Howard Phillips Lovecraft
(1890-1937), escritor americano nascido em Providence Rhode Island, recebeu
pouco reconhecimento enquanto estava vivo, mas é hoje considerado um dos
maiores escritores de terror do século XX. O chamado de Cthulhu é provavelmente
um de seus trabalhos mais conhecidos, lido e relido nos vários fãs clubes que
hoje existem para cultuar a sua obra.
O Chamado de Cthulhu
H.P. Lovecraft
Encontrado entre os papéis do falecido Francis Wayland
Thurston, de Boston
“De tais seres ou potestades superiores pode ser
concebida uma sobrevivência... uma sobrevivência de um período fantasticamente
remoto onde... a consciência se manifestava, talvez, em vultos e formas desde
então repelidos pela maré montante da humanidade... formas das quais apenas a
poesia e a lenda captaram uma memória fugaz e as chamaram deuses, monstros,
seres míticos de todos os tipos e espécies...”
Algernon Blackwood[1]
I
– O Horror de Argila
A coisa mais misericordiosa do mundo, acho
eu, é a incapacidade da mente humana correlacionar tudo que ela contém. Vivemos
em uma plácida ilha de ignorância em meio a mares tenebrosos de infinidade, e
não estávamos destinados a chegar longe.
As ciências, cada uma puxando para seu
próprio lado, nos causaram poucos danos até agora, mas algum dia a junção das
peças do conhecimento disperso descortinará visões tão terríveis da realidade e
de nossa pavorosa posição dentro dela que só nos restará enlouquecer com a
revelação ou fugir da iluminação mortal para a paz e a segurança de uma nova
idade das trevas.
Os teosofistas imaginaram o admirável
esplendor do ciclo cósmico no qual o nosso mundo e a raça humana são incidentes
transitórios. Eles sugeriram estranhos remanescentes com termos que congelariam
o sangue se não fossem mascarados por um suave otimismo. Mas não foi deles que
me chegou o especial vislumbre de eras ancestrais proibidas que me arrepia ao
lembrar e me enlouquece nos sonhos. Esse vislumbre, como todos os pavorosos
vislumbres da verdade, revelou-se de uma hora para outra com a junção acidental
de peças separadas, nesse caso, uma velha notícia de jornal e as anotações de
um professor já falecido. Espero que ninguém mais junte essas peças. Se eu
viver, jamais ajuntarei, deliberadamente, um elo à tão odiosa cadeia, com
certeza. Imagino que o professor também pretendia guardar silêncio sobre a
parte que sabia, e que teria destruído suas anotações se a morte súbita não o
tivesse colhido.
Meu contato com o assunto começou no inverno
de 1926 para 1927 com a morte de meu tio- avô George Gammell Angell, Professor
Emérito de Línguas Semíticas na Universidade Brow, Providence, Rhode Island. O
professor Angell era muitíssimo conhecido como uma autoridade em inscrições
antigas e costumava ser consultado por curadores de museus importantes, de
forma que muitos se lembrarão de seu falecimento, aos noventa e dois anos de
idade. No meio local, o interesse foi intensificado pela obscuridade da causa
da morte. O professor fora atingido quando voltava do barco de Newport, caindo
de repente, segundo testemunhas, depois de receber o encontrão de um negro com
ar de marinheiro que saiu de uma das vielas tenebrosas da ladeira íngreme que
servia de atalho do cais até a casa do falecido, na Williams Street. Os médicos
não conseguiram detectar nenhuma doença visível e concluíram, depois de um
debate confuso, que o fim se devera a alguma obscura lesão cardíaca provocada
pela subida apressada de uma ladeira tão íngreme por um homem tão idoso. Na
ocasião, não tive por que discordar dessa conclusão, mas ultimamente me sinto
inclinado a estranhar... e mais do que estranhar.
Na qualidade de herdeiro e executor
testamentário de meu tio-avô, pois ele morreu viúvo e sem filhos, teria de
examinar seus papéis com certa meticulosidade, e para esse fim transferi todas
as suas pastas e arquivos para minha moradia em Boston. Boa parte do material
que eu correlacionei será no futuro publicada pela Sociedade Arqueológica
Americana, mas havia uma caixa que me intrigou sobremaneira e não quis expô-la a outras vistas. Ela estava trancada e
não consegui encontrar a chave até que me ocorreu olhar a argola de chaves que
o professor trazia sempre no bolso. Consegui então abri-la, mas ao fazê-lo
deparei-me com um obstáculo maior e ainda mais protegido, pois qual poderia ser
o significado do estranho baixo-relevo de argila e os apontamentos, divagações
e recortes de jornais desconexos que encontrei? Teria meu tio, em seus últimos
anos, se transformado em um crédulo das mais levianas imposturas? Resolvi então
procurar o excêntrico escultor responsável por aquela aparente perturbação da
paz de espírito de um velho.
O baixo-relevo era um retângulo tosco com
menos de uma polegada de espessura e cerca de cinco por seis polegadas de área,
de origem ao que tudo indica moderna. A atmosfera e as sugestões de seus
motivos estava longe de ser modernas, porém, pois não obstante as
excentricidades de cubismo e futurismo serem muitas e alucinadas, elas não
reproduzem amiúde aquela regularidade críptica que emerge de documentos
pré-históricos. E o grosso daqueles desenhos com certeza parecia ser algum tipo
de escrita, conquanto minha memória, embora familiarizada com os papéis e as
coleções de meu tio, não conseguiu de maneira alguma identificar aquele tipo
particular, ou mesmo inferir suas filiações remotas.
Ao alto desses aparentes hieróglifos havia
uma figura com finalidade evidentemente decorativa, embora seu estilo
impressionista prejudicasse a formação de uma ideia muito precisa da natureza.
Parecia uma espécie de monstro, ou símbolo representando um monstro, cuja forma
só poderia ter sido concebida por uma fantasia mórbida. Se digo que minha
imaginação um tanto extravagante forjou imagens simultâneas de um polvo, um
dragão e uma caricatura humana, não estarei sendo infiel ao espírito da coisa.
Uma cabeça carnuda e tentaculada coroava um corpo grotesco, coberto de escamas,
com asas rudimentares, mas era o contorno geral do conjunto que o tornava mais
aterrorizante. Por trás da figura havia a vaga sugestão de uma paisagem
arquitetônica ciclópica.
Exceto por uma pilha de recortes da imprensa,
os textos que acompanhavam essa extravagância eram obra recente da mão do
Professor Angell, sem a menor pretensão a um estilo literário. O que parecia
ser o documento principal se intitulava “CULTO DE CTHULHU”[2] em caracteres
cuidadosamente grafados para evitar a leitura incorreta de uma palavra tão
invulgar. O manuscrito estava dividido em duas seções, a primeira intitulada
“1925 — Sonho e Obra do Sonho de H.A. Wilcox, Thomas Street, 7, Providence,
R.I.”, e o segundo, “Narrativa do Inspetor John R. Lesgrasse, Bieville Street,
121, Nova Orleans, La., em 1908 A.A.S. Mtg. — Notas sobre o Mesmo, & Prof.
Webb ́s Acct”.
Os outros papéis manuscritos eram todas
anotações breves, alguns deles relatos de sonhos bizarros de diversas pessoas,
outros citações de livros e revistas teosóficas — especialmente de Atlantis and
the Lost Lemuria de W. Scott-Elliot — e o resto comentários sobre antigas
sociedades secretas e cultos proibidos, com indicações de passagens de livros
de referência de antropologia e mitologia como O ramo de ouro de Frazer e
Witch-Cult in Western Europe da Srta. Murray.[3] A maior parte
dos recortes aludia a doenças mentais excêntricas e surtos de loucura ou mania
coletiva na primavera de 1925.
A primeira metade do manuscrito principal
relatava uma história muito estranha. Ao que parece, em 1o de março de 1925, um
jovem magro e soturno, de aspecto neurótico e exaltado, tinha procurado o
Professor Angell, levando um curioso baixo-relevo de argila ainda muito fresco
e úmido. Seu cartão trazia o nome de Henry Anthony Wilcox, e meu tio o
identificara como o filho mais jovem de uma excelente família que ele conhecia
de longe.
O jovem era estudante de escultura na Escola
de Desenho de Rhode Island e morava no edifício Fleur-de-Lys perto daquela
instituição.[4] Wilcox era um
jovem precoce, de gênio conhecido, mas grande excentricidade, e desde a infância
ele chamava a atenção pelas histórias bizarras e sonhos curiosos que tinha o
hábito de relatar. Ele se considerava “psiquicamente hipersensível”, mas para o
povo pacato da antiga cidade comercial ele não passava de um “esquisitão”. Sem
nunca se misturar muito com sua própria gente, ele foi perdendo aos poucos a
visibilidade social e agora só era conhecido de um pequeno grupo de estetas de
outras cidades. Mesmo o Clube das Artes de Providence, zeloso de seu
conservadorismo, o considerava um caso sem esperança.
Por ocasião da visita, dizia o manuscrito do
professor, o escultor, de repente, pediu a ajuda dos conhecimentos
arqueológicos de seu anfitrião para identificar os hieróglifos dos
baixo-relevo. Ele falava de maneira calma, sonhadora, sugerindo uma simpatia
afetada e distante, e meu tio foi um tanto ríspido na resposta, pois a condição
claramente recente da tabuleta indicava afinidade com qualquer coisa, menos com
arqueologia. A réplica do jovem Wilcox que impressionou meu tio o bastante para
ele recordar-se dela e registrá-la tal qual, teve um feitio poético que deve
ter marcado toda a conversa, e que mais tarde descobri tratar-se de uma forte
característica sua.
Ele disse, “É novo, de fato, visto que o fiz
na noite passada em meio a um sonho com cidades estranhas, e os sonhos são mais
antigos do que a fervilhante Tiro, ou a contemplativa Esfinge, ou a ajardinada
Babilônia.”
