei a
valise para sentir seu peso; estava pesada. Não, eu não conseguiria leva-la
sozinho.
Lá fora tinha voltado a chover. Saí a procura de
alguém e não encontrei uma alma que pudesse me ajudar. Caminhei em meio a nevoa
até que vi um velho homem a sombra do cipreste. Não podia ver seu rosto,
coberto por um xale em volta de seu pescoço. Caminhei em sua direção e antes
que dissesse qualquer coisa ele começou a gargalhar. Uma gargalhada sinistra
que me arrepiou o corpo e depois ouvi sua voz: “Se você procura um carregador,
estou a sua disposição. Sim. Tenho uma carroça também. Todos os dias levo
cadáveres para Shah ‘Abdul’ Azim e os queimo. Sim, também faço caixões. Tenho
caixões de todos os tamanhos que servirão perfeitamente. Estou a sua
disposição. Agora.”
Gargalhou em seguida com tanta força que seus ombros
tremeram. Apontei em direção a minha casa mas, outra vez, ele nem me deu chance
de falar.
“Não é necessário, sei onde você vive. Vamos agora
mesmo.” Ele se levantou e me acompanhou em direção a casa.
Entrei em meu quarto e com grande dificuldade levei a
valise até a porta. Quando voltei vi em
frente a casa uma carroça com dois cavalos negros, tão magros que podia ver
seus ossos. O velho homem com seus ombros curvados estava sentado na carroça
com as rédeas e um longo chicote nas mãos. Ele não se virou para mim. Com
dificuldade coloquei a valise dentro da carroça. Era uma carroça mortuária. Subi
e me sentei no espaço reservado aos caixões com a cabeça apoiada para poder observar
o caminho. Coloquei a valise em meu colo e a segurei firmemente com minhas
mãos.
Ele zumbiu o chicote e os cavalos começaram a andar
ofegantes. O vapor que saia das narinas dos animais formava uma pequena nuvem,
visível, apesar da chuva. Moviam-se em passos lentos. Suas patas finas me
faziam pensar nos braços de um ladrão que tivesse seus dedos cortados e
mergulhados em óleo fervente, tocavam o chão sem fazer ruído. O sinos que os
cavalos carregavam no pescoço pareciam tocar as notas de uma estranha canção.
Senti um alivio em meu corpo, dos pés a cabeça. Um alivio tão profundo e incompreensível
que nem sentia o mover da carroça. Tudo
o que sentia era o peso da valise em meu colo, como se aquele peso tivesse
sempre estado sobre mim.
Uma densa nevoa cobria o caminho. A carroça passou por
montanhas, planícies e rios. Tudo que vi
ao longo do caminho parecia novo e único, algo que jamais tinha visto antes,
nem mesmo em meus sonhos. Em ambos os lados haviam montanhas com picos bem
definidos e estranhas arvores arqueadas e antigas. Ao pé das montanhas, entre
as arvores, haviam casas cinzentas, algumas quadradas e outras triangulares com
escuras janelas escancaradas. Aquelas janelas pareciam o olhar alucinado de um
homem em delírio e havia algo naquelas casas capazes de gelar o coração. Era
como se elas não abrigassem seres humanos e tivessem sido construídas para
acomodar a alma de seres etéreos.
O condutor da carroça parecia estar tomando um atalho
ou talvez um caminho especial que apenas ele conhecia. Em alguns pontos haviam
algumas estranhas arvores cortadas e perto delas umas poucas casas, algumas
baixas outras mais altas, em estranhas formas geométricas, com janelas inclinadas
de onde saiam flores que cobriam as portas e as paredes. Repentinamente aquela
paisagem desapareceu em meio a névoa e mais adiante nuvens pesadas pareciam
pressionar o pico das montanhas e gotas de chuva flutuavam no ar como se fossem
partículas de areia levadas pelo vento.
Depois de viajar por um bom tempo, a carroça parou
próxima a uma colina seca e sem vegetação. Coloquei a valise de lado e desci.
