"Signos e símbolos" do escritor russo Vladimir Nabokov é considerado como um dos contos mais perfeitos já escritos. Sua leitura, e os segredos nele escondidos são intrigantes. Maestria de um grande escritor.
Signos e símbolos
Vladimir Nabokov
Tradução de Julia
Cunha
Pela quarta vez como em tantos anos eles foram
confrontados com o dilema do que dariam de presente de aniversário a um jovem
rapaz com uma mente irremediavelmente perturbada. Vontades ele não tinha
nenhuma. Objetos feitos pelo homem eram para ele colmeias do mal que
reverberavam ao embalo de atividades funestas que apenas ele podia perceber ou
confortos brutais que se revelariam completamente inúteis em seu mundo
abstrato. Depois de descartarem uma série de itens que poderiam ofendê-lo ou
apavorá-lo (aparelhos eletrônicos, por exemplo, eram um tabu), seus pais se
decidiram por uma delicada e inocente lembrancinha: uma cesta com dez potinhos
de geleia de frutas diferentes.
Quando o rapaz nasceu, eles já estavam casados
há bastante tempo; cerca de vinte anos se passaram e agora eram bem velhos. Ela
tinha cabelo cinza e sem graça, presos num coque desleixado. Seus vestidos eram
pretos e baratos. Ao contrário de outras mulheres da sua idade (como a Sra.
Sol, a vizinha de porta, que tinha o rosto todo pintado de rosa e lilás e cujo
chapéu mais parecia um canteiro de flores), ela apresentava uma cara limpa e
branca à dura luz da primavera. Seu marido, que chegou a ser um empresário
razoavelmente bem sucedido em sua terra natal, era hoje totalmente dependente
do irmão, Isaac, um verdadeiro americano de quase quarenta anos. Eles raramente
viam Isaac e o apelidaram de “O Príncipe”.
Naquela sexta-feira tudo deu errado. O metrô
pifou entre duas es- tações e eles passaram quinze minutos sem ouvir nada,
apenas a batida obediente dos corações e o farfalhar de jornais. O ônibus que
deveriam tomar em seguida atrasou e os deixou esperando mofando na esquina por
uma eternidade; quando enfim chegou, estava cheio de colegiais tagarelas.
Chovia muito enquanto eles atravessaram o caminho de barro que levava ao
sanatório. Lá tiveram de esperar novamente, e em vez de seu menino, arrastando
os pés pelo chão como geralmente fazia (seu pobre rosto pipocado de espinhas,
mal barbeado, carrancudo, confuso), uma enfermeira que eles conheciam e de quem
não gostavam muito entrou na sala e explicou detalhadamente que o filho deles
tinha tentado outra vez acabar com a própria vida. Ele estava bem, disse ela,
mas uma visita poderia abalá-lo. O lugar era tão carente de funcionários, as coisas
se perdiam ou se misturavam tão facilmente que decidiram não deixar o presente
ali, mas trazê-lo em sua próxima visita.
Ela esperou que o marido abrisse o guarda-chuva
e segurou seu braço. Ele limpava a garganta ruidosa e insistentemente, como
fazia quando estava chateado. Eles chegaram até o abrigo do ponto de ônibus do
outro lado da rua e fecharam o guarda-chuva. A poucos metros dali, debaixo de
uma árvore trêmula e gotejante, um pequeno pássaro imaturo e já meio morto se
contorcia inutilmente em uma poça.
No longo caminho até o metrô, ela e o marido não
trocaram uma só palavra e sempre que ela olhava para suas mãos envelhecidas
(veias inchadas, manchas marrons), contorcendo o cabo do guarda-chuva, sentia
lágrimas tentando cair. Enquanto olhava em volta em busca de alguma distração,
teve um suave calafrio, um misto de compaixão e admiração, ao notar que um dos
passageiros — uma garota com cabelos escuros e as unhas do pé imundas pintadas
de vermelho — chorava no ombro de uma mulher mais velha. Com quem aquela mulher
se parecia? Parecia Rebecca Borisovna, cuja filha se casara com um dos
Soloveichiks — em Minsk, anos atrás.
Da última vez que ele tentou fazer isso, seu
método tinha sido, nas palavras do médico, uma obra-prima da inventividade; ele
teria conseguido não fosse um invejoso companheiro de hospital ter achado que
ele estava aprendendo a voar e interrompido bem na hora. O que ele realmente
queria era cavar um buraco em seu mundo e escapar.
