sexta-feira, 3 de abril de 2015

41 – A coruja cega – S. Hedayat

Sadegh Hedayat (1903-1951) escritor iraniano praticamente desconhecido no Brasil. Profundo conhecedor da literatura ocidental. Escreveu “A coruja cega” enquanto vivia em Bombai, India um texto que é considerado por muitos como o mais importante texto literário escrito em persa. Foi censurado em seu pais pelas alusões ao budismo e ao hinduísmo. Neste texto é evidente a fascinação do autor com a morte o que em certo sentido explica o seu suicídio em Paris no ano de 1951. Diante da falta de uma tradução em português eu mesmo traduzi.

A coruja cega[1]

Sadegh Hedayat
Tradução Marcelo Antinori[2]

Neste mundo perverso, cheio de infelicidade e miséria, pensei que ao menos uma vez, um raio de sol iluminara minha vida. Talvez não um raio de sol, mas quem sabe um lampejo fugaz, ou mesmo uma estrela cadente, que reluziu sobre mim na forma de uma mulher – ou de um anjo. No brilho daquele momento, que durou poucos segundos, pude confirmar a má sina de minha vida e conhecer sua real dimensão e grandeza. Depois, a claridade esvaneceu dentro do sombrio abismo a que fui predestinado. Não, eu não pude guardar aquele brilho de luz para mim.
Foi há três meses, não, dois meses e quatro dias atrás, que eu a perdi. Ainda assim a memoria de seus olhos encantadores, não, a memoria da envolvente malicia de seus olhos, permaneceu indelével em meus pensamentos. Como poderia esquecer alguém tão importante para a minha vida?
Não, jamais direi seu nome. Ela, com seu corpo delicado e aqueles grandes olhos intensos, cheios de magia, que incendiaram minha vida e depois lenta e dolorosamente a fizeram esvanecer, não mais pertencem a este mundo infeliz. Não, eu não vou desonrar seu nome com vãs coisas terrenas.
Assim que ela partiu eu me distanciei de todos, desde os mais estúpidos até os mais exitosos, e para esquece-la procurei refugio no vinho e no opio. Minha vida se confinou, e ainda se confina, às quatro paredes de meu quarto. Passei minha vida entre quatro paredes.
Vivi cada um de meus dias entre os desenhos que fiz na tampa de caixinhas de canetas e o consumo de vinho e de opio. Fui eu mesmo quem escolheu está estupida profissão de desenhar em caixinhas de canetas  para passar o tempo e iludir a mim mesmo.
Por sorte a casa em que vivo fica fora dos limites da cidade, em uma vizinhança calma e silenciosa, distante do corre-corre da vida. Uma propriedade isolada e cercada de antigas ruinas. Entre a casa e o canal podem se ver algumas poucas casas, mas a cidade apenas começa depois do canal. Às vezes me pergunto quem foi o idiota – ou louco – que construiu esta casa tempos atrás, mas o curioso e que, ao fechar os olhos, posso recordar cada detalhe de sua estrutura e mesmo sentir seu peso sobre meus ombros. É o tipo de casa que poderia ter sido desenhada na tampa de uma antiga caixinha de canetas.
Preciso descrever estes detalhes para me assegurar de que não são apenas fantasias de minha imaginação. Preciso explica-los para que minha sombra que se projeta na parede possa compreende-los.
Começo por dizer que antes do que aconteceu o único prazer que tinha dentro das quatro paredes de meu quarto era o de fazer desenhos coloridos na tampa das caixinhas. E era assim que passava meu tempo. Mas quando vi aqueles olhos, quando a vi, tudo o mais perdeu completamente valor, importância ou mesmo significado.
O que me parecia estranho era que, por alguma razão desconhecida, desde que comecei, todos meus desenhos representavam o mesmo tema. Um cipreste e à sua sombra, um velho homem sentado como um yogi. Ele usava um turbante na cabeça, tinha o corpo coberto por um manto, e o dedo indicador da mão esquerda estava encostado em seus lábios demonstrando surpresa. Em frente a ele, uma jovem se inclinava, com um longo vestido negro, oferecendo-lhe uma flor. Entre os dois, um pequeno córrego. Seria esta a recordação de uma imagem que realmente vi, ou seria apenas a lembrança de um sonho? Não sei. Apenas sei que aquele homem e aquela cena estavam eternamente presentes em minha pintura. Minha mão desenhava aquela imagem inconscientemente e o que me parecia ainda mais incrível é que as pessoas compravam meus desenhos. Cheguei mesmo a enviar alguns para Índia, através de um tio paterno, que os vendia e me mandava o dinheiro.
De alguma forma aquela imagem parecia distante e ao mesmo tempo curiosamente familiar. Não consigo recordar sua origem mas lembro que a partir de um certo momento decidi anotar minhas recordações. Aquela decisão não teve nada a ver com meus desenhos. Foi bem mais tarde. Mas depois da decisão praticamente deixei de desenhar caixinhas de caneta e passei a dedicar meu tempo a escrever. Isto ocorreu a dois meses, ou melhor, a dois meses e quatro dias atrás.
Era o ultimo dia das festas do inicio do ano. Todos tinham ido festejar no campo e tinha fechado minha janela para me concentrar nos desenhos. Um pouco antes do por do sol, estava trabalhando, quando subitamente a porta se abriu e meu tio entrou no quarto. Foi ele quem disse que era meu tio, pois nunca o tinha visto antes. Aparentemente ele tinha estado viajando desde a minha infância; era um capitão de navio ou algo parecido. No primeiro momento imaginei que estivesse ali a negócios. Além de capitão ele era também um mercador. De qualquer modo, ele era um homem velho e arqueado. Usava um turbante e um manto amarelo enrugado nas costas. Seu rosto estava parcialmente coberto por um lenço que levava em torno ao pescoço, mas que deixava à vista seus olhos inchados e vermelhos, a barba quase inexistente e algumas feridas em seus lábios. Tinha uma remota semelhança comigo, algo assim como o reflexo de um espelho distorcido. Sempre imaginei que meu pai tivesse uma aparência como aquela.
Ao entrar ele atravessou o quarto e sentou-se no chão com as pernas cruzadas. Pensei em ser gentil. Acendi a luz e procurei inutilmente alguma coisa que lhe pudesse oferecer. Eu sabia que não havia nada; tinha consumido todo o vinho e todo opio. De súbito, meu olhar se voltou para a mais alta das prateleiras. Como se fosse uma revelação, recordei uma velha garrafa de vinho que recebera de meus pais. Se lembro bem, era um vinho produzido no ano do meu nascimento. Tinha esquecido aquilo completamente e nem lembrava que aquela garrafa ainda estava ali.
