Florbela Espanca (1894-1930) poetisa portuguesa
nascida no Alentejo. “Carta de Herdade” não é propriamente um conto, mas sim
uma carta que ela escreve ao ‘amigo
longínquo e querido’, em Junho de 1930, quando do lançamento de Charneca em
Flor e poucos meses antes de decidir
acabar com sua própria vida, onde é bastante eloquente o amor que ela sentia
pelo irmão que morto tragicamente em um acidente de avião em 1927.
Carta da Herdade
Florbela Espanca
Amigo
longínquo e querido:
Apresento-lhe
a charneca ao entardecer, a minha triste charneca donde nasceu a minha triste
alma. Selvagem e rude, patética e trágica, tem a suprema graça, cheia de
amargura, dos infinitamente tristes, a quem foi negada a doçura das lágrimas. É
enorme e é simples; fala e escuta. O que eu lhe tenho ouvido! O que eu lhe
tenho dito! Toda morena do sol, que a queima em verões sem fim, e como eu uma
revoltada, sem gestos e sem gritos. Nesta hora do entardecer, toda ela palpita
em misteriosas vibrações, toda ela é cor, vida, chama e alvoroço, contido e
encadeado por uma secreta maldição!
Mas
como ela é bonita, a minha charneca!
Borboletas
azuis, minúsculas, tombam lá do alto como bocadinhos de céu. Outras roxas... as
urzes, talvez, a que, por milagre, tivessem nascido asas. Os crepúsculos,
nestas imensas extensões, são longos, longos; um êxtase que se prolonga e que
chega a fatigar-nos. O sol constela o poente de pedrarias, e são uma maravilha
os montes azulados de Espanha, brumas perdidas ao longe, vagas, aéreas, irreais
A
noite desce por fim, arrastada, luarenta, uma claridade que se confunde com o
crepúsculo.
Voltam
os homens do trabalho, volta o gado ao seu estábulo caiado como uma ermida.
Ladram os cães, festivos, enchendo o silêncio de brados. Começa a cegarrega dos
grilos. Cai no espaço, como gotas de água, o lamento dos sapos sequiosos.
Volto para o grande monte
iluminado, lá ao fundo, lentamente, sem grande pressa de chegar. A noite
envolve-me toda, anestesia-me, mãos pálidas e suaves que afagassem devagarinho
um mendigo leproso. Sinto-me mais pura nesta pureza imensa, mais limpa, mais
lavada de culpas do que se tivesse nascido agora.
O grande cão de guarda, o Morgado,
caminha ao meu encontro, solene e grave, a dar-me as boas-noites como quem
cumpre uma missão diplomática. Baloiça o farto penacho da cauda como uma pluma
doirada. Há nos seus olhos, cor de tabaco loiro, ao fixar-me, qualquer coisa de
humano, de compreensivo," de caricioso: a sua linda alma de cão que não
sabe que tem alma. Numa amabilidade de bruto, roça-se por mim sem nenhuma
piedade pelo meu vestido branco, onde as grandes patas desenham a carvão flores
desgrenhadas em tragos futuristas, e o meu rosto tenta-o para um beijo amigo
que — ingrata! — resolvo desdenhar, sem explicações supérfluas. Não se aproxima
do monte para onde me dirijo: solitário, sente o máximo desprezo pelas multidões
ululantes; aristocrata, tem horror aos gritos e às vozes sonoras dos seus
outros irmãos de sangue vermelho, de raça plebeia. Fica de longe a ver-me, e o
seu olhar, que me segue, dá-me uma impressão de calor, de bem-estar, de
ternura, como um olhar humano. Adivinho que tem piedade de mim, que me estudou
nos nossos longos passeios solitários pela planície, que sabe no que eu penso e
o que eu vim esquecer, que vê como os fantasmas me saem ao caminho. Aquela
sombra, ao longe, não será aquele meu irmão, cavaleiro de lenda, que um dia
partiu para não voltar? Quem sabe! Amigos vivos que me morreram, amigos mortos
cheios de vida, quem sabe se, como eu, o luar os tenta nesta doce noite
misericordiosa e pura! Estendo as mãos ao luar branco, como a uma fogueira, e a
recordação doutros beijos enche-me da nostalgia amarga dos que se sabem exilados
para sempre. Ergo os olhos ao céu: um jasmineiro florido, longe, longe! As
estrelas empalidecem deslumbra- das, elas também, pela brancura milagrosa.
0 Morgado é agora uma grande sombra imóvel. Que pensará, ele também, sozinho, na
imensidade da charneca luarenta?... Ouve-se mais próxima a algazarra da
chegada, no monte iluminado. O vozeirão dos homens, as vozes mais agudas
das mulheres, o tropear dos machos nas pedras do pátio formam uma sinfonia bárbara
que perturba a noite nos seus sonhos de paz.
A senhora lavradora, o senhor
lavrador, os filhos e os netos rodeiam-me solícitos e acolhem-me com um sorriso
claro. Naqueles rostos, tostados de sol, o sorriso é uma fogueira a arder.
Calada, sento-me a porta, e enquanto os arabescos azulados do meu «Muratti’s»,
saboreado com volúpia e olhado com reprovação, traçam no ar palavras que não
entendo, outras palavras recordo; erguidas do mais profundo de mim mesma como dum
túmulo, mortas que não querem morrer, que não se resignam a fria mortalha do
esquecimento em que um dia as envolvi, para as sepultar
Janela aberta, noite alta, o luar
canseiroso vem ainda dar a última demão de cal às paredes do meu quarto, e
quando o sono me vem, enfim, fechar os olhos, ainda fica a trabalhar até de
madrugada, até a esse instante em que a andorinha, a primeira ave acordada,
solta o seu grito de oiro e atravessa, como uma flecha, o céu ainda pálido
sobre a charneca ainda adormecida.
Amigo, longínquo e querido, a
triste charneca desdenhada envia-lhe, em nome doutra desdenhada ainda mais
triste, um braçado de saudades acabadinhas de colher.
Alentejo, Junho 1930
Maria
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