A lógica de seus delírios chegou a ser tema de
um longo artigo publicado em uma revista científica, mas ela e o marido já
haviam desvendado o mistério muito antes. “Mania referencial”, dizia o artigo
de Herman Brink. Casos raros em que o paciente imagina que tudo o que acontece
ao redor seja uma referência velada à sua personalidade e existência. Ele
exclui pessoas de carne e osso da conspiração porque se considera muito mais
inteligente que elas. A natureza o espreita onde quer que ele vá. Nuvens no céu
transmitem com vagarosos sinais informações extremamente detalhadas sobre ele
umas para as outras. Seus pensamentos mais íntimos são discutidos ao anoitecer
por árvores sombrias que gesticulam sem parar em um alfabeto manual.
Superfícies irregulares, manchinhas e sardas formam terríveis mensagens que ele
é obrigado a interceptar. Tudo é cifrado e tudo fala sobre ele. Alguns dos
espiões são observadores imparciais, como superfícies de vidro e até piscinas;
outros, como casacos na vitrine de uma loja, são testemunhas preconceituosas,
no fundo, linchadores; outros ainda (água corrente, tempestades) são tão histéricos
que beiram a insanidade, têm uma opinião distorcida a seu respeito e
interpretam suas ações de modo grotescamente errado. Ele precisa estar o tempo
inteiro alerta e dedicar cada minuto e cada centelha da vida à decodificação da
ondulação das coisas. Até o ar que ele exala é indexado e arquivado. Se ao
menos o interesse que ele desperta ficasse limitado às coisas ao seu redor, o
que infelizmente não acontece! Com a distância, as torrentes de ofensas
selvagens aumentam em volume e volubilidade. Ampliados um milhão de vezes, seus
glóbulos sanguíneos passam por cima de vastas planícies; mais além, grandes
montanhas de solidez e altura insuportáveis resumem, a ponto de granitos e de
lamentosos abetos, a verdade última de seu ser.
Quando emergiram do ar sufocante e viciado do
metrô, os últimos raios do dia se misturavam às luzes da rua. Ela queria
comprar peixe para o jantar, por isso, entregou ao marido a cestinha de geleias
e disse para ele ir para casa. Ele já estava no meio do caminho quando lembrou
que tinha dado as chaves à mulher no começo do dia.
Em silêncio, sentou-se nos degraus e em silêncio
se levantou quando, cerca de dez minutos depois, ela veio se arrastando
pesadamente pelas escadas, sorrindo amarelo e balançando a cabeça em desaprovação
à sua própria tolice. Entraram no apartamento de dois quartos e ele foi
imediatamente se olhar no espelho. Forçando os cantos da boca com os polegares
e fazendo uma careta que mais parecia uma máscara, tirou sua nova e
desconfortável dentadura, desgrudando os fios de saliva que o prendiam ao
objeto. Leu o jornal impresso em russo enquanto ela colocava a mesa. Ainda
lendo, comeu o pálido jantar que nem exigia dentes para ser mastigado. Ela
sabia como andava seu humor e também ficou calada.
Quando ele foi para a cama, ela permaneceu na
sala de estar com seu pacote de cartas de baralho sujas e seus álbuns de
fotografias velhas. Do outro lado do estreito pátio, onde a chuva tilintava em
algumas latas de lixo, uma luz suave vinha das outras janelas, e em uma delas
dava para ver um homem de calças pretas com as mãos cruzadas na nuca e os
cotovelos levantados, deitado inerte em sua cama desforrada. Ela fechou a
persiana e pegou as fotos. Quando bebê, ele parecia mais surpreso que a maioria
dos bebês. Uma empregada alemã que eles tiveram em Leipzig e seu noivo de cara
gorda caíram de uma dobra do álbum. Minsk, a Revolução, Leipzig Berlim,
Leipzig, novamente, uma casa de fachada enviesada, totalmente fora de foco. Aos
quatro anos de idade, em um parque: temperamental, tímido, com a testa
franzida, evitando olhar para um esquilo ao longe, como costumava fazer com
qualquer estranho. Tia Rosa, uma senhora espalhafatosa e de olhos arregalados
que tinha vivido em um mundo chacoalhado por más notícias, falências, acidentes
de trem e tumores cancerígenos até que os alemães a enviassem para a morte
junto com todas as pessoas com quem ela se preocupava. Aos seis anos — que foi
quando ele desenhou pássaros maravilhosos com mãos e pés humanos e sofria de
insônia como um homem feito. Seu primo, hoje um famoso jogador de xadrez. Ele
de novo, com cerca de oito anos, já difícil de entender, com medo do papel de
parede do corredor, com medo de uma certa gravura em um livro que mostrava uma
mera paisagem idílica com pedras na encosta de uma colina e um pneu velho
pendurado no galho de uma árvore sem folhas. Aos dez: foi no ano que deixaram a
Europa. A vergonha, a pena, as dificuldades humilhantes, as crianças feias,
cruéis e atrasadas com quem ele foi obrigado a conviver naquela escola
especial. Então chegou um momento em sua vida, bem durante um longo período de
convalescença após uma pneumonia, em que essas suas pequenas fobias que os pais
teimaram em considerar como excentricidades de uma criança prodígio foram se
agravando, formando um denso emaranhado de ilusões que interagiam logicamente
umas com as outras, tornando-se completamente inacessíveis às mentes normais.
