“Meninão do caixote” do escritor paulista João Antônio
Ferreira Filho (1937-1996). Um conto ambientado nas quebradas paulistanas,
entre malandros e mesas de sinuca, que ao mesmo tempo é um lampejar de poesia em
meio ao cinza da cidade.
Meninão do Caixote
João Antônio
Fui o fim de Vitorino. Sem
Meninão do Caixote, Vitorino não se aguentava.
Taco velho quando piora, se
entreva duma vez. Tropicava nas tacadas, deu-lhe uma onda de azar, deu para
jogar em cavalos. Não deu sorte, só perdeu, decaiu, se estrepou. Deu também
para a maconha, mas a erva deu cadeia. Pegava xadrez, saia, voltava...
E assim, o corpo magro de
Vitorino foi rodando São Paulo inteirinho, foi sumindo. Terminou como tantos
outros, curtindo fome quietamente nos bancos dos salões e nos botecos.
Na rua vazia, calada, molhada,
só chuva sem jeito; nem bola, nem jogo, nem Duda, nem nada.
Quando papai partiu no G.M.C. apertei meu nariz
contra o vidro da janela, fiquei pensando nas coisas boas de Vila Mariana. Eram
muito boas as coisas de Vila Mariana. Carrinho de rodas de ferro (carrinho de
rolimã, como a gente dizia), pelada todas as tardes, papai me levava no
caminhão... E eu mais Duda íamos nadar todos os dias na lagoa da estrada de
ferro. Todos os dias, eu mais Duda.
A gente em casa apanhava, que
nossas mães não eram sopa e com mãe havia sempre uma complicação. A camisa meio
molhada, os cabelos voltavam encharcados, difícil disfarçar e a gente acabava
apanhando. Apanhava, apanhava, mas valia. Puxa vida! A gente tirava a roupa inteirinha,
trepava no barranco e “tchibum” — baque gostoso do corpo na agua. Caia aqui,
saia lá, quatro-cinco metros adiante. O gostosura que era
a gente debaixo da agua num mergulhão demorado!
Agora, na Lapa, numa rua sem graça, papai viajando no seu caminhão, na
casa vazia so os pés de mamãe pedalavam na maquina de costura ate a noite
chegar. E a nova professora do grupo da Lapa? Mandava a gente a pedra, baixava
os olhos num livro sobre a mesa. Como eu não soubesse, o tempo escorria mudo,
ela erguia os olhos do livro, mandava-me sentar. Eu suspirava de alivio.
É. Mas não havia acabado não. à saída, naquele meu quinto ano, ela me
passava o bilhete, que eu passaria a mamãe.
— Trazer assinado.
Coisas horríveis no bilhete, surra em casa.
Se Duda estivesse comigo eu não estaria bobeando, olhando a chuva. A
gente arrumaria uns botões, eu puxaria o tapete da sala, armaria as traves.
Duda, aquele meu primo, e que era meu. Capaz de fazer trinta partidas, perder
as trinta e não havia nada. Nem raiva, nem nada. Cocava a cabeça, saia para
outra, a gente se entendia e recomeçava. As vezes, ate sorria:
—Você esta jogando muito.
Mas agora a chuva caia e os botões, guardados na gaveta da cômoda,
apenas lembravam que Duda ficara em Vila Mariana. Agora a Lapa, tão chata, que
e que tinha a Lapa? E exatamente numa rua daquelas, rua de terra, estreita e
sempre vazia. Havia também uma professora que lia o seu livro e me esquecia
abobalhado a frente da lousa. Depois... O bilhete e a surra. É. Bilhete para
minha mãe me bater, castigo, surra, surra. E papai que viajava no seu caminhão,
e quando viajava se demorava dois-tres meses.
Era um caminhão, que caminhão! Um G.M.C. novo, enorme, azul, roncava
mesmo. E a carroceria era um tanque para transportar óleo. Não era caminhão
simples não. Era carro-tanque e G.M.C. Eu sabia muito bem - ia e voltava
transportando óleo para a cidade de Patos, na Paraíba. Outra coisa - Paraíba,
capital Joao Pessoa, papai sempre me dizia.
