John Steinbeck (1902-1968) vencedor do Premio Nobel em
1962 e um dos maiores escritores norte americanos de todos os tempos. Escreveu dezesseis
romances, entre eles o Vinhas da Ira, um dos maiores clássicos da literatura
mundial, mas escreve poucos contos. Seu livro de contos mais conhecido é o Red
Pony onde foi publicado "O Chefe do Povo".
O chefe do povo
John Steinbeck
No
sábado de tarde, Billy Buck, o vaqueiro, ajuntou com o ancinho os restos de
feno do celeiro e jogou-os do outro lado da cerca para algumas vacas
desinteressadas. Alto, lá no ar, bolas de nuvens corriam sopradas pelo vento de
março. Podiam ouvi-lo assobiando na barragem, mas no vale da fazenda não
ventava.
O
garoto, Jody, saiu de casa comendo um enorme pedaço de pão com manteiga. Viu
Billy acabando de juntar o resto do feno. Dirigiu-se para ele, arrastando na
poeira os sapatos, de uma maneira que sabia que escangalhava qualquer sola. Uma
revoada de pombos levantou-se do cipreste, ao passar Jody; descreveu um círculo
no ar e voltou para a árvore outra vez. Um gato tigrado ainda pequeno, saltou
do teto do alojamento, disparou para a estrada, rodopiou e voltou de novo
correndo. Jody apanhou uma pedra para ajudá-lo na brincadeira mas chegou tarde;
antes que pudesse atirá-la já o gato entrara para baixo do alpendre. Jogou a
pedra no cipreste, causando nova revoada dos pombos brancos.
Chegando
onde estava Billy, encostou-se na cerca, “Você acha que já esta acabando?” perguntou.
O
homem largou o trabalho, espetou o ancinho no chão e tirando o chapéu, alisou
os cabelos com a mão. “O resto esta encharcado da umidade do chão,” disse. Pôs
de novo o chapéu e esfregou as mãos ásperas.
–
Deve ter muito camundongo — sugeriu Jody.
–
Esta cheio deles, — disse-lhe Billy. Tem camundongo demais, até.
–
Então, quando você acabar eu podia chamar os cachorros e fazer uma caçada.
–
Boa ideia — disse-lhe Billy Buck. Levantou uma porção de feno e jogou-o para o
ar. Apareceram logo três camundongos; deram um pinote e esconderam-se no resto
do feno.
Jody
suspirou satisfeito. Os camundongos, gordos e arrogantes estavam condenados.
Durante oito meses tinham vivido contentes, protegidos contra gatos, cachorros
e contra Jody, pela barreira do monte de feno. Tornavam-se convencidos desta
segurança, e engordavam e procriavam. Agora chegara o dia do desastre; não
sobreviveriam nem mais um dia.
Billy
olhou para o topo das colinas que cercavam a fazenda. “E melhor você pedir permissão
a seu pai, antes de começar.”
–
Onde e que ele esta?
–
Ele foi até a fazenda da barreira, mas já deve estar de volta.
Jody
encostou-se na cerca. “Acho que ele não se importaria.”
Billy
voltou ao seu trabalho depois de admoestar Jody, “De qualquer modo, e melhor pedir-lhe.
Sabe como ele é.”
Jody
bem sabia. Seu pai, Carl Tiflin, fazia questão de que lhe pedissem licença para
tudo o que se fazia na fazenda, fosse importante ou não. Jody deixou-se cair
até ficar sentado no chão. Olhou para as bolas de nuvem sopradas pelo vento. “Será
que vai chover, Billy?
–
Pode ser. O vento esta na direção, mas está com pouca força.
– Tomara
que só chova depois que eu matar essas porcarias desses ratos. Olhou por cima
dos ombros para ver se Billy reparara no palavreado de homem. Billy continuou a
trabalhar sem comentários.
Jody
virou-se para olhar o caminho, do lado do morro, que levava ao resto do mundo.
A colina estava coberta de capim cheiroso e flores silvestres apareciam daqui e
dali. No meio do morro o Grandalhão cavava um buraco de esquilo. Cavava a terra
jogando poeira para todos os lados. Sua seriedade era tamanha que na certa não
sabia que cachorro algum jamais caçara esquilos, cavoucando no chão.
Enquanto
Jody o espiava, o cachorro empinou as orelhas deixando o buraco em paz,
retezou-se, olhando para o lugar onde saía a estrada. Jody olhou para lá também.
Por um instante Carl Tiflin montado a cavalo parou no alto do morro. Depois começou
a descer em direção da casa. Trazia na mão uma coisa branca.
O
garoto levantou-se. “Ele trás uma carta,” gritou. Correu para casa pois com
certeza a carta seria lida em voz alta e ele queria estar presente. Chegou na
frente de seu pai e entrou. Ouviu o ranger da sela quando Carl desmontou e
ouviu-o chicotear o cavalo em direção do estábulo, onde Billy o desarrearia e
soltaria no pasto.
Jody
correu para a cozinha. “Chegou uma carta!” gritou.
Sua
mãe levantou a cabeça da cuia de ervilhas. “Quem recebeu?”
–
Papai. Eu a vi em sua mão.
Carl
entrou na cozinha e a mãe de Jody perguntou-lhe, “De quem era a carta, Carl?”
Ele
amarrou a cara. “Como é que você sabe que há uma carta?” Ela indicou Jody com a
cabeça. “Jody me disse.”
Jody
ficou encabulado.
Seu
pai olhou-o com má vontade. “Ele está ficando muito saliente. Sempre a se meter
no que não lhe diz respeito.”
A
Sra. Tiflin defendeu-o. “É porque ele não tem nada para fazer. Mas o que diz a
carta?”
Carl
ainda estava aborrecido com Jody. “Eu lhe arranjarei trabalho, se o caso é
esse.” Estendeu um envelope fechado. “Deve ser de seu pai.”
A
Sra. Tiflin tirou um grampo da cabeça e abriu a carta. Apertou os lábios com concentração.
Jody via seus olhos correrem acompanhando as palavras. “Ele diz — explicou —
que vem passar uns dias aqui. Vai chegar no sábado. Mas hoje é sábado! A carta
chegou atrasada.” Olhou o carimbo. “Foi posta no correio anteontem. Deveria ter
chegado ontem.” Olhou interrogativamente para o marido, e seu rosto tomou um ar
zangado. “Por que é que você esta me olhando assim? Afinal não é sempre que ele
vem cá.”
Carl
desviou o olhar. Ele era quase sempre severo com ela, mas nas raras ocasiões em
que ela se zangava, não sabia contê-la.
“Que
é que você tem?” perguntou-lhe ela, de novo.
Respondeu
querendo desculpar-se, num tom que o próprio Jody teria empregado. “É que ele
fala e fala,” explicou sem jeito.
–
E dai? Você também não fala?
–
Claro que sim. Mas é que ele só fala de uma coisa.
–
Índios! — gritou Jody alvoroçado. Índios e travessias nas Planícies! Carl
virou-se furioso para ele. “De o fora, seu metido! Vamos, fora!”
Jody
saiu tristemente pelos fundos, fechando com cuidado a porta. De baixo da janela
da cozinha, seus olhos envergonhados, deram com uma pedra branca, e de um
formato tão curioso, que ele abaixou-se para estudá-la.
As
vozes, da cozinha, chegavam-lhe claramente aos ouvidos. “Jody disse certo,”
ouviu seu pai falar. “Só índios e a travessia da planície. Quantas e quantas
vezes já ouvi aquela história de como os cavalos fugiram. Ele conta sempre as
mesmas coisas com as mesmas palavras exatamente.”
Quando
a Sra. Tiflin respondeu sua voz estava inteiramente diferente, quase doce. E
Jody imaginava-lhe o rosto mudando também para acompanhar a voz. Ela explicou
mansamente: “Olhe, Carl, você devia pensar nisto de outro modo. Aquilo foi a
coisa maior na vida de papai. Ele teve um carro e atravessou com ele o
continente. Quando acabou, ele ficou sem nada. Foi uma coisa importante que ele
fez, mas não durou quase nada!” E ela continuou: “É como se ele tivesse nascido
para fazer aquilo e depois de o ter feito só lhe resta lembrar e falar sempre
sobre seu feito. Se houvesse mais terras no oeste para ele continuar a andar,
ele não teria parado. Mas havia o mar. Ele vive bem lá perto do mar, onde teve
que parar.”