Tudo isso e muito mais ela aceitou, afinal,
viver é aceitar a perda de uma alegria após a outra. No seu caso não eram nem
sequer alegrias, e sim meras possibilidades de melhora. Ela pensou nas
recorrentes ondas de dor que, por uma razão ou por outra, ela e o marido
tiveram que suportar; nos gigantes invisíveis que feriam seu filho de um jeito
inimaginável; na quantidade incalculável de ternura que havia no mundo; no
destino dessa ternura, que era ser esmagada ou desperdiçada, ou transformada em
loucura; nas crianças abandonadas cantando para si mesmas em um cantinho
empoeirado; nas belas ervas daninhas que não conseguem se esconder das mãos do
fazendeiro e assistem impotentes a essa símia sombra que delas se aproxima para
roubar suas flores já então despedaçadas, à medida que cai a terrível escuridão
da noite.
Passava da meia-noite quando, da sala de estar,
ela ouviu o marido gemer. Ele se aproximou, cambaleando, usando por cima do
pijama o velho sobretudo de gola astracã que ele achava muito melhor do que seu
confortável roupão azul.
“Não consigo dormir!”, ele resmungou.
“Por quê?”, perguntou. “Por que você não
consegue dormir? Você estava tão cansado.”
“Não consigo dormir porque estou morrendo”,
disse ele, deitando-se no sofá.
“É o seu estômago? Você quer que eu chame o Dr.
Solov?”
“Nada de médicos, nada de médicos”, gemeu. “Para
o diabo com os médicos! Temos que tirá-lo de lá depressa. Do contrário, seremos
culpados. Culpados!” Ele se deixou cair sentado no sofá, os dois pés presos ao
chão, batendo na testa com o punho fechado.
“Tudo bem”, ela disse calmamente. “Vamos
trazê-lo para casa amanhã de manhã.”
“Eu queria um pouco de chá”, disse o marido,
indo para o banheiro.
Com dificuldade, ela pegou algumas cartas de baralho e
uma ou duas fotografias que tinham caído no chão: o valete de copas, o nove de
espadas, o ás de espadas, a empregada Elsa e seu namorado bestial. Ele voltou
revigorado, dizendo em voz alta: “Está tudo planejado. Vamos dar o quarto para
ele. Cada um de nós vai passar uma parte da noite na cama, ao seu lado, e outra
no sofá. O médico virá aqui pelo menos duas vezes por semana. Não importa o que
O Príncipe disser e, de todo modo, ele não vai falar nada já que assim vai sair
até mais barato.”
O telefone tocou. Era uma hora incomum para ele
tocar. Ele ficou parado no meio do quarto, tateando com o pé em busca do
chinelo que havia caído. A boca sem dentes se abriu de um jeito infantil
enquanto encarava a mulher. Por ter um inglês melhor que o dele, era ela quem
atendia as chamadas.
“Gostaria de falar com o Charlie” disse uma voz
monótona de mulher.
“Para que número você ligou?... Não. Você discou
o número errado.”
Ela devolveu o telefone suavemente à mesinha e
sua mão buscou o coração velho e cansado. “Isso me assustou”, disse ela.
Ele sorriu por um segundo e logo retomou seu
animado monólogo. Iriam buscá-lo assim que o dia raiasse. Para seu próprio bem,
manteriam todas as facas em uma gaveta trancada. Nem em seus piores momentos
ele apresentava perigo para os outros.
O telefone tocou de novo. A mesma voz ansiosa e
impassível pro- curando por Charlie.
“Você está com o número errado. Vou te explicar
o que você está fazendo: você está girando a letra O em vez do zero.”
Sentaram para beber seu inesperado e festivo chá
da meia-noite. O presente de aniversário estava sobre a mesa. Ele bebia
ruidosamente; seu rosto estava vermelho; de vez em quando erguia o copo e fazia
um movimento circular para que o açúcar se dissolvesse. A veia na lateral de
sua cabeça, onde havia uma enorme marca de nascença, se inchou visivelmente, e,
embora ele tivesse se barbeado naquela manhã, um pelinho prateado apareceu em
seu queixo. Enquanto ela lhe servia mais uma xícara de chá, ele pôs os óculos e
examinou novamente, cheio de prazer, o potinho amarelo e luminoso, o verde, o
vermelho. Seus lábios úmidos e desajeitados liam em voz alta os nomes nas
etiquetas: damasco, uva, ameixa, marmelo. Ele tinha chegado ao potinho de
maçã-verde quando o telefone tocou novamente.
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