Mamãe não gostava daquele jeito de papai, jeito de moço folgado, que sai
e fica fora o tempo que bem entende. Também não gostava que ele me fizesse
todos os gostos, pois, estes ele fazia mesmo. Era só pedir. Papai vivia de
brincadeira e de caçoada quando estava em casa, e eu o ajudava a caçoar de
mamãe, do que ele muito gostava. Mamãe ia aguentando, aguentando, com aquele
jeito calmo que tinha. Acabava sempre estourando, perdia a resignação de
criatura pequena, baixinha, botava a boca no mundo:
– Dois palermas! Não sei o que ficam fazendo em casa.
Papai virava-se, achava mais divertido. E sorriamos os dois
– Ora, o que! Pajeando a madame.
Eu achava tão engraçado, me assanhava em liberdades não dadas.
– Exatamente.
Então, o chinelo voava. Eu apanhava e papai ficava serio e saia. Ia ver
o caminhão, ia ao bar tomar cerveja, conversar, qualquer coisa. Naquele dia não
falava mais nem com ela, nem comigo.
Lá em Vila Mariana ouvi uma vez, da boca de uma vizinha, que mamãe era
meio velha para ele e era até meio feia. Velha, podia ser. Feia, não. Tinha um
corpo pequeno, era baixinha, mas não era feia.
Bern. O que interessa e que papai tinha um G.M.C., um carro-tanque
G.M.C., e que enfiava o boné de couro, ajeitava-se no volante e saia por estas
estradas roncando como só ele.
Mas agora era a Lapa, não havia Duda, havia era chuva na rua feia e
papai estava fora. La na cidade de Patos, tão longe de São Paulo... La num
ponto pequenino, quase fechando na curva do mapa.
– Menino, vai buscar o leite.
Pararam os pés no pedal, parei o passeio do dedo na cartografia, as
pernas jogadas no soalho, barriga no chão, onde estirado eu pensava num G.M.C.
carro-tanque e no boné de couro de papai. Ergui-me, limpei o pó da calça. Uma
preguiça...
– Mas esta chovendo...
Veio uma repreensão incisiva. Mamãe nervosa comigo, por que sempre
nervosa? Quando papai não estava, os nervos de mamãe ferviam. Tão boa sem
aqueles nervos... Sem eles não era preciso que eu ficasse encabulado, medroso,
evitando irrita-la mais ainda, catando as palavras, delicado, tateando. Ficava
bocal, como quando ia limpar a fruteira de vidro da sala de jantar, aquele medo
de melindrar, estragar o que estava inteiro e se faltasse um pedaço já não
prestaria mais.
Peguei o litro e sai.
Na rua brinquei, com a lama brinquei. O tênis pisava na agua, pisava no
barro, pisava na agua, pisava no barro, pisava na agua, pisava no barro,
pisava...
– Da um litro de leite.
A dona disse que não tinha. Risinho besta me veio aos lábios, porque
naquelas ocasiões papai diria: “E fumo em corda não tem?”.
O remédio era ir buscar ao Bar Paulistinha, onde eu nunca havia entrado.
Quando entrei, a chuvinha renitente engrossou, trovão, trovão, um traço rápido
cor de ouro lá no céu. O céu ficou parecendo uma casca rachada. E chuva que
Deus mandava.
– Essa não!
Fiquei preso ao Bar Paulistinha. La fora, era vento que varria. Vento
varrendo chão, portas, tudo. Sacudiu a marca do ponto do ônibus, levantou
saias, papeis, um homem ficou sem chapéu. Gente correu para dentro do bar.
– Entra, entra!
O dono do bar convidava com o ferro na mão. Depois desceu as portas, bar
cheio, os luminosos se acenderam, xicaras retinindo café quente, cigarros,
conversas sobre a chuva.
No Paulistinha havia sinuca e só então eu notei. Pedi uma beirada no
banco em volta da mesa, ajeitei o litro de leite entre as pernas.
– Posso espiar um pouco?
