Joseph Conrad (1857-1924)
nasceu em Berdychiv (que na época de seu nascimento pertencia a Polônia e hoje
é parte da Ucrânia), obteve a cidadania britânica aos 29 anos e tornou-se um dos maiores escritores de língua inglesa. Ele se notabilizou por seus romances e
Juventude, aqui destacado, apesar de ser menos extenso que seus outros
trabalhos traz toda a energia e o amor a aventura que notabilizaram sua
obra.
Juventude
Joseph
Conrad
Só poderia mesmo ter acontecido na Inglaterra,
onde homens e mar se confundem, por assim dizer — o mar entrando na vida da
maioria dos homens e os homens sabendo alguma coisa ou quase tudo sobre o mar,
seja como lazer, como viagem ou como o pão nosso de cada dia.
Estávamos sentados em volta de uma mesa de mogno
que refletia a garrafa, os copos de vinho e os nossos rostos, na medida em que
nos apoiávamos nos cotovelos. Um diretor de empresa, um guarda-livros, um
advogado, Marlow e eu. O diretor fora grumete do Conway, o guarda-livros
servira quatro anos no mar e o advogado — um Tory educado mas endurecido, homem
da Igreja Alta, companheiro excelente, a honra em pessoa — fora primeiro
oficial da P&O nos velhos tempos em que os navios dos Correios e Telégrafos
eram aparelhados pelo menos com dois mastros, e costumavam andar pelo Mar da
China, sob monção favorável, com as velas de cutelo e as varreduras enfunadas.
Nós todos começamos a vida na Marinha Mercante. E entre nós cinco, eram fortes
os laços marítimos e a camaradagem de tripulação que nenhum entusiasmo de yachting,
dos cruzeiros e outras coisas do gênero, pode fomentar porque é só prazer de
vida, enquanto o outro e a própria vida.
Marlow (acho, pelo menos, que assim é que se
escreve seu nome) contava a história, ou antes a crônica, de uma viagem:
“Sim, conheço alguma coisa dos mares do Oriente,
mas o que me lembro melhor é a primeira viagem por aquelas bandas. Vocês,
companheiros, sabem que há viagens : que parecem destinadas a ilustrar uma vida
e podem ficar como símbolo de
uma vida. A gente luta, trabalha, sua, quase se mata, às vezes se mata mesmo,
tentando realizar determinada coisa— e não consegue. Não que a culpa seja nossa.
Simplesmente não se pode fazer nada, de grande ou de pequeno — nada deste mundo
— nem mesmo casar com uma solteirona ou levar a miséria de umas 600 toneladas de
carvão a seu porto de destino.
Foi, mesmo assim, um caso memorável. Era minha
primeira viagem ao Oriente e a primeira como segundo-piloto; era também o
primeiro comando do capitão. Temos de admitir que já era tempo. Ele tinha 60
anos; um homenzinho de costas largas e não muito aprumadas, ombros caídos e uma
perna menor do que a outra, com a aparência retorcida e estranha que
encontramos muitas vezes no pessoal que trabalha no campo. Tinha a cara de um
quebra-nozes — queixo e nariz tentando se encontrar por cima da boca sumida —
que era emoldurada pelos cabelos soltos, grisalhos da cor de ferro e encaracolados,
parecendo algodão salpicado de pó de carvão. E tinha olhos azuis naquele rosto
velho, autênticos olhos de garoto, com a candura que certos homens bastante
comuns conservam até o fim de seus dias, graças a um raro dom de simplicidade
de coração e retidão de alma. O que o levou a me aceitar é até hoje um ponto de
interrogação. Eu vinha de um famoso clipper australiano, onde trabalhara
como terceiro-piloto e, ao que parece, ele alimentava um certo preconceito
contra este tipo e veleiro, aristocrático e de grande tonelagem. Ele me disse:
‘Sabe de uma coisa, neste navio você vai ter de trabalhar’. Respondi-lhe que havia
trabalhado em todos os navios em que embarcara. ‘Sim, mas este é diferente e vocês
que vem de grandes navios. . . Bem, acho que você serve. Apresente-se amanha’.
Apresentei-me no dia seguinte. Foi ha 22 anos;
eu tinha 20 anos. Como o tempo passa! Foi um dos dias mais felizes da minha
vida. Imaginem! Pela primeira vez, segundo-piloto. . . um oficial realmente responsável!
Não trocaria meu novo lugar nem por uma fortuna. O imediato me observou de cima
a baixo, com todo cuidado. Era também um velho marujo, mas de outro tipo. Tinha
um nariz romano, uma longa barba cor de neve e se chamava Mahon que insistia
para que pronunciássemos “Mann”. Era bem relacionado. Mas havia alguma coisa de
errado com sua sorte pois nunca foi em frente.
Quanto ao capitão, passara anos em navios da cabotagem,
depois no Mediterrâneo, finalmente no comercio das Índias Ocidentais. Nunca
dobrara o Cabo da Boa Esperança ou o Horn. Poderia ter escrito alguma coisa mas
não se dava ao trabalho. Claro que ambos eram bons marinheiros e entre esses
dois velhos marujos eu me sentia como um garoto entre dois avós.
Também o navio era velho. Chamava-se Judea.
Nome esquisito, não acham? Pertencia a um homem chamado Wilmer. . . Wilcox,
qualquer coisa assim, pois há vinte anos ou mais entrou em falência e morreu e
seu nome não importa. O navio havia ficado muito tempo no ancoradouro de
Shadwell. Imaginem o estado em que se encontrava! Era só ferrugem, poeira, imundície
— fuligem nos mastros, lixo no convés. Para mim era como sair de um palácio e
entrar numa cabana em ruinas. Carregava cerca de 400 toneladas, com um poleame
primitivo, trincos de madeira nas portas, sem nenhuma ponta de metal e uma
grande popa quadrada. Na grinalda havia, sob o nome em grandes letras, umas
inscrições semiapagadas e uma espécie de escudo com a divisa “Fazer ou Morrer"
na parte de baixo. Lembro que aquilo despertou imediatamente minha fantasia.
Havia um toque de romantismo naquilo. qualquer coisa que me fez amar o velho
navio. . . alguma coisa que apelava para minha juventude!
Saímos de Londres com lastro — lastro de areia —
para apanhar uma carga de carvão num porto do Norte e rumar para Bangkok.
Bangkok! Cheguei a me arrepiar. Eu tinha seis anos de mar e conhecia apenas
Melbourne e Sidney, ótimos lugares, cidades encantadoras a sua maneira. . .
mas Bangkok!
Para sair do Tâmisa largamos à vela, com um prático
do Mar do Norte a bordo. O seu nome era Jeremyn e ele passou o dia todo na cozinha
secando seu lenço diante do fogão. Aparentemente nunca dormia. Era um homem
triste, com uma lagrima eterna a brilhar na ponta do nariz, um homem que
tivera, tinha ou esperava vir a ter, problemas. . . que só podia ser feliz se
alguma coisa de ruim lhe acontecesse. Desconfiou da minha juventude, do meu
senso comum, da minha experiência de mar e fazia questão de demonstrar esta desconfiança
de todas as maneiras possíveis. Creio que tinha razão. Naquela época acho que
eu sabia muito pouco — e não sei muito mais hoje — mas até agora sinto ódio por
esse tal Jeremyn.
Foi preciso uma semana de trabalho até chegarmos
a Yarmouth Roads quando apanhamos um temporal pela frente... o famoso temporal
de outubro de 22 anos atrás. Era vento, trovoada, granizo, neve e um mar de
meter medo O navio estava leve e vocês podem imaginar como a coisa ficou feia
se eu lhes disser que a amurada arrebentou e o convés ficou inundado. Na
segunda noite o lastro escorregou para os lados da proa e por pouco não fomos
jogado pela ventania para qualquer lado
do Dogger Bank. Não havia outra coisa a fazer senão descer com as pás e tentar
aprumar o navio — e ali estávamos nós naquele imenso porão, sinistro como uma
caverna, os condutos de graxa arrebentados e vazando sobre as vigas, o temporal
a rugir lá em cima e o navio aos solavancos como um louco; lá estávamos nós,
Jeremyn, o capitão, toda aquela gente que mal se aguentava em cima das pernas,
todos empenhados num trabalho de coveiro, tentando atirar pazadas de areia
molhada contra o vento. A cada balanço do navio, podíamos ver, vagamente,
contra a luz frouxa, homens que caiam numa grande confusão de pás.
Impressionado com o fantástico da cena, um dos grumetes do navio (tínhamos
dois) chorava de cortar o coração. Podíamos ouvi-lo em algum lugar, por entre
as sombras.
No terceiro dia, o temporal amainou e logo
depois um rebocador do Norte nos socorria. Levamos, ao todo, dezesseis dias
para ir de Londres a Tyne! Quando entramos na doca já tínhamos perdido a nossa
vez de carregar e fomos levados para um ancoradouro onde permanecemos um mês. A
Sra. Beard (o nome do capitão era Beard) veio de Colchester visitar o velho.
Instalou-se a bordo. A tripulação eventual desembarcara e só ficaram no navio
apenas os oficiais, um grumete e o encarregado da despensa, um mulato que atendia
pelo nome de Abraham. A Sra. Beard era uma velha de rosto enrugado e avermelhado
como uma maça de inverno, mas com uma silhueta de garota. Viu-me um dia
pregando um botão e insistiu em consertar as minhas camisas. O que era bem
diferente das esposas de capitães que eu tinha visto a bordo dos veleiros
australianos. Quando lhe levei as camisas, ela disse: ‘E as meias? Tenho
certeza que precisam ser cerzidas; as coisas do John — do capitão Beard — já estão
em ordem. Gosto de ter alguma coisa para fazer.’ Abençoada velhinha! Remendou
meu uniforme enquanto eu lia pela primeira vez Sartor Resartus e Ride
to Khiva, de Burnaby. Naquela época, não entendi muito o primeiro, mas me
lembro que preferi o soldado ao filósofo, uma preferencia que se confirmou ao
longo de minha vida. Um era homem e o outro mais do que homem... ou menos. No
entanto, ambos estão mortos, a Sra. Beard está morta, e juventude, força, gênio,
ideias, conquistas, os corações simples... tudo acabou... Não importa.
Finalmente, carregamos o navio. Arrumamos uma
tripulação. Oito marinheiros experientes e dois grumetes. Zarpamos certa noite
em direção às bóias da entrada das docas, prontos para partir, já que eram boas
as perspectivas de iniciar a viagem no dia seguinte. A Sra. Beard deveria voltar
para casa num trem noturno. Depois de lançar as amarras do navio fomos ao chá.
Lanchamos em silencio — Mahon, o velho casal e eu. Fui o primeiro a terminar e
sai para fumar pois o meu camarote ficava num alojamento da cobertura, na popa.
A maré estava alta, soprava um vento fresco e chuviscava; as portas duplas das
docas permaneciam abertas e os carvoeiros a vapor entravam e saiam no escuro,
com suas luzes brilhando, um barulho grande de hélices, tinidos de ferragens e
muitas vozes que chegavam dos molhes. Eu olhava a procissão de faróis de proa
que subiam e de luzes verdes que desciam na noite quando, de repente, um clarão
vermelho desapareceu, surgiu de novo e permaneceu visível. A proa de um navio a
vapor surgiu bem próximo. Eu gritei para baixo: ‘Venham a tona, depressa!’ — e
depois escutei uma voz assustada dizendo ao longe, no escuro: ‘Pare o navio,
senhor.’ Uma campainha soou. Outra voz gritou, em tom de advertência: ‘Estamos
indo em cima desse barco, senhor.’ A resposta foi um ríspido ‘muito bem’, e em
seguida houve um choque violento – o vapor raspou a saliência da proa, contra o nosso cordame de vante.
