Luís Fernando Veríssimo (1936- ) , escritor
brasileiro nascido em Porto Alegre, um dos maiores contistas brasileiros, criador
de personagens memoráveis como o Analista de Bagé, A Velhinha de Taubaté e Ed
Mort.
O analista de Bagé
Luis Fernando
Veríssimo
Bagé
Certas cidades não
conseguem se livrar da reputação injusta que, por alguma razão, possuem.
Algumas das pessoas mais sensíveis e menos grossas que eu conheço vêm de Bagé,
assim como algumas das menos afetadas são de Pelotas.
Mas não adianta.
Estas histórias do psicanalista de Bagé são provavelmente apócrifas (como diria
o próprio analista de Bagé, história apócrifa é mentira bem-educada), mas,
pensando bem, ele não poderia vir de outro lugar.
Pues, diz que o divã
no consultório do analista de Bagé é forrado com um pelego. Ele recebe os
pacientes de bombacha e pé no chão.
― Buenas. Vá entrando
e se abanque, índio velho.
― O senhor quer que
eu deite logo no divã?
― Bom, se o amigo
quiser dançar uma marca antes, esteja a gosto. Mas eu prefiro ver o vivente
estendido e charlando que nem china da fronteira, pra não perder tempo nem
dinheiro.
― Certo, certo. Eu...
― Aceita um mate?
― Um quê? Ah, não.
Obrigado.
― Pos desembucha.
― Antes, eu queria
saber. O senhor é freudiano?
― Sou e sustento.
Mais ortodoxo que reclame de xarope.
― Certo. Bem. Acho
que o meu problema é com a minha mãe.
― Outro...
― Outro?
― Complexo de Édipo.
Dá mais que pereba em moleque.
― E o senhor acha...
― Eu acho uma poca
vergonha.
― Mas...
― Vai te metê na zona
e deixa a velha em paz, tchê!
Contam que outra vez
um casal pediu para consultar, juntos, o analista de Bagé.
Ele, a princípio, não
achou muito ortodoxo.
― Quem gosta de
aglomeramento é mosca em bicheira...
Mas acabou
concordando.
― Se abanquem, se
abanquem no más. Mas que parelha buenacha, tchê. Qual é o causo?
― Bem ― disse o homem
―,é que nós tivemos um desentendimento...
― Mas tu também é um
bagual. Tu não sabe que em mulher e cavalo novo não se mete a espora?
― Eu não meti a
espora. Não é, meu bem?
― Não fala comigo!
― Mas essa alta mais
nervosa que gato em dia de faxina.
― Ela tem um problema
de carência afetiva...
― Eu não sou de muita
frescura. Lá de onde eu venho, carência afetiva é falta de homem.
― Nós estamos
justamente atravessando uma crise de relacionamento porque ela tem procurado
experiências extraconjugais e...
― Epa. Opa. Quer
dizer que a negra velha é que nem luva de maquinista? Tão folgada que qualquer
um bota a mão?
― Nós somos pessoas
modernas. Ela está tentando encontrar o verdadeiro eu, entende?
― Ela tá procurando o
verdadeiro tu nos outros?
― O verdadeiro eu,
não. O verdadeiro eu dela.
― Mas isto tá ficando
mais enrolado que linguiça de venda. Te deita no pelego.
― Eu?
― Ela. Tu espera na
salinha.
Finitude
Existem muitas
histórias sobre o analista de Bagé, mas não sei se todas são verdadeiras. Seus
métodos são certamente pouco ortodoxos, embora ele mesmo se descreva como
“freudiano barbaridade”. E parece que dão certo, pois sua clientela aumenta.
Foi ele que desenvolveu a terapia do joelhaço.
Diz que quando recebe
um paciente novo no seu consultório a primeira coisa que o analista de Bagé faz
é lhe dar um joelhaço. Em paciente homem, claro, pois em mulher, segundo ele,
“só se bate pra descarrega energia”. Depois do joelhaço o paciente é levado,
dobrado ao meio, para o divã coberto com um pelego.
― Te abanca, índio
velho, que tá incluído no preço.
― Ai ― diz o
paciente.
― Toma um mate?
― Nã-não... ― geme o
paciente.
― Respira fundo,
tchê. Enche o bucho que passa.
O paciente respira
fundo. O analista de Bagé pergunta:
― Agora, qual é o
causo?
― É depressão,
doutor.
O analista de Bagé
tira uma palha de trás da orelha e começa a enrolar um cigarro.
― Tô te ouvindo ―
diz.
― É uma coisa
existencial, entende?
― Continua, no más.
― Começo a pensar,
assim, na finitude humana em contraste com o infinito cósmico...
― Mas tu é mais
complicado que receita de creme Assis Brasil.
― E então tenho
consciência do vazio da existência, da desesperança inerente à condição humana.
E isso me angustia.
― Pos vamos dar um
jeito nisso agorita ― diz o analista de Bagé, com uma baforada.
― O senhor vai curar
a minha angústia?
― Não, vou mudar o
mundo. Cortar o mal pela mandioca.
― Mudar o mundo?
― Dou uns telefonemas
aí e mudo a condição humana.
― Mas... Isso é
impossível!
― Ainda bem que tu
reconhece, animal!
― Entendi. O senhor
quer dizer que é bobagem se angustiar com o inevitável.
― Bobagem é espirrá
na farofa. Isso é burrice e da gorda.
― Mas acontece que eu
me angustio. Me dá um aperto na garganta...
― Escuta aqui, tchê.
Tu te alimenta bem?
― Me alimento.
― Tem casa com
galpão?
― Bem... Apartamento.
― Não é veado?
― Não.
― Tá com os carnê em
dia?
― Estou.
― Então, ó bagual. Te
preocupa com a defesa do Guarani e larga o infinito.
― O Freud não me
diria isso.
― O que o Freud diria
tu não ia entender mesmo. Ou tu sabe alemão?
― Não.
― Então te fecha. E
olha os pés no meu pelego.
― Só sei que estou
deprimido e isso é terrível. É pior do que tudo.
Aí o analista de Bagé
chega a sua cadeira para perto do divã e pergunta :
― É pior que
joelhaço?
Megalomania
Contam que Lindaura,
a recepcionista do analista de Bagé (segundo ele, “mais eficiente que purgante
de maná e japonês na roça”), desenvolveu um método para separar os casos graves
dos que são só ― como diz o analista de Bagé ― “loucos de faceiros”. Enquanto
preenche a ficha, ela dá a cada paciente em potencial uma cuia de chimarrão no
formato de um seio. Depois vai anotando: “Quis chupar a cuia em vez da bomba”,
“Começou a gemer e acariciar a cuia”, “Atirou contra a parede”, etc. Assim,
quando recebe o paciente, o analista de Bagé já sabe o que esperar. Mas nada
preparou o analista de Bagé para a entrada no seu consultório do megalômano de
Carazinho.
O diálogo entre os
dois já começou mal.
― Te deita no divã.
― Não deito.
― Te deita, bagual!
― Não deito!
― E por que não
deita?
― Em primeiro lugar,
porque só quem mandava em mim era o meu pai, que já está no Grande Galpão do
céu capando anjo pra fazer lingüiça. Em segundo lugar, que o analista aqui sou
eu.
E com isto o analista
de Bagé derrubou o outro com um peitaço e o segurou sobre o pelego do divã com
um joelho na omoplata. Gritou:
― Diz qual é teu
problema!
― Não digo pra
qualquer um!
― Diz senão te
arranco esses bigodes dois a dois.
― Todos dizem que eu
tenho mania de ser melhor do que os outros, mas eu não acredito neles.
― E por que não?
― Porque é tudo gente
inferior.
O analista de Bagé saiu
de cima do outro, mas deixou o facão bem à vista, para evitar incomodação. O
outro continuou.
― Eu tenho
megalomania.
― Não tem ― disse o
analista de Bagé, brabo. Sabia que era verdade, mas não aguentava fanfarrão.
― Quer saber mais do
que eu?
― Sei mais do que tu,
teu irmão, tua mãe e teu pai, se fosse conhecido.
Nisso o megalômano de
Carazinho subiu em cima do divã, apontou um dedo para o analista de Bagé e
ameaçou:
― Olha que eu te
transformo em pedra.
O analista de Bagé
abriu a camisa e ofereceu o peito:
― Pois transforma.
Quero ver. Transforma!
O outro mudou de
tática. Ergueu a mão como numa bênção e disse:
― Eu te perdoo.
Aí o analista de Bagé
avançou.
Na sala de espera
Lindaura esperou meia hora antes de entrar no consultório.
Tinha ordens do
analista de Bagé sobre como agir de acordo com os sons que ouvia. “Resfolego,
não liga. Gemido, vai pra casa. Grito, te prepara. Mobília quebrada, entra.”
Decidiu entrar. Encontrou o megalômano de Carazinho inconsciente embaixo do
divã virado, com só metade do bigode. Depois o analista de Bagé explicou:
― Doença é uma coisa.
Convencimento é outra.
O outro era “metido a
grancosa”. Mas ele perdera mesmo a paciência quando ouvira o outro dizer:
― Sou o maior
megalômano do mundo!
Aparecia cada um.
Duplo
Contam que os métodos
pouco ortodoxos do analista de Bagé (embora ele diga que é “mais ortodoxo que
caixa de maizena”) têm levado uma multidão de pacientes a procurá-lo. Ele foi
obrigado a fazer uma triagem na sua clientela.
Instruiu sua
recepcionista Lindaura (“uma chinoca que eu estava criando, mas passou do
ponto”) a cortar os complexos menores, inclusive todos os de inferioridade e
“os Édipos de ambulatório”. Só aceita casos difíceis, pois, como diz, “cavalo
manso é pra ir à missa”. Foi o caso daquele estancieiro rico que já entrou
dizendo:
― Meu caso é de
esquizofrenia, doutor.
― Oigalê! Já vi que o
índio velho é dos que lê bula. Essa palavra eu só aprendi a dizer dois dias
antes da formatura. Mas se abanque, no más.
O estancieiro se
deitou no divã coberto com um pelego. O analista começou a limpar as unhas do
pé com um facão. Falou:
― Quer dizer que o
amigo está com esquizofrenia.
― É.
― Da braba?
― Da braba.
― Como se manifesta a
bicha?
― Personalidade
dupla, doutor. Um dia eu sou um, no outro eu sou outro.
― Sei.
― Um dia sou alegre,
bonachão, mão aberta. No outro sou carrancudo, brigão e não abro a mão nem pra
espantar mosca.
― Mas que coisa.
― Eu tenho cura,
doutor?
― Bueno. Vai ser um
tratamento mais comprido que bombacha de gringo.
― Tudo bem.
― Mais caro que
argentina nova na zona.
― Não me importo.
― Já vi que o amigo
está nos seus dias de cordeirito.
― Lindaura!
― Chamou?
― Prepara a conta que
o índio velho aqui vai pagar adiantado.
O estancieiro começou
a se levantar para protestar, mas o analista de Bagé o mandou de volta ao
pelego com um cabeçaço. E avisou:
― Se conta pro outro,
te capo.
Te cuida, tchê
Lindaura, a recepcionista
do analista de Bagé (segundo ele, “uma recepcionista eclética, pois recebe e
dá”), faz o possível para preveni-lo sobre os pacientes novos antes de entrarem
no consultório, pois, como diz o analista, “se me entra um arreganhado, já
recebo a tapa”.
Lindaura deixa um
pedacinho de veludo vermelho ao alcance do paciente na sala de espera. Depois
escreve na sua ficha: “Não ligou para o veludo” ou “Passou a mão e começou a
babar” ou “Botou na frente e foi ver no espelho se ficava bem”. Na ficha daquele
cliente novo, de Não-me-toque, ela escrevera: “Viu o pedacinho de veludo e
recuou horrorizado.” Era obviamente um paranoico.
― Te deita no divã,
tchê ― disse o analista de Bagé.
― Pra quê? ― quis
saber o paciente, desconfiado.
― Oigalê bicho bem
xucro ― disse o analista com uma risada agradável, enquanto torcia o braço do
outro e obrigava-o a se deitar.
O paciente ficou se
segurando sobre o pelego que cobria o divã, para evitar que arrancassem sua
roupa. O analista sentou no seu banquinho e pegou a cuia. Ofereceu:
― Um mate?
― O que é que você
quer dizer com isso?
O analista de Bagé
passou a cuia para o outro, que olhou para a ponta da bomba com apreensão.
― Pode tomar que os
micróbios são de casa ― disse o analista, mas o paciente devolveu a cuia. O
analista continuou:
― Pues, qual é o
problema?
― Eu sabia. Já
andaram espalhando que eu tenho problema.
― Se o amigo está
aqui é porque tem um problema. Já vi que pelo mate não é.
― Pare com esse tom
condescendente!
O analista de Bagé
fez força para se controlar. Um dia antes perdera a paciência e atirara um
masoquista contra a parede. O masoquista não reclamara, mas com o impacto se
quebrara o seu Freud entalhado em imbuia. O outro continuou:
― Todo mundo me
persegue.
― Não é verdade.
― Ninguém acredita em
mim.
― Eu acredito.
― Você só diz isso
pra me agradar.
― Eu não estou
querendo te agradar.
― Por que não? Por
que não?
Meia hora depois o
analista de Bagé, com argumentos razoáveis, e com a ameaça de atirar a
escarradeira na sua cabeça, convencera o paciente a abandonar sua mania de
perseguição. Ninguém o estava perseguindo. Era pura fantasia.
― E o jacaré embaixo
da cama?
― Não tem jacaré.
Jacaré gosta de banhado. A tua cama fica em lugar seco?
― Fica.
― Pois então.
Ele devia sair dali
convencido que ninguém nem nada estava contra ele. Devia se esforçar para levar
uma vida normal.
― Não sei se vou
conseguir...
― Vai.
― Como é que você
sabe?
― Porque eu vou estar
sempre atrás de ti, tchê . Te cuidando. De dia e de noite. A menor recaída na
paranoia, ó...
E o analista de Bagé
fez o gesto de quem acerta um cutelaço na nuca.
Salinha cheia
― Se abanque, no más
― disse o analista de Bagé, indicando o divã.
― Eu, ahn, prefiro
ficar de pé ― disse o moço.
― Se abanque, índio
velho, que tá incluído no preço.
― Não, obrigado...
― Deita aí! ― disse o
analista de Bagé, empurrando o paciente, que caiu de costas no pelego.
O analista de Bagé
sentou na sua banqueta e começou a picar fumo para o palheiro. Como o moço não
dissesse nada, falou:
― E então?
Desembucha.
― É que eu tenho um
probleminha...
― Probleminha só pode
ser o moleque pequeno.
― “Moleque?”
― A peça. O trabuco.
O Oduvaldo.
― Ah. Não, não é
isso.
― Então o que é,
tchê? Depressa que eu to com a salinha cheia de louco.
― Bem, é que eu...
― O quê?
― Eu desde pequeno
tenho este problema de incontinência...
― Incontinência?
― Eu ainda faço xixi
na cama...
Nisso o analista
pulou e gritou:
― Meu pelego!
E levantou o divã por
uma ponta, despejando o paciente no chão.
Outra vez entrou um
senhor no consultório, deitou no divã e contou que ultimamente estava se
comportando de modo estranho.
― Me aposentei,
doutor. E um dia, não sei por quê, me deu vontade de pintar o cabelo de caju.
― Sei ― disse o
analista de Bagé, sem tirar a bomba de chimarrão da boca.
― Comecei a usar
roupas assim. Camisa aberta até aqui embaixo...
― Tô ouvindo.
― Medalhão no
peito...
― Pensei que fosse
devoção.
― E me deu esta
vontade de só andar com rapazes...
― Sim.
― Me diga, doutor. Eu
sou homossexual?
― Não existe gaúcho
homossexual.
― Mas a gente vê
tantos por aí...
― São as correntes
migratórias. Tu não tem nada, índio velho. Precisa é arranjar um passatempo.
Colecionar selo. Ou medalhão, pra não perder os que já tem. Vai pra casa e
sossega, tchê!
― Se eu fosse
homossexual, nem sei o que fazia. Acho que me jogava por essa janela!
Aí o analista de Bagé
tapou a janela com o corpo e ameaçou:
― Te fresqueia. Te
fresqueia!
Muito bom! Nunca tinha lido Luis Fernando Veríssimo. Fiquei com vontade de ler mais histórias do analista de Bagé!
ResponderExcluirAdorei a iniciativa de disponibilizar contos; vou tentar acompanhar!