Um homem feio, muito branco, mas amarelado ou esbranquiçado, eu não
discernia, um homem de chapéu e de olhos sombreados, os olhos lá no fundo da
cara, braços finos, tão finos, se chegou para o canto e largou um sorriso
aberto:
– Mas e claro, garotão!
Fiquei sem graça. Para mim, moleque afeito as surras, aos xingamentos
leves e pesados que um moleque recebe, aquela amabilidade me pareceu muita.
O homem dos olhos sombreados, sujeito muito feio, que sujeito mais feio!
No seu perfil de homem de pernas cruzadas, a calça ensebada, a barba raspada, o
chapéu novo, pequeno, vistoso, a magreza completa. Magreza no rosto cavado, na
pele amarela, nos bravos tão finos. Tão finos que pareciam os meus, que eram de
menino. E magreza até no contorno do joelho que meus olhos adivinhavam debaixo
da calça surrada.
Seus olhos iam na pressa das bolas na mesa, onde ruídos secos se batiam
e cores se multiplicavam, se encontravam e se largavam, combinadamente. A
cabeça do homem ia e vinha. Quando em quando, a mão viajava ate o queixo,
parava. Então, seguindo a jogada, um deboche nos beiços brancos ou uma
aprovação nos dedos finos, que se alongavam e subiam.
– Larga a brasa, rapaz!
A mão subia, o indicador batia no médio e no ar ficava o estalo.
Aquela fala diferente mandava como nunca vi. Picou-me aquela fala. Um
interesse pontudo pelo homem dos olhos sombreados. Pontudo, definitivo. O que
fariam os dedos tão finos e feios?
– Larga a brasa, rapaz!
Quando o jogo acabou o homem estava numa indignação que metia medo. Deu
com o dedo na pala e se levantou.
– Parei com este jogo!
Eu já não entendia — aquilo se jogava a dinheiro. Bem. E por que ele
dava o dinheiro se não havia jogado?
– O Vitorino, você quer café?
Um outro que o chamava, com o mesmo jeito na fala.
Vitorino. Para mim, o nome era igualzinho à pessoa. Duas coisas nunca
vistas e muito originais. O homem dos olhos sombreados sorriu aberto. A
indignação foi embora nos dentes pretos de fumo. O homem na sua fala sorriu e
foi para o companheiro que o chamava, lá da ponta do balcão. Falou como se
fizesse uma arte:
– O adivinhão!
Um prédio velho da Lapa-de-baixo, imundo, descorado, junto dos trilhos
do bonde. A entrada ficavam
tipos vadios, de ordinário discutindo jogo, futebol e pernas que passavam.
Pipoqueiro, jornaleiro, o bulício da estrada de ferro. A entrada era de um bar
como os outros. Depois o balcão, a prateleira de frutas, as cortinas. Depois
das cortinas, a boca do inferno ou bigorna, gramado, campo, salão... Era isso o
Paulistinha.
As tardes e os domingos no canto do banco espiando a sinuca. Ali, ficar
quieto, no meu canto, como era bom!
Partidas baratas e partidas caras. Funcionavam supetões, palpitações e
suor frio. Sorrisos quietos, homens secos, amarelos, pescoços de galinha, olhos
fundos nas caras magras. Aqueles não dormiam, nem comiam. E o dinheiro na
caçapa parecia vibrar também, como o taco, como o giz, como os homens que ali
vibravam. Picardia, safadeza, marmeladas também. O jogo enganando torcidas para
coleta das apostas.
Vitorino era o dono da bola. Um cobra. O jeito camarada ou abespinhado
de Vitorino, chapéu, voz, bossa, mãos, seus olhos frios medidores. O máximo, Vitorino.
No taco e na picardia.
Saia, fazia que ia brincar. Ficava lá no meu canto, procurando
compreender. Os homens brincavam:
— O meninão!
Eu sorria, como que recompensado. Aquele dera pela minha presença. Um
outro virava-se:
— O meninão, você esta ai?
Meninão, meninão, meu nome ficou sendo Meninão.
Os pés de mamãe na maquina de costura não paravam.
Para mim, Vitorino abria uma dimensão nova. As mesas. O verde das mesas,
onde passeava sempre, estava em todas, a dolorosa branca, bola que cai e
castiga, pois, o castigo vem a cavalo.
Para mim, moleque fantasiando coisas na cabeça...
Um dia peguei no taco.
Joguei, joguei muito, levado pela mão de Vitorino, joguei demais.
Porque Vitorino era um bárbaro, o maior taco da Lapa e uma das maiores
bossas de São Paulo. Quando nos topamos Vitorino era um taco. Um cobra. E para
mim, menino que jogava sem medo, porque era um menino e não tinha medo, o que
tinha era muito jeito, Vitorino ensinava tudo, não escondia nada.
Só joguei em bilhares suburbanos onde a policia não batia, porque era um
menino. Mas minha fama correu, tive parceirinhos que vinham, vinham de muito
longe à Lapa para me ver. Viam e se encabulavam. E depois carregavam nas
apostas. Fama de menino-absurdo, de máximo, de atirador, de bárbaro. Eu
jogando, as apostas corriam, as apostas cresciam, as apostas dobravam em torno
da mesa. E os salões se enchiam de curiosos humildes, quietos, com os olhos nas
bolas. Era um menino, jogava sem medo.
Eu era baixinho como mamãe. Por isso, para as tacadas longas era preciso
um calço. Pois havia. Era um caixote de leite condensado que Vitorino arrumou.
Alcançando altura para as tacadas, eu via a mesa de outro jeito, eu ganhava uma
visão! Porque não se mostrasse, meu jogo iludia, confundia, desnorteava. Muitos
não acreditavam nele. Também por isso rendia... E desenvolvia um jogo que
enervava um santo. Jogo atirado, incisivo, de quem emboca, emboca, mas o jogo
não aparece no começo. Vai aparecer no fim da partida, depois da bola três, quando
não ha mais jeito para o adversários As apostas contrarias iam por agua abaixo.
Porque me trepasse num caixote e porque já me chamassem Meninão...
Meninão do Caixote... Este nome corre as sinucas da baixa malandragem,
corre Lapa, Vila Ipojuca, corre Vila Leopoldina, chega a Pinheiros, vai ao
Tucuruvi, chegou ate Osasco. Ia indo, ia indo. Por onde eu passava, meu nome
ficava. Um galinho de briga, no qual muitos apostavam, porque eu jogava, ia lá
ao fogo do jogo e trazia o dinheiro.
Lá ia eu, Meninão do Caixote, um galinho de briga. Um menino, não tinha
quinze anos.
Crescia, crescia o meu jogo no tamanho novo do meu nome.
Tacos considerados vinham me ver, vinham de longe, namoravam a mesa,
conversavam comigo, passavam horas espiando o meu jogo. Eu sabia que me
estudavam, para depois virem. Viessem... Eu andava certo como um relógio. Não
me afobava, Vitorino me ensinou. A gente joga para a gente, a assistência que
se amole. E meu jogo nem era bonito, nem era estiloso, que eu jogava para mim e
para Vitorino. O caixote arrastado para ali, para além, para as beiradas da
mesa.
Minha vida ferveu. Ambientes, ambientes do joguinho. No fundo, todos os
mesmos e os dias também iguais. Meus olhos nas coisas. O trouxa, a marmelada, o
inveterado, traição, traição.
O Deus, como... por que é que certos tipos se metiam a jogar o joguinho?
Meus olhos se entristeciam, meus olhos gozavam. Mas havendo entusiasmo, minha
vida ferveu. Conheci vadios e vadias. Dei-me com toda a canalha. Aos catorze,
num cortiço da Lapa-de-baixo conheci a primeira mina. Mulatinha, empregadinha,
quente. Ela gostava da minha charla, a gente se entendia. Eu me lembro muito
bem. As quintas-feiras, quatro pancadas secas na porta. Duas a duas.
Na sinuca, Vitorino e eu, duas forças. Nas rodas do joguinho, nas
curriolas, apareceu uma frase de peso, que tudo dizia e muito me considerava.
– Este cara tá embocando que nem Meninão do Caixote!
