sexta-feira, 20 de março de 2015

39 – Meninão do caixote – João Antonio

“Meninão do caixote” do escritor paulista João Antônio Ferreira Filho (1937-1996). Um conto ambientado nas quebradas paulistanas, entre malandros e mesas de sinuca, que ao mesmo tempo é um lampejar de poesia em meio ao cinza da cidade.

Meninão do Caixote
João Antônio
Fui o fim de Vitorino. Sem Meninão do Caixote, Vitorino não se aguentava.
Taco velho quando piora, se entreva duma vez. Tropicava nas tacadas, deu-lhe uma onda de azar, deu para jogar em cavalos. Não deu sorte, só perdeu, decaiu, se estrepou. Deu também para a maconha, mas a erva deu cadeia. Pegava xadrez, saia, voltava...
E assim, o corpo magro de Vitorino foi rodando São Paulo inteirinho, foi sumindo. Terminou como tantos outros, curtindo fome quietamente nos bancos dos salões e nos botecos.

Na rua vazia, calada, molhada, só chuva sem jeito; nem bola, nem jogo, nem Duda, nem nada.
Quando papai partiu no G.M.C. apertei meu nariz contra o vidro da janela, fiquei pensando nas coisas boas de Vila Mariana. Eram muito boas as coisas de Vila Mariana. Carrinho de rodas de ferro (carrinho de rolimã, como a gente dizia), pelada todas as tardes, papai me levava no caminhão... E eu mais Duda íamos nadar todos os dias na lagoa da estrada de ferro. Todos os dias, eu mais Duda.
A gente em casa apanhava, que nossas mães não eram sopa e com mãe havia sempre uma complicação. A camisa meio molhada, os cabelos voltavam encharcados, difícil disfarçar e a gente acabava apanhando. Apanhava, apanhava, mas valia. Puxa vida! A gente tirava a roupa inteirinha, trepava no barranco e “tchibum” — baque gostoso do corpo na agua. Caia aqui, saia lá, quatro-cinco metros adiante. O gostosura que era a gente debaixo da agua num mergulhão demorado!
Agora, na Lapa, numa rua sem graça, papai viajando no seu caminhão, na casa vazia so os pés de mamãe pedalavam na maquina de costura ate a noite chegar. E a nova professora do grupo da Lapa? Mandava a gente a pedra, baixava os olhos num livro sobre a mesa. Como eu não soubesse, o tempo escorria mudo, ela erguia os olhos do livro, mandava-me sentar. Eu suspirava de alivio.
É. Mas não havia acabado não. à saída, naquele meu quinto ano, ela me passava o bilhete, que eu passaria a mamãe.
— Trazer assinado.
Coisas horríveis no bilhete, surra em casa.
Se Duda estivesse comigo eu não estaria bobeando, olhando a chuva. A gente arrumaria uns botões, eu puxaria o tapete da sala, armaria as traves. Duda, aquele meu primo, e que era meu. Capaz de fazer trinta partidas, perder as trinta e não havia nada. Nem raiva, nem nada. Cocava a cabeça, saia para outra, a gente se entendia e recomeçava. As vezes, ate sorria:
—Você esta jogando muito.
Mas agora a chuva caia e os botões, guardados na gaveta da cômoda, apenas lembravam que Duda ficara em Vila Mariana. Agora a Lapa, tão chata, que e que tinha a Lapa? E exatamente numa rua daquelas, rua de terra, estreita e sempre vazia. Havia também uma professora que lia o seu livro e me esquecia abobalhado a frente da lousa. Depois... O bilhete e a surra. É. Bilhete para minha mãe me bater, castigo, surra, surra. E papai que viajava no seu caminhão, e quando viajava se demorava dois-tres meses.
Era um caminhão, que caminhão! Um G.M.C. novo, enorme, azul, roncava mesmo. E a carroceria era um tanque para transportar óleo. Não era caminhão simples não. Era carro-tanque e G.M.C. Eu sabia muito bem - ia e voltava transportando óleo para a cidade de Patos, na Paraíba. Outra coisa - Paraíba, capital Joao Pessoa, papai sempre me dizia.
Mamãe não gostava daquele jeito de papai, jeito de moço folgado, que sai e fica fora o tempo que bem entende. Também não gostava que ele me fizesse todos os gostos, pois, estes ele fazia mesmo. Era só pedir. Papai vivia de brincadeira e de caçoada quando estava em casa, e eu o ajudava a caçoar de mamãe, do que ele muito gostava. Mamãe ia aguentando, aguentando, com aquele jeito calmo que tinha. Acabava sempre estourando, perdia a resignação de criatura pequena, baixinha, botava a boca no mundo:
– Dois palermas! Não sei o que ficam fazendo em casa.
Papai virava-se, achava mais divertido. E sorriamos os dois
– Ora, o que! Pajeando a madame.
Eu achava tão engraçado, me assanhava em liberdades não dadas.
– Exatamente.
Então, o chinelo voava. Eu apanhava e papai ficava serio e saia. Ia ver o caminhão, ia ao bar tomar cerveja, conversar, qualquer coisa. Naquele dia não falava mais nem com ela, nem comigo.
Lá em Vila Mariana ouvi uma vez, da boca de uma vizinha, que mamãe era meio velha para ele e era até meio feia. Velha, podia ser. Feia, não. Tinha um corpo pequeno, era baixinha, mas não era feia.
Bern. O que interessa e que papai tinha um G.M.C., um carro-tanque G.M.C., e que enfiava o boné de couro, ajeitava-se no volante e saia por estas estradas roncando como só ele.
Mas agora era a Lapa, não havia Duda, havia era chuva na rua feia e papai estava fora. La na cidade de Patos, tão longe de São Paulo... La num ponto pequenino, quase fechando na curva do mapa.
– Menino, vai buscar o leite.
Pararam os pés no pedal, parei o passeio do dedo na cartografia, as pernas jogadas no soalho, barriga no chão, onde estirado eu pensava num G.M.C. carro-tanque e no boné de couro de papai. Ergui-me, limpei o pó da calça. Uma preguiça...
– Mas esta chovendo...
Veio uma repreensão incisiva. Mamãe nervosa comigo, por que sempre nervosa? Quando papai não estava, os nervos de mamãe ferviam. Tão boa sem aqueles nervos... Sem eles não era preciso que eu ficasse encabulado, medroso, evitando irrita-la mais ainda, catando as palavras, delicado, tateando. Ficava bocal, como quando ia limpar a fruteira de vidro da sala de jantar, aquele medo de melindrar, estragar o que estava inteiro e se faltasse um pedaço já não prestaria mais.
Peguei o litro e sai.
Na rua brinquei, com a lama brinquei. O tênis pisava na agua, pisava no barro, pisava na agua, pisava no barro, pisava na agua, pisava no barro, pisava...
– Da um litro de leite.
A dona disse que não tinha. Risinho besta me veio aos lábios, porque naquelas ocasiões papai diria: “E fumo em corda não tem?”.
O remédio era ir buscar ao Bar Paulistinha, onde eu nunca havia entrado. Quando entrei, a chuvinha renitente engrossou, trovão, trovão, um traço rápido cor de ouro lá no céu. O céu ficou parecendo uma casca rachada. E chuva que Deus mandava.
– Essa não!
Fiquei preso ao Bar Paulistinha. La fora, era vento que varria. Vento varrendo chão, portas, tudo. Sacudiu a marca do ponto do ônibus, levantou saias, papeis, um homem ficou sem chapéu. Gente correu para dentro do bar.
 – Entra, entra!
O dono do bar convidava com o ferro na mão. Depois desceu as portas, bar cheio, os luminosos se acenderam, xicaras retinindo café quente, cigarros, conversas sobre a chuva.
No Paulistinha havia sinuca e só então eu notei. Pedi uma beirada no banco em volta da mesa, ajeitei o litro de leite entre as pernas.
– Posso espiar um pouco?
Um homem feio, muito branco, mas amarelado ou esbranquiçado, eu não discernia, um homem de chapéu e de olhos sombreados, os olhos lá no fundo da cara, braços finos, tão finos, se chegou para o canto e largou um sorriso aberto:
– Mas e claro, garotão!
Fiquei sem graça. Para mim, moleque afeito as surras, aos xingamentos leves e pesados que um moleque recebe, aquela amabilidade me pareceu muita.
O homem dos olhos sombreados, sujeito muito feio, que sujeito mais feio! No seu perfil de homem de pernas cruzadas, a calça ensebada, a barba raspada, o chapéu novo, pequeno, vistoso, a magreza completa. Magreza no rosto cavado, na pele amarela, nos bravos tão finos. Tão finos que pareciam os meus, que eram de menino. E magreza até no contorno do joelho que meus olhos adivinhavam debaixo da calça surrada.
Seus olhos iam na pressa das bolas na mesa, onde ruídos secos se batiam e cores se multiplicavam, se encontravam e se largavam, combinadamente. A cabeça do homem ia e vinha. Quando em quando, a mão viajava ate o queixo, parava. Então, seguindo a jogada, um deboche nos beiços brancos ou uma aprovação nos dedos finos, que se alongavam e subiam.
– Larga a brasa, rapaz!
A mão subia, o indicador batia no médio e no ar ficava o estalo.
Aquela fala diferente mandava como nunca vi. Picou-me aquela fala. Um interesse pontudo pelo homem dos olhos sombreados. Pontudo, definitivo. O que fariam os dedos tão finos e feios?
– Larga a brasa, rapaz!
Quando o jogo acabou o homem estava numa indignação que metia medo. Deu com o dedo na pala e se levantou.
– Parei com este jogo!
Eu já não entendia — aquilo se jogava a dinheiro. Bem. E por que ele dava o dinheiro se não havia jogado?
– O Vitorino, você quer café?
Um outro que o chamava, com o mesmo jeito na fala.
Vitorino. Para mim, o nome era igualzinho à pessoa. Duas coisas nunca vistas e muito originais. O homem dos olhos sombreados sorriu aberto. A indignação foi embora nos dentes pretos de fumo. O homem na sua fala sorriu e foi para o companheiro que o chamava, lá da ponta do balcão. Falou como se fizesse uma arte:
– O adivinhão!

