Yasunari Kawabata (1899-1972) escritor japonês, prêmio
Nobel de literatura em 1968. O conto destacado esta semana “A pequena dançarina
de Izu” é um dos maiores exemplos literários da sensibilidade japonesa.
A pequena dançarina de
Izu
Yasunari Kawabata
I
Foi quando o caminho começava a ziguezaguear e já
estava próximo do Passo do Amagui, no sopé da montanha onde embranquecia a mata
de cedros, que desencadeou-se uma violenta tempestade.
Tinha
eu, nessa época, vinte anos de idade. Vestia um quimono azul salpicado de
branco, e hakama. Do ombro, pendia-me a bolsa de estudante, e, à cabeça,
trazia eu o boné de colegial. Era o quarto dia da minha solitária viagem a Izu.
Havia passado uma noite na estancia termal de Shuzenji e duas na de Yukashima.
A essa altura, eu subia o Amagui, saboreando o outono, visível ainda nas altas
montanhas sobrepostas, bem como nos vales profundos. Animava-me uma expectativa
que me fazia acelerar o passo. Fustigado pela chuva violenta, galguei o forte
aclive e cheguei, esbaforido, a casa de chá da saída norte do Passo. Então,
respirei aliviado e verifiquei, com surpresa, que minha expectativa fora
inesperadamente satisfeita ao encontrar ali o grupo de artistas ambulantes.
Vendo-me
em pé, apressou-se a pequena dançarina do grupo a oferecer-me o seu coxim.
—
Ah!... — exclamei, sentando-me. Sem folego, devido a corrida, e surpreso pelo
encontro, o “obrigado” ficou-me entalado na garganta.
Com
certo alvoroço, tirei os cigarros do bolso. A pequena dançarina apanhou o
cinzeiro que se encontrava diante de uma das suas companheiras e colocou-o
perto de mim. Também dessa vez, eu nada disse.
Enquanto
fumava, ocupei-me em examiná-la. Pareceu-me não ter mais que dezessete anos.
Trazia os cabelos penteados à antiga, num estilo para mim desconhecido, mas
que, entretanto, se harmonizava lindamente com o seu rosto oval e de expressão
firme. Lembrava uma figura saída de um conto de fadas, a cujos cabelos
houvesse sido dado um toque exagerado. Acompanhavam-na uma mulher de cerca de
quarenta anos, duas jovens, e um homem de mais ou menos vinte e cinco anos, que
usava hanten com a marca do hotel das termas de Nagaoka.
Era
essa a terceira vez que eu via as dançarinas. A primeira fora perto da ponte de
Yukawa, no caminho de Shuzenji. Havia três moças na ocasião. A pequena carregava
um tambor. Deram-me a impressão de estar tristes e fatigadas. Depois disso, na
segunda noite que passei em Yukashima, aportaram ao hotel onde eu estava
hospedado. Sentado no meio da escadaria, fiquei a contemplar a pequena dançando
sobre o assoalho de madeira da entrada.
“Se
anteontem estavam em Shuzenji e hoje estão em Yukashima, certamente escalarão
amanha o Amagui para o sul, rumo a estancia termal de Yukano”,pensei então. “Durante a caminhada de vinte e oito
quilômetros, poderei, sem duvida, alcançá-los.”
E,
no entanto, eu, que me apressara em segui-las, ali estava embaraçado por tê-las
encontrado na casa de chá onde viera refugiar-me da chuva...
Momentos
depois, a velhinha da casa conduziu-me a outro aposento, que parecia estar fora
de uso. Nem porta havia no shoji. Dele, porém, podia-se descortinar a
paisagem do vale, que afundava a perder de vista. Senti arrepios e estremeci, a
bater os dentes. A velha trouxe-me chá e convidou-me a passar para um terceiro
aposento:
–
Nossa! Como o senhor esta molhado! Venha esquentar-se
ao fogo. Olhe ponha sua roupa a secar.
Quando abriu o shoji,
veio da lareira um calor convidativo. Mesmo assim, hesitei na soleira da porta.
É que um velhinho, todo inchado e esverdeado qual cadáver de afogado, se achava
junto da lareira. Olhou em minha direção e pude ver-lhe as retinas amareladas,
com a aparência de podres. Tinha, a sua volta, pilhas e pilhas de velhas cartas
e sacos de papel, e não seria descabido dizer que estava sepultado nesse lixo.
Parei imóvel diante desse ser monstruoso, que nem parecia estar vivo.
– Sinto-me penalizada por ter
de mostrá-lo ao senhor nesse lamentável estado — desculpou-se a mulher.
– Não se preocupe com ele: é o
avô da casa. Está paralitico. Peço-lhe permissão para deixá-lo ai aonde está.
Pelo que a velhinha me contou,
depois de ter-se assim desculpado, o ancião estava com o corpo todo paralisado
havia já vários anos. A montanha de papel que quase o soterrava eram as cartas
que recebera dos mais diversos rincões, com ensinamentos sobre o tratamento da
paralisia, e os pacotes vazios de medicamentos mandados buscar em várias
localidades. O ancião interrogava todos os viajantes que transpunham o Passo;
lia todos os anúncios de jornal referentes a remédios para a cura da paralisia,
que mandava comprar sem perda de tempo. Não jogava fora nem os envoltórios, nem
as cartas ou as bulas. Passava o dia a contemplá-los e, com o decorrer dos
anos, tinha-se cercado de uma verdadeira montanha de papel velho.
Sem nada responder à minha
interlocutora, permaneci cabisbaixo diante da lareira. Um automóvel que subia a
montanha fez estremecer a casa. Eu não conseguia atinar com a razão por que os
moradores não abandonavam uma montanha tão feia, que começava a cobrir-se de
neve já no outono. Da minha roupa desprendia-se vapor d’água, e o fogo, de tão
intenso, causava-me dor de cabeça. A velhinha havia retomado a sala de chá e
conversava com uma das artistas ambulantes:
– Puxa, está é a mesma menina
que aqui esteve da outra vez? Que bela moça ficou! Essas meninas não perdem
tempo! És uma felizarda por teres uma filha linda assim!
Ao cabo de uma hora, ouvi ruídos
indicativos de que o grupo se preparava para partir. Fiquei agitado, mas não
tive coragem de levantar-me. Pensei comigo que, mesmo estando habituadas a
viajar a pé, as artistas eram mulheres, afinal de contas, e eu poderia alcançá-las
facilmente, ainda que as deixasse se adiantarem um ou dois quilômetros. E permaneci
sentado, algo apreensivo, junto da lareira. Na ausência das dançarinas, minha imaginação
se pôs a funcionar furiosamente, como se liberta de todos os entraves.
Perguntei à velha, que fora despedir-se do grupo:
– Onde acha que a pequena
bailarina dormirá hoje a noite?
– Como poderia eu saber onde
um tipo desses vai dormir, meu senhor? — respondeu-me. — Havendo freguês, dorme
em qualquer lugar. Não deve estar muito preocupada com a pousada para esta
noite.
As palavras da velha,
impregnadas de fundo desprezo, deixaram-me excitado a tal ponto, que me pus a
refletir se não deveria ter convidado a pequena dançarina para passar a noite
comigo.
A chuva diminuiu de
intensidade, finalmente, e a névoa que amortalhava o Pico começou a
dissipar-se. Apesar das instancias da velha para que eu ficasse mais um pouco —
dizia-me que o tempo limparia de todo dentro de uns dez minutos —, preparei-me
febrilmente para partir.
– Muito cuidado consigo, vovô.
Vai fazer muito frio, — adverti afetuosamente ao ancião. Este, movendo com
dificuldade os olhos amarelados fez leve sinal de agradecimento.
Pouco depois de haver partido,
ouvi os gritos da velha atrás de mim:
– Meu senhor, meu senhor! Não
sei como lhe agradecer. Eu não merecia tanto! — balbuciou, ao alcançar-me,
desfazendo-se em agradecimentos pela gorjeta que eu lhe havia dado. Por mais
que tentasse dissuadi-la, insistiu em acompanhar-me mais alguns minutos e fez questão
de carregar minha bagagem. Caminhava atrás de mim, com passos miúdos, exclamando
a cada cem metros a mesma coisa:
– Eu não merecia tanto!
Perdoe-me se cometi alguma falta. Eu me lembrarei para sempre do seu rosto. Da próxima
vez que o senhor passar por aqui, procurarei retribuir a sua generosidade. Não
se esqueça de parar em minha casa, da próxima vez. Eu me lembrarei do senhor.
Como eu lhe havia dado tão somente
uma moeda de cinquenta sens, espantaram-me tão chorosas manifestações de
gratidão. Ansioso que estava para alcançar a pequena bailarina, era-me incomodo
reprimir a pressa e acompanhar o andar inseguro da velhinha. Chegamos, afinal,
ao túnel do Passo.
– Muito obrigado. É melhor que
a senhora volte daqui: o vovô se encontra sozinho — disse eu, despedindo-me da
minha acompanhante, que me devolveu a bolsa de viagem e afastou-se.
Do teto do túnel imerso na
obscuridade pingavam, uma após outra, grossas gotas de água frigida. Ao fundo
do túnel, um pequeno retângulo de claridade indicava a saída para Izu, ao sul.
II
Da boca do túnel, o caminho,
ladeado por uma cerca pintada de branco, emergia ziguezagueante. Na direção da
fralda da montanha, avistei as figuras das dançarinas. Ao cabo de meio quilometro
de caminhada, consegui alcançá-las. Como, porém, não me parecesse conveniente
diminuir o passo, ultrapassei-as simulando indiferença. O chefe do grupo, que
caminhava adiante deste cerca de uns setenta passos, deteve-se ao me avistar,
exclamando:
– Como o senhor anda depressa!
Felizmente, o tempo limpou, não acha?
Respirei aliviado e dispus-me
a marchar ao seu lado. Meu interlocutor fez-me diversas perguntas. Vendo-nos a
conversar, as mulheres vieram ao nosso encontro.
O chefe do grupo carregava às costas
uma grande mala de vime. A senhora de meia-idade trazia nos braços um
cachorrinho. A dançarina mais velha, uma trouxa; sua companheira, outra mala de
vime; a pequena bailarina, finalmente, levava as costas um tambor com suporte.
A senhora de meia-idade pôs-se a conversar comigo.
– É um estudante, sabes? —
informou, num sussurro, a dançarina mais velha à caçula do grupo. Quando me
voltei ela confirmou, sorridente:
– Sei que o senhor é
estudante. Vejo sempre estudantes na ilha.
Pelo que me contaram, fiquei
sabendo que procediam todos do Porto de Habu de Oshima. Haviam deixado a ilha
durante a primavera, mas, como não tinham trazido roupa de inverno e o frio
anunciava-se rigoroso, pretendiam voltar para lá depois de uma breve temporada
nas termas de Ito, e de uma estada de dez dias em Shimoda. Quando ouvi o nome
de Oshima, senti a presença da poesia, e fixei os olhos nos lindos cabelos da
pequena dançarina. Fiz varias perguntas sobre Oshima.
– Os estudantes vão a ilha
para nadar, não é mesmo? — perguntou a pequena dançarina a uma das
companheiras.
– Mas isso só no verão, não é?
— interpus, para a atrapalhação da pequena bailarina, que respondeu, à meia
voz:
– No inverno também
aparecem...
– No inverno, também? —
insisti.
A rapariga, olhando de novo
para a companheira, riu-se.
– Então, no inverno também se
nada? — tornei a insistir, e a minha pequena interlocutora, pondo-se muito séria,
e com o rosto ruborizado, fez que sim com a cabeça.
– Que bobinha é esta menina! —
escarneceu a senhora de meia-idade.
O caminho para Yukano era em
declive e estendia-se por doze quilômetros, ao longo do vale do Rio Kawatsu.
Transposto o Passo, tinha-se a impressão de que até a cor das montanhas e do céu
adquiriam uma particular tonalidade sulina. Eu e o chefe do grupo mantivemos
uma conversação ininterrupta e nos tornamos bons amigos. Transpusemos diversos
vilarejos, como Haguinori e Kashimoto, e, chegados ao sopé, pudemos divisar ao
longe os telhados de palha de Yukano. Munindo-me de coragem, declarei ao meu
companheiro de viagem que gostaria muitíssimo de acompanhá-los ate Shimoda. Ele
mostrou-se deveras satisfeito com a perspectiva de continuar a ter-me a seu
lado.
Quando chegamos a hospedaria
de Yukano, a mulher de meia-idade fez menção de despedir-se de mim. O chefe do
grupo explicou-lhe:
– Este senhor deseja viajar em
nossa companhia.
– Ora muito bem! — respondeu
ela com desembaraço. — Na viagem, quer-se companhia; na vida, simpatia. Se
companhia como a nossa não lhe desagrada, garanto que se distraíra conosco.
Entre para descansar.
As moças me olharam em
silêncio, com ar de indiferença, mas algo ruborizadas.
Subindo, em companhia dos
demais, para o andar superior da hospedaria, desfiz a bagagem e retirei os
aprestos. O tatami e o fussuma estavam velhos e sujos. O chá foi
servido pela pequena bailarina. Ficou ruborizada ao sentar-se diante de mim; a
xícara quase escorregou do pires, devido ao tremor de suas mãos, e ela acabou
derramando chá sobre o tatami. Surpreendeu-me aquele acanhamento, que
reputei exagerado.
– Céus! Que coisa! Esta menina
já começa a por reparo nos homens! — resmungou a mulher de meia- idade, com a
testa enrugada, atirando um pano a pequena bailarina, que o apanhou, muito embaraçada,
e se pôs a enxugar o tatami.
Essas palavras fizeram-me
inadvertidamente voltar a mim mesmo, e destruíram todas as imagens sensuais que
se haviam formado no meu espirito sob o influxo da velha do Passo.
Momentos depois, a mulher de
meia-idade, olhando-me com atenção, exclamou:
– Como é bonito esse tecido
azul, salpicado de branco, do seu quimono! tem o mesmo desenho do de Tamiji? Não
tem? — perguntou a moça sentada ao seu lado, dirigindo-lhe um olhar jocoso.