Pude perceber que depois da colina havia um lugar tranquilo e agradável que
mesmo sem nunca tê-lo visto, me parecia familiar, como se existisse em algum
lugar de minha memoria. O chão estava coberto de lírios perfumados. Compreendi
que nunca antes alguém tinha estado ali. Peguei a valise e a coloquei no chão
ao lado da carruagem. O velho condutor se virou para mim:
“Não estamos longe de Shah ‘Abdul’ Azim. Você não
encontrará um lugar melhor do que este para o que necessitas. Ali nem mesmo os
pássaros voam.”
Coloquei a mão no bolso buscando dinheiro para pagar o
condutor. Tudo o que tinha comigo eram três moedas; dois krans e um abassi. O condutor gargalhou e disse:
“Está bem. Não se preocupe. Mais tarde volto para lhe
ver. Sei onde você mora. Mas será que você não tem outros trabalhos para mim?
Posso lhe garantir que sei como cavar buracos. Não se envergonhe. Podemos ir?
Existe um pequeno córrego aqui ao lado do cipreste. Eu posso cavar um buraco no
tamanho exato da valise e depois vamos. “
O velho saltou
da carroça com uma surpreendente agilidade. Levei a valise e juntos caminhamos
até o tronco caído de uma arvore ao lado do regato. Ali ele perguntou “Gosta
deste lugar?” E sem esperar por minha resposta começou a cavar.
Coloquei a valise no chão e olhei para ele espantado.
O velho homem fazia seu trabalho com destreza e extrema agilidade. Enquanto
cavava ele encontrou algo que parecia um jarro de cerâmica. Ele o enrolou em um
lenço e depois comentou: “Aqui está seu buraco. É do tamanho exato da valise. Nem
um centímetro a mais.”
Coloquei minha mão no bolso para pagar pelo seu
trabalho . Tudo o que tinha eram dois krans
e um abassi. O velho homem deu uma
gargalhada que arrepiou minha pele e ouvi sua voz: “Não se preocupe. Eu sei
onde você vive. Além do que, eu encontrei este jarro. Uma boa recompensa. É um jarro
Raq, da antiga cidade de Ray.” E, ainda agachado, ele gargalhou tão forte que
seus ombros tremeram.
Colocou o jarro envolto no lenço por baixo de seu
braço, caminhou agilmente até a carroça e lepidamente nela subiu. O chicote
zumbiu no ar e os cavalos ofegantes começaram a andar. O sinos que carregavam
no pescoço pareciam tocar as notas de uma estranha canção e a passos lentos
eles desapareceram na névoa.
Ali sozinho, senti um alivio, como se um grande peso tivesse
sido tirado de meus ombros. Uma serenidade inspiradora me envolveu dos pés a
cabeça. Olhei em volta. Estava em um lugar cercado de colinas. Em uma delas
haviam ruinas de antigas construções de pedras e corria o leito seco de um rio.
Era um lugar pequeno, tranquilo e aconchegante. Me sentia feliz. Pensei que aquele
seria um lugar adequado para o momento em que aqueles grandes olhos
despertassem de seu sono terrestre, além do que, uma jovem que viveu sua vida
distante de outras pessoas, também após a morte teria de permanecer distante.
Levantei a valise com cuidado e a coloquei dentro do
buraco. O buraco era do tamanho exato, nenhum centímetro a mais. Quis dar uma
ultima olhada dentro da valise. Em torno a mim não havia uma alma sequer. Peguei
a chave em meu bolso e abri a valise.
Quando levantei o vestido negro vi, em meio ao sangue
coagulado e o movimento dos vermes, aqueles dois grandes olhos olhando para mim
sem expressão. Senti todo minha existência sendo sugada para o abismo daqueles
olhos. Rapidamente fechei a valise e a cobri de terra. Quando o buraco estava
coberto, pisoteei varias vezes sobre ele para compactar o chão e em seguida
cobri com lírios perfumados. Coloquei por cima algumas pedras e areia para que
ninguém visse que havia alguma coisa enterrada ali. Fiz aquilo com tanto esmero
que nem mesmo eu poderia reconhecer onde a valise estava enterrada.