Ela
absorvera Carl com sua conversa suave.
—
Eu já o vi — concedeu-lhe Carl. Ele fica horas olhando para o mar. — Sua voz
endureceu-se um pouco. — E depois vai para o clube e conta como os índios
fugiram com os cavalos.
Ela
tentou recapturá-lo. “Bem, mas se essa era a vida para ele. Você bem poderia
ter um pouco mais de paciência com ele.”
Carl
voltou-se impaciente. “Se a coisa se tornar insuportável eu vou para o
alojamento e fico lá com o Billy,’” disse irritado. Saiu de casa e bateu com
força a porta do alpendre.
Jody
correu a fazer suas obrigações. Jogou a ração para as galinhas sem correr atrás
de nenhuma delas. Procurou ovos nos ninhos. Arrumou a lenha na cozinha de tal
jeito que as duas braçadas que levou, encheram totalmente a caixa.
Sua
mãe acabara de catar as ervilhas. Acendera o fogo e agora limpava a tampa do
forno com uma pena de peru. Jody olhou-a de lado, vendo se lhe guardava algum
rancor.
–
Ele vem mesmo hoje? — perguntou-lhe.
–
É o que diz na carta.
–
Então vou caminhar ao encontro dele, na estrada.
–
Seria uma boa coisa, — disse-lhe a Sra. Tiflin batendo com a tampa do forno.
Ele gostara de que alguém o espere.
–
Então é o que vou fazer.
No
quintal, Jody assobiou pelos cachorros. “Vamos subir o morro,” ordenou-lhes. Os
dois cachorros dispararam na frente, abanando a cauda. Dos lados do caminho a
selva crescia, cheia de brotos tenros. Jody cortou uns ramos e esfregou-os nas mãos
até o ar ficar saturado do perfume agreste. Os cães deram um pinote e saíram
correndo pelo mato a dentro atrás de um coelho. Jody não os viu mais, pois não
tendo conseguido pegar o coelho, voltaram para casa.
Jody
continuou subindo até chegar a barragem. O vento soprou-lhe com força os
cabelos e inchou-lhe a camisa. Olhou para baixo, os vales e colinas e mais ao
longe o Vale de Salinas. Podia ver as casas brancas de Salinas, e o sol
brilhando ao bater nas vidraças. Bem abaixo dele, numa árvore, havia uma congregação
de corvos. Falavam todos ao mesmo tempo, num barulho infernal.
Jody
seguiu então com os olhos o caminho, perdeu-o atrás de uma colina, e achou-o de
novo mais adiante. Vinha vindo lá bem longe, uma charrete puxada por um cavalo
baio. Desapareceu por trás do morro. Jody sentou-se no chão e ficou olhando o
lugar por onde a charrete reapareceria. O vento cantava nos cumes dos morros e
as bolas de nuvens corriam para leste.
A
charrete apareceu de novo e parou. Um homem vestido de preto, desceu do assento
e foi até a cabeça do cavalo. Apesar de estar de tão longe, Jody soube que ele
desamarrara as rédeas, porque o cavalo deixou cair a cabeça. Continuaram a
andar, lentamente, o homem ao lado do cavalo. Jody deu um grito de alegria e
desceu correndo ao encontro deles. Os esquilos fugiram espavoridos e desapareceram
no mato.
Jody
procurava a cada passo pular em cima de sua sombra. Tropeçou numa pedra e caiu.
Fez correndo uma curva e deu de frente com o avô e a charrete. O menino parou
de correr e aproximou-se lentamente.
O
cavalo subia o morro aos tropeções, e o velho ia andando ao lado dele. O sol,
por trás deles, fazia-lhes as sombras agigantarem-se. O avô usava um terno
preto, polainas de couro e gravata preta num colarinho duro. Carregava na mão o
chapéu preto, desabado. A barba estava cortada muito curta e as sobrancelhas
cerradas caiam-lhe por sobre os olhos como bigodes. Os olhos eram azuis e
alegres. Seu rosto e seu corpo possuíam uma dignidade de granito e parecia impossível
que pudesse mover-se.
Seus
passos eram lentos e determinados. Depois de feito, passo algum poderia ser
refeito; depois de começado um caminho, não haveria voltas possíveis, nem
aumento ou diminuição de velocidade.
Quando
Jody apareceu na virada do caminho, o avô acenou-lhe vagarosamente com o chapéu,
e chamou: — “Jody! Veio encontrar-se comigo, não veio?”
Jody
acertou o passo com o do avô, entesou o corpo e arrastou um pouco com os
calcanhares. “Sim, senhor. Nós só recebemos sua carta hoje.
–
Deveria certamente ter chegado ontem. Como estão todos?
–
Estão todos bem. — Hesitou com timidez. — O senhor gostaria de caçar ratos
comigo, amanhã?
–
Caçar ratos, Jody? — Ele riu-se. — Será que o pessoal desta nova geração deu
para isso agora? Eles não são muito fortes, este pessoal de agora, mas mesmo
assim não os imaginava a caçar ratos.
–
Não senhor. É só por brincadeira. O feno acabou. Eu vou botar os cachorros para
pegar os ratos. O senhor pode espiar e se quiser bater no feno para assustá-los.
Os
olhos alegres voltaram-se para ele. “Isto sim. Vocês não o comem, então. Ainda não
chegaram a tanto.”
Jody
explicou-lhe: “São os cachorros que os comem. Não é nada como matar índios, eu
imagino.”
–
Não, não é. Mas também depois, quando os soldados começaram a caçar os índios,
queimando- lhes as tendas e matando as crianças, não foi muito diferente de sua
caçada aos camundongos.
Chegaram
ao alto da barragem e começaram a descer para o vale da fazenda. O sol deixou
de lhes queimar as costas. “Você cresceu, — disse o avô. — Quase um palmo, eu
calculo.”
–
Mais, — orgulhou-se Jody. — O senhor vai ver pelas marcas na porta.
Jody
continuou em silêncio por um certo tempo. “Nós somos capazes de matar um
porco,” sugeriu por fim.
–
Oh, não! Eu não os deixaria fazer isto. Ainda não está na época. Você está é
querendo me agradar.
–
O senhor conheceu Riley, o barão?
–
Sim. Lembro-me bem do Riley.
–
Pois é, ele roeu um buraco no monte de feno e desabou tudo por cima dele e ele
ficou esmigalhado.
–
Os porcos fazem disto, quando podem, — disse-lhe o avô.
–
Mas Riley era muito manso. Ele até deixava que eu o montasse.
Ouviram
o bater de uma porta, bem abaixo deles, e viram a mãe de Jody acenando-lhes com
o avental. E viram Carl Tiflin saindo do estábulo e encaminhando-se para casa a
fim de recebê-los.
O
sol desaparecera dos morros. A fumaça azulada saindo da chaminé da casa,
pairava no ar em camadas lisas. As bolas de nuvens, largadas pelo vento,
penduravam-se no céu.
Billy
Buck saiu do alojamento e derramou no terreiro uma bacia de água de sabão. Ele
se barbeara no meio da semana para esperar o avô. Billy reverenciava o velho e
este dizia que Billy era um dos poucos homens da nova geração que não se tinha
tornado maricas. Apesar de Billy ser de meia- idade, o avo o considerava um
menino. Billy dirigia-se também para a casa.
Quando
Jody chegou com o avô, os três os esperavam em frente ao alpendre.
Carl
disse: “Como vai o senhor. Estávamos a esperá-lo.”
A
Sra. Tiflin beijou-o no lado da barba, e ele bateu-lhe no ombro. Billy
apertou-lhe a mão, sorrindo por baixo do bigode. “Eu tomo conta de seu cavalo,”
disse-lhe.
Saiu,
puxando a charrete.
O
avô olhou-o afastar-se e disse, como já o dissera uma centena de vezes antes:
–
É um bom rapaz. Eu conheci seu pai, o velho “Rabo-de-mula” Buck. Não sei porque
o chamavam de Rabo-de-mula, só por ele ser tropeiro.
A
Sra. Tiflin voltou-se dirigindo-se para a casa. “Quanto tempo vai se demorar? O
senhor não disse na carta.”
–
Bem, eu não sei. Talvez umas duas semanas.
Em
pouco tempo estavam todos sentados em torno da mesa de oleado branco, jantando.
O lampião com refletor de estanho fora pendurado no teto. As mariposas batiam
no lado de fora das vidraças.
O
avô cortou o bife em pedaços pequenos e mastigou-os vagarosamente. “Estava com
fome,” disse. “A viagem abriu-me o apetite. E como quando pioneirávamos. Todos ficávamos
tão famintos que mal podíamos esperar que a carne cozinhasse. Poderia comer
quilos e mais quilos de carne de búfalo, então.”
–
É de viajar. Meu pai era tropeiro do governo. Eu o ajudava quando era menino.
Nós dois sozinhos poderíamos comer um veado inteiro. — Disse Billy.
–
Eu conheci seu pai, Billy — disse o avô — Um bravo homem. Tinha o apelido de
“Rabo-de-mula.” Não sei por que, só por ele ser tropeiro.
–
Era por isso, — disse-lhe Billy. — Por ele ser tropeiro.
O
avô descansou o garfo e a faca e olhou em volta de si. “Lembro-me de uma vez
que a carne acabou. Sua voz tomou um tom recitativo. “Não havia nem búfalos,
nem antílopes, nem mesmo coelhos. O chefe tinha que estar sempre vigilante. Eu
era o chefe e me mantinha atento. Sabem por que? Pois quando o pessoal ficava
faminto, queria logo abater os bois de carro. Podem acreditar numa coisa
dessas? Ouvi contar de gente que comeu toda a junta de bois. Começavam pelos do
meio e chegavam a comer os próprios bois da guia. O chefe da turma tinha que
controlá-los para não fazerem assim.”
Uma
enorme mariposa conseguira entrar na sala e rodopiava em volta da lâmpada de
querosene. Billy levantou-se tentando prendê-la nas mãos. Carl atingiu-a e
amassou-a com uma só pancada. Foi até a janela e jogou-a fora.
–
Como eu ia dizendo, — recomeçou a dizer o avô, mas Carl o interrompeu. — É
melhor o senhor se servir de carne. Nós já estamos prontos para a sobremesa.
Jody
viu os olhos de sua mãe lampejarem de raiva. O avô pegou a faca e o garfo.
–
De fato eu estou com um bocado de fome, — disse. Depois então eu acabo de
contar.
Depois
que o jantar terminou e que a família se reuniu em torno da lareira, Jody
esperou pela história do avô. Viu-o inclinar a cabeça; os olhos perderam a expressão
severa e tornaram-se sonhadores; os dedos compridos e magros enlaçaram os joelhos.
“Não lembro,” começou ele “se alguma vez Ilhes contei como os índios roubaram
trinta e cinco dos nossos cavalos.”
–
Creio que já nos contou isto, — interrompeu-o Carl. — Não foi pouco antes de
entrarem no território dos Tahoes?
O
avô olhou para o genro. “É isto mesmo. Então eu já lhes contei esta história.”
–
Muitas e muitas vezes, — continuou Carl com crueldade. Mas sentindo sobre si o
olhar zangado da mulher, emendou-se. — Claro que gostaríamos de ouvi-la de
novo.
O
avô voltou-se para o fogo. Seus dedos cruzavam-se e descruzavam-se. Jody
compreendia como ele devia sentir-se, vazio e só. Ele próprio não havia sido
chamado de saliente, nesta mesma manhã? Jody cheio de heroísmo resolveu
intervir, mesmo que o chamassem de saliente outra vez. “Conte-nos sobre os índios,”
pediu baixo.
Os
olhos do avô tornaram-se severos. “Os meninos estão sempre dispostos a ouvir
histórias de Índios. Foi um trabalho para homens, mas só os meninos e que
querem ouvir sobre ele. Bem, deixe-me lembrar. Eu já lhes contei porque que eu
queria que em todos os carros se levasse uma grande chapa de ferro?”
Ninguém
respondeu. Jody então disse-lhe: “Não, senhor.”
–
Bem, quando os índios atacavam, nós sempre púnhamos os carros em circulo e atirávamos
por entre as rodas. Eu imaginei então as chapas de ferro com os orifícios para
os canos das espingardas, de modo que os homens que atiravam ficassem
protegidos.
Mas
como ninguém fizera ainda assim e como ficasse muito caro, o pessoal se recusou
a levar as chapas de ferro. Como se arrependeram mais tarde!
Jody
olhou para a mãe e viu por sua expressão que ela não estava ouvindo. Carl mexia
num calo do dedão e Billy Buck acompanhava a subida de uma aranha na parede.
O voz do avô adquirira novamente o tom narrativo.
Jody sabia com antecedência as palavras que ele empregaria. A história
continuou lenta, depois tomou violência para o ataque, adquiriu tristeza para
contar dos feridos e dos enterros nas grandes planícies. Jody nao despregava os
olhos do avô Os severos olhos azuis estavam vagos, e ele não parecia estar
muito interessado no que contava.
Depois
que a história terminou, fez-se uma ligeira pausa. Billy Buck levantou-se,
suspendeu as calças e disse: “Creio que vou me deitar.” Virou-se então para o
avô.
–
Tenho lá no alojamento um velho soquete de pólvora que gostaria de mostrar-lhe.
O avo meneou a cabeça. “Você já me mostrou. Faz-me lembrar de um que eu tinha
quando comandei o grupo.” Billy esperou atentamente até que ele acabasse a
pequena história, e depois despediu-se, “Boa-noite,” e saiu para o quintal.
Carl
Tiflin procurou então mudar de assunto. “Como está o terreno até Monterrey?
Ouvi dizer que está tudo seco.”
–
Esta seco. — disse o avô. — Não há nem um pingo d’água na Laguna Seca. Mas
mesmo assim ainda esta longe de ser como em 87. O pais todo virou poeira, e em
61 eu acho que até os cachorros-do-mato morreram de fome. Este ano choveu pouco,
mas choveu.
–
É, mas cedo demais. Bem que poderia chover um pouco agora. — Só então reparou
em Jody, melhor que você vá dormir.
Jody
levantou-se obediente. “O senhor deixa que eu cace os camundongos do celeiro?”
Camundongos?
Claro! Pode matá-los todos.”
Jody
trocou um olhar de cumplicidade com o avó. “Vou matá-los todos amanhã,”
prometeu
Deitado
em sua cama Jody ficou pensando naquele mundo que se acabara para sempre.
Mundo
de índios e búfalos ferozes. Desejou ter podido viver naquele tempo heroico,
mas ele sabia não ter fibra de herói. Ninguém agora, salvo talvez Billy Buck,
tinha fibra para fazer daquelas coisas que o avô contava. Uma raça de gigantes
vivera então, homens destemidos, homens de uma resistência desconhecida hoje.
Jody pensou nas planícies brancas e nos carros percorrendo-as como centopeias.
E o avô montado num enorme cavalo branco dando ordens àquela gente. Os grandes
fantasmas percorreram-lhe o cérebro e sumiram-se.
Voltou,
por um instante, a fazenda. Ouviu um dos cachorros coçando as pulgas e batendo
com o cotovelo no chão a cada movimento. O vento soprou de novo e o cipreste
gemeu, Jody adormeceu.
Levantou-se
meia hora antes do triangulo soar. Sua mãe estava na cozinha acendendo o fogão.
“Você acordou cedo hoje,” disse-lhe. “Aonde e que vai?”
–
La fora apanhar um bom cacete. Vamos matar os camundongos.
–
Vamos? Quem mais vai?
–
Ora, eu e vovô.
–
Ah, então você arranjou companhia, não é? Assim se houver pito, fica dividido.
–
Eu volto já, — disse-lhe Jody. — Quero só arranjar um bom cacete, antes do café.
Fechou
a porta de tela atrás de si e saiu para a manhã fresca e azul. Os passarinhos
faziam algazarra na madrugada e os gatos da casa desciam dos morros como largas
cobras. Tinham ido caçar esquilos no escuro, e apesar de empanzinados, sentaram-se
na porta da cozinha miando por leite. O Grandalhão e o Destruidor, cheiravam o chão
nas beiras do mato com toda a concentração, mas quando Jody assobiou, abanaram
logo os rabos e levantaram as cabeças. Atiraram-se para ele, abrindo os beiços
num sorriso. Jody afagou-lhes as cabeças, e dirigiu-se para o monte de madeira.