– É que deixei, lá na minha
terra, um filho no colégio — prosseguiu ela, voltando-se para mim — e me
lembrei dele porque tem um quimono do mesmo tecido do seu. Nos dias de hoje um
tecido assim custa tão caro que já nem se sabe como fazer.
– Em que grau ele está
estudando? — perguntei.
– Esta matriculado no quinto
ano do primário.
– No quinto ano do primário? —
estranhei.
– Sim na escola de Kofu.
Moramos há muito tempo em Oshima, mas viemos de Kofu em Kahi.
Depois de eu ter descansado
cerca de uma hora, o chefe do grupo levou-me para outra hospedaria. Ate então,
eu estivera certo de que iria passar a noite sob o mesmo teto que as dançarinas.
Depois de andarmos cerca de cem metros, abandonamos a estrada e descemos por um
atalho íngreme, de degraus talhados na pedra. Atravessamos uma ponte de bambu,
junto da qual ficavam os banheiros públicos, à margem do riacho. O quintal da
nova hospedaria começava pouco adiante da ponte.
Estava eu a banhar-me quando
meu companheiro veio juntar-se a mim. Contou-me, então, que tinha vinte e
quatro anos de idade e que sua mulher perdera dois filhos por parto precoce.
Como vestia um hanten com a marca da estancia termal de Nagaoka, julguei
que ele fosse de lá. A expressão do seu rosto e sua maneira de falar eram as de
um homem educado, o que me levou a pensar se ele não se juntara ao grupo para
distrair-se ou por amor da pequena dançarina.
Jantei logo depois do banho.
Eram três horas da tarde; eu havia saído de Yukashima as oito da manhã.
O chefe do grupo despediu-se
de mim.
– Não quer comprar caquis? —
disse-lhe eu, atirando-lhe algum dinheiro. O homem fez que não com a cabeça e
dispôs-se a continuar seu caminho. Ao ver o dinheiro no chão, deteve-se para
apanha-lo e jogou-o de volta, dizendo:
– Não deve fazer isso.
O dinheiro caiu em cima do telhado
de palha. Atirei-o novamente ao homem, que o aceitou dessa vez. Ao entardecer, começou
a chover forte. O contorno das montanhas ao longe tornou-se indistinto,
alvacento; as aguas do riacho se turvaram de um amarelo leitoso e puseram-se a
correr mais ruidosas. Imaginando que a chuva iria impedir a exibição das
bailarinas e afligido por esse pensamento, fiquei inquieto: fui tomar banho
duas ou três vezes. Meu quarto estava mergulhado na obscuridade. Acima do corte
quadrado do fussuma, que separava o meu do aposento vizinho, estava
suspensa a lâmpada da qual provinha iluminação para ambos.
Subitamente, destacando-se do ruído
forte da chuva, ouviu-se o tantã suave de um tambor. Abri de supetão a janela,
como se quisesse arrebentá-la, e debrucei-me para fora. O som do tambor parecia
vir de perto. A chuva fustigava-me o rosto. Cerrei os olhos e pus-me
atentamente à escuta, procurando descobrir o caminho percorrido pelo som do
tambor. Logo, fizeram-se ouvir também as notas de um shamissen seguidas por um grito agudo de mulher e pelo ruído
de risos festivos. Eu soube, então, que as artistas haviam sido contratadas
pelo restaurante em frente a hospedaria. Foi-me possível distinguir as vozes de
duas ou três mulheres, e as de três ou quatro homens. Julgando que, terminada a
representação, as dançarinas viriam até a hospedaria onde eu estava, fiquei a
espera. Todavia, logo depois fiquei a conjeturar se toda aquela animação não
acabaria em bebedeira e farra. Uma voz aguda de mulher cortava, de quando em
quando, a noite compacta. Numa quietude absoluta, com todos os sentidos aguçados,
continuei sentado, com a porta do quarto aberta. A cada pancada do tambor, meu coração
se rejubilava como que por encanto. Pensava comigo mesmo:
— “Ah! a pequena dançarina
está ainda sentada à mesa do banquete. Sentada, batendo o seu tambor.”
Quando o tambor parava, eu me
sentia angustiado. O som da chuva trespassava-me.
Mais tarde, ouvi um arrastar
de pés, que me fez imaginar estivessem brincando de pegador. Logo o silêncio.
Meus olhos lançavam chispas. Eu procurava devassar as trevas para descobrir a razão
do repentino silêncio. Doía-me pensar que estavam maculando a noite da pequena dançarina.
Mesmo depois de ter fechado a
janela e ido deitar-me, eu continuava a me sentir opresso. Tomei banho
novamente, estapeando, raivoso, a agua morna. A chuva havia cessado e a lua
surgira no céu. Lavada pelo aguaceiro, a noite outonal estava virginalmente
iluminada. Mesmo que saísse descalço do banheiro, pensei, nada poderia fazer.
Passava das duas horas da manhã.
III
No dia seguinte, eram já mais
de nove horas quando o homem veio procurar-me. Pus-me de pé e convidei-o a
acompanhar-me ao banho. Estava um dia límpido e belo, tipicamente sulino;
aumentadas pela chuva da noite anterior, as águas do riacho corriam iluminadas
pelo sol tépido. Pareceu-me um sonho toda a angústia da noite anterior.
Perguntei, aparentando despreocupação?
– A festa de ontem à noite
esteve bem animada, não? Acabou muito tarde?
– Nada disso. Ouviu o barulho?
– Ouvi, sim.
– É o pessoal daqui. Só
queriam farra. Não tinha graça.
Como meu interlocutor se
mostrasse aborrecido, achei melhor calar-me.
– Olhe! — disse ele,
chamando-me a atenção. — La estão elas, no banheiro da outra margem. Parece que
nos viram, pois estão a rir.
Seguindo-lhe a indicação,
olhei para o banheiro público da margem oposta: sete ou oito corpos nus eram
palidamente visíveis no vapor d’água.
Emergindo da semi-escuridão do
banheiro, apareceu outro corpo nu de mulher, a qual, detendo-se à porta do vestiário
como se se preparasse para lançar-se ao riacho, gritou qualquer coisa,
agitando os braços. Estava completamente despida. Era a pequena dançarina. Contemplando-lhe
a carne alva, as pernas bem torneadas, esguias como caules novos de paulóvnia,
senti no coraãao uma pureza de água de fonte, dei um fundo suspiro de alívio e
pus-me a rir infantilmente. Uma criança, pensei. Uma criança que saltitava ao
sol, inteiramente despida, alegre por nos ter descoberto, o corpo esticado e
equilibrado na ponta dos pés. Continuei a rir, possuído de límpida alegria. Como
que lavada dos maus pensamentos, minha mente ficou cristalina. Eu sorria sem
parar.
Como os cabelos da pequena
bailarina eram longos, parecera-me ela ter dezessete ou dezoito anos; além disso,
ela os penteava como mulher adulta. Mas eu estava redondamente enganado.
Seguido pelo meu companheiro,
regressei ao quarto e, logo depois, a moça mais idosa do grupo apareceu no
quintal da hospedaria, onde se deixou ficar, admirando um canteiro de crisântemos.