Foi aí que ele começou aquele relato confuso
que, de repente, espicaçou memórias adormecidas e conquistou o interesse
febricitante de meu tio. Tinha havido um rápido tremor de terra na noite
anterior, o mais forte sentido na Nova Inglaterra em muitos anos, e a
imaginação de Wilcox fora fortemente abalada. Recolhendo-se ao leito, ele teve
um sonho sem precedentes com grandes cidades ciclópicas, construídas com blocos
titânicos e monólitos projetados para o céu, tudo exsudando um limo verde e
sinistro de horror latente. As paredes e pilares estavam cobertos de
hieróglifos, e de algum ponto indeterminado abaixo chegava uma voz que não era
voz, uma sensação caótica que somente a fantasia poderia transformar em som,
mas que ele tentara transmitir com o amontoado de letras quase impronunciável
“Cthulhu fhtagn”.
Essa mixórdia verbal foi a chave para a
recordação que exaltou e perturbou o Professor Angell. Ele interrogou o
escultor com meticulosidade científica e estudou com atenção quase fanática, o
baixo- relevo em que o jovem se vira trabalhando, enregelado e vestido apenas
com as roupas de dormir, até a vigília insinuar-se em seu torpor. Meu tio
culpou a sua velhice, disse Wilcox mais tarde, pela lentidão com que
identificou os hieróglifos e a imagem. Muitas de suas perguntas pareceram
deslocadas para o visitante, em especial as que tentavam relacioná-lo com
cultos ou sociedades estranhos, e Wilcox não pôde compreender as repetidas
promessas de silêncio que lhe foram feitas em troca de ser aceito em alguma
ordem religiosa mística ou pagã. Quando o Professor Angell se convenceu de que
o escultor ignorava mesmo qualquer culto ou sistema de sabedoria críptica,
assediou o visitante com pedidos para que ele lhe relatasse sonhos futuros.
Isso rendeu frutos regulares. Depois da primeira entrevista, o manuscrito
registra visitas diárias do jovem durante as quais ele relatava fragmentos
surpreendentes de imaginação noturna cujo tema constante era alguma vista
ciclópica terrível de pedra escura e gotejante, com uma voz ou inteligência
subterrânea gritando monotonamente através de enigmáticos impactos sensoriais
só possíveis de descrever com palavras sem sentido. Os dois sons repetidos com
maior frequência são os expressos pelas letras “Cthulhu” e “R’lyeh”.
No dia 23 de março, prosseguia o manuscrito,
Wilcox não apareceu, e indagações feitas em sua moradia revelaram que, atacado por um tipo desconhecido de febre, ele
fora levado para a casa de sua família na Waterman Street. Ele havia gritado
durante a noite, despertando outros artistas do prédio, e havia manifestado, a
partir daquele momento, condições alternadas de consciência e delírio. Meu tio
telefonou incontinente para a família e dali em diante passou a acompanhar o
caso de perto, telefonando muitas vezes para o consultório do Dr. Tobey na
Thayer Street, o médico que estava acompanhado o caso. A mente febril do jovem,
ao que parecia, estava retida em coisas estranhas, e o médico chegava a
estremecer quando as mencionava. Estas incluíam não só a repetição do que ele
tinha sonhado antes, mas envolviam também algo gigantesco “com milhas de
altura” que andava ou se arrastava de um lado para outro. Em nenhum momento ele
descreveu essa coisa, mas expressões alucinadas ocasionais, reproduzidas pelo
Dr. Tobey, convenceram o professor de que ela devia ser idêntica à
monstruosidade inominável que ele tentara representar em sua escultura do
sonho. A referência a essa coisa, acrescentou o doutor, preludiava sempre a
recaída do jovem na letargia. Sua temperatura, por estranho que pareça não
subia muito acima do normal, mas seu estado geral sugeria antes uma febre
genuína do que uma perturbação mental.
No dia 2 de abril, por volta das três da
tarde, todos os sintomas da doença de Wilcox desapareceram de uma hora para
outra. Ele sentou-se na cama, espantado por estar em casa e sem a menor noção
do que tinha acontecido em sonho ou realidade desde a noite de 22 de março.
Recebendo alta do médico, voltou a seus aposentos em três dias, mas deixou de
prestar qualquer ajuda ao Professor Angell. Todos os vestígios de sonhos
estranhos tinham sumido de sua memória, e meu tio não guardou nenhum registro
de seus pensamentos noturnos depois de uma semana de relatos insossos e
irrelevantes sobre visões perfeitamente normais.
Aqui terminava a primeira parte do
manuscrito, mas referências a algumas anotações espalhadas deram-me muito em
que pensar, tanto, de fato, que só o arraigado ceticismo que marcava então a
minha filosofia pode explicar a persistente aversão que senti pelo artista. As
anotações em questão descreviam os sonhos de várias pessoas no mesmo período em
que o jovem Wilcox sofrera suas estranhas provações. Meu tio, ao que parece,
criou às pressas uma vasta rede de pesquisa envolvendo quase todos os amigos a
quem poderia fazer perguntas sem parecer impertinente, pedindo-lhes que
relatassem seus sonhos noturnos e as datas de qualquer visão extraordinária no
passado recente. A receptividade a seu pedido parece ter sido irregular, mas
ele deve ter recebido, no mínimo, mais respostas do que uma pessoa normal
poderia lidar sem uma secretária. Essa correspondência original não foi
preservada, mas suas anotações formaram um resumo completo e realmente
significativo. As pessoas comuns da sociedade e do meio comercial — o “sal da
terra” da Nova Inglaterra tradicional — deram um retorno quase negativo, embora
casos esparsos de impressões noturnas perturbadoras mas informes apareçam aqui
e ali, sempre entre 23 de março e 2 de abril, o tempo do delírio do jovem
Wilcox. Os homens de ciência foram afetados um pouco mais, embora que, de
quatro casos de descrição vaga sugiram vislumbres fugidios de paisagens
exóticas, e, em um caso, seja mencionado o pavor de alguma coisa anormal.
Foi dos artistas e poetas que vieram as
respostas pertinentes, e tenho clareza de que o pânico se alastraria se eles
tivessem podido comparar as anotações. Tal como aconteceu, na falta das cartas
originais, suspeitei que o compilador tinha feito perguntas indutivas ou
editado a correspondência para corroborar o que ele estava potencialmente
inclinado a ver. Isso reforçou minha idéia de que Wilcox, de alguma forma
conhecedor dos dados antigos que meu tio possuía, vinha se insinuando junto ao
veterano cientista. As respostas daqueles estetas contavam uma história
perturbadora. De 28 de fevereiro a 2 de abril, uma grande parte deles havia
tido sonhos extraordinários e a intensidade dos sonhos havia sido muito maior
durante o período do delírio do escultor. Mais de um quarto dos que relataram
algo, registravam cenas e sons vagos parecidos com os descritos por Wilcox, e
alguns sonhadores confessaram ter sentido um intenso pavor da gigantesca e
indescritível criatura avistada quase no fim. Um caso, que a anotação descreve
com ênfase foi muito triste. O indivíduo, um arquiteto muito conhecido, com
propensões para a teosofia e o ocultismo, tornou-se um louco furioso na data do
acesso do jovem Wilcox e expirou alguns meses mais tarde depois de gritar
incessantemente para ser salvo de algum invasor fugido do inferno. Se meu tio
tivesse organizado esses casos por nome em vez de números, eu poderia tentar
confirmá-los e fazer algumas investigações pessoais, mas do jeito como as coisas
se deram, só consegui localizar alguns. Desses, porém, confirmei as anotações
por completo.
Muitas vezes me perguntei se todos os objetos
das inquisições do professor ficaram tão perplexos quanto esses poucos. É bom
que não lhes chegue nenhuma explicação.
Os recortes da imprensa, como sugeri,
abordavam casos de pânico, mania e excentricidades durante o período em
questão. O Professor Angell deve ter-se valido de um serviço especial, pois era
imenso o número de recortes de fontes espalhadas por todo o Globo. Aqui, um
suicídio noturno em Londres; alguém que dormia sozinho havia saltado pela
janela depois de lançar um grito assustador. Ali, uma carta delirante ao editor
de um jornal da América do Sul, onde um fanático deduz um futuro tétrico de
visões que tivera. Um despacho da Califórnia descreve uma colônia de
teosofistas distribuindo mantos brancos em massa para algum “acontecimento
glorioso” que nunca chega, enquanto notícias da Índia falam com reservas de
sérias rebeliões de nativos no final de março. Orgias de vodu multiplicam-se no
Haiti e postos avançados na África registram murmúrios ominosos. Funcionários
americanos nas Filipinas sentem que algumas tribos estão inquietas naquele
período, e policiais de Nova York são atacados por levantinos histéricos na
noite de 22 para 23 de março. Na região oeste da Irlanda, também, correm
abundantes rumores e lendas fabulosas, e um pintor de temas fantásticos,
Ardois-Bonnot, expõe uma blasfema “Paisagem Onírica” no salão de primavera de
Paris de 1926. E são tão numerosos os distúrbios registrados em asilos de
loucos que só um milagre poderia ter impedido a comunidade médica de observar
os estranhos paralelismos e tirar conclusões enganosas. No todo, um espantoso
maço de recortes e até hoje mal consigo entender o calejado racionalismo que me
fez deixá-los de lado. Mas eu estava convencido então de que o jovem Wilcox
tinha conhecimentos dos assuntos mais antigos mencionados pelo professor.
II
– A Narrativa do Inspetor Legrasse
Os assuntos antigos que tornavam o sonho e o
baixo-relevo do escultor tão significativos para meu tio constituíam o tema da
segunda metade de seu extenso manuscrito. Ao que parece, o professor Angell já
tinha visto a silhueta infernal da monstruosidade sem nome, já se tinha
intrigado com os misteriosos hieróglifos e ouvido as sílabas aziagas que só
podem ser representadas por “Cthulhu”, e isso tudo associado de maneira tão
excitante e terrível que não causa espanto que ele tenha perseguido o jovem
Wilcox com perguntas e solicitações de dados.
A experiência anterior tinha ocorrido em
1908, dezessete anos antes, quando a Sociedade Antropológica Americana
realizara seu encontro anual em Saint Louis. O professor Angell, como convinha
a alguém com sua autoridade e suas realizações, teve um papel destacado em
todas as deliberações, e foi um dos primeiros a ser abordado por diversos
leigos que aproveitaram a convocação para formular perguntas querendo respostas
corretas e problemas para uma solução especializada.
O principal desses leigos, e, dentro em
pouco, o centro de interesse de todos os participantes, era um homem de meia
idade e aparência comum que tinha vindo de Nova Orleans atrás de informações
especiais impossíveis de obter junto a alguma fonte local. Chamava-se John
Raymon Legrasse e era, de profissão, inspetor de polícia. Trouxera consigo o
motivo de sua visita, uma estatueta de pedra, grotesca, repulsiva e ao que tudo
indica muito antiga, cuja origem não conseguira determinar. Não se deve supor
que o Inspetor Legrasse tivesse o menor interesse em arqueologia. Ao contrário,
seu desejo de esclarecimento era movido por considerações estritamente
profissionais. A estatueta, ídolo, fetiche, ou seja lá o que fosse, fora capturada
alguns meses antes nos pântanos arborizados ao sul de Nova Orleans, durante uma
batida a uma suposta reunião vodu, e os ritos a ela associados eram tão
extraordinários e repulsivos que a polícia não pôde deixar de concluir que
tinha topado com um culto demoníaco totalmente desconhecido e muito mais
diabólico do que os mais tenebrosos círculos de vodu africanos. Sobre a sua
origem, afora as histórias desencontradas e inacreditáveis extraídas dos
praticantes capturados, não se haveria de descobrir absolutamente nada, o que
explicava a ansiedade da polícia por qualquer sabedoria arcaica que a ajudasse
a situar o pavoroso símbolo e, através dele, a reconstituir a origem do culto.
O Inspetor Legrasse não estava preparado para
a sensação que seu oferecimento provocou. Bastou uma vista ao objeto para
colocar os homens de ciência em estado de tensa excitação, e sem demora eles se
aglomeraram ao seu redor para examinar a diminuta figura cuja absoluta
estranheza e aparência de antiguidade
abissal sugeriam poderosamente panoramas arcaicos e fechados. Nenhuma escola de
escultura identificável havia inspirado o terrível objeto, mas, entretanto,
centenas, milhares de anos, talvez, pareciam gravados na superfície turva e
esverdeada da pedra inclassificável.
A estatueta, que foi sendo passada com vagar
de mão em mão para um estudo mais cuidadoso, tinha sete a oito polegadas de
altura e um acabamento artístico raro. Representava um monstro de perfil meio antropoide,
mas com uma cabeça de polvo com um amontoado de tentáculos por face e um corpo
coberto de escamas aparentemente elástico, garras prodigiosas nas patas
dianteiras e traseiras, e asas longas e estreitas nas costas. A coisa, que
parecia animada de uma malignidade terrível e apavorante, tinha o corpo um
tanto estufado e estava acocorada em um pedestal, ou bloco retangular, com
inscrições indecifráveis. As pontas das asas tocavam na borda escura do bloco,
o traseiro ocupava o centro, enquanto as garras longas e curvas das patas
traseiras dobradas agarravam a borda frontal e se prolongavam até um quarto da
distância até a base do pedestal. A cabeça cefalópode estava curvada para a
frente de tal forma que as pontas dos tentáculos faciais raspavam nos dorsos
das patas dianteiras que se apoiavam nos joelhos erguidos da figura acocorada.
Ela dava uma impressão geral de estar viva, e era ainda mais assustadora por
sua origem ser tão absolutamente desconhecida. Sua antiguidade imensa,
espantosa e incalculável era inegável, embora ela não revelasse qualquer
ligação com algum tipo de arte da aurora da civilização — ou, mesmo, de alguma
outra era. Em contrapartida, o próprio material de que era feita constituía um
mistério, pois a pedra lisa preto-esverdeada com suas listras ou estrias
douradas ou iridescentes não se assemelhava a nada que a geologia ou a
mineralogia conhecessem. As inscrições ao longo da base eram também intrigantes
e nenhum dos presentes, apesar de ali se encontrar a metade do conhecimento
especializado do mundo nesse campo, conseguiu formar a menor ideia nem mesmo de
sua mais remota filiação linguística. Assim como a figura e o material, elas
pertenciam a algo terrivelmente antigo e distinto da humanidade tal como a
conhecemos; algo que sugeria com pavor ciclos de vida remotos e profanos,
alheios a nosso mundo e a nossas concepções.
Contudo, enquanto os membros abanavam com
seriedade as cabeças e confessavam sua derrota em face do problema apresentado
pelo inspetor, uma pessoa naquela reunião presumiu um traço de estranha
familiaridade na forma monstruosa e na inscrição e contou, com certa modéstia,
uma curiosidade de seu conhecimento. Tratava-se do hoje falecido William
Channing Webb, professor de antropologia da Universidade de Princeton e
conhecido explorador. O professor Webb participara, quarenta e oito anos antes,
de uma expedição à Groenlândia e à Islândia em busca de certas inscrições
rúnicas que não conseguiu descobrir, e na costa da Groenlândia Ocidental havia
encontrado uma tribo ou culto singular de esquimós degenerados cuja religião,
uma curiosa forma de adoração ao diabo, o havia estarrecido por seu caráter
deliberadamente cruel e repulsivo. A fé era pouco conhecida dos outros esquimós
e eles só a mencionavam entre arrepios, dizendo que tinha surgido em épocas
terrivelmente primitivas, antes mesmo do mundo existir. Além de ritos
indescritíveis e sacrifícios humanos, ela incluía certos rituais hereditários
fantásticos devotados a um demônio ancestral supremo ou tornasuk, e o professor
Webb havia conseguido uma cuidadosa transcrição fonética deste de um velho
mago-sacerdote ou angekok, expressando os sons em caracteres romanos da melhor
maneira que pôde. Mas no momento, tinha um significado todo especial o fetiche
que esse culto adorava e ao redor do qual os praticantes dançavam enquanto a
aurora boreal luzia por cima dos penhascos de gelo. Era, pontificou o
professor, um baixo-relevo em pedra muito tosco exibindo uma figura repulsiva e
algumas inscrições misteriosas. Até onde ele saberia dizer, tratava-se de um
similar tosco, em todos os traços essenciais, do objeto bestial pousado,
naquele momento, diante daquela assembleia.
Essas informações, recebidas com espanto e
admiração pelos membros ali reunidos, mostraram-se empolgantes em dobro para o
inspetor Legrasse, e ele na hora assediou o informante de perguntas. Tendo
anotado e transcrito um ritual oral dos adoradores do pântano que seus homens
haviam detido, pediu ao professor que se lembrasse o melhor possível das
sílabas anotadas entre os esquimós satanistas. Seguiu-se uma exaustiva
comparação de detalhes e um momento de respeitoso silêncio quando ambos,
investigador e cientista, concordaram sobre a identidade virtual da frase comum
aos dois rituais satânicos separados por mundos de distância. O que, em
essência, tanto os feiticeiros esquimós como os sacerdotes do pântano da
Louisiana tinham entoado para seus venerados ídolos era algo assim — sendo a
divisão de palavras inferidas das quebras normais da frase quando entoada em
voz alta:
“Ph’nglui mglw’ nafh Cthulhu R’lyeh wgah’nagl
fhtagn.”
Legrasse estava um passo à frente do
professor Webb, pois vários de seus prisioneiros mestiços tinham repetido pare
ele o que os celebrantes mais velhos lhes tinham dito sobre o significado das
palavras. Esse texto dizia algo assim:
“Em sua morada em R’lyeh
o morto Cthulhu espera sonhando.”
Então, atendendo a um pedido geral e
insistente, o inspetor Legrasse contou, da forma mais completa possível, sua
experiência com os adoradores do pântano, contando uma história a que, como
pude observar, meu tio atribuiu um significado profundo. Ela sugeria os mais
alucinados sonhos dos criadores de mitos e teosofistas, e revelava um espantoso
grau de imaginação cósmica em mestiços e párias.
Em 10 de novembro de 1907, a polícia de Nova
Orleans recebera um chamado frenético da região lacustre e pantanosa ao sul. Os
posseiros da região, em sua maioria descendentes primitivos mas de boa índole
dos homens de Lafitte,[5] estavam
tomados de mais absoluto pavor por uma coisa desconhecida que se aproximara
furtivamente deles durante a noite. Parecia vodu, mas vodu de um tipo mais
terrível do que todos que conheciam, e algumas mulheres e crianças tinham
desaparecido desde que o “tantã” maléfico começara seu batimento incessante no
coração dos bosques escuros e assombrados onde ninguém se aventura. Havia
gritos insanos e uivos angustiados, cantos de arrepiar a alma e chamas
diabólicas dançantes, e, prosseguiu o assustado mensageiro, que as pessoas não
podiam mais suportar.
Assim, um corpo de vinte policiais que lotava
dois veículos e um automóvel partiu ao entardecer, levando o trêmulo posseiro
como guia. No final da estrada transitável eles apearam e chapinharam muitas
milhas em silêncio pelos terríveis bosques de ciprestes onde o dia não
penetrava.
Raízes pavorosas e festões pendentes e
malignos de musgo espanhol os cercavam e, de vez em quando, um amontoado de
pedras úmidas ou fragmentos de alguma parede apodrecida intensificavam, com sua
sugestão de moradia mórbida, o sentimento de depressão que cada árvore
retorcida e cada ilhota musgosa se combinavam para produzir. Finalmente
despontou o povoado de posseiros, um amontoado de casebres miseráveis, e
moradores histéricos vieram correndo aglomerar-se em volta do grupo de
lanternas balouçantes. A batida surda dos tambores era agora pouco audível ao longe,
muito ao longe, e um uivo horripilante chegava em intervalos irregulares quando
o vento mudava. Um clarão avermelhado parecia filtrar através da pálida
vegetação rasteira além das intermináveis avenidas de escuridão florestal.