Terminado o trabalho olhei para minhas roupas. Elas
estavam amassadas e sujas de barro e sangue coagulado. Tentei limpar as marcas
de sangue. Duas abelhas amarelas voavam ao redor de mim e alguns vermes pareciam
estar grudados em minhas roupas. Tentei limpar uma das manchas de sangue em
minha manga, mas quanto mais passava a língua com saliva mais aquela mancha
escura aumentava. Inexplicavelmente aquela mancha escura se espalhou por toda a
minha roupa e senti o frio do sangue coagulado sobre mim.
O por do sol se aproximava e caia uma chuva fina.
Caminhei sem pensar seguindo as marcas da roda da carroça. Quando escureceu, e
já não mais via as marcas no chão, continuei caminhando devagar em meio a
escuridão. Caminhava como alguém em um sonho, sem saber para onde ia. Eu a
tinha perdido e desde que vira aqueles olhos negros em meio ao sangue
coagulado, sentia como se minha vida tivesse sido coberta por um véu negro. Aqueles
olhos que tinham iluminado meu caminho já não existiam mais e pouco me importava
se ao final daquela caminhada chegasse ou não a algum lugar.
O silencio era absoluto. Me senti abandonado por toda
humanidade e tentei me refugiar na natureza. Senti que uma conexão se
estabelecera entre a pulsação da natureza, aquela noite profunda que me cercava
e eu. Aquele silencio era uma linguagem incompreensível aos mortais. Fiquei um
pouco tonto com a intensidade de minhas sensações e pensei que ia vomitar.
Minhas pernas fraquejaram e me senti exausto. Caminhei até um cemitério na
beira da estrada e sentei sobre um tumulo. Coloquei as mãos na cabeça e tentei
pensar para ver se conseguia compreender o sentido do que estava acontecendo. Subitamente
o eco de uma gargalhada repulsiva me trouxe de volta a realidade. Virei para
trás e olhei. Ali estava alguém com a face coberta por um xale que lhe envolvia
o pescoço. Estava sentado atrás de mim e segurava algo debaixo do braço envolto
em um lenço. Ele olhou para mim e ouvi sua voz:
“Aposto que você esta perdido e quer voltar a cidade,
não é? Talvez você estranhe que eu esteja aqui em um cemitério no meio da
noite, mas não se preocupe, cuidar dos mortos é o meu negocio. Sou um coveiro
por profissão. Conheço cada palmo deste lugar. Veja que hoje mesmo descobri
este jarro enquanto fazia uma cova. Imagine você que é um jarro Raq da antiga cidade de Ray. Você pode ficar com
ele, será algo para se lembrar de mim.”
Coloquei a mão no bolso, tirei os dois Krans e o Abassi e ofereci a ele. O velho homem com sua repugnante gargalhada
retrucou “Não, esqueça. Eu sei aonde você vive. Tenho uma carroça ali na
estrada e se quiser posso leva-lo a sua casa. Está a poucos passos daqui.”
Ele se levantou e me deu o jarro. Gargalhava tão
violentamente que seus ombros tremiam. Eu o segui com o jarro nas mãos. Mais
adiante vi a carroça funerária com aqueles dois magros cavalos negros.
Com uma agilidade surpreendente o velho homem subiu na
frente da carroça. Eu subi atrás e me sentei no espaço reservado para os
caixões. Recostei minha cabeça na parte de trás para poder observar o caminho.
Coloquei o jarro em meu colo e o segurei apertando contra o peito.
O chicote zumbiu no ar e os cavalos ofegantes
começaram a se mover em um passo tranquilo. Suas patas tocavam o chão
delicadamente sem fazer barulho, Os sinos em seus pescoços pareciam tocar as
notas de uma estranha musica. Olhando entre as nuvens do céu, a luz das
estrelas pareciam lampejos de olhos emergindo de uma massa de sangue coagulado.
Uma sensação de extasiante tranquilidade percorria meu ser. Sentia o peso do jarro,
como se fosse um corpo, pressionando meu peito.