A pequena dançarina vinha atravessando a ponte. A mulher de meia-idade, saindo
do banheiro público, olhou severamente para as duas. A pequena dançarina
encolheu os ombros, como que a indicar ter-se dado conta da repreensão, e,
rindo- se, arrepiou caminho. A mulher de meia-idade veio até a ponte e
ordenou-lhe:
– Venha brincar.
A moça do jardim repetiu-lhe a
mesma ordem e ambas se retiraram. O homem ficou em minha companhia até a tarde.
A noite, eu jogava go
com um vendedor de artigos para papelaria, quando, subitamente, se fez ouvir,
vindo quintal da hospedaria, o som do tambor. Quis levantar-me.
– As artistas vieram
representar aqui — justifiquei-me.
– Qual, isso não tem graça —
objetou meu parceiro. — Vamos, o lance é seu. Bati aqui.
O vendedor de papel estava
inteiramente absorvido no jogo. Enquanto eu permanecia sentado, indeciso
desassossegado, temeroso de que as artistas já estivessem de saída, o chefe do
grupo cumprimentou-me do quintal:
– Boa noite.
Saí para o corredor e chamei-os
com um gesto de mão. Após cochicharem entre si, as artistas deram a volta para
entrar pela frente da casa. Seguindo o exemplo do homem, as três moças vieram
cumprimentar-me, uma após a outra, como se fossem gueixas.
Voltei ao jogo, mas o
tabuleiro demonstrava cabalmente a minha derrota.
– Assim não adianta. Estou
vencido. É melhor terminar aqui a partida — disse ao meu parceiro.
– Nada disso. Eu é que estou
em má situação. De qualquer forma, o lance é delicado.
Sem voltar-se sequer para
olhar as dançarinas, o vendedor de papel pôs-se a contar as casas do tabuleiro,
uma a uma, e a jogar com atenção redobrada. Depois de terem arrumado num canto
da sala o tambor e o shimissen, as mulheres começaram a jogar gomoku-narabe
no tabuleiro de shogui. Entrementes, eu perdia a partida. Meu parceiro
insistiu que continuássemos:
– Então? Mais uma partida? Uma
só, peço-lhe.
Como eu estava a rir bobamente
para as visitantes, verificou a inutilidade da sua insistência e levantou-se.
As moças se aproximaram do
tabuleiro de go.
– Vão representar em algum
lugar esta noite? – perguntei-lhes.
– Vamos, sim, mas... — disse o
homem, voltando se para as companheiras, e perguntando-lhes:
– Que tal faltarmos ao
compromisso de hoje e ficarmos nos divertindo por aqui mesmo?
– Que bom! Que bom! —
exclamaram elas.
– Não haverá perigo de serem
repreendidas? – perguntei.
– Qual nada! — tranquilizou-me
o homem. — Nem adianta ir porque não há fregueses.
E, entretidos com o gomoku-narabe
e outras diversões, ficamos juntos até meia-noite passada.
Depois que as dançarinas se
foram, e estando eu com a mente alerta demais para poder conciliar o sono, saí
para o corredor e chamei:
– Senhor vendedor! Senhor
vendedor!
– Ora viva! — respondeu o interpelado,
que era um velhote de seus sessenta anos, saindo animosamente do seu quarto
para o corredor.
– Vamos passar a noite
jogando, quer? Vamos ficar acordados.
Eu também me sentia deveras
animoso.
IV
Ficara combinado que partiríamos
de Yukano às oito horas da manhã do dia seguinte. Com um boné recém-comprado na
cabeça (guardara no fundo da mala meu boné de colegial), fui à hospedaria a
beira da estrada. Como a porta do shoji do andar de cima estivesse
escancarada, subi a escada despreocupadamente: as artistas se achavam deitadas
ainda. Embaraçado, detive-me no corredor.
Deitada no leito mais próximo
da porta, a pequena dançarina, ao ver-me, pôs-se toda vermelha e escondeu o
rosto com ambas as mãos. Compartilhava o leito com outra moça. Conservava ainda
a pintura exagerada da noite anterior, mas o carmim dos lábios e a sombra dos
olhos já estavam borrados. Esse desalinho sensual excitou-me. Como se estivesse
ofuscada, a pequena bailarina, mantendo o rosto oculto entre as mãos, escorregou
do leito e veio sentar-se no corredor, a meus pés.
– Muito obrigada por tudo de
ontem à noite — disse, deixando-me perplexo.
O homem estava deitado no
mesmo leito que a moça mais idosa. Até então, eu não suspeitara que fossem
marido e mulher.
– Pedimos-lhe muitas desculpas
— disse-me a mulher de meia-idade, soerguendo-se no leito. — Íamos partir hoje,
realmente, mas como parece provável recebermos um convite para representar à
noite, decidimos adiar a partida. Se o senhor quiser partir ainda hoje, pode
partir: ver-nos-emos em Shimoda. Acertamos que ficaríamos alojados numa
hospedaria chamada Koshuya, de modo que lhe será fácil localizar-nos.
Tais palavras causaram-me um
choque.
– Pego-lhe que adie sua
partida para amanhã — rogou o homem. — Mamãe insiste em que fiquemos aqui ainda
hoje. É sempre melhor viajar em companhia. Vamos sair amanhã, juntos.
A mulher de meia-idade
corroborou-lhe os rogos:
– Isso mesmo. Depois de nos
termos aproveitado da sua companhia, seria imperdoável pensarmos apenas em
nossas próprias conveniências. Partiremos amanhã mesmo que chovam canivetes.
Amanhã será o quadragésimo nono dia do falecimento do bebê e queríamos
homenagear a sua memoria em Shimoda. Por isso apressamos a viagem: a fim de
estar lá no dia certo. Sei que abuso da sua paciência dizendo-lhe todas estas
coisas, mas confio em que, apesar, de recentes as nossa relações, não será
demasiado pedir-lhe que nos acompanhe em nossas preces depois de amanhã.
– Resolvi adiar a partida e
desci para o andar inferior. Fiquei a conversar com um hóspede na portaria
suja, à espera de que se levantassem. O homem veio convidar-me para um passeio,
pouco depois. Descemos estrada até o local onde havia uma linda ponte. Encostando-se
ao corrimão, o homem pôs-se a contar-me, novamente, fatos da sua vida.
Explicou-me que já fizera parte de um grupo de artistas de vanguarda, em
Tóquio. Ainda hoje representava, de quando em vez, no Porto d Oshima. Eu vira,
sobressaindo da sua trouxa de bagagem, a ponta de uma bainha de espada:
contou-me também que improvisava representações teatrais em salões.
– Cometi muitos erros e acabei
me atrapalhando na vida. Meu irmão, porém, continua vivendo com gente direita
em Kofu. É quem toma conta da casa. Pode-se dizer, portanto, que sou dispensável.
– Eu estava seguro de que o
senhor era das terma de Nagaoka — respondi-lhe.
– Não sou, não. A moça mais
idosa do grupo é minha mulher. Tem dezenove anos, um ano menos do que o senhor,
portanto. Teve o seu segundo parto precoce em viagem. A criança morreu depois
de uma semana de vida. Minha mulher não se recuperou ainda de todo. A mulher idosa e minha sogra.