Um prédio velho da Lapa-de-baixo, imundo, descorado, junto dos trilhos do bonde. A entrada ficavam tipos vadios, de ordinário discutindo jogo, futebol e pernas que passavam. Pipoqueiro, jornaleiro, o bulício da estrada de ferro. A entrada era de um bar como os outros. Depois o balcão, a prateleira de frutas, as cortinas. Depois das cortinas, a boca do inferno ou bigorna, gramado, campo, salão... Era isso o Paulistinha.
As tardes e os domingos no canto do banco espiando a sinuca. Ali, ficar quieto, no meu canto, como era bom!
Partidas baratas e partidas caras. Funcionavam supetões, palpitações e suor frio. Sorrisos quietos, homens secos, amarelos, pescoços de galinha, olhos fundos nas caras magras. Aqueles não dormiam, nem comiam. E o dinheiro na caçapa parecia vibrar também, como o taco, como o giz, como os homens que ali vibravam. Picardia, safadeza, marmeladas também. O jogo enganando torcidas para coleta das apostas.
Vitorino era o dono da bola. Um cobra. O jeito camarada ou abespinhado de Vitorino, chapéu, voz, bossa, mãos, seus olhos frios medidores. O máximo, Vitorino. No taco e na picardia.
Saia, fazia que ia brincar. Ficava lá no meu canto, procurando compreender. Os homens brincavam:
— O meninão!
Eu sorria, como que recompensado. Aquele dera pela minha presença. Um outro virava-se:
— O meninão, você esta ai?
Meninão, meninão, meu nome ficou sendo Meninão.