Mesmo relutando em ser deixados mais uma vez à sós, os amedrontados posseiros
recusaram-se a avançar uma polegada na direção do culto profano, e o inspetor
Legrasse e seus dezenove colegas tiveram que seguir em frente, sem guia, pelas
negras arcadas de horror que nenhum deles jamais percorrera.
A região invadida pela polícia tinha má
reputação e era geralmente desconhecida e não frequentada por homens brancos.
Corriam lendas de um lago oculto, jamais vislumbrado por olhos mortais,
habitado por uma coisa poliposa branca e informe, com olhos luminosos, e os
posseiros sussurravam que demônios com asas de morcego saíam voando de
cavernas, nas entranhas da terra, para adorá-la à meia-noite.
Eles diziam que a criatura já estava ali
antes de D’Iberville,[6] antes de La
Salle,[7] antes dos
índios, e antes mesmo dos animais e pássaros saudáveis dos bosques. Era o
próprio pesadelo e vê-la significava a morte, mas ela fazia os homens sonharem e assim eles sabiam o bastante
para se manter à distância. A orgia de vodu acontecia, de fato, na mera fímbria
da zona abominável, mas aquele local era ruim o bastante, daí, porque, talvez o
próprio local da adoração aterrorizasse os posseiros mais do que os pavorosos
sons e incidentes.
Somente a poesia ou a loucura poderiam fazer
justiça aos barulhos escutados pelos homens de Legrasse enquanto abriam cainho
pelo pântano tenebroso na direção do clarão vermelho e do “tantã” abafado. Há
características vocais típicas dos homens, e características vocais típicas das
feras, e é terrível ouvir uma quando a fonte devia indicar a outra. A fúria
animal e a libertinagem orgiástica atingiram ali alturas demoníacas com uivos e
guinchos extáticos que cortavam, reverberando o bosque sombrio como tempestades
pestilentas das profundas do inferno. De vez em quando, a gritaria desordenada
cessava, destacando-se o que parecia um coro bem ensaiado de vozes roucas
entoando compassadamente aquela frase ou ritual hediondo:
“Ph’nglui mglw’ nafh
Cthulhu R’lyeh wgah’nagl fhtagn.”
Atingindo um ponto onde o arvoredo era menos
denso, os homens toparam de repente com a visão do próprio espetáculo. Quatro
deles cambalearam, um desmaiou e dois foram sacudidos por um pranto convulsivo
que a furiosa cacofonia do festim felizmente abafou. Legrassse aspergiu água do
pântano no rosto do desmaiado e todos ficaram paralisados, tremendo, quase
hipnotizados pelo horror.
Em uma clareira natural do pântano havia uma
ilha relvada e sem árvores, com um acre de extensão, talvez, e em certa medida
seca. Sobre ela saltitava e se contorcia uma horda de anormalidade humana tão
indescritível que só um Sime ou Angarola[8] poderiam
descrever. Desprovida de roupas, aquela prole híbrida zurrava, urrava e se
contorcia em volta de um anel de fogo cujo centro, revelado por aberturas
ocasionais da cortina de chamas, era ocupado por um grande monólito branco com
quase oito pés de altura, sobre o qual repousava, parecendo incongruente por
sua pequena dimensão, a pérfida estatueta cinzelada. De um amplo círculo
formado por dez patíbulos dispostos em intervalos regulares, tendo monólito
branco rodeado de chamas como centro, pendiam, de cabeça para baixo, os corpos
terrivelmente desfigurados dos infortunados posseiros desaparecidos. Era no
interior desse círculo que a roda de adoradores saltava e rugia, movendo-se da
esquerda para a direita em um bacanal interminável entre o anel de corpo e o
anel de fogo.
Pode ter sido apenas imaginação e podem ter
sido apenas os ecos a induzir um dos homens, um espanhol impressionável, a
imaginar ter ouvido reposta antifônicas ao ritual de algum ponto distante e
escuro das profundezas do bosque de antiga lenda e horror. Esse homem, Joseph
D. Galvez, eu encontrei e interroguei mais tarde, e ele se mostrou
espantosamente imaginativo, chegando a sugerir um tênue bater de grandes asas e
o vislumbre de olhos brilhantes e de um enorme vulto branco além das árvores
mais distantes — mas imagino que tenha ouvido muitas superstições nativas.
A paralisia de pavor dos homens, na verdade,
durou pouco. O dever logo se impôs e mesmo havendo por ali perto uma centena de
mestiços celebrantes, a polícia confiou em suas armas e caiu, com determinação,
em cima da turba repugnante. Durante cinco minutos, o alvoroço e o caos
resultantes foram indescritíveis. Golpes terríveis, tiros e fugas, mas no final
Legrasse pôde contar cerca de quarenta e sete prisioneiros sombrios que foram
obrigados a se vestir às pressas e se alinhar entre duas filas de policiais.
Cinco adoradores estavam mortos, e dois gravemente feridos foram levados em
macas improvisadas por seus colegas presos. A estatueta sobre o monólito foi
retirada com cuidado, é claro, e trazida por Legrasse.
Inquiridos na delegacia depois de uma jornada
de tensão e cansaço intensos, os prisioneiros revelaram-se todos homens de um
tipo de mestiçagem muito inferior e mentalmente aberrante. Eram marinheiros, em
sua maioria, e um punhado de negros e mulatos, sobretudos caribenhos ou
portugueses de Brava, nas ilhas de Cabo Verde, dava um toque de voduísmo ao
culto heterogêneo. Mas não foi preciso muita inquisição para ficar evidente que
havia algo muito mais profundo e mais antigo do que o fetichismo negro.
Degradadas e ignorantes como eram, as criaturas defendiam, com surpreendente
consistência, a ideia central de sua abominável fé.
Eles adoravam, assim disseram, os Grandes
Antigos que viveram muitas eras antes de existirem os homens, e que tinha vindo
do céu para o mundo jovem. Esses Antigos já tinham partido, para o interior da
Terra e o fundo do mar, mas seus corpos mortos tinham revelado seus segredos em
sonhos aos primeiros homens, que criaram um culto que jamais deixara de
existir. Aquilo que praticavam era esse culto, e segundo os prisioneiros ele
sempre existira e sempre existiria, escondido em desertos remotos e lugares
sombrios espalhados pelo mundo até o dia em que o grande sacerdote Cthulhu,
saindo de sua tétrica morada na imponente cidade submarina de R’lyeh, emergiria
e colocaria a Terra novamente sob seu jugo. Algum dia ele conclamaria, quando
as estrelas estivessem preparadas, e o culto secreto estaria pronto para libertá-lo.
Até lá, nada mais deveria ser dito. Havia um
segredo que nem a tortura poderia extrair. A humanidade não era de modo algum a
única das coisas conscientes da Terra, pois emergiam vultos da escuridão para
visitar os poucos fiéis. Mas esses não eram os Grandes Antigos. Nenhum homem
jamais vira os Antigos. O ídolo cinzelado era o grande Cthulhu, mas ninguém
saberia dizer se os outros eram exatamente iguais a ele. Ninguém conseguira ler
a antiga inscrição, mas as coisas eram transmitidas de boca em boca. O ritual
entoado não era o segredo — esse jamais era dito em voz alta, apenas
sussurrado. O canto significava apenas isto: “Em sua morada em R’lyeh, o morto
Cthulhu espera sonhando.”
Somente dois dos prisioneiros foram
considerados sãos o bastante para a forca e o resto foi confiado a várias
instituições. Todos negaram que a matança tinha sido feita pelos Alados Negros
que tinha vindo até eles de seu imemorial ponto de encontro no bosque
assombrado. Mas daqueles aliados misteriosos, não se pôde jamais obter um
relato coerente. O grosso do que a polícia conseguiu extrair veio de um mestiço
muito velho chamado Castro, que alegava ter navegado em portos estranhos e
conversado com líderes imortais do culto nas montanhas da China.
O velho Castro recordou fragmentos da odiosa
lenda que fizeram empalidecer as especulações dos teosofistas e faziam o homem
e o mundo parecerem recentes e transitórios. Durante muitas eras, outras
Criaturas governaram a Terra, e Elas tinham construído grandes cidades. Restos
Delas, segundo lhe disseram os chineses imortais, ainda poderiam ser
encontrados como pedras ciclópicas em ilhas do Pacífico. Elas todas tinham
desaparecido vastas eras antes dos homens chegarem, mas certas artes poderiam
revivê-las quando as estrelas girassem novamente para as posições certas no
ciclo da eternidade. Elas próprias, na verdade, tinham vindo das estrelas, e
trazido Suas imagens Consigo.
Os Grandes Antigos, prosseguiu Castro, não
eram totalmente de carne e sangue. Tinham forma — pois não o prova essa estatueta
estrelada? — mas essa forma não era feita de matéria. Quando as estrelas
estivessem posicionadas, Eles podiam saltar de mundo para mundo, céu afora, mas
quando as estrelas estavam na posição errada, não podiam viver. Mas embora não
vivessem mais, Eles jamais podiam realmente morrer. Jaziam em casas de pedra em
Sua grande cidade de R’lyeh, preservados pelos feitiços do poderoso Cthulhu
para uma gloriosa ressurreição quando as estrelas e a Terra estivessem mais uma
vez prontas para Eles. Mas a essa altura, alguma força exterior teria de agir
para libertar Seus corpos. Os encantamentos que Os mantinham intatos também Os
impediam de dar o passo inicial, e Eles só podiam ficar deitados, despertos, no
escuro, e pensar, enquanto incontáveis milhões de anos transcorriam. Sabiam
tudo que se passava no universo, mas se comunicavam por transmissão de
pensamentos. Mesmo agora Eles conversavam em Seus túmulos. Quando, depois de
infinidades de caos, surgiram os primeiros homens, os Grandes Antigos falaram
aos mais sensíveis deles, moldando seus sonhos, pois só assim Sua linguagem
conseguia atingir as mentes carnais dos mamíferos.