E a pequena dançarina minha irmã.
– Como? Não me disse que tinha
uma irmã de quatorze anos?
– Pois é ela. Vivo sempre
preocupado com o fato de permitir que ela siga uma carreira destas. Mas nada
posso fazer. Não havia outra solução.
– Em seguida, explicou-me que
o nome de sua esposa era Tiyoko; o dele, Eikiti; o da irma, Kaoru. A outra rapariga
do grupo, que tinha dezessete anos, chamava-se Yuriko; nascera em Oshima e
exercia tarefas de empregada. Depois de me ter falado disso tudo, seu rosto assumiu
uma expressão de comoção e ele, guardando silêncio, pós-se a olhar o rio.
No passeio de volta, encontrei
a pequena dançarina com o rosto lavado, sem maquilagem, acocorada à beira do
caminho, a acariciar um cão. Como eu pensava em voltar à minha hospedaria,
convidei-a:
– Venha dar um passeio comigo.
– Eu gostaria, mas, assim
sozinha...
– Traga o seu irmão — sugeri.
– Esta certo. Irei logo —
concordou.
Momentos depois, Eikiti
aparecia na hospedaria.
– E as outras? —
perguntei-lhe.
– O senhor entende: a mãe e
muito severa...
Todavia enquanto estávamos a
jogar gomoku-narabe, as mulheres transpuseram a ponte e chegaram até a
hospedaria, subindo para o primeiro andar. Cumprimentaram-me respeitosamente,
como de costume, e detiveram-se hesitantes no corredor, Tiyoko à frente.
– Este é o meu quarto. Entrem,
sem cerimonia — convidei.
Jogamos durante cerca de uma
hora; ao fim desse tempo, as mulheres se dirigiram ao banho. Convidaram-me a
acompanhá-las, mas eu, como havia três moças presentes, achei melhor não
aceitar, e menti que iria mais tarde. Logo depois, a pequena dançarina veio á
minha procura.
– Minha irmã pede-lhe para
vir. Ela lhe lavará as costas.
Não fui; fiquei a jogar gomoku
com a mensageira. Curioso: ela jogava muito bem. Tanto Eikiti quanto as outras
mulheres não conseguiam batê-la ao jogo. Eu próprio, que vencia a quase todos,
tinha de me esforçar ao máximo. O fato de não ter de perder deliberadamente me
punha a vontade. De começo, a pequena bailarina jogava longe do tabuleiro,
esticando o braço para nele colocar as peças. Depois, foi-se esquecendo de si aos
poucos até que, concentrada, debruçou-se sobre o tabuleiro. Seus cabelos, cujo
belo negror mal parecia natural, chegaram a tocar-me o rosto. Subitamente, ela
enrubesceu e disse-me:
– Perdão, tenho de ir, senão
serei censurada.
Retirou-se, indo ao encontro
da mãe, que já a esperava diante do banheiro publico. Tiyoko e Yuriko sairam
afoitamente do banho e todas juntas, sem voltarem ao meu quarto, retiraram-se.
Eikiti passou o dia inteiro
comigo. A dona da hospedaria, que parecia ser pessoa simples e atenciosa,
advertiu-me de que seria desperdício oferecer almoço a um individuo como ele.
À noite, fui visitar as
mulheres, e encontrei a pequena gangarina em companhia da mãe, aprendendo a
acompanhar-se ao shamisen. Quando me viu, parou de cantar, mas, a uma
ordem da sua mãe, recomeçou. Toda vez que sua voz se elevava um pouco, a mãe a
repreendia:
– Já lhe disse para não erguer
a voz.
De onde eu estava, podia ver
Eikiti, no salão do andar superior do restaurante em frente, urrando algo
ininteligível.
– Que esta ele a fazer? —
perguntei.
– Representa um drama lírico —
respondeu a mãe de Kaoru.
– Drama lírico?
– Eikiti é homem dos sete
instrumentos. Nunca se sabe, ao certo o que ele poderá fazer.
Nesse momento, um homem, de
meia-idade, que se dizia vendedor de aves, abriu o fussuma e chamou as
moças, convidando-as para comerem guloseimas. A pequena dançarina, acompanhada
de Yuriko, levou seu hashi ao quarto vizinho, e lá ficou a cutucar os
restos de um cozido de aves deixados pelo vendedor. Quando voltamos para o
quarto das bailarinas, ele tocou de leve o ombro de Kaoru. A mãe da rapariga
olhou-o severamente:
– Por favor, não tome
liberdades com essa criança.
A pequena dançarina,
dirigindo-se ao homem e chamando-o de “senhor”, pediu-lhe que lesse para ela as
Viagens de Mito Komon. Abespinhado com a censura de que fora alvo, o
vendedor se retirou. Receando pedir diretamente a mim que lhe fizesse a
leitura, Kaoru instou com a mãe para que fizesse ela o pedido. Animado por uma
expectativa, apanhei o livro de narrativas; com efeito, quando me pus a ler, a
pequena dançarina chegou-se para perto de mim, a face roçando-me o ombro, e
ficou a ouvir, séria, sem pestanejar, os olhos in- tensamente fitos no meu
rosto. Essa atitude de concentração parecia ser-lhe habitual quando ouvia alguém
a ler. Os olhos, graúdos e negros, de lindo brilho, eram o melhor atributo da
sua beleza. A linha curva dos seus cílios tinha um encanto inefável. Ria como
uma flor. É esta a expressão exata: como uma flor.
Mais tarde, a criada do
restaurante veio buscá-la. Ela se preparou rapidamente e antes de sair
disse-me:
– Voltarei breve. Espere para
ler-me a continuação.
Saiu para o corredor e
abaixou-se, tocando o assoalho com as mãos:
– Até logo.
– Não quero que cantes. Em hipótese
alguma, ouviste? — recomendou-lhe a mãe.
A pequena assentiu e partiu,
levando consigo o tambor. A mãe explicou-me:
– É que ela esta mudando a voz justamente agora ...
Olhei para o restaurante e lá
vi Kaoru, pouco depois, sentada com correção, percutindo o tambor. Via-a de
costas; ela parecia estar na sala vizinha. O tantã do tambor fazia meu coração dançar
alegremente.
– Como o tambor anima um salão,
não acha? — disse a mãe de Kaoru olhando também para o restaurante.
Tiyoko e Yuriko saíram para
juntar-se a irmã.
Ao cabo de uma hora, voltaram
todas juntas.
– Só isto... — disse a pequena
dançarina, derramando um punhado de moedas de prata, de cinquenta sens,
na mão aberta da mãe. Reiniciei a leitura das Viagens de Mito Komon. Finda
a leitura, ficamos a conversar; contaram-me novamente o caso da criança nascida
morta durante a viagem. Houvesse sobrevivido e seria um bebê pálido, como água.
Não teria forças sequer para chorar. Não duraria mais do que uma semana.
Eu não sentia curiosidade nem
alimentava desprezo por elas. Pouco me importava fossem meus companheiros
simples artistas ambulantes. A simpatia que eu demonstrava tocou-lhes fundo o
coração. Convidaram-me para ir a casa da família, em Oshima, e lá ficar hospedado.
– Poderia morar na casa onde
mora vovô. É ampla e sossegada, principalmente se dali mudarmos o velho. Lá
estudaria a vontade, ficando o tempo que quisesse. Temos duas casas; essa de
que falamos está perto da montanha.
Ficou igualmente acertado que,
no Ano Novo, eu os acompanharia ao Porto de Habu, onde iriam dar espetáculos.
Compreendi que a vida errante não
lhes calejara, o coração. Eram gente tranquila e despreocupada; não haviam
ainda perdido a fragrância do campo. Estavam muito unidos entre si pelos laços
do sangue. Apenas Yuriko, a criada, por estar em plena adolescência, se acanhava
na minha presença.
Já passava da meia-noite
quando as deixei. As moças me acompanharam até o portão. Kaoru arrumou-me o gueta
e, olhando para cima, para o céu límpido, disse:
– Que lua! Amanhã estaremos em
Shimoda, felizmente. Lá celebraremos o quadragésimo nono dia da morte do bebê.
Vou ganhar um pente de mamãe. Em Shimoda, ha uma porção de coisas. O senhor me
levará ao cinema, não?
Shimoda é o lar dos artistas
ambulantes. É a cidade que todos eles, peregrinando de terma em terma, entre
Izu e Sagara, recordam nostálgicos sob um céu estranho, como se fosse a sua
cidade natal.
V
Cada uma das artistas
transportava a mesma bagagem que levava quando havíamos atravessado o Amagui. O
cachorrinho que acompanhava o grupo tinha ares de quem estava habituado as
viagens. Saímos de Yukano e penetramos de novo na zona montanhosa. O sol da
manha, suspenso sobre o mar, aquecia também o dorso das montanhas. Contemplamos
ao longe, ensolarada e aberta à claridade matinal, a praia do Rio Kawatsu.
– Aquele é o Oshima, não é? —
disse eu.
– Como parece grande! —
observou a pequena dançarina.
O céu outonal estava límpido e
o mar, incendiado pelo sol, ofuscava como na primavera. Do ponto onde estávamos
até Shimoda havia bem uns vinte quilômetros de caminho. Tocamos para a frente:
o mar ora desaparecia, ora reaparecia aos nossos olhos. Tiyoko pôs-se a
cantar, despreocupada.
A certa altura, consultaram-me
se devíamos ir pelo atalho que subia pela montanha e que encurtava o caminho
de uns dois quilômetros, embora fosse um pouco áspero, ou pela estrada oficial,
onde era mais fácil caminhar. Optei pelo caminho mais curto.
O aclive era forte e as folhas
secas que o atapetavam faziam-no escorregadio. Eu resfolegava, mas, obstinando-me,
apertei o passo, dando quanto tinha. Não tardou e eu deixava o grupo para trás;
somente o ruído das conversas chegava até mim, por entre as árvores. Arregaçando
a barra do vestido, a pequena bailarina apertou o passo também: foi a única a
acompanhar-me. Seguia-me a uma distância de seis passos, que não procurava nem
aumentar nem diminuir. Quando eu me voltava e lhe dirigia a palavra, ela se
detinha e me respondia com um sorriso assustado. Ao falar, detinha-se
igualmente. Eu ficava à sua espera; quando me movimentava novamente, ela
continuava a andar. Ao chegar a uma curva do caminho, no ponto onde ele se
tornava mais íngreme, apressei ainda mais o passo. A pequena dançarina esforçava-se
por me acompanhar. A montanha estava em silencio: os demais haviam ficado bem atrás
e já não se lhes ouvia a conversa.
– Em que lugar de Tóquio fica
a sua casa?
– Moro no internato da escola
— respondi.
– Eu também conheço Tóquio.
Fui lá dançar na época das flores. Mas como era pequena, não me lembro de nada.
Continuamos a caminhar. Ela me
perguntou se meu pai estava ainda vivo e se eu havia ido alguma vez a Kofu.
Depois, pôs-se a tagarelar; repetiu que iria ao cinema quando chegássemos a
Shimoda; falou novamente na morte do bebê.
Alcançamos o cimo da montanha.
Depondo o tambor sobre o tapete de grama seca, a pequena dançarina enxugou o
suor do rosto com um lencinho. Agachou-se, em seguida, para tirar o pó das sandálias,
mas, como se espertada por uma ideia súbita, veio limpar-me a barra do quimono.
Recuei de súbito e a pequena dançarina caiu de joelhos no chão; permanecendo
nessa posição, pôs-se a espanar a minha roupa e disse-me, a mim que permanecia
de pé, ofegante:
– Sente-se.
Sentei-me. Veio fazer-nos
companhia um bando de passarinhos, que pousou perto de nós. O silêncio era tal
que se ouvia o ruído feito pelas folhas secas, quando as aves nelas pousavam.
– Por que anda tão depressa?
A pequena dançarina parecia
estar com calor. Quando percuti o tambor duas ou três vezes com o dedo, os
passarinhos levantaram voo.
– Ah! que sede! — exclamei.
– Espere, vou ver se arranjo água
— disse ela.
Mas dentro em pouco voltava de
mãos abanando.
Perguntei-lhe:
– Que é que você costuma fazer
quando está em Oshima?
De súbito, a pequena dançarina
citou dois ou três nomes de mulheres e pôs-se a falar de coisas que me eram
estranhas. Ao que deduzi, falava, não de Oshima, mas de Kofu. Pareceu-me que se
referia a uma colega da escola primária que frequentara até o segundo ano, e
cuja lembrança então lhe ocorrera.
Ali ficamos mais uns dez
minutos e logo depois as três jovens atingiam o cimo. A senhora de meia-idade
chegou com atraso.
Durante a descida, eu e Eikiti
pusemo-nos a conversar sossegadamente e atrasamo-nos de propósito. A pequena dançarina,
que se adiantara a nós cerca de duzentos metros, voltou a correr:
– Ali embaixo há uma fonte —
avisou-nos. — Elas pedem-lhes que se apressem, que não beberão enquanto não
chegarem.
Ao ouvir falar em água, corri.
A sombra de uma árvore, gorgolejava a água por entre rochas. As mulheres
estavam de pé, em tomo da fonte.
– Beba primeiro — convidou-me
a senhora de meia-idade. — Se mulher puser a mão primeiro, a água fica suja e
turva.
Colhi a água fresca nas mãos e
bebi. As mulheres permaneceram por ali enxugando o suor com os lenços.
Finda a descida da montanha, e
ao entrarmos na estrada de Shimoda, vimos vários fios de fumaça de carvoeiras.
Sentei-me num toco de madeira a beira do caminho para descansar. A pequena dançarina
de cócoras, pôs-se a pentear com um pente cor de pêssego o pelo longo do cão.
– Vais acabar quebrando os
dentes desse pente! — advertiu-a a mãe.
– Não tem importância. Vou
comprar outro em Shimoda.
Desde Yukano que eu estava com
a ideia de pedir-lhe aquele pente que lhe enfeitava a cabeça, e não gostei nada
de vê-lo sendo usado para pentear pelo de cachorro...
Descobrimos um grande numero
de bambus fincados do outro lado da estrada formando cerca. Eu e Eikiti
adiantamo-nos ao grupo, tagarelando sobre o fato de os bambus fazerem ótimas
bengalas. A pequena dançarina veio correndo atrás de nós. Trazia na mão um
bambu mais comprido que ela própria.
– Que pretendes fazer com
isso? — perguntou-lhe Eikiti. Meio confusa, ela me apontou com o bambu.
– Dou-lhe para bengala.
Escolhi o mais grosso.
– Não, esse não serve. Quem vir
bambu assim grosso, descobrirá logo que é roubado. Vá devolvê-lo.
A pequena dançarina voltou
para junto da cerca e logo regressou às carreiras. Desta vez, trazia um bambu
da grossura de um dedo. Depois, sentou-se no chão, ofegante, ficando a espera
das companheiras.
Eu e Eikiti continuávamos a
caminhar, sempre uns trinta passos a frente do grupo.
– Para isso, basta arrancar os
dentes e por outros de ouro — ouvi a pequena dançarina tagarelar atrás de mim.
Voltei-me e vi que ela caminhava ao lado de Tiyoko, seguida pela avó e por
Yuriko. Não se dando conta de que eu me havia voltado, Tiyoko disse:
– E isso mesmo. Diga a ele.
Pareciam conversar a meu
respeito. Tiyoko se referira provavelmente aos meus dentes feios e Kaoru sugerira
que eu os substituísse por outros de ouro. Embora falassem sobre a minha aparência,
eu não me incomodei, tanto me sentia afeiçoado àqueles artistas. Continuaram a
palestrar em voz baixa. A certo momento, ouvi Kaoru dizer:
– Ele e boa pessoa, não é?
– Sim. Parece ser boa pessoa.
– Não é mesmo uma boa pessoa?
Bom que seja uma boa pessoa, não acha?
A simplicidade do seu modo de
falar como que lhe punha em destaque a sinceridade. Era o modo de falar de quem
estivesse demonstrando os sentimentos. Eu próprio me senti uma boa pessoa. Com
a alma purificada, ergui os olhos e contemplei os claros montes. As pálpebras
me doíam. Por força de intensa introspecção critica, eu me havia dado conta, já
aos vinte anos, de que a minha índole fora afetada pela orfandade e que o pesar
insuportável é que me levara aquela viagem até Izu. Por isso mesmo, o fato de
eu ser considerado “boa pessoa”, no sentido corrente que essa palavra tem
entre os homens, era-me indizivelmente grato.
A nitidez com que avistávamos
os montes era consequência da proximidade do mar, em Shimoda. Continuei a
caminhar, decepando com a bengala de bambu as ervas outonais.
Na margem da estrada, a
entrada das aldeias, deparávamos com cartazes:
E proibida a entrada de
pedintes e artistas ambulantes.
VI
A Hospedaria Koshuya ficava
logo a entrada norte de Shimoda. Nas pegadas dos meus companheiros de viagem,
subi para o primeiro andar da hospedaria, que mais parecia um sótão. Não havia
forro; quando me sentei junto da janela, minha cabeça esbarrou no teto.
– Não lhe doem os ombros? —
perguntou a mãe de Kaoru a filha. E insistiu: — Não estas com as mãos doídas?
A pequena dançarina fez um
gesto gracioso, como se percutisse o tambor:
– Não, senhora. Posso tocar
muito bem.
– Ah! então esta bem.
Tentei erguer o tambor.
– Uf, como é pesado!
– Sim, é mais pesado do que
pensa — respondeu, rindo, a pequena dançarina. — É mais pesado que a sua pasta
de estudante.
Os artistas trocavam alegres
cumprimentos com os fregueses da hospedaria, que eram também artistas ambulantes.
O Porto de Shimoda devia ser o ninho dessas aves migradoras. Kaoru deu algumas
moedas de cobre à filha do dono da hospedaria. Quando me despedi para sair,
ela, arrumando-me o gueta, murmurou:
– Leve-me hoje ao cinema, sim?
Guiados por um homem de aparência
duvidosa, eu e Eikiti fomo-nos instalar numa outra hospedaria, cujo dono se
dizia ex-prefeito. Depois de banhar-nos, comemos peixe fresco.
– Pego-lhe que compre algumas
flores para os sacrifícios de amanhã — disse eu ao meu companheiro de viagem,
dando-lhe algum dinheiro. Eu tinha de voltar para Tóquio no dia seguinte. Meu
dinheiro acabara, e como dissera aos artistas que minha volta era devida a obrigações
escolares, não puderam prender-me com insistências.
Jantei cedo, menos de três
horas depois do almoço, e, sozinho, atravessei a ponte norte da cidade. Escalei
o Fuji de Shimoda, e lá de cima fiquei a contemplar o porto. Na volta, passei
pela Hospedaria Koshuya, e encontrei as artistas jantando um cozido de frango.
Convidaram-me:
– Não quer provar um pouco?
Esta sujo porque nos, mulheres, já pusemos o hashi dentro. Mas isso
servirá, ao menos, como tema para anedotas de viagem...
A senhora de meia-idade tirou
da mala uma xicara grande e hashi, e mandou Yuriko lavá-los.
Como o dia seguinte era o quadragésimo
nono da morte do bebê, insistiram novamente comigo para que adiasse a partida,
ao menos por um dia, mas, pretextando urgentes deveres escolares, escusei-me. A
senhora de meia-idade repetiu-me, várias vezes:
– Então, nas ferias de
inverno, iremos ao porto esperá-lo. Avise-nos do dia da sua chegada, por
obséquio, sim? Ficaremos à sua espera; queremos hospedá-lo. Não vá para nenhum
hotel, ouviu? Iremos recebe-lo no porto.
Quando, com a saída dos
demais, ficaram na sala apenas Tiyoko e Yuriko, convidei-as para irem ao cinema.
Tiyoko, apertando o ventre com as mãos e olhando-me com ar de abatimento,
escusou-se:
– Estou adoentada. Sinto-me
enfraquecida por ter andado daquele jeito.
Quanto a Yuriko, endireitou o
corpo e baixou a cabeça.
A pequena dançarina estava no
andar térreo brincando com a criança da hospedaria; tão logo me viu descer,
começou a instar com a mãe para que a deixasse ir ao cinema. Em seguida, com ar
desapontado, veio até mim e arrumou-me o gueta.
– Que foi? Por que não vais
sozinha com ele? — perguntou Eikiti.
Ao que parece, a mãe negara
consentimento a Kaoru. Eu não podia compreender por que não podia ela ir
sozinha comigo.
Quando saí para a varanda, a
pequena dançarina estava acariciando a cabeça do cachorro. Mostrava-se tão
indiferente que desisti de lhe dirigir a palavra.
Fui só ao cinema. A narradora
lia as explicações à luz da lamparina, quando lá cheguei. Pouco me demorei:
voltei logo para a minha hospedaria onde, com o cotovelo apoiado no rebordo da
janela, fiquei longas horas a contemplar a cidade trevosa e noturna. Pareceu-me
ouvir ao longe, ininterrupto, o leve tantã de um tambor. Não sei por que razão,
as lagrimas começaram a rolar-me pela face, uma após outra.
VII
No dia seguinte, as sete horas
da manhã, eu estava tomando o desjejum quando ouvi Eikiti chamando-me da rua.
Usava um haori de estampa preta. Devia ser a roupa de cerimonia que
envergava para vir-se despedir de mim. Nenhuma das mulheres o acompanhava. Senti-me
muito só, nesse momento. Eikiti subiu comigo para o quarto, e ali me explicou:
— Elas queriam vir-se
despedir, mas como se deitaram muito tarde ontem, pediram-me que as desculpasse
pela ausência. Pediram-me também que lhe dissesse que estarão a sua espera no
inverno e insistem para que não deixe de vir.
Na cidade, o vento outonal da
manhã estava gelado. Eikiti comprou para mim, no caminho, quatro magos de
Shikishima, uns caquis e um vidro de dentifrício liquido chamado Kaol.
– E que minha irmã se chama
Kaoru — disse-me com um leve sorriso. — No navio, não e bom chupar laranja. O
caqui, sim: é bom para enjoo.
Agradeci-lhe os presentes e,
tirando o boné da mnha cabeça, coloquei-o na dele:
– Dou-lhe isto.
Retirei da bolsa o meu chapéu
de estudante, e endireitei-lhe as dobras. Rimo-nos os dois.
Quando nos aproximamos do cais
de embarque, senti um baque no peito ao dar com a figura da pequena dançarina
acocorada à beira da água. Ela se manteve imóvel enquanto nos aproximávamos e,
em silencio, baixou a cabeça quando a alcançamos. A pintura da noite anterior
fez com que aumentasse a minha emoção. O rubor ao canto dos olhos
dava-lhe ao rosto um arzinho de zanga, de juvenil firmeza. Eikiti perguntou-lhe:
– As outras vem?
Kaoru meneou negativamente a cabeça.
– Estão ainda dormindo?
Ela fez que sim.
Enquanto Eikiti ia comprar-me
a passagem para a barcaça que me levaria ao navio, tentei, de diversas maneiras,
puxar conversa com a pequena dançarina, mas ela não disse palavra: mantinha a cabeça
baixa e tinha os olhos fitos na água do canal. Limitava-se a assentir
mecanicamente, sem esperar que eu terminasse de falar.
Nesse momento, aproximou-se de
nós um homem acompanhado de uma velhinha. Tinha aparência de operário.
– Está bom este? — perguntou,
dirigindo-se a velhinha. E depois, voltando-se para mim:
– Senhor estudante, tenho um
favor a pedir-lhe. Não poderia levar esta velhinha até Tóquio? É uma pobre anciã:
seu filho casado trabalhava em Guinzan de Rendaiji, mas, vitimado pela epidemia
de influenza, morreu, juntamente com a esposa. Ficaram apenas estas três crianças,
seus filhos. Como nada se pode fazer aqui, deliberamos envia-las, em companhia
da avó, para a terra natal dela. É em Mito, sabe? A velhinha não conhece nada;
por isso, quando chegar em Reiganjima, peço-lhe o favor de embarcá-la no trem elétrico
de Ueno. É um incomodo, bem sei, mas suplicamos-lhe que nos preste esse favor.
Olhe para ela: não lhe da pena?
Nas costas da velhinha apalermada,
estava amarrada uma criança de colo. Duas meninas, a maior de uns cinco anos de
idade, a menor de uns três, agarravam-se-lhe as mãos. De uma trouxa suja que levava,
sobressaiam bolos de arroz e umeboshi. Cinco ou seis mineiros
acompanhavam a velhinha. Aceitei de bom grado a incumbência de cuidar dela.
– É um grande favor que nos
faz. Ótimo! Nós é que devíamos acompanhá-la a Mlto, mas é-nos impossível! —
agradeceram os mineiros, despedindo-se de mim
A barcaça que ia levar-me até
o navio balouçou violentamente. De lábios cerrados, a pequena bailarina, continuava
a olhar fixamente para a água. No momento em que eu forcejava por agarrar-me a
escada de cordas da barcaça, voltei-me para ela: fez menção de dizer-me adeus,
mas desistiu, limitando-se a mover afirmativamente a cabeça, mais uma vez. A barcaça
pôs-se em movimento. Eikiti começou a abanae insistentemente para mim o boné
que eu lhe dera havia pouco. Só quando já estávamos longe do cais foi que a
pequena dançarina se pôs a acenar para mim com algo branco.
Fiquei debruçado ao parapeito,
absorto, contemplando Oshima, até o vapor deixar a Baia de Shimoda e
desaparecer atrás da ponta sul das ilhas de Izu. Experimentava a estranha sensação
de haver-me separado da pequena dançarina muito tempo atrás, num passado
distante. Quando voltei os olhos para os camarins, à procura da velhinha,
diversas pessoas já a cercavam e pareciam estar tentando consolá-la. Tranquilizado,
entrei no camarim ao lado. As ondas de Sagaminada eram altas; o mar estava
agitado. Embora sentado, eu de vez em quando perdia o equilíbrio. Um tripulante
passou distribuindo aos passageiros pequenas bacias. Com a bolsa a servir de
travesseiro, deitei-me. Minha cabeça estava como que vazia; perdera a noção do
tempo. Minhas lagrimas ensoparam a bolsa de viagem, a tal ponto que tive de
virá-la, para não lhe sentir o frio no rosto. Ao meu lado estava deitado um
rapaz. Era filho de um industrial de Kawatsu, e ia para Tóquio fazer preparatório
para os exames escolares. Acho que simpatizou comigo devido ao meu boné de
estudante. Depois de algumas palavras convencionais, perguntou-me:
– Morreu alguém?
– Não. Separei-me agora de uma
pessoa.
Respondi-lhe com voz dócil.
Pouco me importava que me visse chorando. Eu não pensava em nada. Etava como
que adormecido placidamente, dentro da mais pura satisfação.
O mar escurecera aos poucos,
mas em Ajiro e Nekkai havia luzes acesas. Eu sentia frio no rosto, e fome. O
rapaz ofereceu-me o conteúdo de um embrulho de folhas de bambu. Sem quase me
dar conta de que era coisa de outrem, comi um bolo de arroz com algas. Finda a refeição,
compartilhei da manta de estudante do meu companheiro de viagem. Embora ele me
tratasse com extrema delicadeza, meu sentimento de um belo vazio fazia-me
aceitar-lhe as gentilezas com naturalidade. O fato de, no dia seguinte pela
manhã, eu ter de levar a velhinha até a estação de Ueno e de comprar-lhe
passagem também me parecia muito natural. Todas as coisas se haviam confundido,
para mim, numa coisa só.
A lâmpada do camarim foi
apagada. O cheiro de peixe vivo e de maresia se fez mais forte. No escuro,
aquecendo-me ao calor do meu companheiro de viagem, deixei que as lágrimas
corressem livremente. Minha cabeça se transformara em água límpida, a gotejar, a
gotejar, e era doce o gosto de nada restar depois da última gota.
Congratulações pelo blog. Excelente achado.
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