As arvores, na escuridão da noite, se abraçavam umas
as outras, entrelaçando seus galhos, como se estivessem com medo de cair. Ao
longo do caminho, estranhas casas com formas geométricas distorcidas e algumas
janelas escuras. Uma luz doentia emanava das paredes que pareciam vagalumes. Uma
cena fantasmagórica. As arvores passavam por nós em grupos como se tentassem fugir,
mas pareciam estar presas por lírios que envolviam suas raízes. O mau cheiro da
carne em decomposição penetrava minha alma. Era como se aquele mau cheiro
estivesse estado presente sempre em meu corpo e que toda minha vida tinha
passado assim, deitado dentro de um caixão sendo levado em meio a nevoa e as sombras
por um velho arqueado cuja face eu não podia ver.
A carroça parou. Saltei com o jarro em minhas mãos.
Estava em frente a minha casa . Corri para o quarto, coloquei o jarro sobre a
mesa, busquei a cofre de estanho, o mesmo cofre onde guardava minhas economias,
escondido no quarto. Voltei a porta com a intenção de entregar o cofre para o
condutor como uma recompensa, mas ele tinha desaparecido. Não havia sinal dele
e tampouco daquela fúnebre carroça.
Frustrado regressei ao quarto, acendi a lamparina,
retirei o lenço que envolvia o jarro e usando a manga procurei limpar a poeira
que o cobria. Era um jarro antigo coberto por um verniz com a cor amarelada das
abelhas. Em um dos lados, na forma de um diamante, havia uma moldura de lírios
e no meio dela o rosto de uma mulher de imensos olhos negros que pareciam me
reprovar como se eu tivesse cometido um crime imperdoável que desconhecia. Um
olhar assustador e magico. Com uma expressão de ansiedade e encanto, de ameaça
e esperança. Irradiavam um brilho sobrenatural que ao mesmo tempo me aterrorizavam
e me atraiam. A testa da mulher era larga e suas sobrancelhas finas se
encontravam no centro. Seus lábios estavam entreabertos e alguns fios de seus
cabelos despenteados caiam sobre o rosto.
Retirei de dentro do cofre o desenho que tinha feito
na noite anterior e comparei os dois. Meu desenho era exatamente igual ao
desenho do vaso. Absolutamente idênticos. Obviamente feitos pela mesma pessoa,
um simples desenhista de caixinhas de canetas. Talvez, no momento da pintura, o
espirito do desenhista do jarro tivesse penetrado meu corpo e se apossado de
minha mão. O único elemento que os diferenciava era que meu desenho tinha sido
feito em um pedaço de papel enquanto que o desenho no vaso estava coberto por
um verniz que lhe dava um ar misterioso e sobrenatural.
Nas profundezas daqueles olhos brilhava uma alma
maligna. Não, aquilo não podia ser verdade, mas os dois desenhos tinham a mesma
expressão contida, ausente e ao mesmo tempo cheia de significado. Ninguém
conseguiria compreender o que sentia naquele momento. Queria fugir de mim
mesmo. Outra vez todas as desgraças e tormentos de minha vida se materializaram
em frente a mim. Não bastava que tivesse encontrado antes um par de olhos com
aquele olhar? Agora eram dois e aquilo era absolutamente insuportável.
Aqueles olhos que tinha enterrado na colina à sombra
do cipreste, ao lado do córrego, por baixo dos lírios e em meio ao sangue
coagulado onde aqueles vermes celebravam a decomposição de seu corpo antes que
as raízes das arvores o penetrassem para sugar sua energia; aqueles olhos
estavam olhando fixamente para mim.
Nunca em minha vida me sentira tão desgraçado, no
entanto, naquele mesmo momento senti uma estranha, e talvez injustificável,
sensação de prazer. descobri que alguém mais tinha sofrido como eu. Não seria
aquele desenhista de antigos tempos, que centenas ou milhares de anos antes
tinha desenhado aquela mesma figura naquela jarro, meu companheiro em
sofrimento? Não teria ele suportado os mesmos tormentos que passei?