Então, sussurrou Castro, aqueles primeiros
homens criaram o culto em torno de pequenos ídolos que os Grandes lhes
mostraram, ídolos trazidos de estrelas escuras para zonas sombrias. Esse culto
não morreria jamais até que as estrelas estivessem de novo em posição e os
sacerdotes secretos tirassem o grande
Cthulhu de Sua sepultura para reanimar Seus súditos e recuperar Seu domínio
sobre a Terra. O momento seria fácil reconhecer pois a humanidade se teria
tornado então como os Grandes Antigos, livre, selvagem, e além do bem e do mal,
com as leis e os comportamentos morais deixados de lado, e todos os homens, em
júbilo, gritando, matando e festejando. Os Antigos libertadores lhes ensinariam
então novas maneiras de gritar, matar, festejar, se divertir, e toda a Terra
arderia em um holocausto de êxtase e liberdade. Até lá, o culto, através de
ritos apropriados, devia manter viva a memória daqueles costumes ancestrais e
transmitir secretamente a profecia de sua volta.
Outrora, nos tempos idos, homens escolhidos
tinham conversado com os sepultados Antigos em sonhos, mas alguma coisa
acontecera então. A grande cidade de pedra de R’lyeh, com seus monólitos e
sepulcros, tinha afundado debaixo das ondas e as águas profundas, cheias do
mistério primordial no qual nem mesmo o pensamento pode penetrar, tinham
interrompido o intercâmbio espectral. Mas a memória nunca morria, e sumos
sacerdotes diziam que a cidade se ergueria de novo quando as estrelas se
posicionassem. Depois sairiam do chão, mofados e tétricos, os espíritos negros
da Terra, e cercados de rumores sombrios apanhados em cavernas por baixo dos
leitos esquecidos dos mares. Mas o velho Castro não ousou falar muito deles.
Calou-se bruscamente e não houve persuasão ou sutilezas que pudessem elucidar
mais nessa direção. O tamanho dos Antigos, também, o que é curioso, ele não
quis mencionar. Sobre o culto, disse que seu núcleo devia estar no centro dos desertos
intransitáveis da Arábia, onde Irem, a Cidade dos Pilares, sonha oculta e
intocada. Ele não tinha qualquer relação com o culto das bruxas europeu, e era
virtualmente desconhecido entre seus membros. Nenhum livro jamais se referira
de fato a ele, embora, segundo os imortais chineses, houvesse um duplo
significado no Necronomicon[9] do árabe
louco Abdul Al-Hazred que os iniciados poderiam ler quando quisessem,
especialmente no muito discutido dístico:
“Pois não há morto que
fique em repouso eterno, E com imensa idade, poderá finar-se a morte.”
Legrasse, muitíssimo impressionado e não
menos perplexo, tinha interrogado em vão sobre as filiações históricas do
culto. Castro, ao que parece, falara a verdade ao dizer que ele era
absolutamente secreto. As autoridades da Universidade de Tulane não puderam
lançar luz nem sobre o culto, nem sobre a imagem, e o investigador tinha
procurado as mais altas autoridades do país, obtendo apenas a história da
Groenlândia do professor Webb.
O interesse febril provocado pelo relato de
Legrasse ao encontro, corroborado como era pela estatueta, repetiu-se na
correspondência subsequente dos participantes, embora só apareçam menções
esparsas a ele nas publicações formais da sociedade. A cautela é o primeiro
cuidado dos que se acostumam a enfrentar o charlatanismo e a impostura.
Legrasse emprestou a imagem por algum tempo
ao professor Webb, mas quando este morreu, ela lhe foi devolvida e permanece em
sua posse, onde eu a vi não faz muito tempo. É, de fato, uma coisa terrível, e
está inconfundivelmente relacionada com a escultura de sonho do jovem Wilcox.
Não me espanta que meu tio ficasse excitado
com a história do escultor, pois o que poderia pensar ao saber, conhecendo o
que Legrasse havia apurado sobre o culto, de um jovem sensível que tinha
sonhado não só com a figura e os hieróglifos exatos da imagem encontrada no
pântano e da tabuleta diabólica da Groenlândia, mas que chegara em seus sonhos,
pelo menos três das palavras exatas da fórmula pronunciada por satanistas
esquimós e mestiços da Louisiana? O pronto empreendimento de uma investigação
de extrema eficácia pelo professor Angell era perfeitamente natural, embora eu
suspeitasse que o jovem Wilcox tinha tomado conhecimento do culto por algum
canal indireto, e tinha inventado uma sequência de sonhos para aumentar e
prolongar o mistério às custas do meu tio. As narrativas de sonhos e os
recortes colecionados pelo professor eram, por certo, uma prova poderosa, mas
minha vocação racionalista e a extravagância do assunto todo levaram-me a adotar o que considerei as conclusões mais
sensatas. Assim, depois de estudar cuidadosamente o manuscrito de novo e
comparar as anotações teosóficas e antropológicas com a narrativa sobre o culto
de Legrasse, fiz uma viagem à Providence para encontrar o escultor e
censurá-lo, como achava que merecia, por se impor de maneira tão atrevida a um
homem culto e idoso.
Wilcox ainda morava sozinho no Edifício
Fleur-de-Lys da Thomas Street, uma pavorosa imitação vitoriana da arquitetura
Breton do século XVII que pavoneia sua fachada de estuque em meio às adoráveis
casas coloniais da antiga colina e à sombra do mais belo campanário da América.
Encontrei-o a trabalhar em seus aposentos, e deduzi, imediatamente, pelos
modelos espalhados por ali, que seu gênio era mesmo profundo e autêntico. Algum
dia, acredito, ele será conhecido como um grande decadentista, pois conseguiu
cristalizar em argila, e algum dia espelhará em mármore, aqueles pesadelos e
fantasias que Arthur Machen[10] evoca em
prosa e Clark Ashton Smith[11] exibe em
versos e pinturas.
Frágil, soturno e um tanto desleixado,
virou-se languidamente à minha batida perguntou-me, sem se levantar, o que eu
queria. Quando lhe contei quem eu era, mostrou algum interesse, pois meu tio
havia excitado sua curiosidade ao investigar seus sonhos bizarros, mesmo sem
nunca explicar as razões de seu estudo. Eu não ampliei seus conhecimentos a
esse respeito, mas tentei, com alguma sutileza, interessá-lo. Em pouco tempo,
convenci-me de sua absoluta sinceridade, pois ele falou dos sonhos de uma
maneira que não deixava dúvidas.
Os sonhos e seu resíduo subconsciente tiveram
profunda influência em sua arte, e ele me mostrou uma estátua cujos contornos
me fizeram estremecer com a perversidade que sugeria. Não se lembrava de ter
visto o original da coisa exceto no baixo-relevo sonhado, mas as linhas foram
insensivelmente tomando forma em suas mãos. Era, sem dúvida, a forma gigante
que ele tinha expressado em seu delírio. Logo ficou claro que ele não sabia
nada sobre o culto secreto afora o que a sabatina implacável de meu tio deixara
escapar, e mais uma vez tentei imaginar alguma maneira pela qual ele pudesse
ter recebido as pavorosas impressões.
Ele falou de seus sonhos de uma maneira
curiosamente poética, fazendo-me ver, com terrível nitidez, a úmida cidade
ciclópica de pedras verdes escorregadias — cuja geometria, comentou
casualmente, era toda errada — e ouvir, em suspensa expectativa, o incessante e
quase mental chamado das profundezas: “Cthulhu fhtagn”, “Cthulhu fhtagn”. Essas
palavras eram em parte do terrível ritual que falava da vigília em sonho do
falecido Cthulhu em sua cripta de pedra em R’lyeh, e fiquei profundamente
comovido a despeito de minhas crenças racionais. Wilcox, com certeza, ouvira
falar do culto de maneira casual e logo se esquecera dele em meio à profusão de
leituras e fantasias também excêntricas. Mais tarde, sendo muito
impressionável, aquilo tinha encontrado expressão subconsciente em sonhos, no
baixo-relevo e na terrível estátua que eu agora tinha diante de mim, de forma
que sua imposição sobre meu tio tinha sido muito inocente. O jovem era de um
tipo um tanto afetado e um tanto rude ao mesmo tempo, de que eu jamais poderia
gostar, mas eu já me sentia inclinado a admitir seu gênio e sua honestidade.
Despedi-me amistosamente, desejando-lhe todo o sucesso que seu talento promete.
A questão do culto continuava a me fascinar,
e às vezes eu tinha vislumbres de glória pessoal com as pesquisas sobre sua
origem e suas conexões. Visitei Nova Orleans, conversei com Legrasse e outros
participantes daquela antiga batida policial, vi o ídolo assustador e cheguei a
inquirir os prisioneiros mestiços sobreviventes. O velho Castro, infelizmente,
morrera há alguns anos. O que ouvi de forma tão vívida de primeira mão,
conquanto apenas confirmasse em detalhes o que meu tio tinha escrito, animou-me
de novo, pois me parecia estar na pista de uma religião muito real, muito
secreta e muito antiga cuja descoberta faria-me um antropólogo ilustre. Minha
atitude ainda era toda materialista, tomara ainda fosse, e desconsiderei com
perversidade quase inexplicável a coincidência entre as anotações dos sonhos e
os curiosos recortes colecionados pelo professor Angell.
Uma coisa de que comecei a suspeitar, e que
agora temo saber, é que a morte de meu tio não fora natural. Ele caíra em uma
rua enladeirada e estreita que levava a um antigo cais coalhado de mestiços
estrangeiros, depois do esbarrão involuntário de um marinheiro negro. Eu não me
esquecera do sangue misto e das atividades marinhas dos membros do culto em
Louisiana, e não me surpreendia ficar sabendo de métodos secretos e agulhas
envenenadas, tão implacáveis e tão ancestralmente conhecidas quando os ritos e
crenças eram secretos. Legrasse e seus homens, é verdade, não tinham sido
afetados, mas na Noruega, um certo marinheiro que vira tais coisas está morto.
As investigações mais profundas de meu tio, depois de obter os dados do
escultor, não poderiam ter chegado a ouvidos sinistros? Creio que o professor
Angell morreu porque sabia demais, ou porque, provavelmente, viria a saber
demais. Resta saber se irei como ele se foi, pois também sei muito agora.
III
– A Loucura Vinda do Mar
Se o céu algum dia quisesse conceder-me uma
benção, esta seria apagar de todo os efeitos do acaso que fez meus olhos se
fixarem em um pedaço de papel que forrava uma prateleira. Não era algo com que
eu me teria deparado naturalmente em minhas ocupações diárias, pois se tratava
de um número velho de um jornal australiano, o Sydney Bulletin, de 18 de abril
de 1925. Ele tinha escapado inclusive à firma de distribuição de recortes que,
por ocasião de sua edição, vinha coletando material para a pesquisa de meu tio.
Minhas investigações sobre o que o professor
Angell chamava de “Culto de Cthulhu” estavam quase paradas e eu estava de
visita a um amigo erudito em Paterson, Nova Jersey, curador de um museu local e
mineralogista de renome. Examinando, certo dia, os espécimes de reserva,
espalhados nas prateleiras de uma sala de fundo do museu, meu olhar foi atraído
por uma curiosa ilustração em um dos velhos jornais estendidos embaixo das
pedras. Tratava-se do Sydney Bulletin que mencionei, pois meu amigo tinha
amplas relações no exterior, e a ilustração era uma autotipia recortada de uma
repulsiva imagem de pedra quase idêntica à que Legrasse tinha encontrado o
pântano.
Retirei, impaciente, as peças preciosas de
cima da folha de jornal e examinei minuciosamente a matéria, despontando-me com
o pouco que dizia. O que ela sugeria, porém, teve profundas repercussões em
minha busca periclitante e recordei com todo cuidado para tomar medidas
imediatas. Ela dizia o seguinte:
MISTERIOSO NAVIO PERDIDO
ENCONTRADO NO MAR
Vigilant chega rebocando
iate neozelandês armado e abandonado. Encontrados um sobrevivente e um morto a
bordo.
História de batalha
desesperada e mortes no mar. Marinheiro resgatado omite detalhes sobre a
estranha experiência. Encontrado ídolo estranho em sua posse. Investigações
prosseguem.
O cargueiro Vigilant da
Morrison Co., com destino a Valparaíso, chegou esta manhã à sua doca no Porto
de Darling, rebocando o iate a vapor Alert, combatido e inutilizado mas
fortemente armado, de Dunedin, Nova Zelândia, que foi avistado no dia 12 de
abril em 34o 21’ de Latitude S. e 152o 17’ de Longitude O. com um homem vivo e
um morto a bordo.
O Vigilant deixou
Valparaíso em 25 de março, e no dia 2 de abril foi impelido muito ao sul de sua
rota por tempestades excepcionalmente violentas e ondas monstruosas. Em 12 de
abril, o navio abandonado foi visto e embora parecesse estar deserto, depois de
abordado, verificou-se que abrigava um sobrevivente em condições quase
delirantes e um homem que, com certeza, estava morto havia mais de uma semana.
O vivo estava agarrado a um horrível ídolo de pedra de origem desconhecida, com
cerca de trinta centímetros de altura, sobre cuja natureza autoridades da
Universidade de Sydney, da Royal Society e do Museu da College Street
professaram total perplexidade, e que o sobrevivente fiz ter encontrado na
cabine do iate, em um pequeno escrínio cinzelado de tipo comum.
Esse homem, depois de
recobrar os sentidos, contou uma história muito estranha de pirataria e
chacina. Trata-se de Gustaf Johansen, um norueguês de alguma inteligência, e
que fora o contramestre da escuna Emma, de Auckland, que zarpou para Callao com uma tripulação de onze
homens em 20 de fevereiro. A Emma, dizia ele, foi retardada e empurrada com
toda força para o sul de sua rota pela grande tormenta de 1o de março, e em 22
de março, estando em 49o 51’ de Latitude S. e 128o 34’ de Longitude O. encontrou
Alert, manejado por uma tripulação estranha e mal-encarada de canacas e
mestiços. Ordenado peremptoriamente a voltar, o capitão Collins se recusou,
diante do que a estranha tripulação começou a atirar com selvageria e sem aviso
na escuna com a bateria pesada de canhões de bronze que equipava o iate. Os
homens da Emma travaram luta, conta o sobrevivente, e embora a escuna começasse
a afundar com os tiros recebidos abaixo da linha d’água, eles conseguiram
emparelhar o barco com o inimigo e abordá-lo, enfrentando a tripulação selvagem
no convés do iate, e sendo forçados a matar todos, cujo número era um pouco
superior, devido ao modo particularmente abominável e desesperado, ainda que
canhestro, com que eles lutavam.
Três homens da Emma,
inclusive o capitão Collins e o imediato Green, foram mortos, e os oito
restantes, comandados pelo contramestre Johansen trataram de manobrar o iate
capturado, seguindo em seu curso original para ver se existia alguma razão para
a ordem de voltar. No dia seguinte, ao que parece, eles desembarcaram em uma
pequena ilha, embora não soubesse da existência de nenhuma ilha naquela parte
do oceano, e seis dos homens morreram, de alguma forma, em terra, embora
Johansen seja curiosamente reticente sobre essa parte de sua história e fale apenas
de eles terem caído em uma fenda da rocha. Mais tarde, ao que parece, ele e um
companheiro subiram a bordo do iate e tentaram manobrá-lo, mas foram fustigados
pela tempestade de 2 de abril. Daquele momento até seu resgate no dia 12, o
homem pouco se recorda, e nem mesmo se lembra de quando William Briden, seu
companheiro, morreu. Não há evidências visíveis da causa da morte de Briden, e
é provável que se tenha dado à perturbação mental ou à desproteção. Informações
telegráficas de Dunedin relatam que o Alert era bem conhecido ali como um barco
mercante na ilha, e possuía uma péssima reputação em todo o cais. Pertencia a
um estranho grupo de mestiços cujas reuniões frequentes e incursões noturnas
aos bosques atraíam grande curiosidade, e tinha zarpado com grande pressa pouco
depois da tempestade e dos tremores de terra de 10 de março. Nosso
correspondente de Auckland confere uma excelente reputação à Emma e a sua
tripulação, e Johansen é descrito como homem sóbrio e valoroso. O almirantado
vai abrir um inquérito sobre o assunto todo a partir de amanhã, e todos os
esforços serão enviados para induzir Johansen a falar mais fracamente do que
tem feito até agora.
Isso era tudo, além da imagem da estatueta
infernal, mas que associação de ideias desencadeou em minha mente! Ali estavam
novas e preciosas informações sobre o Culto de Cthulhu, e evidências de que ele
guardava estranhas relações com o mar, assim com a terra. O que teria levado a
tripulação mestiça a ordenar que a Emma retornasse enquanto seguiram em frente
com seu hediondo ídolo? O que seria a ilha desconhecida onde seis homens da
Emma tinham morrido, e sobre a qual o imediato Johansen era tão reticente? O
que a investigação do vice-almirantado teria apurado e o que se saberia do
abominável culto em Dunedin? E o mais admirável, que relação profunda e
sobrenatural de datas era aquela que emprestava um significado maligno agora
inegável às diversas viravoltas dos acontecimentos tão cuidadosamente anotadas
por meu tio?
Em 10 de março — nosso 28 de fevereiro
segundo a linha internacional da data — vieram o terremoto e a tempestade. De
Dunedin, o Alert e sua deletéria tripulação tinha partido a toda pressa como se
fossem imperiosamente convocados, e no outro lado da Terra, poetas e artistas
tinham começado a sonhar com uma estranha cidade ciclópica e úmida, enquanto o
jovem escultor tinha modelado, durante o sono, a forma do temível Cthulhu. Em
23 de março, a tripulação da Emma desembarcou em uma ilha desconhecida onde
deixou seis mortos; e naquela mesma data, os sonhos de homens sensíveis
assumiram uma vivacidade acentuada, obscureceram de pavor da perseguição
maligna de um monstro gigantesco, enquanto um arquiteto enlouquecia e um
escultor mergulhava no delírio! E quanto a essa tempestade de 2 de abril — a data
em que todos os sonhos com a cidade úmida cessaram e Wilcox escapou ileso do
jugo de estranha febre? O que pensar disso tudo — e das sugestões do velho
Castro sobre os Antigos, de origem estelar, submersos e o advento de seu
reinado, seu culto religioso e seu domínio sobre os sonhos? Estaria eu
cambaleando à beira de horrores cósmicos que a capacidade humana seria incapaz
de suportar? Se assim fosse, deviam ser apenas horrores mentais, pois, de algum
modo, o dois de abril dará um fim à qualquer ameaça monstruosa que tivesse
começado seu assédio à alma da humanidade.
Naquela noite, depois de um dia de arranjos e
telegramas apressados, despedi-me de meu hospedeiro e tomei um trem para São
Francisco. Em menos de um mês, eu estava em Dunedin, onde descobri, porém, que
pouco se sabia dos estranhos membros do culto que tinham perambulado pelas
velhas tavernas do cais. A escória das docas era comum demais para merecer
alguma menção especial, embora
corressem vagos rumores sobre uma viagem ao interior, feita por aqueles
mestiços, durante a qual se notaram um longínquo rufar de tambores e chamas
vermelhas nos morros distantes. Em Auckland, fiquei sabendo que Johansen tinha
voltado com os cabelos louros embranquecidos depois de uma inquisição
perfunctória e inconclusiva em Sydney, e depois disso vendera sua casinha na
West Street e navegara com a mulher para sua velha casa em Oslo. Sobre a sua
estarrecedora experiência, ele não diria aos amigos mais do que dissera aos
funcionários do almirantado, e tudo que eles puderam fazer foi dar-me seu
endereço em Oslo.
Depois disso, fui a Sydney e conversei com
marinheiros e membros do tribunal do vice- almirantado, mas foi em vão. Vi o
Alert, agora vendido e em uso comercial, no Cais Circular em Sydney Cove, mas
de nada me serviu sua aparência vulgar. A estatueta agachada com sua cabeça de
choco, corpo de dragão, asas escamadas e pedestal hieróglifo, estava guardada
no Museu do Parque Hyde. Eu a estudei atentamente, achando-a de um artesanato
muito raro, contendo o mesmo absoluto mistério, terrível antiguidade e sinistra
estranheza de material que eu tinha notado no exemplar menor de Legrasse. Os
geólogos, contou-me o curador, tinham-na considerado um grande mistério, pois
juravam que não havia no mundo uma pedra daquele tipo. Estremecendo, pensei no
que o velho Castro tinha dito a Legrasse sobre os Grandes primitivos: “Eles
vieram das estrelas e trouxeram Suas imagens consigo.”
Abalado por uma revolução mental como jamais
conhecera, resolvi visitar o contramestre Johansen em Oslo. Navegando até
Londres, tornei a embarcar em seguida para a capital da Noruega onde
desembarquei, em um certo dia de outono, nas docas bem cuidadas à sombra de
Egeberg.[12] O endereço de
Johansen, conforme verifiquei, ficava na Cidade Velha do Rei Harold Haardrada,
que mantivera vivo o nome de Oslo durante os séculos em que a cidade maior se
disfarçara de “Christiania”.[13] Fiz o breve
percurso de táxi com o coração palpitando, na porta de um velho e bem cuidado
edifício com a frente rebocada. Uma mulher de rosto melancólico, de preto,
atendeu, causando-me profunda frustração ao me contar, em um inglês vacilante,
que Gustaf Johansen já não existia.
Não sobrevivera a seu retorno, contou-me a
esposa, pois os acontecimentos ao mar, em 1925, tinham acabado com ele. Ele não
tinha contado à esposa nada além do que dissera em público, mas tinha deixado
um longo manuscrito — sobre “assuntos técnicos” como dizia — escrito em inglês,
evidentemente para protegê-la do risco de uma leitura casual. Caminhando por
uma estreita viela perto do cais de Gotemburgo, fora atingido e derrubado por
um fardo de papel caído de uma janela de sótão. Dois marinheiros indianos
ajudaram-no prontamente a se levantar, mas antes que a ambulância chegasse, ele
estava morto. Os médicos não encontraram nenhuma causa apropriada para o seu
falecimento e atribuíram a problemas cardíacos e à constituição debilitada.
Sentia agora corroer-me as entranhas aquele
terror hediondo que jamais me abandonará até que eu também fique em repouso,
“por acidente” ou de alguma outra forma. Persuadindo a viúva de que minha
conexão com os “assuntos técnicos” de seu marido me intitulava a ficar com o
manuscrito, levei o documento e comecei sua leitura no navio para Londres. Era
uma coisa simplória, desconexa — o esforço de um marinheiro ingênuo em um
diário a posteriori — e procurava recordar, dia a dia, aquela última e terrível
viagem. Não posso tentar transcrevê-lo literalmente em toda sua nebulosidade e
redundância, mas reproduzirei o bastante de seu conteúdo para mostrar por que o
som da água contra os costados do navio se tornou de tal forma insuportável
para mim que tapei os ouvidos com algodão.
Johansen, graças a Deus, não sabia tudo,
apesar de ter visto a cidade e a Coisa, mas eu jamais dormirei tranquilo
enquanto pensar nos horrores que espreitam sem parar por trás da existência no
tempo e no espaço, e naquelas blasfêmias profanas, de estrelas primitivas, que
sonham no fundo do mar, conhecidas e veneradas por um culto de pesadelo pronto
e ávido para soltá-las no mundo, sempre que algum terremoto suspender sua
monstruosa cidade de pedra novamente até o sol e o ar.
A viagem de Johansen tinha começado tal como
ele contou ao vice-almirantado. A Emma, navegando com lastro, fizera-se ao mar
em Auckland, em 20 de fevereiro, e tinha sido atingida em cheio por aquela
tempestade provocada pelo terremoto que devia ter desprendido, do fundo do mar,
os horrores que povoam os sonhos humanos. De novo sob controle, a embarcação
avançava em boa marcha quando foi atacada pelo Alert, em 22 de março, e pude
sentir o desgosto do imediato enquanto descrevia seu bombardeio e afundamento.
Aos fanáticos mestiços do Alert, ele se refere com perceptível horror. Eles
tinham alguma coisa especialmente abominável que parecia quase um dever destruí-los,
e Johansen manifesta um espanto ingênuo com a acusação de impiedade feita a seu
grupo durante o inquérito judicial. Depois, impelidos pela curiosidade,
seguiram em frente no iate capturado sob o comando de Johansen e avistaram uma
grande coluna de pedra se projetando para cima da superfície do mar, e em 47o
9’ de Latitude S. e 126o 43’ de Longitude O. Chegaram a um litoral combinando
lodo, limo e construções de alvenaria ciclópica coberta de ervas daninhas que
outra coisa não poderia ser senão a substância tangível do supremo horror sobre
a Terra — a pavorosa cidade- defunta de R’lyeh, construída em eras imemoriais
anteriores à História pelas formas imensas e malignas que se infiltraram das
estrelas sombrias. Ali jaziam o poderoso Cthulhu e suas hordas, ocultos em
criptas verdes, enlameadas, e expedindo, enfim, depois de ciclos temporais
incalculáveis, os pensamentos que espalhavam o terror nos sonhos de pessoas
sensíveis e convocavam imperiosamente os fiéis a uma romaria de libertação e
restauração. Disso tudo não suspeitava Johansen, mas Deus sabe que ele logo
veria o suficiente.
Imagino que um único topo de montanha, a
hedionda cidadela encimada por monólito sobre a qual o grande Cthulhu estava
enterrado, emergiu mesmo das águas. Quando penso na extensão de tudo que pode
estar germinando naquele lugar, tenho vontade de me matar. Johansen e seus
homens ficaram admirados diante da majestade cósmica daquela Babilônia
gotejante de demônios ancestrais, e devem ter imaginado, sem orientação, que
aquilo não pertencia a este e nem a qualquer outro planeta são. A admiração com
o tamanho descomunal da cidade de blocos de pedra esverdeados, com altura
estonteante do grande monólito cinzelado e com a estarrecedora semelhança entre
as colossais estátuas e baixos-relevos, e a imagem bizarra encontrada em um
escrínio do Alert, é dolorosamente visível em cada linha da apavorada descrição
do contramestre.
Sem conhecer o futurismo, Johansen chegou
muito perto dele ao falar da cidade, pois, em vez de descrever alguma estrutura
ou edifício definido, ele se atém a impressões gerais sobre os imensos ângulos
e superfícies de pedra — superfícies grandes demais para pertencerem a qualquer
coisa normal ou própria desta Terra, corrompidas por imagens e hieróglifos
terríveis. Menciono sua referência a ângulos porque sugere algo que Wilcox me
disse sobre seus pavorosos sonhos. Ele disse que a geometria do lugar que via
em sonhos era anormal, não euclidiana, sugerindo locais e dimensões repulsivos,
diferentes dos nossos. Agora, um marinheiro iletrado sentia a mesma coisa
observando a terrível realidade.
Johansen e seus homens desembarcaram em um
banco de lama inclinado daquela monstruosa Acrópole, e escalaram aos
escorregões os titânicos blocos enlameados que não poderiam ser a escada de nenhum
mortal. O próprio sol no firmamento parecia distorcido visto através dos
miasmas polarizantes que exalavam daquela perversão encharcada, e um misto de
ameaça e expectativa, às escondidas, daqueles ângulos loucamente enganosos de
rocha entalhada, onde se revelava côncavo a um segundo olhar do que se mostrara
convexo a um primeiro.
Algo muito parecido com pavor tomara conta de
todos os exploradores antes mesmo de avistarem qualquer coisa mais definida do
que rocha, limo e mato. Cada um deles teria fugido não fosse por medo da
zombaria dos outros, e foi sem muito entusiasmo que eles procuraram — em vão,
com se provou — alguma lembrança que pudessem carregar.
Foi Rodriguez, o português, quem escalou a
base do monólito e gritou, informando o que tinha encontrado. Os outros
seguiram e olharam, cheios de curiosidade, a imensa porta entalhada com o já
familiar baixo-relevo em forma de dragão com cabeça de lula. Parecia, segundo
Johansen, uma grande porta de celeiro, e todos sentiram que era uma porta
devido à verga, umbral e batentes ornamentados que a cercavam, embora não
conseguissem ter claro se era horizontal como um alçapão ou inclinada como a
porta externa de um porão. Como Wilcox teria dito, a geometria do lugar era
toda errada. Não se podia ter certeza se o mar e o chão eram horizontais e, por
isso, a posição relativa de tudo o mais parecia irrealmente variável.
Briden tentou forçar a porta em vários
pontos, sem resultado. Depois Donovan tateou sua borda deliberadamente, pressionando um ponto de cada vez. Ele subiu pela
grotesca moldura de pedra — isto é, se podia chamar aquilo de subir já que não
era mesmo horizontal — e os homens se perguntavam como alguma porta no universo
podia ser tão imensa. Então, lenta e suavemente, o imenso painel começou a ceder
para dentro na parte superior, e eles puderam notar que ele era articulado.
Donovan escorregou, ou algo assim, para baixo ou ao longo do batente,
juntando-se aos companheiros, e todos ficaram observando o estranho recuo
daquele portal com os entalhes monstruosos. Naquela ilusão de distorção
prismática, ele se movia de forma anormal, em diagonal, parecendo contrariar
todas as regras da matéria e da perspectiva.