Os pés de mamãe na maquina de costura não paravam.
Para mim, Vitorino abria uma dimensão nova. As mesas. O verde das mesas, onde passeava sempre, estava em todas, a dolorosa branca, bola que cai e castiga, pois, o castigo vem a cavalo.
Para mim, moleque fantasiando coisas na cabeça...
Um dia peguei no taco.

Joguei, joguei muito, levado pela mão de Vitorino, joguei demais.
Porque Vitorino era um bárbaro, o maior taco da Lapa e uma das maiores bossas de São Paulo. Quando nos topamos Vitorino era um taco. Um cobra. E para mim, menino que jogava sem medo, porque era um menino e não tinha medo, o que tinha era muito jeito, Vitorino ensinava tudo, não escondia nada.
Só joguei em bilhares suburbanos onde a policia não batia, porque era um menino. Mas minha fama correu, tive parceirinhos que vinham, vinham de muito longe à Lapa para me ver. Viam e se encabulavam. E depois carregavam nas apostas. Fama de menino-absurdo, de máximo, de atirador, de bárbaro. Eu jogando, as apostas corriam, as apostas cresciam, as apostas dobravam em torno da mesa. E os salões se enchiam de curiosos humildes, quietos, com os olhos nas bolas. Era um menino, jogava sem medo.
Eu era baixinho como mamãe. Por isso, para as tacadas longas era preciso um calço. Pois havia. Era um caixote de leite condensado que Vitorino arrumou. Alcançando altura para as tacadas, eu via a mesa de outro jeito, eu ganhava uma visão! Porque não se mostrasse, meu jogo iludia, confundia, desnorteava. Muitos não acreditavam nele. Também por isso rendia... E desenvolvia um jogo que enervava um santo. Jogo atirado, incisivo, de quem emboca, emboca, mas o jogo não aparece no começo. Vai aparecer no fim da partida, depois da bola três, quando não ha mais jeito para o adversários As apostas contrarias iam por agua abaixo.
Porque me trepasse num caixote e porque já me chamassem Meninão...
Meninão do Caixote... Este nome corre as sinucas da baixa malandragem, corre Lapa, Vila Ipojuca, corre Vila Leopoldina, chega a Pinheiros, vai ao Tucuruvi, chegou ate Osasco. Ia indo, ia indo. Por onde eu passava, meu nome ficava. Um galinho de briga, no qual muitos apostavam, porque eu jogava, ia lá ao fogo do jogo e trazia o dinheiro.
Lá ia eu, Meninão do Caixote, um galinho de briga. Um menino, não tinha quinze anos.