Para alcançar a prateleira, subi em um pequeno tamborete e ao pegar a garrafa notei uma abertura, como uma entrada de ar, que me permitia ver fora da casa. Ali, no jardim, ao lado da minha casa, pude ver um velho homem sentado de pernas cruzadas sob a sombra do cipreste e uma jovem mulher – ou melhor, um anjo dos céus – em frente a ele. Ela estava inclinada, entregando a ele uma flor com sua mão direita enquanto ele parecia morder levemente o dedo indicador de sua mão esquerda.
A jovem, que estava de frente para mim, não parecia dar atenção ao que acontecia. Seus olhos estavam abertos mas pareciam olhar o vazio. Em seus lábios, um sutil sorriso involuntário, como se estivesse pensando em alguém que não estava ali. Foi ali, equilibrado  sobre o tamborete, que pela primeira vez vi seus olhos aterradores. Eles pareciam expressar simultaneamente encanto e reprovação, e imediatamente me atraíram, com a expressão de ameaça e promessa, o tênue lampejar de vida. Sugando e aniquilando em suas profundezas tudo o que restava de minha existência.
Aquele irresistível espelho, sorveu meu ser com uma força inumana. Seus olhos curvados, com um brilho sobrenatural, me aterrorizavam e ao mesmo tempo atraiam, como se ela tivesse presenciado com eles, acontecimentos sobrenaturais, muito além da compreensão de meros mortais. Sua testa era larga e suas sobrancelhas finas se encontravam acima do nariz. Seus lábios carnudos e ligeiramente entreabertos como se apenas tivessem terminado um longo e apaixonado beijo e ainda estavam insatisfeitos. Seus cabelos estavam despenteados e alguns fios caiam sobre seu rosto. A delicadeza de seus braços e a desatenção em seus movimentos pareciam indicar que ela não continuaria neste mundo por muito tempo. Apenas as dançarinas de templos hindus conseguiam se movimentar com a mesma graça e leveza.
Sua atitude plácida evidenciava uma felicidade cheia de dor e a distinguia de qualquer outro ser. Para mim ela era como a imagem de uma alucinação de opio capaz de me despertar paixão. Seu corpo magro e alto parecia ter uma linha ao centro separando simétrica e perfeitamente seus ombros, braços, seios e pernas. Usava um vestido negro que amoldava e envolvia seu corpo. Quando a vi, senti que ela queria saltar o pequeno córrego que a separava do velho homem, mas hesitava. O velho começou a gargalhar histericamente. Sua gargalhada era repugnante e me arrepiava. Como a expressão de seu rosto não se alterava, a gargalhada parecia surgir de dentro dele.
Com medo, saltei de cima do tamborete com a garrafa de vinho nas mãos. Tremia de medo e prazer. Como se tivesse acordado de um sonho ao mesmo tempo agradável e assustador. Coloquei a garrafa no chão e com as duas mãos cobri meus olhos. Por quantos minutos, ou quantas horas, fiquei ali eu não sei. Quando abri os olhos outra vez, meu tio tinha saído, deixando a porta do quarto escancarada como a boca aberta de um cadáver. O som da gargalhada seca do velho homem continuava ecoando em meus ouvidos.
Estava começando a escurecer e a luz da lamparina tremulava. Aquele agradável e assustador tremor que sentira, não tinha desaparecido e foi a partir daquele momento que minha vida mudou radicalmente de rumo. Um rápido olhar tinha sido suficiente para provocar àquela mudança. Aquele anjo celestial, tinha me tocado mais profundamente do que qualquer ser humano poderia compreender.
Perdi qualquer controle que ainda tivesse sobre mim. Além do que, sentia como se soubesse de há muito tempo seu nome. A força de seus olhos, sua expressão, seu perfume e seus movimentos; tudo me parecia familiar. Como se minha alma em uma outra existência e dentro de um universo de sonhos, tivesse caminhado lado a lado à sua, e nossas almas tivessem a mesma origem e substancia e por esta razão estivessem predestinadas a se unir outra vez. Devo ter vivido muito próximo a ela.
Em nenhum momento pensei em toca-la. Me satisfazia com aqueles raios invisíveis que emanavam de nossos corpos e se fundiam no ar. Seria este um daqueles momentos compartilhados por amantes ao sentir que antes já se haviam encontrado e que uma misteriosa relação existia entre eles? Neste mundo, tudo o que queria era o seu amor. Será que outra pessoa poderia provocar aquela sensação em meu peito? Mas a gargalhada seca e repugnante daquele velho homem tinha rompido o elo que havia entre nós.
Passei a noite pensando nela. Varias vezes me aproximei da estante onde estava a abertura na parede mas o temor à gargalhada do velho me fez recuar. No dia seguinte, a mesma coisa. Não conseguia pensar em mais nada. Deveria desistir de vê-la outra vez. Finalmente no terceiro dia, com muito medo e hesitação, decidi colocar a garrafa de volta a prateleira, mas quando subi e olhei, vi apenas a parede escura e negra, uma parede tão negra quanto a escuridão que sempre permeou minha vida. Não havia abertura, orifício ou passagem para o exterior. Aquela abertura retangular que havia visto passara a ser parte da solida parede como se nunca tivesse existido. Permaneci em cima do tamborete examinando a parede e ainda que batesse com meus punhos, e examinasse com atenção cada um dos cantos, ajudado pela luz da lamparina, não encontrei o menor traço daquela abertura. Minhas batidas eram inúteis, aquela solida e grossa parede parecia ser feita de chumbo.
Poderia eu abandonar a esperança de vê-la outra vez? Certamente que não. Mas como? A partir daquele momento passei a viver como uma alma atormentada. Todo meu desejo, minha espera e minha busca foram em vão. Como o assassino que regressa à cena do crime, caminhei em torno da casa e por toda vizinhança; não apenas uma ou duas vezes, mas sim por dois meses e quatro dias. Tantas vezes caminhei em círculos, como uma galinha degolada que era capaz de identificar cada pedra e cada graveto das redondezas, mas nunca pude encontrar o cipreste, o córrego ou as duas pessoas que tinha visto ali.