Escolheu uma ponta de um cabo de vassoura e um pedaço quadrado de pau. Tirou do
bolso um cordão de sapato e amarrou-os um no outro, sem apertar, para fazer um
relho. Rodou no ar a arma para experimentá-la, enquanto os cachorros se
encolhiam desconfiados, ganindo apreensivos.
Jody
pôs-se a andar em direção do velho celeiro, passando por frente da casa, para
dar uma olhadela no local da futura carnificina, mas Billy o chamou da porta da
cozinha onde se sentara. “É melhor você esperar aqui, já está quase na hora do café.”
Jody
desistiu da caminhada e dirigiu-se para a casa. Descansou o relho na soleira da
porta. “Isto é para espantar os ratos. Aposto como eles estão gordíssimos,”
disse ele. “Aposto como eles nem imaginam o que os espera.”
–
Não, nem você tão pouco, — comentou Billy filosoficamente. — nem eu, nem ninguém.
Jody
ficou varado por este pensamento. Sabia ser verdadeiro. Sua imaginação começou
a trabalhar. Mas sua mãe tocou o triangulo, e todos os pensamentos se
dissiparam.
O
avô não estava na mesa quando eles se sentaram. Billy perguntou, “Ele está bem?
Será que ficou doente?”
Ele
leva muito tempo para se arrumar, — disse a Sra. Tiflin. — Penteia a barba,
escova os sapatos e a roupa.
Carl
salpicou açúcar no mingau. “Um homem que guiou carroças pelas planícies tem de
ter muito cuidado com sua aparência.”
A
Sra. Tiflin voltou-se para ele. “Por favor, Carl! Não recomece!” Havia mais ameaça
do que um pedido em seu tom de voz. E a ameaça irritou a Carl.
–
Pois é isso mesmo. Quantas vezes será que terei que ouvir aquela história das
chapas de ferro e dos trinta e cinco cavalos roubados? Esse tempo já passou. Será
que ele não pode esquecê-lo?” Enraiveceu-se ao falar e sua voz aumentou de
volume.
–
Por que tem de contar essas historias sempre e sempre? Ele atravessou as planícies.
Muito bem! Agora acabou-se. Ninguém quer ouvir todo o dia a mesma história.
A
porta da cozinha fechou-se devagar. Os que estavam a mesa imobilizaram-se. Carl
deixou a colher na mesa e coçou o queixo.
Abriu-se
outra vez a porta da cozinha e o avô apareceu. Sorria sem vontade e seus olhos
estavam apertados. “Bom dia,” disse, e sentou-se olhando para o prato de
mingau.
Carl
não pode deixar que ficasse tudo assim.” O senhor... o senhor ouviu o que eu
disse?”
O
avô inclinou a cabeça.
–
Não sei o que me possuiu. O senhor não acredite em nada daquilo. Eu estava
apenas fazendo graça.
Jody
olhou envergonhado para a mãe e viu que ela olhava Carl, a respiração presa.
Era uma coisa horrível o que ele estava fazendo. Ele se acabava falando desta
maneira. Para ele era uma coisa incrível ter que desculpar-se, envergonhado era
muito pior. O avo olhou-o de lado. “Estou querendo me orientar,” disse com
delicadeza. “Não estou me zangando. Não me importo com o que você disse, mas
pode ser que seja verdade, e ai sim, eu me importaria.”
–
Não era verdade. Eu não me sinto bem hoje. Sinto muito ter dito aquilo.
–
Não se desculpe, Carl. Um velho, as vezes, não vê as coisas como elas são.
Talvez que você tenha razão. A travessia já foi feita. Devia mesmo ser
esquecida.
Carl
levantou-se da mesa. “Já comi bastante. Vou trabalhar. Pode demorar-se a
vontade, Billy!” Saiu depressa da sala. Billy engoliu o resto da comida e
seguiu-o. Mas Jody não se desgrudou de sua cadeira.
–
O senhor não vai mais contar historias? — perguntou.
–
Claro que as contarei, mas só quando tiver certeza de que as pessoas querem
ouvi-las.
–
Eu gosto de ouvi-las.