Combati, topei paradas duras. Combati com Narciso, com Toniquinho,
Quaresmão, Zé da Lua, Piauí, Tiririca (ate com Tiririca!), Manecão, Taquara,
com os maiores tacos do tempo, nas piores mesas de subúrbio, combati e ganhei.
Certeza? Uma coisa ia comigo, uma calma, não sei. Eles berravam, xingavam,
cantavam, eu não. Preso as bolas, so as bolas. Ia lá e ganhava.
Umas coisas já me desgostavam.
Jogava escondido, esta claro. Brigas em casa, choro de mamãe. Eu não
levantava a crista não. Ate baixava a cabeça.
– Sim senhora.
Mas a malandragem
continuava, eu ia escorregando difícil, matando aulas, pingando safadezas. O
colégio me enfarava, era isto. Não conseguia prender um
pensamento, dando de olhos nos companheiros entretidos com latim e matemática.
— Cambada de trouxas!
Dureza, aquela vida:
menino que estuda, que volta a casa todos os dias e que tem papai e tem mamãe.
Também não era bom ser Meninão do Caixote, dias largado nas mesas da boca do
inferno, considerado, bajulado, mandão, cobra. Mas abastecendo meio mundo e
comendo sanduiche, que sinuca e ambiente da maior exploração. Dava dinheiro a
muito vadio, era a estia, gratificação que o ganhador da. Dá por dar, depois do
jogo. Acontece que quem não dá, acaba mal. Não custa a curriola atracar a gente
lá fora.
Vitorino era meu
patrão. Patroou partidas caríssimas, partidas de quinhentos mil reis. Naquele
tempo, quinhentos mil reis. Punha-me o dinheiro na mão, mandava-me jogar.
Fechava os olhos que o jogo era meu. E era.
—Vai firme!
As vezes, jogo e jogo,
a vantagem do adversário era enorme. E havia três bolas na mesa. Apenas. O
cinco, o seis e o sete. Meus olhos interrogavam os olhos sombreados de
Vitorino. Sua mão subia no velho gesto, o indicador batendo no médio e no ar
ficava o estalo. Enviava:
– Vai pras cabeças!
Belisca esse homem, Meninão! - e eu beliscava, mordia, furtava, tomava,
entortava, quebrava.
Vitorino era o patrão,
eu ganhava, dividíamos a grana.
Aquilo. Aquilo me
desgostava. O divisão cheia de sócios, de nomes, de mãos a pegarem no meu
dinheiro!
Por exemplo: ganhava um
conto de reis. Dividia com Vitorino, so me sobravam quinhentos. Pagava tempo e
despesas, já eram só quatrocentos. Dava estia ao adversário: lá se iam mais dez
por cento — só me sobravam trezentos. Dez por cento sobre um conto. Dava mais
alguma estia... Ganhava um conto de reis, ficava só com duzentos.
Estava era sustentando
uma cambada, sustentando Vitorino, seus camaradas, suas minas, seus...
_ Um dia mando tudo pra
casa do diabo.
Não mandava ninguém.
Vitorino trocava as bolas, mexia os pauzinhos, fazia negaça, eu aceitava a sua
charla macia.
Uma vez, quebrando Zé
da Lua, jogador fino, malandro perigoso da caixeta, do baralho e da sinuca, eu
ouvi esta, depois de ganhar dois contos:
– Meu, neste jogo não
tem malandro.
E eu ia aprendendo — o joguinho castiga por
principio, castiga sempre, na ida e na vinda o jogo castiga. Ganhar ou perder,
tanto faz.
Tinha juízo aquele Zé
da Lua.
O jogo acabava, eu
pegava os duzentos mil reis, tocava para casa. Ia murcho. Haveria briga com
mamãe.
Jogo e minas.
E papai estando fora,
eu já fazia madrugada, resvalando, sorrateiro. Eu evolui um truque para a
janela do meu quarto em noite alta eu chegando. Meter o ferro enviesado, por
fora; destravar o fecho vertical...
Mamãe me via chegar, e
as vezes, fingia não ver. Depois, de mansinho, eu me deitava. E depois vinha
ela e eu fingia dormir. Ela sabia que eu não estava dormindo. Mas mamãe me
ajeitava as cobertas e aquilo bulia comigo. Porque ia para o seu canto,
chorosa.
Mamãe, coitadinha.
Larguei uma, larguei
duas, larguei muitas vezes o joguinho.
Entrava nos eixos. No
colégio melhorava, tornava-me outro, me ajustava ao meu nome.
Vitorino arrumava um
jogo bom, me vinha buscar. Eu desguiando, desguiando, resistia. Ele dando em
cima. Se papai estava fora, eu acabava na mesa. Tornava a mesa com fome das
bolas, e era uma piranha, um relógio, um bárbaro. Jogando como sabia.
Essas reaparições
viravam boato, corriam os salões, exageravam um Meninão do Caixote como nunca
fui.
Vitorino, traquejado.
Começava a exploração. Eu caia, por principio; depois explodia, socava a mesa:
— Este joguinho de
graça e caro!
Fechava a mão, batia e
jurava em cima da mesa.
Mamãe readquiria seu
jeito quieto, criatura miúda. Os pês pequenos voltavam a pedalar descansados.
Tiririca, o grande
Tiririca, elas por elas, era quase taco invicto antes do meu surgimento. E não
parava jogo perdendo, empenhava o relógio, anel, empenhava o chapéu, mas o jogo
não parava. Ficava fervendo, uma raiva presa, que o deixava fulo, branco,
furta-cor... Os parceirinhos gozavam a boca pequena.
-
O bicho tá tiririca.
Ficou se chamando
Tiririca.
Mas era um grande taco.
Perdendo e que era grande. Mineiro, mulato, teimoso, tanta manha, quanta fibra.
Um brigador. Um dos poucos que conheci com um estilo de jogo. Bonito, com
puxadas, com efeitos, com um domínio da branca! Classe. Joguinho certo, ô
batida de relógio, aparato, fantasia, cadencia, combinação, ô tacada de feliz
acabamento! A sua força eram as forras. Os revides em grande estilo. Porque
para Tiririca tanto fazia jogar uma hora, doze horas ou dois dias. O homem
ficava verde na mesa, curtia sono e curtia fome, mas não dava o gosto.
– O jogo e jogado, meu.
Levava a melhor vida.
Vadiava, viajava, tinha patrões caros, consideração dos policiais. E se o jogo
minguava, Tiririca largava o taco e torcia o nariz com orgulho:
– Eu tenho meus bons
ofícios.
Ia trabalhar como
poceiro.
Bern. Tiririca se
encabulou comigo, estrebuchou, rebolou comigo durante sete horas e perdeu.
Tudo. Empenhou o paletó por cinquenta mil reis e perdeu.
– Esse moleque não e
Deus!
Bem. Voltava agora, com
a sede e o dinheiro, exigindo o reencontro, prometendo me estraçalhar.
– Quero a forra.
Vitorino me buscou. Eu
não queria mais nada.
Do lado de lá da rua,
em frente ao colégio, Vitorino estava parado. Passavam ônibus, crianças,
passavam mulheres, bondes, Vitorino ficava. Dois meses sem vê-lo e ele era o
mesmo. Eu lhe explicaria bem devagar que não queria mais nada com o joguinho.
As coisas passavam de novo, Vitorino ficava. Ficava, ficava. Seu chapéu, suas
mãos, sua camisa sem gravata. Magro, encardido, trapo, caricatura. Desguiei,
busquei um modo:
– Não da pé
Vitorino cortou com um
agrado rasgado. Como escapar aquele raio de simpatia e a fala camarada?
Vitorino tinha uma bossa que não acabava mais! Afinal, cedi para bater um papo.
Afinal, entre tacos...
– Nego, não da pé
Tiririca. A conversa já
mudou. O malandro em São Paulo, querendo jogo comigo, aquilo me envaidecia...
Tiririca me procurando.
Mas caí no meu tamanho,
afrouxei, quase três meses sem pegar no taco, fora de forma, uma barata tonta,
não daria mais nada.