Por noites e noites me ajoelhei no chão e olhando para a lua pedi e supliquei. Quem sabe poderia encontrar nas arvores, nas folhas ou nas pedras algum sinal daquela mulher, mas foi inútil. Ela não pertencia a este mundo. A água com que ela molhava os cabelos provinha certamente de uma fonte única e desconhecida, talvez magica. O tecido de seu vestido não era de lã ou algodão e tampouco tinha sido costurado por mãos humanas. Ela era um ser diferente e especial, e mesmo as flores que carregava na mão não eram iguais àquelas que florescem nos jardins. Compreendi que seu rosto empalideceria se fosse molhado pela água de um rio qualquer e que seus finos dedos esfarelariam como velhas pétalas se ela fosse forçada a colher as flores comuns de um jardim.  Compreendi tudo. Compreendi que aquela jovem, aquele anjo, era uma fonte de perfeição e inspiração para mim. Um ser delicado e intangível que despertou em mim uma adoração e que, sua beleza, provavelmente se esvaneceria diante do olhar de outra pessoa qualquer.
Desde o dia em que a perdi. Desde o momento em que aquela abertura se fechou e uma pesada e solida parede, tão impenetrável quanto o chumbo, se ergueu entre nós, minha existência perdeu qualquer sentido ou direção. Apesar da beleza de seus olhos e da profundeza com que eles me tocaram – ainda que tenha sido um encontro fugaz em que ela nem chegou a me ver – a necessidade de reencontrar aqueles olhos me consumia. Bastaria vê-los outra vez para que todos os enigmas teológicos e filosóficos se resolvessem e não houvesse mais em todo mundo um único segredo ou mistério que eu não fosse capaz de compreender. 
A partir daquele momento passei a beber mais e a consumir mais opio, mas tampouco estes remédios que aliviam o desespero conseguiram paralisar meus pensamentos. Não conseguia esquecê-la e dia apos dia, hora apos hora e mesmo a cada minuto sua imagem e seu rosto se materializavam frente a mim ainda mais fortes e mais significativos do que antes.
Como poderia esquece-la? Pouco importa se meus olhos estavam abertos ou fechados, se estava desperto ou dormindo, sua imagem permanecia em frente a mim.  Não consegui descansar. Como poderia? Criei o habito da caminhar todos os dias ao por do sol. Ainda que não pudesse explicar a razão, necessitava encontrar outra vez o cipreste, o córrego e as flores. Me habituei àquelas caminhadas como me habituara com o opio.
Era como se uma força desconhecida me impulsasse em sua direção e a cada passo da caminhada era apenas nela que pensava recordando a imagem que vi naquele dia. Queria encontrar o lugar em que a tinha visto naquele último dia das festas do inicio do ano. Se encontrasse, se fosse permitido a mim sentar à sombra daquele cipreste, minha alma voltaria a ter paz. Mas tudo o que vi por onde andava era desolação, a areia escaldante, a carcaça de um cavalo e um cachorro que cheirava o lixo. É verdade que a tinha encontrado? Não. Eu apenas a tinha visto furtivamente através de  uma maldita abertura na parede atrás da prateleira. Me sentia como aquele cachorro cheirando, fuçando e procurando em meio ao lixo. E quando as pessoas chegavam com mais lixo, ele fugia e se escondia com medo, voltando depois para continuar sua procura. Me sentia como ele, apenas que não podia voltar pois a abertura tinha desaparecido. Para mim era como se ela fosse um ramalhete de flores recém colhidas, jogada por cima de uma pilha de lixo.
A tarde quando sai para minha caminhada diária, o céu estava encoberto e começava a garoar. A neblina e as gotas de chuva pareciam suavizar a intensidade das cores e os detalhes das formas, o que transmitia uma sensação de alivio e tranquilidade.  Como se a chuva estivesse lavando meus pensamentos sombrios. E aquela noite, o que não deveria ter acontecido, aconteceu.
Caminhava sem direção e sem mesmo dar atenção ao que havia em minha volta. Naqueles momento de solidão vi, por alguns breves minutos, o seu rosto com um olhar vazio, como se um daqueles desenhos que fazia nas caixinhas de canetas, estivesse tomando forma em meio a nevoa que me cercava.
Apenas regressei tarde da noite. A nevoa tinha se tornado mais densa e mal podia ver o chão em que pisava. Ainda assim, por hábito ou instinto, consegui encontrar o caminho de volta até a casa e quando me aproximei vi uma mulher vestida de negro sentada no terraço em frente a casa.
Acendi um fosforo e ao olhar aquela figura reconheci seus olhos curvados – dois grandes olhos negros em um rosto delicado da cor do luar. Procuravam olhar com intensidade, como se nada vissem e mesmo que nunca antes a tivesse visto, eu a teria reconhecido. Não, aquilo não era uma ilusão. Aquela mulher vestida de negro era ela. Fiquei paralisado, ao mesmo tempo fascinado e amedrontado. Me senti como em um daqueles sonhos em que lutamos para despertar e não conseguimos. O fosforo queimou meus dedos, trazendo-me de volta à realidade. Coloquei a chave, abri a fechadura e permaneci em pé ao lado da porta.
Ela se levantou e como se aquilo fosse algo habitual, caminhou até a porta, abriu e entrou. Eu a segui. Acendi a lamparina e pude vê-la caminhado em direção a cama e deitando sobre ela. Permaneci sem saber se ela estava me vendo ou se ouvia a minha voz. Ela não demonstrava medo e tampouco hesitação. Parecia ter sido levada ali por alguma força qualquer. Será que ela estava doente? Será que ela estava perdida? Ela caminhava como uma sonambula e não parecia estar ali por sua própria vontade.
O que senti naquele momento é algo que ninguém mais poderia compreender. Senti uma agradável e indescritível dor. Não, aquilo não era uma ilusão. Aquela mulher que sem hesitação e sem palavras tinha entrado no meu quarto era a mesma mulher que antes tinha visto pela abertura da parede. Sempre imaginara nosso primeiro encontro exatamente como ele estava acontecendo. Me sentia como em um interminável e profundo sono, pois apenas em um sono profundo poderia ter um sonho como aquele. O silencio pesava sobre mim como a vida eterna; pois no plano da eternidade, sem inicio e sem final, não creio que exista algo como a palavra.
Ela possuía algo sobrenatural. Quando olhava para seu rosto parecia esquecer de todos os demais rostos. Bastava olhar para que meu corpo tremesse e minhas pernas fraquejassem. Eu podia ver toda dolorosa historia de minha vida através de seus olhos, imensos e brilhantes como dois enormes diamantes, umedecidos em lagrimas. Em seus negros olhos encontrei a noite eterna e a escuridão impenetrável que vinha buscando, e mergulhei sem medo naquela extasiante e maravilhosa escuridão. Senti como se a energia fosse drenada de meu corpo e o chão se abrisse sob meus pés. Sabia que ao cair sentiria um prazer indescritível e prolongado com a queda.