–
É logico que você goste, mas você é ainda um garoto. Foi um trabalho para
homens, mas só os meninos querem ouvir sobre ele.
Jody
levantou-se. “Vou esperar lá fora pelo senhor. Arranjei um bom cacete para os
camundongos.”
Esperou
na porteira até o velho aparecer no alpendre. “Vamos caçar os camundongos
agora!” gritou-lhe Jody.
–
Acho que vou sentar-me um pouco ao sol. Jody. Va você matar os camundongos.
–
O senhor querendo, pode usar o meu cacete.
–
Não, vou ficar sentado aqui, um pouco.
Jody
virou-se desconsolado e foi andando para o celeiro. Tentou entusiasmar-se
pensando nos gordos camundongos. Bateu no chão com o relho. Os cachorros
chamavam-no latindo e correndo, mas ele não sentia vontade de acompanhá-los.
Podia ver, lá no alpendre, o avô, parecendo pequeno, magro e triste.
Jody
desistiu da caçada, e foi sentar-se, nos degraus, aos pés do velho.
–
Já voltou? Matou os ratos?
–
Não senhor. Mato-os outro dia.
As
moscas esvoaçavam rente ao chão e as formigas corriam pelos degraus. O perfume
forte da selva descia dos morros. O sol esquentava a madeira do alpendre.
Jody
não percebeu quando o avô começou a falar. “Eu não deveria ficar aqui,
sentindo-me assim. “Examinou com atenção as mãos fortes. “Sinto como se
atravessar as planícies não tivesse valor algum.” Seus olhos procuraram os
morros e pararam num falcão, sentado imóvel num tronco morto. “Eu conto
historias de antigamente. Mas não é pela história. Eu só sei e o que tenho
vontade que as pessoas sintam ao ouvi-las.
Não
eram os índios, nem a aventura, que era importante; não era nem mesmo chegar ao
fim da jornada. Era todo um povo, transformado num enorme animal rastejante. E
eu era o chefe. Era pioneirar e pioneirar. Cada homem queria qualquer coisa
para si, mas o enorme animal que eles todos formavam, queria apenas pioneirar.
Eu era o chefe, mas se eu não estivesse lá, outro chefiaria. A coisa tinha que
ter um cabeça.
Em
baixo dos arbustos as sombras eram negras mesmo dia claro. Quando por fim vimos
as montanhas, todos gritaram ao mesmo tempo. Mas não foi chegar aqui, o
importante, e sim, o movimento pioneiro.
Nos
carregamos a vida até aqui, e a depositamos, como fazem as formigas com seus
ovos. E eu fui o chefe. O pioneirismo foi grande como Deus, e os passos lentos,
foram se acumulando e acumulando, até que o continente foi atravessado.
–
Chegamos então ao mar e estava acabado. — Parou e esfregou os olhos até que ficaram
vermelhos. — Isto é o que eu deveria contar em vez de histórias.
Quando
Jody falou o avô estremeceu e abaixou os olhos para ele. “Talvez que um dia eu
possa chefiar o povo,” disse.
O
velho sorriu. “Não há mais lugar para se ir. O mar é o limite. Há uma porção de
velhos lá nas beiras do mar, odiando-o porque obrigou-os a parar."
–
Posso continuar em barcos.
–
Não há lugar para se ir. Está tudo tomado. Mas não é isto o pior. O pioneirismo
morreu. Não é mais uma sede. Seu pai tem razão, está tudo acabado. Entrelaçou
os dedos nos joelhos e ficou a olhá-los.
Jody
sentiu-se muito triste. “Se o senhor quiser eu lhe faço uma limonada.”
O
avô ia recusar, mas vendo a cara de Jody, disse-lhe: “Isto seria ótimo. E,
seria mesmo muito bom beber um copo de limonada.”
Jody
correu para a cozinha, onde sua mãe acabava de lavar os pratos do café. “Posso
apanhar um limão para fazer uma limonada para o vovô?”
A
mãe remedou-o: — “E um outro para fazer uma limonada para você.”
–
Não senhora, eu não vou querer.
–
Jody! Você está doente! — Mas parou bruscamente. — Tire um limão do armário, —
disse com meiguice. — Pronto, eu apanho o espremedor para você.
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