Houve um momento de confusão, gritos e correrias. O vapor apitou. Depois alguém
falou: ‘Tudo certo senhor...’ A voz ríspida perguntou: ‘Tudo bem?’ Eu dei um
pulo para a frente a fim de ver o dano causado, e respondi: ‘Acho que sim’. A
voz ríspida disse: ‘Devagar com a ré.’ Uma campainha tocou. ‘Que vapor e
esse?’, perguntou Mahon. Nesse momento o vapor era apenas uma massa de sombra
para nós, manobrando a pouca distancia. De lá nos gritaram um nome — um nome de
mulher, Miranda, Melissa, qualquer coisa assim. ‘Isso significa mais um mês
neste buraco dos infernos’, me disse Mahon ao nos aproximarmos, a luz de
lanternas, da amurada estilhaçada e das vergas partidas. ‘Mas onde esta o capitão?’
Durante todo o tempo não o havíamos visto nem escutado
sua voz. Fomos olhar na popa. Uma voz triste surgiu de algum ponto no centro da
doca. ‘Ó de bordo do Judea!’ Como diabo tinha ele ido parar naquele lugar?
‘Alo!’, respondemos. ‘Estou á deriva e sem remo no bote’, gritou ele. Um
barqueiro retardatário ofereceu seus serviços e Mahon combinou com ele, por
meia coroa, para rebocar o capitão até o barco. Mas foi a Sra. Beard quem primeiro
subiu a escada. Tinham ficado flutuando nas aguas da doca durante cerca de uma
hora, molhados por uma chuva miúda, sem falar no frio. Nunca fiquei tão
espantado na vida.
Parece que, ao ouvir o meu grito de ‘venham a
tona, depressa’ o capitão compreendeu logo-logo do que se tratava, agarrou a
mulher, correu pelo convés e desceu o bote que estava amarrado junto a escada. Não
era pouco para um homem de 60 anos. Imaginem esse homem salvando heroicamente
sua velha mulher nos braços — a mulher de sua vida. Fez com que ela sentasse no
banco do bote e se apressara a voltar para bordo quando, de algum modo, o bote começou
a deslizar — e ficaram os dois a deriva. Na confusão, naturalmente, não escutamos
seus gritos. Ele parecia abatido, mas ela falou jovialmente: ‘Creio que não tem
importância se eu perder o trem... ‘Não, Jenny’, resmungou o capitão. ‘Desça e vá
se aquecer.’ E para nos: ‘É o que eu digo, um marinheiro não pode andar com a
mulher nas costas. Lá estava eu fora do navio... Bem, desta vez nada de grave
aconteceu. Vamos ver o que esse diabo desse vapor andou estragando.’
Não era muita coisa mas acabou nos atrasando três
semanas. Ao final deste período, como estivesse o capitão reunido com seus
agentes, levei a mala da Sra. Beard até a estação e deixei-a num vagão de
terceira classe. A velha desceu o vidro da janela do vagão para me dizer: ‘Você
é um bom rapaz. Se encontrar John, o capitão Beard, sem o cachecol a noite,
pode lembrar-lhe, da minha parte, que deve manter a garganta bem protegida.’
‘Certamente, Sra. Beard,’ disse eu. ‘Você é um bom rapaz. Observei como você e atencioso
com John, o capitão. . .’ O trem arrancou de repente. Tirei o gorro para me
despedir da velha. Nunca mais a vi... Passe a garrafa...
* * *
No dia seguinte, fizemo-nos ao mar. Quando iniciamos
a viagem para Bangkok, já fazia três meses que estávamos fora de Londres. Tínhamos
calculado que esse tempo seria de uma quinzena de dias ou pouco mais.
Era Janeiro e o tempo estava bonito — o belo
tempo ensolarado de inverno que tem mais encanto do que o verão por ser
inesperado e frágil, e sabemos que não ira durar muito, que não poderá durar
muito. É como um
presente, uma pechincha, um inesperado golpe de sorte.