Meu coração parou. Segurei minha respiração. Tinha medo que se respirasse ela desapareceria como uma nuvem. Seu silencio era devastador. Era como se uma parede de vidro tivesse sido erguida entre nós e aquele segundo, aquela hora, ou aquela eternidade estivessem me sufocando.
Seus olhos foram lentamente se fechando, exaustos, talvez por estar vendo coisas que ninguém mais tinha o poder de ver, muito além da vida e da morte. E quando finalmente eles se cerraram, me senti como um náufrago que em luta desesperada conseguira subir outra vez à superfície para respirar. Percebi que estava com febre e com a manga limpei as gotas de suor de minha testa. 
Seu rosto mantinha a mesma expressão tranquila, mas parecia ainda  mais frágil. Ela, ali em minha cama, mordia ligeiramente o dedo indicador da mão esquerda com seu corpo encolhido como a lua. Por baixo de seu fino vestido eu podia perceber suas pernas, seus braços, seus seios e cada detalhe de seu corpo.
Como seus olhos estavam fechados, inclinei me sobre ela, mas ainda que estivesse próximo, sentia que ela estava infinitamente distante. Repentinamente me dei conta de que não sabia nada sobre os segredos de seu coração e que nenhuma relação havia entre nós. Tentei dizer algo, mas tive medo que o som de minha voz pudesse ferir seus ouvidos acostumados a suave e distante musica celestial.
Pensei que talvez ele estivesse com fome ou com sede. Busquei inutilmente por algo que lhe pudesse oferecer. Eu sabia que não tinha nada na casa. Subitamente, como em uma revelação, recordei a velha garrafa de vinho que recebera de meus pais. Subi no tamborete para pega-la. Caminhei na ponta dos pés até a cama. Ela estava dormindo como uma criança exausta. Dormia profundamente. Abri a garrafa e, docemente, entornei o vinho em sua boca.
Uma sensação de paz tomou conta de mim. Olhando para aqueles olhos fechados senti como se o demônio que sempre me torturara e o tormento que pressionava minhas entranhas com suas garras de ferro tivessem adormecido. Aproximei a cadeira da cama para poder olhar de perto seu rosto. Que rosto infantil! Que expressão indecifrável! Seria possível que aquela jovem mulher, ou talvez aquele anjo torturador – de que mais poderia chama-la? – Seria possível que ela tivesse uma dupla natureza? Como podia ela estar tão tranquila e tão entregue?
Eu podia sentir o calor de seu corpo e o perfume que exalava  de seus cabelos. Já não era mais capaz de controlar minhas mãos. Toquei com elas os fios que caiam sobre sua testa e depois deixei que meus dedos acariciassem seus cabelos. Eles estavam frios e pastosos. Extremamente frios. Como se ela estivesse morta há dias. Eu não estava enganado. Ela estava morta! Coloquei minha mão, por dentro de seu vestido, sobre seu peito e sobre seu coração. Ele não palpitava. Coloquei o espelho em frente a seu nariz para ver se respirava e não havia o menor traço de vida.
Pensei em aquece-la com o calor do meu corpo, transferindo-lhe minha vida e recebendo em troca a frieza da morte, talvez assim conseguisse que minha alma se juntasse a seu corpo. Tirei minhas roupas e deitei na cama ao lado dela. Como a raiz da mandrágora, macho e fêmea, nossos corpos se uniram. Sua boca estava gélida e amarga. Todo seu corpo estava frio como uma pedra de gelo. Senti meu sangue congelando nas veias e o frio penetrando profundamente em meu coração. Ao perceber a inutilidade de meu esforço, sai da cama e me vesti. Não, aquilo não era uma ilusão. Ela tinha vindo até meu quarto e à minha cama para entregar seu corpo. Ela me entregou seu corpo e sua alma. Ambos.
Enquanto ela estava viva, e enquanto seus olhos transbordavam com vida, eu fui torturado pela memoria daqueles olhos, mas agora, sem movimentos nem sensações, fria e com os olhos fechados, foi ela quem se entregou a mim – com seus olhos fechados.
Aquela era a mesma criatura que tinha envenenado minha vida; ou talvez minha própria natureza me predestinara a ser envenenado e  não poderia ter qualquer outro tipo de existência. E ali, em meu quarto, ela entregou seu corpo e sua sombra.
Lentamente sua frágil e transitória alma, que não possuía nenhuma relação com o mundo material, deixou seu vestido negro e enrugado – o corpo a que tinha sido condenada – para juntar-se ao mundo das sombras errantes e talvez tenha levado consigo minha alma.
O que tinha restado ali era apenas seu corpo, sem sensações ou movimentos. Seus músculos relaxados, suas veias, seus tendões e ossos prontos para serem enterrados e apodrecer em um delicioso banquete de ratos e formigas em baixo da terra. E naquele maldito e miserável quarto que mais parecia um tumulo, em meio a escuridão da noite eterna que me envolvia, enterrado entre aquelas paredes, tive de passar uma longa, sóbria e infindável noite ao lado de um corpo – o corpo dela.
Senti como se durante a eternidade, de seu inicio até o final, e desde o momento de minha própria criação, dividira aquele quarto escuro com um corpo morto, um cadáver imóvel sem sentimentos.
Naquele momento uma nuvem cobriu meus pensamentos. Dentro de mim senti uma nova – e especial – forma de vida. De alguma forma minha existência estava conectada com tudo o que existia a minha volta, até mesmo as sombras que me cercavam. Me senti em intima e inviolável comunhão  com a natureza e todas as criaturas que nela viviam. Como uma corrente elétrica que continuamente transferisse impulsos entre os elementos da natureza e eu. Nenhum pensamento ou imagem era estranho para mim. Me sentia capaz de entender, sem dificuldade, os segredos das antigas pinturas, os mistérios de complexas filosofias e a eterna renovação das formas e dos costumes. Tinha me tornado parte da evolução da terra e dos planetas, participava do crescimento das plantas e de todas atividades do reino animal. Passado e futuro, o próximo e o distante, tudo se fundia com minhas emoções e sentimentos.