Crescia, crescia o meu jogo no tamanho novo do meu nome.
Tacos considerados vinham me ver, vinham de longe, namoravam a mesa, conversavam comigo, passavam horas espiando o meu jogo. Eu sabia que me estudavam, para depois virem. Viessem... Eu andava certo como um relógio. Não me afobava, Vitorino me ensinou. A gente joga para a gente, a assistência que se amole. E meu jogo nem era bonito, nem era estiloso, que eu jogava para mim e para Vitorino. O caixote arrastado para ali, para além, para as beiradas da mesa.
Minha vida ferveu. Ambientes, ambientes do joguinho. No fundo, todos os mesmos e os dias também iguais. Meus olhos nas coisas. O trouxa, a marmelada, o inveterado, traição, traição.
O Deus, como... por que é que certos tipos se metiam a jogar o joguinho? Meus olhos se entristeciam, meus olhos gozavam. Mas havendo entusiasmo, minha vida ferveu. Conheci vadios e vadias. Dei-me com toda a canalha. Aos catorze, num cortiço da Lapa-de-baixo conheci a primeira mina. Mulatinha, empregadinha, quente. Ela gostava da minha charla, a gente se entendia. Eu me lembro muito bem. As quintas-feiras, quatro pancadas secas na porta. Duas a duas.
Na sinuca, Vitorino e eu, duas forças. Nas rodas do joguinho, nas curriolas, apareceu uma frase de peso, que tudo dizia e muito me considerava.
– Este cara tá embocando que nem Meninão do Caixote!
Combati, topei paradas duras. Combati com Narciso, com Toniquinho, Quaresmão, Zé da Lua, Piauí, Tiririca (ate com Tiririca!), Manecão, Taquara, com os maiores tacos do tempo, nas piores mesas de subúrbio, combati e ganhei. Certeza? Uma coisa ia comigo, uma calma, não sei. Eles berravam, xingavam, cantavam, eu não. Preso as bolas, so as bolas. Ia lá e ganhava.
Umas coisas já me desgostavam.
Jogava escondido, esta claro. Brigas em casa, choro de mamãe. Eu não levantava a crista não. Ate baixava a cabeça.
– Sim senhora.
Mas a malandragem continuava, eu ia escorregando difícil, matando aulas, pingando safadezas. O colégio me enfarava, era isto. Não conseguia prender um pensamento, dando de olhos nos companheiros entretidos com latim e matemática.
— Cambada de trouxas!
Dureza, aquela vida: menino que estuda, que volta a casa todos os dias e que tem papai e tem mamãe. Também não era bom ser Meninão do Caixote, dias largado nas mesas da boca do inferno, considerado, bajulado, mandão, cobra. Mas abastecendo meio mundo e comendo sanduiche, que sinuca e ambiente da maior exploração. Dava dinheiro a muito vadio, era a estia, gratificação que o ganhador da. Dá por dar, depois do jogo. Acontece que quem não dá, acaba mal. Não custa a curriola atracar a gente lá fora.
Vitorino era meu patrão. Patroou partidas caríssimas, partidas de quinhentos mil reis. Naquele tempo, quinhentos mil reis. Punha-me o dinheiro na mão, mandava-me jogar. Fechava os olhos que o jogo era meu. E era.
—Vai firme!
As vezes, jogo e jogo, a vantagem do adversário era enorme. E havia três bolas na mesa. Apenas. O cinco, o seis e o sete. Meus olhos interrogavam os olhos sombreados de Vitorino. Sua mão subia no velho gesto, o indicador batendo no médio e no ar ficava o estalo. Enviava:
– Vai pras cabeças! Belisca esse homem, Meninão! - e eu beliscava, mordia, furtava, tomava, entortava, quebrava.
Vitorino era o patrão, eu ganhava, dividíamos a grana.
Aquilo. Aquilo me desgostava. O divisão cheia de sócios, de nomes, de mãos a pegarem no meu dinheiro!
Por exemplo: ganhava um conto de reis. Dividia com Vitorino, so me sobravam quinhentos. Pagava tempo e despesas, já eram só quatrocentos. Dava estia ao adversário: lá se iam mais dez por cento — só me sobravam trezentos. Dez por cento sobre um conto. Dava mais alguma estia... Ganhava um conto de reis, ficava só com duzentos.
Estava era sustentando uma cambada, sustentando Vitorino, seus camaradas, suas minas, seus...
_ Um dia mando tudo pra casa do diabo.
Não mandava ninguém. Vitorino trocava as bolas, mexia os pauzinhos, fazia negaça, eu aceitava a sua charla macia.
Uma vez, quebrando Zé da Lua, jogador fino, malandro perigoso da caixeta, do baralho e da sinuca, eu ouvi esta, depois de ganhar dois contos:
– Meu, neste jogo não tem malandro.
E eu ia aprendendo — o joguinho castiga por principio, castiga sempre, na ida e na vinda o jogo castiga. Ganhar ou perder, tanto faz.
Tinha juízo aquele Zé da Lua.
O jogo acabava, eu pegava os duzentos mil reis, tocava para casa. Ia murcho. Haveria briga com mamãe.