Até aquele momento eu pensava ser a mais atormentada e
desgraçada de todas as criaturas mas agora sabia que em algum lugar daquelas
montanhas, naquelas casas em ruinas feitas de pedras, entre aqueles ossos
apodrecidos cujas cinzas tinham se transformado em alimento para os lírios,
tinha vivido um desenhista tão atormentado quanto eu; talvez até um desenhista
de caixinhas de caneta, alguém exatamente igual a mim. Agora eu percebia – e compreendia
– que ele também, exatamente como eu, tinha sido tocado, incendiado e destruído
por aqueles dois enormes olhos negros. Ter compreendido isso me confortou a
alma.
Coloquei meu desenho ao lado do desenho do jarro.
Preparei um pote com brasas e o coloquei próximo aos desenhos. Quando as brasas
se avermelharam, dei varias tragadas de opio e quando comecei a sentir seu
efeito descansei meus olhos sobre os dois desenhos. Precisava ordenar meus
pensamentos e senti que isso apenas seria possível fumando o opio que afastava
a ansiedade e me permitia pensar.
Fumei todo o opio que ainda tinha na esperança de que
aquele estranho narcótico dissolvesse minhas duvidas e retirasse os véus que
cobriam minha percepção. Mas será que ele conseguiria dissipar aquelas
lembranças, densas, distantes e sombrias? Atingi o estado de torpor espiritual
que estava buscando com uma intensidade ainda maior do que imaginava. Meus
pensamentos adquiriram a sutileza e a grandiosidade que apenas o opio permite,
e mergulhei em um sono, quase tão profundo quanto um coma.
Senti que aquela pressão em meu peito tinha
desaparecido. Era como se meu corpo tivesse sido liberado da gravidade. Estava
flutuando livremente junto aos meus pensamentos que eram, naquele momento,
delicados, abrangentes e precisos. Uma sensação de profundo prazer penetrou dos
pés a cabeça. Aliviado do peso de meu corpo eu finalmente estava em um mundo
silencioso, repleto de formas e cores belas e magicas. Meus pensamentos se
dissolveram naquelas cores e naquelas formas. Sentia-me imerso em ondas que me
acariciavam o espirito. Podia ouvir meu coração bater, podia sentir o sangue
correndo por minhas artérias. Sentia-me em um estado de profundo significado e
ao mesmo tempo de intenso prazer.
Desejei, do fundo de meu coração, entregar meus
pensamentos ao esquecimento. E meus desejos seriam atendidos se tal
esquecimento existisse e pudesse ser permanente; – se meus olhos fechados, mais
além do sono, pudessem penetrar em um vácuo completo onde nem mais sentiria minha
existência; – se fosse possível à minha existência simplesmente esvanecer
diante de um ponto negro, de uma nota musical ou de um lampejo colorido de luz;
– se estas cores e formas se expandissem infinitamente até desaparecer; – se...
Gradualmente uma sensação de lentidão e torpor tomou
conta de mim; como se fosse um agradável cansaço e delicadas ondas emanaram de
meu corpo. Vi minha vida passando diante de meus olhos do final até o inicio.
Uma depois da outra, as lembranças do meu passado, reminiscências da minha esquecida
e devastadora infância, desfilaram diante de meus olhos. Não apenas observava,
mas também sentia as emoções como se estivesse revivendo aqueles momentos.
Sentia meu corpo voltar a ser criança. Subitamente fui tomado por pensamentos
sombrios e vagos. Como se minha existência estivesse pendente de um tênue
gancho. Me senti suspenso no alto de um poço escuro e profundo. E o gancho se
soltou. Cai em queda livre em um abismo infinito e em uma noite eterna. Depois
disso algumas imagens de momentos esquecidos voltaram a minha lembrança e a
partir dai penetrei no mais completo esquecimento.
Quando outra vez dei por mim estava em um pequeno
quarto sentado em uma posição muito peculiar que me surpreendia por ser
estranha e ao mesmo tempo totalmente natural.
Por favor, teria o restante do texto traduzido? Muito obrigado.
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