– Que nada, meu!
Tiririca era um
perigoso. Deveria estar tinindo.
– Mas você e a força!
Vitorino já me
conhecia, aguentava, aguentava. Ate que eu:
– Pois vou!
Ele se abriu no macio
rebolado:
– Aí, meu Meninão do
Caixote!
Era um domingo.
Dia claro, intenso,
desses dias de outubro. Um sol... Desses dias de São Paulo, que ninguém precisa
dizer que e domingo. Inesperados, dadivosos, e no entanto, malucos — costumam
virar duma hora para outra.
O ultimo jogo. O jogo
era em Vila Leopoldina, que assim marcou Tiririca. No ônibus uma coisa ia
comigo. Era o ultimo, perdesse ou ganhasse. Bem falando, eu não queria nem
jogar, ia só tirar uma cisma, quebrar Tiririca duma vez, acabar com a conversa.
Não por mim, que eu não queria jogo. Mas pelo gosto de Vitorino, da curriola,
não sabia. Saltei na rua de terra.
Ninguém precisava dizer
que aquilo era um domingo...
— O Meninão do Caixote!
Na manha quente, um que
me saudava. Cobra já conhecido e muito considerado, eu encontrava, nos
bilhares, amigos de muitos lados.
Prometera voltar em
casa para o almoço. Claro que voltaria. Tiririca era duro, eu sabia. Deixa-lo.
Eu lhe quebraria a fibra. Fibra, orgulho, teima, eu mandaria tudo para a casa
do diabo. Já havia mandado uma vez...
A curriola estava
formada quando o jogo começou.
O salão se povoou, se
encheu, ferveu. Gente por todo o canto, assim era quando eu jogava e os homens
carregavam apostas entre si. O dono do bar me sorria, vinha trazer o giz
americano, vinha me adular. Eu cobra, mandão. As mãos de Vitorino atiçavam.
— Larga a brasa,
Meninão! Dá-lhe, Meninão! Vamos deixar esse cara duro, durinho. De pernas pro
ar!
Desacatos fazem parte
da picardia do jogo. E na encabulação e no desacato Vitorino era professor.
Mas Tiririca estava
terrível. Afiado, comendo as bolas, embocando tudo, naquele domingo estava
terrível. Contudo, na sinuca eu trazia uma coisa comigo. Mais jogasse o parceirinho,
mais eu jogaria. Uma vontade desesperada me crescia, me tomava por inteiro e eu
me aferrava. Jogava o jogo. Suor, apertava os beiços e me atirava. Não queria
saber de mais nada. Então, era um relógio, um bárbaro no fogo do jogo, não
havia mais taco para mim. E se o jogo era mole eu também me afrouxava.
Tiririca era um sujeito
de muito juízo. Mas na velha picardia, eu lhe fui mostrando aos poucos os meus
dentes de piranha. E quando o mulato quis embalar o jogo a linha de frente era
minha.
Uma e meia no relógio
do bar e eu pensei em mamãe. Ali, rodando a mesa, o caixote para aqui, para
ali, como as horas voavam!
Começamos, por fim, as
partidas de um conto.
Fui ao mictório,
urinei, lavei a cara. Lavando aos poucos, molhando as pálpebras, deixando a
agua escorrer. Pensei com esperança em liquidar logo aquele jogo; mamãe estaria
esperando.
Voltei, ajeitei o
caixote. A curriola me olhava. Assim, sempre assim, os olhos abotoados na
gente, tudo para enervar. Raiva daquele jogo não acabar duma vez. Passei giz americano
no taco.
– A saída é minha.
Como aquilo se
prolongava e como era dolorido! Ganhei uma, ganhei duas, Tiririca estava
danado.
—Vai a dois contos! Se
eu perder, paro o jogo.
Tiririca parar o jogo?
Parava nada, aquele não parava. Perdia as cuecas, perdia os cabelos, mas o jogo
não parava.
No entanto, daquela
mão, o mineiro já estava quebrado, sem nada, quebradinho. Arriscando os
últimos. Vitorino sério, firme, de pé, era muito dinheiro numa partida. E se o
jogo virasse?...A força de Tiririca eram as forras.