O tempo bom durou toda a travessia do Mar do
Norte e do Canal, e até chegarmos a 300 milhas mais ou menos a oeste das
Lizards; depois o vento virou para sudoeste. Dois dias mais tarde soprava a
tempestade. O Judea dançava no Atlântico como um velho caixote de velas.
O vento soprou dias inteiros, rancoroso, sem parar, sem misericórdia, sem
descanso. O mundo nada mais era do que uma imensidão de grandes ondas de espuma
que se jogava sobre nós sob um céu tão baixo que podíamos tocá-lo com as mãos, tão
sujo como um teto enegrecido de fumaça. O espaço de tempestade que nos cercava
tinha tanto vapor d’água quanto ar. Dia após dia, noite após noite, nada mais
havia em torno do navio além do uivo dos ventos, do tumulto do mar, do ruído da
água caindo sobre o convés. Não havia descanso, nem para o navio nem para nós.
O navio oscilava e pulava, mergulhava de nariz, caia, sentava-se na traseira,
rebolava, gemia, e tínhamos de aguentar de pé agarrados no convés, segurando
nos beliches lá em baixo num permanente esforço do corpo e numa constante
inquietação mental.
Certa noite Mahon me falou pela pequena vigia
que dava diretamente sobre o beliche onde eu estava deitado, insone, ainda de
botas, com a impressão de não dormir há anos e sem poder pegar no sono mesmo
que tentasse. Ele me disse, excitado: “Marlow, você tem por aí a sonda do porão?
Não consigo por as bombas para funcionar. Valha-me Deus que o caso não é pra
brincadeira!’
Dei-lhe a sonda do porão e me deitei novamente,
tentando pensar em varias coisas — mas pensei somente nas bombas. Quando
cheguei ao convés, ainda se trabalhava nas bombas e o meu turno aliviou o
pessoal. A luz da lanterna, voltada para o convés a fim de se examinar a sonda
do porão, vi num relance os rostos sérios e cansados dos homens. Bombeamos
durante quatro horas no meu turno. Bombeamos toda a noite, todo o dia, toda a
semana — turno após turno. O navio respondia um pouco aos nossos esforços e
jogava agua por todos os lados — não o bastante para irmos a pique de uma vez
mas o suficiente para nos matar com aquele trabalho de bombear. E enquanto
bombeávamos, o navio ia desaparecendo aos poucos: as amuradas tinham
desaparecido, os estais se partiram, os ventiladores se estragaram, a porta do
camarote rachou. Não havia um lugar seco sequer no navio, que se desfazia aos
poucos. Por um passe de mágica a baleeira se transformou num monte de madeira
no lugar onde estava. Eu mesmo a tinha amarrado e ficara orgulhoso do meu
trabalho, que por tanto tempo resistira as maldades do mar. E bombeávamos. E o
tempo não mudava. O mar estava branco como um lençol de espuma, parecia um caldeirão
de leite fervendo. Não havia uma claridade nas nuvens, nem mesmo do tamanho da mão
de um homem, que durasse mais de dez segundos. Era como se não houvesse céu,
nem estrelas, nem sol, nem o Universo – nada, a não ser vagas enraivecidas e o
furioso mar. Bombeávamos, turno após turno, em luta pela vida; e a luta parecia
durar meses, anos, toda a eternidade, como se tivéssemos morrido e descido a um
inferno para marinheiros. Não nos lembrávamos mais do dia da semana, do nome do
mês, em que ano estávamos, e não sabíamos se já tínhamos estado alguma vez em
terra firme. As velas se rasgaram, o navio adernava, o oceano se abatia sobre
nós — e não nos importávamos. Com olhar de idiotas rodeávamos os manípulos das
bombas. Quando éramos arrastados para o convés, eu passava um cabo em volta dos
homens, das bombas e do grande mastro — e então rodávamos e rodávamos a bomba,
com água até o peito, até o pescoço, por cima das nossas cabeças. Era uma cabeça
só. Não sabíamos mais o que era se sentir seco.
