sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

81 – O Analista de Bagé – L. F. Veríssimo

Luís Fernando Veríssimo (1936- ) , escritor brasileiro nascido em Porto Alegre, um dos maiores contistas brasileiros, criador de personagens memoráveis como o Analista de Bagé, A Velhinha de Taubaté e Ed Mort.
O analista de Bagé
Luis Fernando Veríssimo

Bagé
Certas cidades não conseguem se livrar da reputação injusta que, por alguma razão, possuem. Algumas das pessoas mais sensíveis e menos grossas que eu conheço vêm de Bagé, assim como algumas das menos afetadas são de Pelotas.
Mas não adianta. Estas histórias do psicanalista de Bagé são provavelmente apócrifas (como diria o próprio analista de Bagé, história apócrifa é mentira bem-educada), mas, pensando bem, ele não poderia vir de outro lugar.
Pues, diz que o divã no consultório do analista de Bagé é forrado com um pelego. Ele recebe os pacientes de bombacha e pé no chão.
― Buenas. Vá entrando e se abanque, índio velho.
― O senhor quer que eu deite logo no divã?
― Bom, se o amigo quiser dançar uma marca antes, esteja a gosto. Mas eu prefiro ver o vivente estendido e charlando que nem china da fronteira, pra não perder tempo nem dinheiro.
― Certo, certo. Eu...
― Aceita um mate?
― Um quê? Ah, não. Obrigado.
― Pos desembucha.
― Antes, eu queria saber. O senhor é freudiano?
― Sou e sustento. Mais ortodoxo que reclame de xarope.
― Certo. Bem. Acho que o meu problema é com a minha mãe.
― Outro...
― Outro?
― Complexo de Édipo. Dá mais que pereba em moleque.
― E o senhor acha...
― Eu acho uma poca vergonha.
― Mas...
― Vai te metê na zona e deixa a velha em paz, tchê!

Contam que outra vez um casal pediu para consultar, juntos, o analista de Bagé.
Ele, a princípio, não achou muito ortodoxo.
― Quem gosta de aglomeramento é mosca em bicheira...
Mas acabou concordando.
― Se abanquem, se abanquem no más. Mas que parelha buenacha, tchê. Qual é o causo?
― Bem ― disse o homem ―,é que nós tivemos um desentendimento...
― Mas tu também é um bagual. Tu não sabe que em mulher e cavalo novo não se mete a espora?
― Eu não meti a espora. Não é, meu bem?
― Não fala comigo!
― Mas essa alta mais nervosa que gato em dia de faxina.
― Ela tem um problema de carência afetiva...
― Eu não sou de muita frescura. Lá de onde eu venho, carência afetiva é falta de homem.
― Nós estamos justamente atravessando uma crise de relacionamento porque ela tem procurado experiências extraconjugais e...
― Epa. Opa. Quer dizer que a negra velha é que nem luva de maquinista? Tão folgada que qualquer um bota a mão?
― Nós somos pessoas modernas. Ela está tentando encontrar o verdadeiro eu, entende?
― Ela tá procurando o verdadeiro tu nos outros?
― O verdadeiro eu, não. O verdadeiro eu dela.
― Mas isto tá ficando mais enrolado que linguiça de venda. Te deita no pelego.
― Eu?
― Ela. Tu espera na salinha.

Finitude
Existem muitas histórias sobre o analista de Bagé, mas não sei se todas são verdadeiras. Seus métodos são certamente pouco ortodoxos, embora ele mesmo se descreva como “freudiano barbaridade”. E parece que dão certo, pois sua clientela aumenta. Foi ele que desenvolveu a terapia do joelhaço.
Diz que quando recebe um paciente novo no seu consultório a primeira coisa que o analista de Bagé faz é lhe dar um joelhaço. Em paciente homem, claro, pois em mulher, segundo ele, “só se bate pra descarrega energia”. Depois do joelhaço o paciente é levado, dobrado ao meio, para o divã coberto com um pelego.
― Te abanca, índio velho, que tá incluído no preço.
― Ai ― diz o paciente.
― Toma um mate?
― Nã-não... ― geme o paciente.
― Respira fundo, tchê. Enche o bucho que passa.
O paciente respira fundo. O analista de Bagé pergunta:
― Agora, qual é o causo?
― É depressão, doutor.
O analista de Bagé tira uma palha de trás da orelha e começa a enrolar um cigarro.
― Tô te ouvindo ― diz.
― É uma coisa existencial, entende?
― Continua, no más.
― Começo a pensar, assim, na finitude humana em contraste com o infinito cósmico...
― Mas tu é mais complicado que receita de creme Assis Brasil.
― E então tenho consciência do vazio da existência, da desesperança inerente à condição humana. E isso me angustia.
― Pos vamos dar um jeito nisso agorita ― diz o analista de Bagé, com uma baforada.
― O senhor vai curar a minha angústia?
― Não, vou mudar o mundo. Cortar o mal pela mandioca.
― Mudar o mundo?
― Dou uns telefonemas aí e mudo a condição humana.
― Mas... Isso é impossível!
― Ainda bem que tu reconhece, animal!
― Entendi. O senhor quer dizer que é bobagem se angustiar com o inevitável.
― Bobagem é espirrá na farofa. Isso é burrice e da gorda.
― Mas acontece que eu me angustio. Me dá um aperto na garganta...
― Escuta aqui, tchê. Tu te alimenta bem?
― Me alimento.
― Tem casa com galpão?
― Bem... Apartamento.
― Não é veado?
― Não.
― Tá com os carnê em dia?
― Estou.
― Então, ó bagual. Te preocupa com a defesa do Guarani e larga o infinito.
― O Freud não me diria isso.
― O que o Freud diria tu não ia entender mesmo. Ou tu sabe alemão?
― Não.
― Então te fecha. E olha os pés no meu pelego.
― Só sei que estou deprimido e isso é terrível. É pior do que tudo.
Aí o analista de Bagé chega a sua cadeira para perto do divã e pergunta :
― É pior que joelhaço?

Megalomania
Contam que Lindaura, a recepcionista do analista de Bagé (segundo ele, “mais eficiente que purgante de maná e japonês na roça”), desenvolveu um método para separar os casos graves dos que são só ― como diz o analista de Bagé ― “loucos de faceiros”. Enquanto preenche a ficha, ela dá a cada paciente em potencial uma cuia de chimarrão no formato de um seio. Depois vai anotando: “Quis chupar a cuia em vez da bomba”, “Começou a gemer e acariciar a cuia”, “Atirou contra a parede”, etc. Assim, quando recebe o paciente, o analista de Bagé já sabe o que esperar. Mas nada preparou o analista de Bagé para a entrada no seu consultório do megalômano de Carazinho.
O diálogo entre os dois já começou mal.
― Te deita no divã.
― Não deito.
― Te deita, bagual!
― Não deito!
― E por que não deita?
― Em primeiro lugar, porque só quem mandava em mim era o meu pai, que já está no Grande Galpão do céu capando anjo pra fazer lingüiça. Em segundo lugar, que o analista aqui sou eu.
E com isto o analista de Bagé derrubou o outro com um peitaço e o segurou sobre o pelego do divã com um joelho na omoplata. Gritou:
― Diz qual é teu problema!
― Não digo pra qualquer um!
― Diz senão te arranco esses bigodes dois a dois.
― Todos dizem que eu tenho mania de ser melhor do que os outros, mas eu não acredito neles.
― E por que não?
― Porque é tudo gente inferior.
O analista de Bagé saiu de cima do outro, mas deixou o facão bem à vista, para evitar incomodação. O outro continuou.
― Eu tenho megalomania.
― Não tem ― disse o analista de Bagé, brabo. Sabia que era verdade, mas não aguentava fanfarrão.
― Quer saber mais do que eu?
― Sei mais do que tu, teu irmão, tua mãe e teu pai, se fosse conhecido.
Nisso o megalômano de Carazinho subiu em cima do divã, apontou um dedo para o analista de Bagé e ameaçou:
― Olha que eu te transformo em pedra.
O analista de Bagé abriu a camisa e ofereceu o peito:
― Pois transforma. Quero ver. Transforma!
O outro mudou de tática. Ergueu a mão como numa bênção e disse:
― Eu te perdoo.
Aí o analista de Bagé avançou.
Na sala de espera Lindaura esperou meia hora antes de entrar no consultório.
Tinha ordens do analista de Bagé sobre como agir de acordo com os sons que ouvia. “Resfolego, não liga. Gemido, vai pra casa. Grito, te prepara. Mobília quebrada, entra.” Decidiu entrar. Encontrou o megalômano de Carazinho inconsciente embaixo do divã virado, com só metade do bigode. Depois o analista de Bagé explicou:
― Doença é uma coisa. Convencimento é outra.
O outro era “metido a grancosa”. Mas ele perdera mesmo a paciência quando ouvira o outro dizer:
― Sou o maior megalômano do mundo!
Aparecia cada um.

Duplo
Contam que os métodos pouco ortodoxos do analista de Bagé (embora ele diga que é “mais ortodoxo que caixa de maizena”) têm levado uma multidão de pacientes a procurá-lo. Ele foi obrigado a fazer uma triagem na sua clientela.
Instruiu sua recepcionista Lindaura (“uma chinoca que eu estava criando, mas passou do ponto”) a cortar os complexos menores, inclusive todos os de inferioridade e “os Édipos de ambulatório”. Só aceita casos difíceis, pois, como diz, “cavalo manso é pra ir à missa”. Foi o caso daquele estancieiro rico que já entrou dizendo:
― Meu caso é de esquizofrenia, doutor.
― Oigalê! Já vi que o índio velho é dos que lê bula. Essa palavra eu só aprendi a dizer dois dias antes da formatura. Mas se abanque, no más.
O estancieiro se deitou no divã coberto com um pelego. O analista começou a limpar as unhas do pé com um facão. Falou:
― Quer dizer que o amigo está com esquizofrenia.
― É.
― Da braba?
― Da braba.
― Como se manifesta a bicha?
― Personalidade dupla, doutor. Um dia eu sou um, no outro eu sou outro.
― Sei.
― Um dia sou alegre, bonachão, mão aberta. No outro sou carrancudo, brigão e não abro a mão nem pra espantar mosca.
― Mas que coisa.
― Eu tenho cura, doutor?
― Bueno. Vai ser um tratamento mais comprido que bombacha de gringo.
― Tudo bem.
― Mais caro que argentina nova na zona.
― Não me importo.
― Já vi que o amigo está nos seus dias de cordeirito.
― Lindaura!
― Chamou?
― Prepara a conta que o índio velho aqui vai pagar adiantado.
O estancieiro começou a se levantar para protestar, mas o analista de Bagé o mandou de volta ao pelego com um cabeçaço. E avisou:
― Se conta pro outro, te capo.

Te cuida, tchê
Lindaura, a recepcionista do analista de Bagé (segundo ele, “uma recepcionista eclética, pois recebe e dá”), faz o possível para preveni-lo sobre os pacientes novos antes de entrarem no consultório, pois, como diz o analista, “se me entra um arreganhado, já recebo a tapa”.
Lindaura deixa um pedacinho de veludo vermelho ao alcance do paciente na sala de espera. Depois escreve na sua ficha: “Não ligou para o veludo” ou “Passou a mão e começou a babar” ou “Botou na frente e foi ver no espelho se ficava bem”. Na ficha daquele cliente novo, de Não-me-toque, ela escrevera: “Viu o pedacinho de veludo e recuou horrorizado.” Era obviamente um paranoico.
― Te deita no divã, tchê ― disse o analista de Bagé.
― Pra quê? ― quis saber o paciente, desconfiado.
― Oigalê bicho bem xucro ― disse o analista com uma risada agradável, enquanto torcia o braço do outro e obrigava-o a se deitar.
O paciente ficou se segurando sobre o pelego que cobria o divã, para evitar que arrancassem sua roupa. O analista sentou no seu banquinho e pegou a cuia. Ofereceu:
― Um mate?
― O que é que você quer dizer com isso?
O analista de Bagé passou a cuia para o outro, que olhou para a ponta da bomba com apreensão.
― Pode tomar que os micróbios são de casa ― disse o analista, mas o paciente devolveu a cuia. O analista continuou:
― Pues, qual é o problema?
― Eu sabia. Já andaram espalhando que eu tenho problema.
― Se o amigo está aqui é porque tem um problema. Já vi que pelo mate não é.
― Pare com esse tom condescendente!
O analista de Bagé fez força para se controlar. Um dia antes perdera a paciência e atirara um masoquista contra a parede. O masoquista não reclamara, mas com o impacto se quebrara o seu Freud entalhado em imbuia. O outro continuou:
― Todo mundo me persegue.
― Não é verdade.
― Ninguém acredita em mim.
― Eu acredito.
― Você só diz isso pra me agradar.
― Eu não estou querendo te agradar.
― Por que não? Por que não?
Meia hora depois o analista de Bagé, com argumentos razoáveis, e com a ameaça de atirar a escarradeira na sua cabeça, convencera o paciente a abandonar sua mania de perseguição. Ninguém o estava perseguindo. Era pura fantasia.
― E o jacaré embaixo da cama?
― Não tem jacaré. Jacaré gosta de banhado. A tua cama fica em lugar seco?
― Fica.
― Pois então.
Ele devia sair dali convencido que ninguém nem nada estava contra ele. Devia se esforçar para levar uma vida normal.
― Não sei se vou conseguir...
― Vai.
― Como é que você sabe?
― Porque eu vou estar sempre atrás de ti, tchê . Te cuidando. De dia e de noite. A menor recaída na paranoia, ó...
E o analista de Bagé fez o gesto de quem acerta um cutelaço na nuca.

Salinha cheia
― Se abanque, no más ― disse o analista de Bagé, indicando o divã.
― Eu, ahn, prefiro ficar de pé ― disse o moço.
― Se abanque, índio velho, que tá incluído no preço.
― Não, obrigado...
― Deita aí! ― disse o analista de Bagé, empurrando o paciente, que caiu de costas no pelego.
O analista de Bagé sentou na sua banqueta e começou a picar fumo para o palheiro. Como o moço não dissesse nada, falou:
― E então? Desembucha.
― É que eu tenho um probleminha...
― Probleminha só pode ser o moleque pequeno.
― “Moleque?”
― A peça. O trabuco. O Oduvaldo.
― Ah. Não, não é isso.
― Então o que é, tchê? Depressa que eu to com a salinha cheia de louco.
― Bem, é que eu...
― O quê?
― Eu desde pequeno tenho este problema de incontinência...
― Incontinência?
― Eu ainda faço xixi na cama...
Nisso o analista pulou e gritou:
― Meu pelego!
E levantou o divã por uma ponta, despejando o paciente no chão.
Outra vez entrou um senhor no consultório, deitou no divã e contou que ultimamente estava se comportando de modo estranho.
― Me aposentei, doutor. E um dia, não sei por quê, me deu vontade de pintar o cabelo de caju.
― Sei ― disse o analista de Bagé, sem tirar a bomba de chimarrão da boca.
― Comecei a usar roupas assim. Camisa aberta até aqui embaixo...
― Tô ouvindo.
― Medalhão no peito...
― Pensei que fosse devoção.
― E me deu esta vontade de só andar com rapazes...
― Sim.
― Me diga, doutor. Eu sou homossexual?
― Não existe gaúcho homossexual.
― Mas a gente vê tantos por aí...
― São as correntes migratórias. Tu não tem nada, índio velho. Precisa é arranjar um passatempo. Colecionar selo. Ou medalhão, pra não perder os que já tem. Vai pra casa e sossega, tchê!
― Se eu fosse homossexual, nem sei o que fazia. Acho que me jogava por essa janela!
Aí o analista de Bagé tapou a janela com o corpo e ameaçou:
― Te fresqueia. Te fresqueia!


Um comentário:

  1. Muito bom! Nunca tinha lido Luis Fernando Veríssimo. Fiquei com vontade de ler mais histórias do analista de Bagé!
    Adorei a iniciativa de disponibilizar contos; vou tentar acompanhar!

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