Em momentos como este somos tentados a nos refugiar em antigos hábitos ou paixões. O bêbado se embriaga, o escritor escreve, o escultor esculpe, cada um deles alivia sua ansiedade e sua dor, refugiando–se em sua obsessão, e é este o momento em que os verdadeiros artistas são capazes de se superar e produzir a obra de suas vidas. Mas que poderia fazer? Eu que nunca tive talento, um pobre desenhador de caixinhas de canetas. Como poderia criar uma obra prima se tudo o que fazia eram pequenos desenhos sem vida, cada um idêntico ao outro. Mas ainda assim sentia uma explosão de talento e energia em meu peito, um entusiasmo e uma criatividade indescritíveis. Queria desenhar em um pedaço de papel aqueles olhos que agora estavam fechados para sempre e guarda-lo apenas para mim. Aquele acumulo de sensações me obrigava a agir. Como poderia resistir àquela inspiração sendo um artista trancado em um quarto com um cadáver? E aquele pensamento me encheu de prazer.
Apaguei a lamparina e acendi algumas velas em torno a seu rosto. Com a luz tremula das velas e aquele oscilar de luz e sombra, seu rosto parecia ainda mais tranquilo, etéreo e misterioso. Com meu material de trabalho e algumas folhas de papel me aproximei da cama – naquele momento era sua cama. Queria, com minhas próprias mãos, reproduzir as formas que via e que estavam condenadas a uma lenta e irreversível degradação. Sem movimentos e nem emoções. Queria transmitir sua essência para o desenho. Queria escolher em sua expressão aquelas linhas que me sensibilizavam. Uma pintura, não importa se um simples desenho ou rascunho, deve causar impacto. Deve ter alma. E eu, acostumado apenas a reproduzir um único desenho na tampa das caixinhas, tinha de superar aquele desafio. Tinha que dar uma forma concreta, visível e compreensível, a imagem daquela jovem mulher que se formara em minha mente. Iria olhar apenas uma vez mais e depois fecharia os olhos para desenhar no papel apenas os traços gravados em minha mente. Desta forma talvez eu poderia encontrar alivio para meus tormentos. Estava inconscientemente buscando refugio em um mundo sem movimentos, onde apenas existiam linhas e formas.
O objeto de minha pintura – o cadáver de uma mulher – tinha uma curiosa afinidade com minha sinistra forma de desenhar. Sempre fui um pintor de naturezas mortas. Mas ali havia um desafio: seria capaz de desenhar aqueles olhos que agora estavam cerrados? Será que minha memoria os tinha guardado com claridade?
Não sei quantas vezes naquela madrugada desenhei o seu rosto. Apenas lembro que nenhum deles me satisfez e por isso rasguei todos tão pronto terminava de desenha-las. Não sentia cansaço e tampouco percebi o tempo passar.
Quando os primeiros lampejos de claridade entraram dentro do quarto eu trabalhava em um desenho que me parecia melhor do que os outros. Mas e os olhos? Aqueles olhar que me encarava com reprovação como se eu tivesse cometido um pecado imperdoável. Não conseguia desenhar aqueles olhos. Toda lembrança deles desaparecera. Qualquer esforço era inútil. Não importava o tempo que passasse olhando para seu rosto. Não conseguia recordar a expressão daquele olhar.
Foi então que seu rosto começou a tomar cor. Enrubesceu e se avermelhou quase como a cor da carne. Ela voltou a vida. Seus olhos exuberantes foram lentamente se abrindo. Brilharam como se tivessem luz própria e olhavam diretamente para mim. Foi a primeira vez em que a senti consciente da minha presença. Ela olhou para mim e voltou a fechar os olhos. Ainda que tudo tenha durado apenas um breve momento, foi suficiente para que pudesse capturar a imagem de seus olhos e reproduzi-la no desenho. Desenhei com cuidado e aquele desenho não precisei rasgar.
Levantei e me aproximei. Pensei que estava viva e que talvez por causa de meu amor a vida tivesse renascido em seu corpo, mas ao me aproximar senti o cheiro de um corpo em decomposição. Alguns vermes já eram visíveis em sua pele e dois insetos circulavam próximos a luz das velas. Mas se ela estava morta como é possível que tivesse visto seus olhos? Teria sido uma alucinação?
Prefiro nem pensar nisto. Para mim o importante era seu rosto, ou melhor, seus olhos, e agora eu os tinha reproduzido em meu desenho. Tinha capturado a essência de seu olhar e não necessitava mais aquele corpo condenado à decomposição e à alimentar ratos e insetos em baixo da terra. A partir daquele momento eu a podia controlar e não mais dependia dela. A qualquer momento que desejasse poderia rever seu olhar capturado em meu desenho. Com carinho guardei a folha de papel dentro de um pequeno cofre onde costumava guardar meu dinheiro e o escondi dentro do armário.
Os vestígios da longa noite já desapareciam. A noite tinha cumprido seu destino. Os primeiros gorjeios de alguns pássaros ou talvez o som das vegetação crescendo já se faziam ouvir. Pálidas estrelas desapareciam do céu ao mesmo tempo em que sentia o suspiro da manhã em meu rosto e um galo cantava a distancia.
Que poderia fazer com seu corpo que já começava a se decompor? O primeiro que me ocorreu foi queima-lo ou quem sabe joga-lo dentro de algum poço cercado de flores. Mas como faze-lo sem atrair a atenção dos vizinhos. Além do que não queria que nenhum estranho pudesse vê-la. Teria de fazer tudo sozinho. Não que aquilo fosse importante para mim, pois minha existência já não tinha nenhum significado depois de sua morte, mas sim por ela. Ninguém além de mim deveria ver aquele corpo. Ela veio a meu quarto, entregou a mim seu corpo frio e sua sombra para que ninguém mais pudesse vê-la e sua imagem não fosse jamais maculada pelo olhar de estranhos.
Finalmente tive uma ideia, dividir seu corpo em pequenos pedaços, coloca-lo em uma velha valise e então levar a valise para algum lugar distante, longe da vista de todos, e ali enterra-la. Sem hesitação, peguei um longo facão que guardava e, cuidadosamente, rasguei o vestido negro  que como uma teia de aranha a envolvia e aprisionava. Aquele vestido era a única coisa que a cobria e sem ele, seu corpo parecia crescer. Separei a cabeça e gotas de sangue frio coagulado jorraram de sua garganta. Cortei seus braços e pernas e coloquei os pedaços de seu corpo, tronco e cabeça dentro da valise. Cobri tudo com seu vestido negro, fechei a valise e coloquei a chave em meu bolso. Senti um alivio. Levantei a valise para sentir seu peso; estava pesada. Não, eu não conseguiria leva-la sozinho.