Suspirei, alivio, suor
frio, luz da esperança. Luz da certeza, que o jogo era meu! Estourei num
entusiasmo bruto, que a curriola se espantou. Minha mão se fechou no ar e o
indicador quase espetava o peito de Tiririca.
– Vou te quebrar, moço.
Vou te roubar depressinha!
O mineiro dissimulava a
raiva:
– O jogo é jogado...
Puxei o caixote,
ajeitei, giz no taco, bastante giz, giz americano, do bom. E sai pela bola
cinco!
Uma saída maluca,
Vitorino reprovou. Mas o cinco caiu. Vitorino suspirou:
– Que bola!
A curriola se assanhou,
cochichos, apostas se dobravam.
Elogiado, embalado,
joguei o jogo. Joguei o máximo, na batida em que ia, Tiririca nem teria tempo
de jogar, que eu ia fechar o jogo, acabar com as bolas. Ia cantando os pontos:
– Vinte e seis.
A curriola estava boba.
O dono do bar parado, na mão um litro vazio de boca para baixo. Vitorino saltou
da cadeira, açambarcou todas as alegrias do salão, virou o dono da festa. Numa
agitação de criança, erguia o braço magrelo.
– Este bichinho se
chama Meninão do Caixote!
Tiririca estatelado,
escorava-se ao taco. Batido, batidinho.
Uma suplica nos olhos
do malandro, quando a bola era lenta e apenas deslizava mansinha, no pano
verde. Tiririca perdia a linha:
– Não cai, morfética!
A bola caia. Eu ia
embocando e cantando.
– Setenta e um...
Duas bolas na mesa — o
seis e o sete. Dei de olhos na colocação da branca, nas caçapas, nas tabelas, e
me atirei. Duas vezes meti o seis e o sete meti duas vezes. Fechei a partida
com noventa pontos; foram vinte minutos embocando bolas, um bárbaro, embocando,
contando pontos e Tiririca não teve chance. Ali, parado, olhando, o taco na
mão.
O jogo acabou.
Primeiras discussões em torno da mesa, gabos, trocas de dinheiro.
Vinha chorosa de fazer
do. Mamãe surgindo na cortina verde, vinha miudinha, encolhida, trazendo uma
marmita. Não disse uma palavra, me pôs a marmita na mão.
– O seu almoço.
Um frio nas pernas, uma
necessidade enorme de me sentar. E uma coisa me crescendo na garganta,
crescendo, a boca não aguentava mais, senti que não aguentava. Ninguém no meu
lugar aguentaria mais. Ia chorar, não tinha jeito.
– Que e? Que e isso? O
Meninão!
Assim me falavam e ao
de leve, por trás, me apertavam os bravos. Se foi Vitorino, se foi Tiririca,
não sei. Encolhi-me.
O choro já serenando,
baixo, sem os soluços. Mas era preciso limpar os olhos para ver as coisas
direito. Pensei, um infinito de coisas batucaram na cabeça. As grandes paradas,
dois anos de taco, Taquara, Narciso, Zé da Lua, Piauí, Tiririca... Tacos,
tacos. Todos batidos por mim. E agora, mamãe me trazendo almoço... Eu ganhava
aquilo? Um braço me puxou.
– Me deixa.
Falei baixo, mais para
mim do que para eles. Não ia mais pegar no taco. Tivessem paciência. Mas agora
eu estava jurando por Deus.
Larguei as coisas e fui
saindo. Passei a cortina, num passo arrastado. Depois a rua. Mamãe ia lá em
cima. Ninguém precisava dizer que aquilo era um domingo... Havia namoros, havia
vozes e havia brinquedos na rua, mas eu não olhava. Apertei meu passo, apertei,
apertando, chispei. Ia quase chegando.
Nossas mãos se acharam.
Nós nos olhamos, não dissemos nada. E fomos subindo a rua.
Boa tarde!
ResponderExcluirA data na apresentação do autor esta errada (1937-1906).
Abraço