A abertura era negra, de uma escuridão quase
material. Aquelas trevas eram, na verdade, uma qualidade positiva, pois
escureciam as partes das paredes internas que deveriam ter sido reveladas, e de
fato exalava para fora como fumaça de sua prisão multimilenária, obscurecendo
aos olhos a vista do sol, ao escoar para o céu inchado e convexo em um adejar de
asas membranosas. O cheiro que exalava das profundezas recém-abertas era
intolerável, até que Hawkins, que tinha ouvidos muito aguçados, pensou ter
ouvido um chapinhar repulsivo no interior. Os homens ficaram atentos e ainda
tentaram ouvir, quando a Coisa se arrastou, babando, à vista de todos,
espremendo Sua imensidade verde e gelatinosa pela passagem escura para o ar
exterior infecto daquela venenosa cidade de loucura.
A caligrafia do pobre Johansen quase estancou
neste ponto. Dos seis homens que jamais retornaram ao navio, ele acha que dois
sucumbiram de puro pavor naquele maldito instante. A Coisa não pode ser
descrita — não há linguagem para abismos tão imemoriais de pavor e demência,
contradições tão grandes de matéria, força e ordem cósmica. Uma montanha
caminhado ou se arrastando. Deus! Não espanta que, por toda a Terra, um grande
arquiteto enlouquecesse e o pobre Wilcox delirasse de febre naquele instante
telepático! A Coisa dos ídolos, a cria verde e gosmenta vinda das estrelas,
tinha despertado para reclamar o que era seu. As estrelas estavam posicionadas
uma vez mais e o que um culto ancestral não tinha conseguido deliberadamente,
um grupo de inocentes marinheiros tinha obtido por acidente. Após eras
incontáveis, o poderoso Cthulhu estava livre outra vez, e ávido de prazer.
Três homens foram varridos pelas patas
balofas antes de alguém poder virar-se. Que descansem em paz, se algum repouso
existir no universo. Era eles Donovan, Guerrera e Cngstrom. Parker escorregou
enquanto os outros três mergulhavam freneticamente em paisagens intermináveis
de rocha incrustada de verde para o barco, e Johansen jura que ele foi engolido
por um ângulo de parede que não deveria estar ali, um ângulo que era agudo mas
se comportava com se fosse obtuso. Assim, só Briden e Johansen conseguiram
alcançar o barco e remaram desesperados para o Alert enquanto a monstruosidade
montanhosa se deixava cair pesadamente sobre as rochas escorregadias, até
parar, hesitante, à beira do mar.
O vapor do navio não estava totalmente extinto,
apesar da ida de todos os “braços” para a praia; alguns minutos de correria
febril de um lado para outro entre a roda do leme e as máquinas foi o que
bastou para colocar o Alert em movimento. Devagar, em meio aos horrores
distorcidos daquela paisagem indescritível, ele começou a agitar as águas
letais, enquanto sobre a estrutura de pedra daquela praia espectral que não era
da Terra, a Coisa titânica das estrelas babava e resmungava como Polifemo
maldizendo o navio em fuga de Ulisses. Em seguida, mais audacioso do que os
célebres Ciclopes, o poderoso Cthulhu deslizou viscosamente para a água e saiu
em perseguição do navio com braçadas de uma potência cósmica e tão imensas que
chegavam a formar ondas na superfície do mar. Briden olhou para trás e enlouqueceu,
rindo histericamente, e assim seguiu rindo, com intervalos, até que a morte o
encontrou, certa noite, na cabine, enquanto Johansen perambulava delirante pelo
navio.
Mas Johansen ainda não tinha desistido.
Sabendo que a Coisa certamente alcançaria o Alert antes que o navio navegasse a
pleno vapor, resolveu fazer uma tentativa desesperada e ajustando a máquina
para plena velocidade, correu como um raio para o convés e inverteu o leme.
Formou-se um portentoso turbilhão de espuma no abominável oceano, e enquanto a
pressão do vapor ia aumentando, e aumentando, o bravo norueguês dirigia a proa
da embarcação para o caçador gelatinoso que se erguia acima da espuma imunda
com a proa de um galeão infernal. A pavorosa cabeça de lula com tentáculos
retorcidos já estava quase alcançando o gurupés do robusto iate, mas
implacável, Johansen avançava. Houve um ruído de bexiga estourando, uma sujeira
gosmenta de peixe-lula rasgado, um fedor como se um milhar de sepulturas fossem
abertas e um som que o cronista não conseguiu pôr no papel. Por um instante, o
navio ficou coberto por uma nuvem verde, acre e cegante, e depois restou apenas
um fervilhar venenoso à ré, onde — Deus! — a massa plástica dispersa daquela
inominável criatura celeste ia vagamente recompondo sua odiosa forma original,
enquanto se alargava a distância que a separava, a cada segundo, do Alert que
ganhava ímpeto com a pressão crescente do vapor.
Isso foi tudo. Em seguida, Johansen apenas
meditou sobre o ídolo na cabine e cuidou da comida para si e para o maníaco
risonho ao seu lado. Ele não tentou navegar depois da primeira e corajosa fuga,
pois o contra-ataque tinha extraído algo de sua energia. Depois veio a tormenta
de 2 de abril e sua consciência se anuviou. Há uma sensação de vertigem
espectral por abismos líquidos do infinito, de corridas alucinadas por
universos instáveis montados em uma cauda de cometa, e de saltos histéricos do
poço à lua e da lua novamente ao poço, tudo animado por um coro cachinante dos
corrompidos, hilários deuses antigos e dos zombeteiros duendes verdes com asas
de morcego do Tártaro.[14]
Fora daquele sonho, veio a salvação — o
Vigilant, o tribunal do vice-almirantado, as ruas de Dunedin e a longa viagem
de volta para a velha casa à sombra de Egeberg. Ele não poderia contar — eles o
achariam louco. Escreveria tudo que sabia antes da morte chegar, mas sua esposa
não devia suspeitar. A morte seria uma bênção se ao menos pudesse apagar as
lembranças.
Esse foi o documento que li e coloquei agora
na caixa de estanho ao lado do baixo-relevo e dos papéis do professor Angell.
Com isto deve seguir este meu registro — esse teste de minha própria atitude
mental, em que se reconstituiu aquele que eu espero que jamais se reconstitua
de novo. Considerei tudo de que o universo dispõe para conter o horror, e mesmo
os céus de primavera e as flores de verão serão, para sempre, veneno para mim.
Mas não creio que minha vida dure muito. Assim como meu tio se foi, como o
pobre Johansen se foi, eu irei. Sei demais, e o culto ainda vive.
Cthulhu ainda vive, também, imagino, naquele
abismo de pedra que o abrigou desde que o sol era jovem. Sua maldita cidade
está novamente submersa, pois o Vigilant navegou até o local depois da tormenta
de abril; mas seus agentes em terra ainda urram, cabriolam e matam em torno de
monólitos coroado por ídolos em locais desertos. Ele dever ter sido apanhado
pelo afundamento enquanto estava dentro de seu abismo negro, senão o mundo
estaria agora gritando de pavor e loucura. Quem conhecerá o fim? Aquilo que
emergiu pode afundar, e o que afundou pode emergir. A repugnância espera e
sonha nas profundezas, e a podridão se espalha sobre as precárias cidades dos
homens. Chegará um momento... mas não devo e não posso pensar! Deixem-me rezar
para que, se não sobreviver a este manuscrito, meus executores testamentários
coloquem a cautela a frente da audácia e cuidem que ele não chegue a outros
olhos.
[1] Blackwood,
Algernon Henry (1869-1951), famoso escritor inglês do gênero horror e muito
admirado por Lovecraft.
[2]O
termo "Cthulhu" é pronunciado comumente como “Katuuluu”. Entretanto,
existem vários estudantes sérios de Lovecraft que preferem a pronúncia como
“Cloo-loo”
[3] Margaret
A. Murray publicou em 1921 o livro citado, onde defende a tese de que o culto
às bruxas, tanto na Europa como na América, tem origem em uma raça pré-ariana
que foi impelida para um mundo subterrâneo, mas continua à espreita em cantos
escondidos da terra.
[4] Esta
casa-estúdio foi criada pelo artista de Providence, R.I., Sydney Richmond
Burleigh e de fato existe na Rua Thomas no 77 nesta mesma cidade.
[5] La
Fayette, Marquês de (1757-1834), líder militar e político francês, lutou no
bando dos rebeldes das colônias durante a guerra da Independência Americana.
[6] Iberville,
Monsieur d' (Pierre Le Moyne) (1661-1706), explorador famoso e um dos
fundadores da Louisiana.
[7] La
Salle, René-Robert Cavelier (1643-1687), explorador francês famoso pela
descoberta de um vale, o qual viria a ser a atual Louisiana, em homenagem ao
rei Luís XIV.
[8] Sidney
Herbert Sime (1867-1945), ilustrador admirado por Lovecraft; Anthony Angarola
(1893-1929), ilustrador norte americano de livros
[9] Livro
místico imaginário criado por Lovecraft. Neste grimório desconhecido estariam
guardados segredos sobre os Antigos e práticas mágicas. Em “A História do
Necronomicon”, o autor nos fala, inclusive com mais detalhes, sobre cidade dos
pilares de Irem, citada anteriormente e de cópias secretas do livro preservadas
até hoje. É importante dizer que este livro nunca existiu, e Lovecraft apenas
se referia a ele, nunca criando uma versão do livro. Inclusive, versões do
livro é que não faltam na Internet.
[10] Machen,
Arthur (1863-1947), escritor inglês de renome que abordava temas sobrenaturais,
admirado por Lovecraft.
[11] Smith,
Clark Ashton (1893-1961), escritor e artista plástico que além de amigo de
Lovecraft, era admirado por ele.
[13] Oslo
foi fundada por Harold III da Noruega por volta de 1050. Destruída em 1624 por
um incêndio, Christian IV a reconstruiu batizando-a de Christiania em sua
homenagem. Assim foi até 1925, quando recuperou seu nome histórico.
[14] Tártaro,
na mitologia grega, a região mais baixa dos infernos. Segundo Hesíodo e
Virgílio, o Tártaro é fechado por portas de ferro e está tão abaixo do mundo
subterrâneo de Hades quanto a terra está em relação ao céu.
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