Lá fora tinha voltado a chover. Saí a procura de alguém e não encontrei uma alma que pudesse me ajudar. Caminhei em meio a nevoa até que vi um velho homem a sombra do cipreste. Não podia ver seu rosto, coberto por um xale em volta de seu pescoço. Caminhei em sua direção e antes que dissesse qualquer coisa ele começou a gargalhar. Uma gargalhada sinistra que me arrepiou o corpo e depois ouvi sua voz: “Se você procura um carregador, estou a sua disposição. Sim. Tenho uma carroça também. Todos os dias levo cadáveres para Shah ‘Abdul’ Azim e os queimo. Sim, também faço caixões. Tenho caixões de todos os tamanhos que servirão perfeitamente. Estou a sua disposição. Agora.”
Gargalhou em seguida com tanta força que seus ombros tremeram. Apontei em direção a minha casa mas, outra vez, ele nem me deu chance de falar.
“Não é necessário, sei onde você vive. Vamos agora mesmo.” Ele se levantou e me acompanhou em direção a casa.
Entrei em meu quarto e com grande dificuldade levei a valise até a porta. Quando voltei  vi em frente a casa uma carroça com dois cavalos negros, tão magros que podia ver seus ossos. O velho homem com seus ombros curvados estava sentado na carroça com as rédeas e um longo chicote nas mãos. Ele não se virou para mim. Com dificuldade coloquei a valise dentro da carroça. Era uma carroça mortuária. Subi e me sentei no espaço reservado aos caixões com a cabeça apoiada para poder observar o caminho. Coloquei a valise em meu colo e a segurei firmemente com minhas mãos.
Ele zumbiu o chicote e os cavalos começaram a andar ofegantes. O vapor que saia das narinas dos animais formava uma pequena nuvem, visível, apesar da chuva. Moviam-se em passos lentos. Suas patas finas me faziam pensar nos braços de um ladrão que tivesse seus dedos cortados e mergulhados em óleo fervente, tocavam o chão sem fazer ruído. O sinos que os cavalos carregavam no pescoço pareciam tocar as notas de uma estranha canção. Senti um alivio em meu corpo, dos pés a cabeça. Um alivio tão profundo e incompreensível que nem sentia o mover da carroça.  Tudo o que sentia era o peso da valise em meu colo, como se aquele peso tivesse sempre estado sobre mim.
Uma densa nevoa cobria o caminho. A carroça passou por montanhas, planícies e rios.  Tudo que vi ao longo do caminho parecia novo e único, algo que jamais tinha visto antes, nem mesmo em meus sonhos. Em ambos os lados haviam montanhas com picos bem definidos e estranhas arvores arqueadas e antigas. Ao pé das montanhas, entre as arvores, haviam casas cinzentas, algumas quadradas e outras triangulares com escuras janelas escancaradas. Aquelas janelas pareciam o olhar alucinado de um homem em delírio e havia algo naquelas casas capazes de gelar o coração. Era como se elas não abrigassem seres humanos e tivessem sido construídas para acomodar a alma de seres etéreos.  
O condutor da carroça parecia estar tomando um atalho ou talvez um caminho especial que apenas ele conhecia. Em alguns pontos haviam algumas estranhas arvores cortadas e perto delas umas poucas casas, algumas baixas outras mais altas, em estranhas formas geométricas, com janelas inclinadas de onde saiam flores que cobriam as portas e as paredes. Repentinamente aquela paisagem desapareceu em meio a névoa e mais adiante nuvens pesadas pareciam pressionar o pico das montanhas e gotas de chuva flutuavam no ar como se fossem partículas de areia levadas pelo vento.
Depois de viajar por um bom tempo, a carroça parou próxima a uma colina seca e sem vegetação. Coloquei a valise de lado e desci. Pude perceber que depois da colina havia um lugar tranquilo e agradável que mesmo sem nunca tê-lo visto, me parecia familiar, como se existisse em algum lugar de minha memoria. O chão estava coberto de lírios perfumados. Compreendi que nunca antes alguém tinha estado ali. Peguei a valise e a coloquei no chão ao lado da carruagem. O velho condutor se virou para mim:
“Não estamos longe de Shah ‘Abdul’ Azim. Você não encontrará um lugar melhor do que este para o que necessitas. Ali nem mesmo os pássaros voam.”
Coloquei a mão no bolso buscando dinheiro para pagar o condutor. Tudo o que tinha comigo eram três moedas; dois krans e um abassi.  O condutor gargalhou e disse:
“Está bem. Não se preocupe. Mais tarde volto para lhe ver. Sei onde você mora. Mas será que você não tem outros trabalhos para mim? Posso lhe garantir que sei como cavar buracos. Não se envergonhe. Podemos ir? Existe um pequeno córrego aqui ao lado do cipreste. Eu posso cavar um buraco no tamanho exato da valise e depois vamos. “
 O velho saltou da carroça com uma surpreendente agilidade. Levei a valise e juntos caminhamos até o tronco caído de uma arvore ao lado do regato. Ali ele perguntou “Gosta deste lugar?” E sem esperar por minha resposta começou a cavar.
Coloquei a valise no chão e olhei para ele espantado. O velho homem fazia seu trabalho com destreza e extrema agilidade. Enquanto cavava ele encontrou algo que parecia um jarro de cerâmica. Ele o enrolou em um lenço e depois comentou: “Aqui está seu buraco. É do tamanho exato da valise. Nem um centímetro a mais.”
Coloquei minha mão no bolso para pagar pelo seu trabalho . Tudo o que tinha eram dois krans e um abassi. O velho homem deu uma gargalhada que arrepiou minha pele e ouvi sua voz: “Não se preocupe. Eu sei onde você vive. Além do que, eu encontrei este jarro. Uma boa recompensa. É um jarro Raq, da antiga cidade de Ray.” E, ainda agachado, ele gargalhou tão forte que seus ombros tremeram.
Colocou o jarro envolto no lenço por baixo de seu braço, caminhou agilmente até a carroça e lepidamente nela subiu. O chicote zumbiu no ar e os cavalos ofegantes começaram a andar. O sinos que carregavam no pescoço pareciam tocar as notas de uma estranha canção e a passos lentos eles desapareceram na névoa.
Ali sozinho, senti um alivio, como se um grande peso tivesse sido tirado de meus ombros. Uma serenidade inspiradora me envolveu dos pés a cabeça. Olhei em volta. Estava em um lugar cercado de colinas. Em uma delas haviam ruinas de antigas construções de pedras e corria o leito seco de um rio. Era um lugar pequeno, tranquilo e aconchegante. Me sentia feliz. Pensei que aquele seria um lugar adequado para o momento em que aqueles grandes olhos despertassem de seu sono terrestre, além do que, uma jovem que viveu sua vida distante de outras pessoas, também após a morte teria de permanecer distante.
Levantei a valise com cuidado e a coloquei dentro do buraco. O buraco era do tamanho exato, nenhum centímetro a mais. Quis dar uma ultima olhada dentro da valise. Em torno a mim não havia uma alma sequer. Peguei a chave em meu bolso e abri a valise.
Quando levantei o vestido negro vi, em meio ao sangue coagulado e o movimento dos vermes, aqueles dois grandes olhos olhando para mim sem expressão. Senti todo minha existência sendo sugada para o abismo daqueles olhos. Rapidamente fechei a valise e a cobri de terra. Quando o buraco estava coberto, pisoteei varias vezes sobre ele para compactar o chão e em seguida cobri com lírios perfumados. Coloquei por cima algumas pedras e areia para que ninguém visse que havia alguma coisa enterrada ali. Fiz aquilo com tanto esmero que nem mesmo eu poderia reconhecer onde a valise estava enterrada.
Terminado o trabalho olhei para minhas roupas. Elas estavam amassadas e sujas de barro e sangue coagulado. Tentei limpar as marcas de sangue. Duas abelhas amarelas voavam ao redor de mim e alguns vermes pareciam estar grudados em minhas roupas. Tentei limpar uma das manchas de sangue em minha manga, mas quanto mais passava a língua com saliva mais aquela mancha escura aumentava. Inexplicavelmente aquela mancha escura se espalhou por toda a minha roupa e senti o frio do sangue coagulado sobre mim.
O por do sol se aproximava e caia uma chuva fina. Caminhei sem pensar seguindo as marcas da roda da carroça. Quando escureceu, e já não mais via as marcas no chão, continuei caminhando devagar em meio a escuridão. Caminhava como alguém em um sonho, sem saber para onde ia. Eu a tinha perdido e desde que vira aqueles olhos negros em meio ao sangue coagulado, sentia como se minha vida tivesse sido coberta por um véu negro. Aqueles olhos que tinham iluminado meu caminho já não existiam mais e pouco me importava se ao final daquela caminhada chegasse ou não a algum lugar.
O silencio era absoluto. Me senti abandonado por toda humanidade e tentei me refugiar na natureza. Senti que uma conexão se estabelecera entre a pulsação da natureza, aquela noite profunda que me cercava e eu. Aquele silencio era uma linguagem incompreensível aos mortais. Fiquei um pouco tonto com a intensidade de minhas sensações e pensei que ia vomitar. Minhas pernas fraquejaram e me senti exausto. Caminhei até um cemitério na beira da estrada e sentei sobre um tumulo. Coloquei as mãos na cabeça e tentei pensar para ver se conseguia compreender o sentido do que estava acontecendo. Subitamente o eco de uma gargalhada repulsiva me trouxe de volta a realidade. Virei para trás e olhei. Ali estava alguém com a face coberta por um xale que lhe envolvia o pescoço. Estava sentado atrás de mim e segurava algo debaixo do braço envolto em um lenço. Ele olhou para mim e ouvi sua voz:
“Aposto que você esta perdido e quer voltar a cidade, não é? Talvez você estranhe que eu esteja aqui em um cemitério no meio da noite, mas não se preocupe, cuidar dos mortos é o meu negocio. Sou um coveiro por profissão. Conheço cada palmo deste lugar. Veja que hoje mesmo descobri este jarro enquanto fazia uma cova. Imagine você que é um jarro Raq  da antiga cidade de Ray. Você pode ficar com ele, será algo para se lembrar de mim.”
Coloquei a mão no bolso, tirei os dois Krans e o Abassi e ofereci a ele. O velho homem com sua repugnante gargalhada retrucou “Não, esqueça. Eu sei aonde você vive. Tenho uma carroça ali na estrada e se quiser posso leva-lo a sua casa. Está a poucos passos daqui.”
Ele se levantou e me deu o jarro. Gargalhava tão violentamente que seus ombros tremiam. Eu o segui com o jarro nas mãos. Mais adiante vi a carroça funerária com aqueles dois magros cavalos negros.
Com uma agilidade surpreendente o velho homem subiu na frente da carroça. Eu subi atrás e me sentei no espaço reservado para os caixões. Recostei minha cabeça na parte de trás para poder observar o caminho. Coloquei o jarro em meu colo e o segurei apertando contra o peito.
O chicote zumbiu no ar e os cavalos ofegantes começaram a se mover em um passo tranquilo. Suas patas tocavam o chão delicadamente sem fazer barulho, Os sinos em seus pescoços pareciam tocar as notas de uma estranha musica. Olhando entre as nuvens do céu, a luz das estrelas pareciam lampejos de olhos emergindo de uma massa de sangue coagulado. Uma sensação de extasiante tranquilidade percorria meu ser. Sentia o peso do jarro, como se fosse um corpo, pressionando meu peito.
As arvores, na escuridão da noite, se abraçavam umas as outras, entrelaçando seus galhos, como se estivessem com medo de cair. Ao longo do caminho, estranhas casas com formas geométricas distorcidas e algumas janelas escuras. Uma luz doentia emanava das paredes que pareciam vagalumes. Uma cena fantasmagórica. As arvores passavam por nós em grupos como se tentassem fugir, mas pareciam estar presas por lírios que envolviam suas raízes. O mau cheiro da carne em decomposição penetrava minha alma. Era como se aquele mau cheiro estivesse estado presente sempre em meu corpo e que toda minha vida tinha passado assim, deitado dentro de um caixão sendo levado em meio a nevoa e as sombras por um velho arqueado cuja face eu não podia ver.
A carroça parou. Saltei com o jarro em minhas mãos. Estava em frente a minha casa . Corri para o quarto, coloquei o jarro sobre a mesa, busquei a cofre de estanho, o mesmo cofre onde guardava minhas economias, escondido no quarto. Voltei a porta com a intenção de entregar o cofre para o condutor como uma recompensa, mas ele tinha desaparecido. Não havia sinal dele e tampouco daquela fúnebre carroça.
Frustrado regressei ao quarto, acendi a lamparina, retirei o lenço que envolvia o jarro e usando a manga procurei limpar a poeira que o cobria. Era um jarro antigo coberto por um verniz com a cor amarelada das abelhas. Em um dos lados, na forma de um diamante, havia uma moldura de lírios e no meio dela o rosto de uma mulher de imensos olhos negros que pareciam me reprovar como se eu tivesse cometido um crime imperdoável que desconhecia. Um olhar assustador e magico. Com uma expressão de ansiedade e encanto, de ameaça e esperança. Irradiavam um brilho sobrenatural que ao mesmo tempo me aterrorizavam e me atraiam. A testa da mulher era larga e suas sobrancelhas finas se encontravam no centro. Seus lábios estavam entreabertos e alguns fios de seus cabelos despenteados caiam sobre o rosto.
Retirei de dentro do cofre o desenho que tinha feito na noite anterior e comparei os dois. Meu desenho era exatamente igual ao desenho do vaso. Absolutamente idênticos. Obviamente feitos pela mesma pessoa, um simples desenhista de caixinhas de canetas. Talvez, no momento da pintura, o espirito do desenhista do jarro tivesse penetrado meu corpo e se apossado de minha mão. O único elemento que os diferenciava era que meu desenho tinha sido feito em um pedaço de papel enquanto que o desenho no vaso estava coberto por um verniz que lhe dava um ar misterioso e sobrenatural.
Nas profundezas daqueles olhos brilhava uma alma maligna. Não, aquilo não podia ser verdade, mas os dois desenhos tinham a mesma expressão contida, ausente e ao mesmo tempo cheia de significado. Ninguém conseguiria compreender o que sentia naquele momento. Queria fugir de mim mesmo. Outra vez todas as desgraças e tormentos de minha vida se materializaram em frente a mim. Não bastava que tivesse encontrado antes um par de olhos com aquele olhar? Agora eram dois e aquilo era absolutamente insuportável.
Aqueles olhos que tinha enterrado na colina à sombra do cipreste, ao lado do córrego, por baixo dos lírios e em meio ao sangue coagulado onde aqueles vermes celebravam a decomposição de seu corpo antes que as raízes das arvores o penetrassem para sugar sua energia; aqueles olhos estavam olhando fixamente para mim.
Nunca em minha vida me sentira tão desgraçado, no entanto, naquele mesmo momento senti uma estranha, e talvez injustificável, sensação de prazer. descobri que alguém mais tinha sofrido como eu. Não seria aquele desenhista de antigos tempos, que centenas ou milhares de anos antes tinha desenhado aquela mesma figura naquela jarro, meu companheiro em sofrimento? Não teria ele suportado os mesmos tormentos que passei?
Até aquele momento eu pensava ser a mais atormentada e desgraçada de todas as criaturas mas agora sabia que em algum lugar daquelas montanhas, naquelas casas em ruinas feitas de pedras, entre aqueles ossos apodrecidos cujas cinzas tinham se transformado em alimento para os lírios, tinha vivido um desenhista tão atormentado quanto eu; talvez até um desenhista de caixinhas de caneta, alguém exatamente igual a mim. Agora eu percebia – e compreendia – que ele também, exatamente como eu, tinha sido tocado, incendiado e destruído por aqueles dois enormes olhos negros. Ter compreendido isso me confortou a alma.
Coloquei meu desenho ao lado do desenho do jarro. Preparei um pote com brasas e o coloquei próximo aos desenhos. Quando as brasas se avermelharam, dei varias tragadas de opio e quando comecei a sentir seu efeito descansei meus olhos sobre os dois desenhos. Precisava ordenar meus pensamentos e senti que isso apenas seria possível fumando o opio que afastava a ansiedade e me permitia pensar.
Fumei todo o opio que ainda tinha na esperança de que aquele estranho narcótico dissolvesse minhas duvidas e retirasse os véus que cobriam minha percepção. Mas será que ele conseguiria dissipar aquelas lembranças, densas, distantes e sombrias? Atingi o estado de torpor espiritual que estava buscando com uma intensidade ainda maior do que imaginava. Meus pensamentos adquiriram a sutileza e a grandiosidade que apenas o opio permite, e mergulhei em um sono, quase tão profundo quanto um coma.
Senti que aquela pressão em meu peito tinha desaparecido. Era como se meu corpo tivesse sido liberado da gravidade. Estava flutuando livremente junto aos meus pensamentos que eram, naquele momento, delicados, abrangentes e precisos. Uma sensação de profundo prazer penetrou dos pés a cabeça. Aliviado do peso de meu corpo eu finalmente estava em um mundo silencioso, repleto de formas e cores belas e magicas. Meus pensamentos se dissolveram naquelas cores e naquelas formas. Sentia-me imerso em ondas que me acariciavam o espirito. Podia ouvir meu coração bater, podia sentir o sangue correndo por minhas artérias. Sentia-me em um estado de profundo significado e ao mesmo tempo de intenso prazer.
Desejei, do fundo de meu coração, entregar meus pensamentos ao esquecimento. E meus desejos seriam atendidos se tal esquecimento existisse e pudesse ser permanente; – se meus olhos fechados, mais além do sono, pudessem penetrar em um vácuo completo onde nem mais sentiria minha existência; – se fosse possível à minha existência simplesmente esvanecer diante de um ponto negro, de uma nota musical ou de um lampejo colorido de luz; – se estas cores e formas se expandissem infinitamente até desaparecer; – se...
Gradualmente uma sensação de lentidão e torpor tomou conta de mim; como se fosse um agradável cansaço e delicadas ondas emanaram de meu corpo. Vi minha vida passando diante de meus olhos do final até o inicio. Uma depois da outra, as lembranças do meu passado, reminiscências da minha esquecida e devastadora infância, desfilaram diante de meus olhos. Não apenas observava, mas também sentia as emoções como se estivesse revivendo aqueles momentos. Sentia meu corpo voltar a ser criança. Subitamente fui tomado por pensamentos sombrios e vagos. Como se minha existência estivesse pendente de um tênue gancho. Me senti suspenso no alto de um poço escuro e profundo. E o gancho se soltou. Cai em queda livre em um abismo infinito e em uma noite eterna. Depois disso algumas imagens de momentos esquecidos voltaram a minha lembrança e a partir dai penetrei no mais completo esquecimento.
Quando outra vez dei por mim estava em um pequeno quarto sentado em uma posição muito peculiar que me surpreendia por ser estranha e ao mesmo tempo totalmente natural.





[1] Este texto corresponde ao segundo dos cinco capitulo do livro “A coruja cega”
[2] A tradução para o português foi feita por mim a partir de duas traduções do persa para o inglês de D. P. Costello e de Iraj Bashiri.

Um comentário: