Juan Jose
Arreola (1918-2001) escritor mexicano de contos que exerceu profunda influencia
na literatura mexicana do último século ainda que seja pouco conhecido no
Brasil. O conto “Rústico” faz parte do Confabulario, publicado em 1952, um de
seus livros mais conhecidos.
Rústico
Juan Jose Arreola
Ao virar a cabeça sobre o lado direito para dormir o último, breve e
leve sono da manhã, dom Fulgêncio teve que fazer um grande esforço e chifrou o
travesseiro. Abriu os olhos. O que até então foi uma ligeira suspeita, virou certeza
pontiaguda.
Com um poderoso movimento do pescoço dom Fulgêncio levantou a cabeça, e
o travesseiro voou pelos ares. Em frente ao espelho, não pôde ocultar sua
admiração, convertido em um soberbo exemplar de touro com a nuca encaracolada e
esplêndidas aspas. Profundamente inseridos na testa, os chifres eram
embranquecidos na sua base, marmorizados na metade e de um preto acentuado nos
extremos.
A primeira coisa que ocorreu a dom Fulgêncio foi experimentar o chapéu.
Contrariado, teve que jogá-lo para trás: isso lhe dava certo ar de fanfarrão.
Como ter chifres não é uma razão suficiente para que um homem metódico
interrompa o curso de suas ações, dom Fulgêncio começou a tarefa de seu cuidado
pessoal com os ornamentos, com minucioso esmero, dos pés à cabeça. Depois de
lustrar os sapatos, dom Fulgêncio escovou ligeiramente seus chifres, já por si
só resplandecentes.
Sua mulher lhe serviu o café da manhã com tato refinado. Nem um só gesto
de surpresa, nem a mais mínima alusão que pudesse ferir o marido nobre e
audacioso. Apenas uma suave e receosa olhada por um instante, como se não se
atrevesse a pousá-la nas afiadas pontas.
O beijo na porta foi como o dardo da divisa. E dom Fulgêncio saiu para a
rua escoiceando, disposto a lançar-se contra sua nova vida. As pessoas o
cumprimentavam como de costume; mas ao dar-lhe passagem na calçada, um
jovenzinho, dom Fulgêncio percebeu um giro cheio de gestos de toureiro. E uma
velha que voltava da missa deu-lhe uma dessas olhadas estupendas, maliciosa e
desdobrada como uma comprida serpentina. Quando o ofendido quis ir contra ela,
a danada entrou em sua casa como o matador de touros detrás da barreira na
tourada. Dom Fulgêncio deu um golpe contra a porta, fechada imediatamente, que
lhe fez ver estrelas. Longe de ser uma aparência, os chifres tinham que ver com
a última derivação de seu esqueleto. Sentiu o choque e a humilhação até a ponta
dos pés.
Por sorte a profissão de dom Fulgêncio não sofreu nenhuma desonra nem
decadência. Os clientes o procuravam entusiasmados, porque sua agressividade se
fazia cada vez mais patente no ataque e na defesa. De terras distantes vinham
os litigantes para buscar patrocínio de um advogado com chifres.
Mas a vida tranquila do povoado tomou ao seu redor um ritmo sufocante de
tourada, cheia de brigas e confusões. E dom Fulgêncio embesta a torto e a
direito, contra todos, por qualquer coisa sem importância. Para dizer a
verdade, ninguém lhe jogava os chifres na cara, ninguém sequer os via. Mas
todos aproveitavam a menor distração para lhe pôr um bom par de bandarilhas; no
mínimo, os mais tímidos se conformavam em fazer uns burlescos e floridos
movimentos de cintura. Alguns cavalheiros de estirpe medieval não desdenhavam a
ocasião de dar em dom Fulgêncio uma boa espetada, desde suas convencidas e honoráveis
alturas. As serenatas do domingo e as festas nacionais davam motivo para
improvisar ruidosas brincadeiras populares com a capa à base de dom Fulgêncio,
que investia cego de ira, contra os mais atrevidos toureiros.
Enojado de lances de capa e passos de toureiro, constrangido com
insolências, grosserias e humilhações, dom Fulgêncio chegou à hora da verdade
muito ressabiado e perigosamente derrotado; convertido em uma besta feroz. Já
não o convidavam para nenhuma festa nem cerimônia pública, e sua mulher se
queixava amargamente do isolamento em que a fazia viver o mau caráter de seu
marido.
À força de espetadas, agulhas e farpas, dom Fulgêncio desfrutava
sangrias cotidianas e pomposas hemorragias dominicais. Mas todos os
derramamentos lhe iam até dentro, até o coração inchado de rancor.
Seu grosso pescoço de Miúra fazia pressentir o instantâneo fim dos
pletóricos. Rechonchudo e sanguíneo,
seguia embestando em todas as direções, incapaz de repouso e dieta. E em um dia
que cruzava a Plaza de Armas, trotando para a sua casa, dom Fulgêncio se deteve
e levantou aturdido a cabeça, ao toque de um longínquo clarim. O som se
aproximava, entrando em suas orelhas como uma tromba ensurdecedora. Com os
olhos nublados, viu abrir-se ao seu redor uma praça de touros gigantesca; algo
assim como um Vale de Josafat cheio de pessoas com trajes de toureiros. A
congestão se fundiu logo em sua espinha dorsal, como uma estocada até a cruz. E
dom Fulgêncio rodou patas para cima sem punhal.
Apesar de sua profissão, o notório advogado deixou seu testamento no
rascunho. Ali expressava, em um surpreendente tom de súplica, a vontade póstuma
de que ao morrer lhe tirassem os chifres, fosse à serra, cinzel ou martelo. Mas
seu comovedor pedido se viu traído pela diligência de um carpinteiro oficioso,
que lhe fez de presente um ataúde especial, provido de dois vistosos acréscimos
laterais.
Todo o povoado acompanhou dom Fulgêncio até o cemitério, comovido pela
lembrança de sua bravura. E apesar do auge de luto das oferendas, as exéquias e
os trajes da viúva, o enterro teve um não sei que de jovial e risonha farsa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário