“Abril é o mês mais cruel” do escritor
cubano Guillermo Cabrera Infante (1929-2005) é um conto curto, simples com um
final que a primeira vista parece excessivamente forte. Mas não se engane. Um
grande escritor não escolhe o titulo de seus contos ao acaso; ao plagiar o
primeiro verso do “Wasted Land” de T.S. Elliot, Cabrera Infante parece comungar com o poeta a
ideia de que abril (mês do inicio da primavera) e o momento do renascimento da
vida. E para que haja o renascimento, antes, alguma coisa tem de morrer. Uma leitura que vale a pena.
Abril é o mês
mais cruel
Guillermo
Cabrera Infante
Não soube se o que o despertou foi a
claridade que entrava pela janela, o calor ou ambas as coisas. Ou quem sabe o
barulho que ela fazia na cozinha preparando o café da manhã. Ouviu primeiro ela
fritar os ovos e logo em seguida sentiu o cheiro da manteiga quente. Se esticou
na cama e sentiu a frescura dos lençóis escorregando por debaixo de seu corpo e
um arrepio agradável correu pelas costas até a nuca. Naquele momento ela entrou
no quarto e ele se surpreendeu ao vê-la com o avental por cima do shorts. A
lâmpada, que antes estava na mesinha ao lado da cama, já não estava mais ali e ali,
ela pôs os pratos e os copos. Só então se certificou que ele estava acordado.
— Que me conta este dorminhoco? — perguntou
ela brincando.
Em um bocejo ele respondeu: Bom dia.
— Como você se sente?
Ia dizer que muito bem, mas pensou que não
era exatamente muito bem. Reconsiderou e disse:
— Admiravelmente.
Não mentia. Nunca tinha se sentido
melhor. Mas se deu conta que palavras são traiçoeiras.
— Que bom! — disse ela.
Comeram. Quando ela terminou de lavar a
louça, voltou ao quarto e propôs que eles fossem dar um mergulho.
— Faz um dia lindo — disse.
— Vi pela janela — disse ele.
— Viu?
— Bem, senti.
Se levantou, se lavou e colocou seu
calção de banho. Por cima vestiu o roupão e foram a praia.
— Espere — disse ele na metade do
caminho — Esqueci a chave.
Ela tirou a chave do bolso e mostrou.
Ele sorriu.
— Você nunca esquece de nada?
— Sim — disse ela e o beijou na boca —
Hoje tinha esquecido de te beijar. Quer dizer, depois de acordado.
Sentiu o ar do mar nas pernas, no rosto
e respirou fundo.
— Isso é vida — disse.
Ella tinha tirado as sandálias e
enterrava os dedos na areia ao andar. Olhou para ele e sorriu.
— Você acredita? — disse.
— Você não acredita? — retrucou ele.
— Oh, sim. Sem duvida. Nunca me senti
melhor.
— Nem eu. Nunca na vida — disse ele
Se banharam. Ela nadava muito bem, com braçadas
longas de professional. Pouco depois ele regressou a praia e se deitou na
areia. Sentiu que o sol secava a agua e os cristais de sal se grudavam nos seus
poros. Ele pode observar onde estava se queimando mais e onde se formariam
bolhas. Ele gostava de se bronzear ao sol. Ficar quieto, encostar a cara na
areia e sentir a brisa formando e destruindo aquelas pequenas dunas e jogando
grãos de areia para dentro de seu nariz, seus olhos, na boca e nos ouvidos.
Parecia um deserto distante, imenso, misterioso e hostil. Cochilou.
Quando despertou, ela se penteava ao seu
lado.
— Voltamos? — perguntou.
— Quando você quiser.
Ela preparou o almoço e comeram sem se
falar. Tinha se queimado levemente no braço e ele foi até a farmácia que ficava
a três quarteirões para comprar picrato. Depois ficaram no portal e até eles
chegou o fresco, e as vezes rude, vento do mar que se levanta às tardes em
abril.
Ele a olhou. Viu seus tornozelos
delicados e bem desenhados, seus joelhos lisos e os músculos delineados com
suavidade. Ela estava deitada na espreguiçadeira relaxada e em seus lábios grossos
havia una tentativa de sorriso.
— Como você se sente? — perguntou.
Ela abriu seus olhos e voltou a fechar
diante da claridade. Suas pestanas eram largas e curvas.
— Muito bem. E você?
— Muito bem também. Mas me conte... já saiu
tudo?
— Sim — disse ela.
— E já não incomoda?
— Em absoluto. Te juro que nunca me senti
melhor.
— Me alegro.
— Por quê?
— Porque incomodaria me sentir tão bem se
você não está bem.
— Mas eu me sinto bem.
— Me alegro.
— Verdade. Acredite, por favor.
— Acredito.
Ficaram em silencio e ela falou:
— Damos um passeio pelas pedras?
— Você quer?
— Sem duvida. Quando?
— Quando queiras.
— Não, diga você.
— Esta bem, dentro de uma hora.
Em una hora tinham chegado aos penhascos
e ela perguntou observando na praia o desenho da espuma das ondas que se
estendia até as cabanas:
— Que altura você acha que deve haver
até lá embaixo?
— Uns cinquenta metros. Talvez setenta e
cinco.
— Cem não?
— Não creio.
Ela se sentou na pedra, de perfil para o
mar com suas pernas contrastando com o azul do mar e do céu.
— Você já me fotografou assim? — perguntou
ela.
— Sim.
— Me prometas que nunca fotografara
outra mulher assim neste lugar.
Ele se zangou.
— As coisas que passam pela tua cabeça!
Estamos em lua de mel, não? Como posso pensar em outra mulher.
—Não digo agora. Mais tarde. Quando você
tenha se cansado de mim, quando a gente tenha se divorciado.
Ele a levantou e a beijou nos lábios com
força.
— Você é boba.
Ela se aconchegou em seu peito.
— Não nos divorciaremos nunca?
— Nunca.
— Você vai me querer para sempre?
— Sempre.
Se beijaram. Quase em seguida escutaram
que alguém lhes chamava.
— É com você.
— Não sei quem possa ser.
Viram um velho se aproximar por trás das
ramas da folhagem.
— Ah. É o encarregado.
Ele os cumprimentou.
— Vocês partem amanhã?
— Sim, pela manhã bem cedo.
— Bem, então prefiro que paguem agora.
Pode ser?
Ele olhou para ela.
— Vai você com ele. Eu quero ficar aqui
um pouquinho mais.
— Por que você não vem também?
— Não— disse ela— Quero ver o por do
sol.
— Não quero interromper. Mas é que
gostaria de ir a casa da minha filha para ver as lutas de box pela televisão. Você
sabe, ela vive aqui perto.
— Vá com ele— disse ela.
— Está bem — disse ele e saiu andando
atrás do velho.
— Você sabe onde está o dinheiro?
— Sei — respondeu ele, olhando para trás.
— Vem me buscar depressa, pode ser?
— Está bem. Mas quando escurecer,
descemos. Lembre-se.
— Está bem — disse — Me de um beijo
antes de ir.
Ela o beijou com força e com dor.
Ele a sentiu tensa, afiada por dentro. Antes de se perder
atrás das folhagens ele ainda acenou. Pelo ar chegou sua voz que dizia eu te
quero. Ou talvez perguntava, você me quer?
Ficou olhando para o sol se pondo. Era
um circulo cheio de fogo que o horizonte convertia em três quartos de circulo,
em meio circulo e em nada, ainda que permanecesse um leve borbulhar vermelho
por onde o sol desapareceu. Em seguida o céu foi ficando violeta, roxo e o
negro da noite apagou os restos do crepúsculo.
— Teremos lua esta noite? — se perguntou
ela falando alto.
Olhou
para baixo, viu um buraco negro e logo abaixo, a crosta de espuma branca ainda
visível. Se moveu para a borda onde estava sentada e deixou os pés pendurados
no vazio. Depois apoiou as mãos na
pedra, suspendeu o corpo e sem o menor ruído se deixou cair no poço negro e
profundo que era a praia exatamente oitenta e dois metros abaixo.
Dá gosto ler GCI!
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