Jogo e minas.
E papai estando fora, eu já fazia madrugada, resvalando, sorrateiro. Eu evolui um truque para a janela do meu quarto em noite alta eu chegando. Meter o ferro enviesado, por fora; destravar o fecho vertical...
Mamãe me via chegar, e as vezes, fingia não ver. Depois, de mansinho, eu me deitava. E depois vinha ela e eu fingia dormir. Ela sabia que eu não estava dormindo. Mas mamãe me ajeitava as cobertas e aquilo bulia comigo. Porque ia para o seu canto, chorosa.
Mamãe, coitadinha.

Larguei uma, larguei duas, larguei muitas vezes o joguinho.
Entrava nos eixos. No colégio melhorava, tornava-me outro, me ajustava ao meu nome.
Vitorino arrumava um jogo bom, me vinha buscar. Eu desguiando, desguiando, resistia. Ele dando em cima. Se papai estava fora, eu acabava na mesa. Tornava a mesa com fome das bolas, e era uma piranha, um relógio, um bárbaro. Jogando como sabia.
Essas reaparições viravam boato, corriam os salões, exageravam um Meninão do Caixote como nunca fui.
Vitorino, traquejado. Começava a exploração. Eu caia, por principio; depois explodia, socava a mesa:
— Este joguinho de graça e caro!
Fechava a mão, batia e jurava em cima da mesa.
Mamãe readquiria seu jeito quieto, criatura miúda. Os pês pequenos voltavam a pedalar descansados.

Tiririca, o grande Tiririca, elas por elas, era quase taco invicto antes do meu surgimento. E não parava jogo perdendo, empenhava o relógio, anel, empenhava o chapéu, mas o jogo não parava. Ficava fervendo, uma raiva presa, que o deixava fulo, branco, furta-cor... Os parceirinhos gozavam a boca pequena.
-                 O bicho tá tiririca.
Ficou se chamando Tiririca.
Mas era um grande taco. Perdendo e que era grande. Mineiro, mulato, teimoso, tanta manha, quanta fibra. Um brigador. Um dos poucos que conheci com um estilo de jogo. Bonito, com puxadas, com efeitos, com um domínio da branca! Classe. Joguinho certo, ô batida de relógio, aparato, fantasia, cadencia, combinação, ô tacada de feliz acabamento! A sua força eram as forras. Os revides em grande estilo. Porque para Tiririca tanto fazia jogar uma hora, doze horas ou dois dias. O homem ficava verde na mesa, curtia sono e curtia fome, mas não dava o gosto.
– O jogo e jogado, meu.
Levava a melhor vida. Vadiava, viajava, tinha patrões caros, consideração dos policiais. E se o jogo minguava, Tiririca largava o taco e torcia o nariz com orgulho:
– Eu tenho meus bons ofícios.
Ia trabalhar como poceiro.
Bern. Tiririca se encabulou comigo, estrebuchou, rebolou comigo durante sete horas e perdeu. Tudo. Empenhou o paletó por cinquenta mil reis e perdeu.
– Esse moleque não e Deus!
Bem. Voltava agora, com a sede e o dinheiro, exigindo o reencontro, prometendo me estraçalhar.
– Quero a forra.
Vitorino me buscou. Eu não queria mais nada.
Do lado de lá da rua, em frente ao colégio, Vitorino estava parado. Passavam ônibus, crianças, passavam mulheres, bondes, Vitorino ficava. Dois meses sem vê-lo e ele era o mesmo. Eu lhe explicaria bem devagar que não queria mais nada com o joguinho. As coisas passavam de novo, Vitorino ficava. Ficava, ficava. Seu chapéu, suas mãos, sua camisa sem gravata. Magro, encardido, trapo, caricatura. Desguiei, busquei um modo:
– Não da pé
Vitorino cortou com um agrado rasgado. Como escapar aquele raio de simpatia e a fala camarada? Vitorino tinha uma bossa que não acabava mais! Afinal, cedi para bater um papo. Afinal, entre tacos...
– Nego, não da pé
Tiririca. A conversa já mudou. O malandro em São Paulo, querendo jogo comigo, aquilo me envaidecia... Tiririca me procurando.
Mas caí no meu tamanho, afrouxei, quase três meses sem pegar no taco, fora de forma, uma barata tonta, não daria mais nada.
– Que nada, meu!
Tiririca era um perigoso. Deveria estar tinindo.
– Mas você e a força!
Vitorino já me conhecia, aguentava, aguentava. Ate que eu:
– Pois vou!
Ele se abriu no macio rebolado:
– Aí, meu Meninão do Caixote!

Era um domingo.
Dia claro, intenso, desses dias de outubro. Um sol... Desses dias de São Paulo, que ninguém precisa dizer que e domingo. Inesperados, dadivosos, e no entanto, malucos — costumam virar duma hora para outra.
O ultimo jogo. O jogo era em Vila Leopoldina, que assim marcou Tiririca. No ônibus uma coisa ia comigo. Era o ultimo, perdesse ou ganhasse. Bem falando, eu não queria nem jogar, ia só tirar uma cisma, quebrar Tiririca duma vez, acabar com a conversa. Não por mim, que eu não queria jogo. Mas pelo gosto de Vitorino, da curriola, não sabia. Saltei na rua de terra.
Ninguém precisava dizer que aquilo era um domingo...
— O Meninão do Caixote!
Na manha quente, um que me saudava. Cobra já conhecido e muito considerado, eu encontrava, nos bilhares, amigos de muitos lados.
Prometera voltar em casa para o almoço. Claro que voltaria. Tiririca era duro, eu sabia. Deixa-lo. Eu lhe quebraria a fibra. Fibra, orgulho, teima, eu mandaria tudo para a casa do diabo. Já havia mandado uma vez...
A curriola estava formada quando o jogo começou.
O salão se povoou, se encheu, ferveu. Gente por todo o canto, assim era quando eu jogava e os homens carregavam apostas entre si. O dono do bar me sorria, vinha trazer o giz americano, vinha me adular. Eu cobra, mandão. As mãos de Vitorino atiçavam.
— Larga a brasa, Meninão! Dá-lhe, Meninão! Vamos deixar esse cara duro, durinho. De pernas pro ar!
Desacatos fazem parte da picardia do jogo. E na encabulação e no desacato Vitorino era professor.
Mas Tiririca estava terrível. Afiado, comendo as bolas, embocando tudo, naquele domingo estava terrível. Contudo, na sinuca eu trazia uma coisa comigo. Mais jogasse o parceirinho, mais eu jogaria. Uma vontade desesperada me crescia, me tomava por inteiro e eu me aferrava. Jogava o jogo. Suor, apertava os beiços e me atirava. Não queria saber de mais nada. Então, era um relógio, um bárbaro no fogo do jogo, não havia mais taco para mim. E se o jogo era mole eu também me afrouxava.
Tiririca era um sujeito de muito juízo. Mas na velha picardia, eu lhe fui mostrando aos poucos os meus dentes de piranha. E quando o mulato quis embalar o jogo a linha de frente era minha.
Uma e meia no relógio do bar e eu pensei em mamãe. Ali, rodando a mesa, o caixote para aqui, para ali, como as horas voavam!
Começamos, por fim, as partidas de um conto.
Fui ao mictório, urinei, lavei a cara. Lavando aos poucos, molhando as pálpebras, deixando a agua escorrer. Pensei com esperança em liquidar logo aquele jogo; mamãe estaria esperando.
Voltei, ajeitei o caixote. A curriola me olhava. Assim, sempre assim, os olhos abotoados na gente, tudo para enervar. Raiva daquele jogo não acabar duma vez. Passei giz americano no taco.
– A saída é minha.
Como aquilo se prolongava e como era dolorido! Ganhei uma, ganhei duas, Tiririca estava danado.
—Vai a dois contos! Se eu perder, paro o jogo.
Tiririca parar o jogo? Parava nada, aquele não parava. Perdia as cuecas, perdia os cabelos, mas o jogo não parava.
No entanto, daquela mão, o mineiro já estava quebrado, sem nada, quebradinho. Arriscando os últimos. Vitorino sério, firme, de pé, era muito dinheiro numa partida. E se o jogo virasse?...A força de Tiririca eram as forras.
Suspirei, alivio, suor frio, luz da esperança. Luz da certeza, que o jogo era meu! Estourei num entusiasmo bruto, que a curriola se espantou. Minha mão se fechou no ar e o indicador quase espetava o peito de Tiririca.
– Vou te quebrar, moço. Vou te roubar depressinha!
O mineiro dissimulava a raiva:
– O jogo é jogado...
Puxei o caixote, ajeitei, giz no taco, bastante giz, giz americano, do bom. E sai pela bola cinco!
Uma saída maluca, Vitorino reprovou. Mas o cinco caiu. Vitorino suspirou:
– Que bola!
A curriola se assanhou, cochichos, apostas se dobravam.
Elogiado, embalado, joguei o jogo. Joguei o máximo, na batida em que ia, Tiririca nem teria tempo de jogar, que eu ia fechar o jogo, acabar com as bolas. Ia cantando os pontos:
– Vinte e seis.
A curriola estava boba. O dono do bar parado, na mão um litro vazio de boca para baixo. Vitorino saltou da cadeira, açambarcou todas as alegrias do salão, virou o dono da festa. Numa agitação de criança, erguia o braço magrelo.
– Este bichinho se chama Meninão do Caixote!
Tiririca estatelado, escorava-se ao taco. Batido, batidinho.
Uma suplica nos olhos do malandro, quando a bola era lenta e apenas deslizava mansinha, no pano verde. Tiririca perdia a linha:
– Não cai, morfética!
A bola caia. Eu ia embocando e cantando.
– Setenta e um...
Duas bolas na mesa — o seis e o sete. Dei de olhos na colocação da branca, nas caçapas, nas tabelas, e me atirei. Duas vezes meti o seis e o sete meti duas vezes. Fechei a partida com noventa pontos; foram vinte minutos embocando bolas, um bárbaro, embocando, contando pontos e Tiririca não teve chance. Ali, parado, olhando, o taco na mão.
O jogo acabou. Primeiras discussões em torno da mesa, gabos, trocas de dinheiro.
Vinha chorosa de fazer do. Mamãe surgindo na cortina verde, vinha miudinha, encolhida, trazendo uma marmita. Não disse uma palavra, me pôs a marmita na mão.
– O seu almoço.
Um frio nas pernas, uma necessidade enorme de me sentar. E uma coisa me crescendo na garganta, crescendo, a boca não aguentava mais, senti que não aguentava. Ninguém no meu lugar aguentaria mais. Ia chorar, não tinha jeito.
– Que e? Que e isso? O Meninão!
Assim me falavam e ao de leve, por trás, me apertavam os bravos. Se foi Vitorino, se foi Tiririca, não sei. Encolhi-me.
O choro já serenando, baixo, sem os soluços. Mas era preciso limpar os olhos para ver as coisas direito. Pensei, um infinito de coisas batucaram na cabeça. As grandes paradas, dois anos de taco, Taquara, Narciso, Zé da Lua, Piauí, Tiririca... Tacos, tacos. Todos batidos por mim. E agora, mamãe me trazendo almoço... Eu ganhava aquilo? Um braço me puxou.
– Me deixa.
Falei baixo, mais para mim do que para eles. Não ia mais pegar no taco. Tivessem paciência. Mas agora eu estava jurando por Deus.
Larguei as coisas e fui saindo. Passei a cortina, num passo arrastado. Depois a rua. Mamãe ia lá em cima. Ninguém precisava dizer que aquilo era um domingo... Havia namoros, havia vozes e havia brinquedos na rua, mas eu não olhava. Apertei meu passo, apertei, apertando, chispei. Ia quase chegando.

Nossas mãos se acharam. Nós nos olhamos, não dissemos nada. E fomos subindo a rua.

Um comentário:

  1. Boa tarde!

    A data na apresentação do autor esta errada (1937-1906).

    Abraço

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