Mas num lugar bem dentro de mim havia um pensamento
fixo: Por Deus do céu, que aventura! Igual àquelas que lemos nos livros! E era
a minha primeira viagem como segundo-piloto — e eu tinha apenas 20 anos — e ali
estava resistindo tão bem quanto qualquer daqueles homens e mantendo a
rapaziada em forma. Estava contente. Por nada deste mundo trocaria aquela experiência.
Tinha momentos de exaltação. Quando o velho e desmantelado casco pulava mais
violentamente, com a popa indo para o alto, parecia-me que atirava, como um
apelo, como um desafio, como um grito para as nuvens sem misericórdia, as
palavras escritas na popa: “Judea, Londres. Fazer ou morrer.”
Ó juventude! Ó vigor, a fé, a imaginação da
juventude! Para mim o Judea não era uma velha ratoeira a transportar
frete de carvão — para mim era o esforço, a provação, a experiência de vida.
Penso nele com prazer, com afeição, com saudade — como vocês pensariam num
morto querido. Jamais o esquecerei... Passe aí a garrafa.
Certa noite, quando bombeávamos amarrados ao
mastro, ensurdecidos pelo vento e sem ânimo sequer para desejar a morte, um
grande vagalhão se abateu sobre o navio
e nos colheu em cheio. Assim que consegui respirar, gritei ‘Aguenta
firme, pessoal!’ — quando, de repente, senti alguma coisa de duro flutuando no convés e que bateu na minha
perna. Tentei agarrá-la, mas errei. Estava tão escuro que não podíamos ver o
rosto uns dos outros a um palmo de distância. Vocês entendem.
Depois desse tombo o navio se manteve quieto por
algum tempo e a coisa, fosse lá o que fosse, bateu novamente na minha perna.
Desta vez consegui agarrá-la. Era uma panela! A princípio, embrutecido de
cansaço como estava, e sem outro pensamento que não fosse as bombas, não compreendi
o que e que tinha na mão, mas de repente percebi e gritei: ‘Pessoal, lá se foi
a cabine do convés! Larguem tudo e vamos procurar o cozinheiro’.
Havia um alojamento na proa, sobre o convés, que
compreendia a cozinha, os beliches do cozinheiro e da guarnição. Como esperávamos
que o mar o invadisse há dias, os homens tinham ordem de dormir no camarote, único
lugar seguro de todo o navio. Mas o despenseiro Abraham insistia em agarrar-se
estupidamente a seu beliche, como um animal – por simples medo, penso eu, como
um animal que não quer deixar o estábulo durante um terremoto. Fomos
procura-lo. Era desafiar a morte pois, desamarrados, estávamos tão expostos
como se estivéssemos numa jangada. Mas fomos. O alojamento estava destroçado
como se uma bomba houvesse explodido lá dentro. A maior parte dos objetos sumira
borda afora — o fogão, as camas dos tripulantes, seus pertences, tudo se fora;
mas as duas barras, que seguravam o beliche de Abraham, tinham permanecido como
que por milagre. Abrimos caminho por entre as ruínas, chegamos às barras e ali
estava ele, sentado na cama, cercado de espuma e destroços, falando sozinho e muito
alegre. Estava louco, completamente e para sempre louco varrido. Aquele choque
atingira o extremo de sua resistência. Nós o agarramos e o puxamos e descemos
de cabeça para baixo pela escotilha do camarote. Vocês devem entender que não
havia tempo para carregá-lo com extremo cuidado, nem para ver como ele estava.
Aqueles que se encontravam no camarote o agarrariam. Tínhamos pressa de voltar
as bombas, serviço que não podia esperar. Um furo na tubulação seria fatal.
Pode-se dizer que o único proposito desse
diabólico temporal foi transformar o pobre-diabo do mulato num lunático. Antes
da alvorada o temporal amainou; no dia seguinte, o céu manteve-se limpo e, a
medida que o mar acalmava, as bombas obtinham melhores resultados. Quando foi possível
envergar novo jogo de velas, a tripulação exigiu que regressássemos — e realmente
nada mais havia fazer. Os botes tinham caído n’água, o convés fora varrido pelo
mar, o camarote estava quebrado, os homens sem um pedaço de pano a não ser o
que vestiam, as provisões estragadas, o navio combalido. Aproamos para a terra.
Será que vocês vão acreditar? O vento começou a soprar de leste diretamente na
nossa cara. Soprava fresco e contínuo. Tivemos de trabalhar durante cada
polegada do caminho, mas o navio não fazia tanta agua e o mar se mantinha
comparativamente calmo. Duas horas de trabalho nas bombas e cada quatro horas não
chegam a ser brincadeira, mas iss0 manteve o navio à superfície ate Falmouth.
A boa gente que mora em Falmouth vive dos
desastres marítimos e não tenham duvidas que ficaram satisfeitos quando nos
viram. Uma multidão faminta de operários navais começou a afiar as ferramentas
assim que avistaram carcaça do navio. E, valha-nos Deus, tiveram muito que fazer!
Calculo que o proprietário já estivesse em dificuldades. A coisa atrasou um pouco.
Depois ficou decidido que se deveria retirar parte da carga e calafetar o
casco. Foi o que se fez: acabaram os reparos, carregaram novamente os porões,
uma nova tripulação chegou a bordo e partimos, finalmente. para Bangkok. No fim
de uma semana novamente estávamos de volta. A tripulação disse que não ia para
Bangkok — uma viagem de 150 dias — naquela espécie de casca-de-noz que precisava
ser bombeado oito horas em cada vinte e quatro horas. E os jornais marítimos
voltaram a nos dedicar um parágrafo nas suas colunas: “Judea. Bangkok.
De Tyne para Bangkok; carvão; regressou a Falmouth fazendo água e com a tripulação
se recusando a trabalhar.”
Houve novos atrasos, novos reparos. O proprietário
passou um dia em Falmouth e disse que o navio estava um verdadeiro brinco. O
pobre do capitão Beard parecia o fantasma de um capitão depois de tantos
tormentos e humilhações. Lembrem-se que tinha 60 anos e era aquele seu primeiro
comando. Dizia Mahon que as aventuras loucas acabam sempre mal, mas eu é que
gostava cada vez mais do navio e desejava muitíssimo chegar a Bangkok. Bangkok!
Nome magico e abençoado! Ao seu lado, a Mesopotâmia não era nada. Lembrem-se que
eu tinha 20 anos, era a minha primeira viagem como segundo-piloto e o Oriente
estava me esperando!
Com uma nova — e terceira — tripulação, saímos e
fomos ancorar na barra externa. O navio fazia mais agua do que nunca. Era como
se os diabos dos carpinteiros tivessem esburacado o casco. Desta vez nem mesmo saímos
barra afora. A tripulação simplesmente se recusou a por o poleame em
funcionamento.
Fomos rebocados para o porto de dentro e nos
tornamos uma peça de museu, uma curiosidade, uma instituição do lugar. As
pessoas nos apontavam aos visitantes como ‘o barco que vai para Bangkok. . .
está aqui há seis meses. . . já arribou três vezes.’ Nos feriados, os garotos,
brincando nos botes, gritavam: ‘Ó de bordo do Judea!’ e se uma cabeça
aparecia na amurada, gritavam: ‘Para onde vão? para Bangkok?,— e riam. Éramos
apenas três a bordo. O velho capitão curtia o seu desgosto no camarote. Mahon
tomou a si a cozinha e inesperadamente revelou um talento francês no preparo
das refeições. Eu olhava através da vigia, descontraído. Tornamo-nos cidadãos
de Falmouth. Todos os comerciantes nos conheciam. Na barbearia ou na tabacaria
perguntavam-nos, com certa familiaridade: ‘Acham que ainda irão para Bangkok?’
Enquanto isso, o proprietário, os homens do seguro e os do frete discutiam em
Londres os nossos honorários. .. Passe a garrafa.
* * *
Era horrível. Moralmente, era pior do que ficar bombeando
toda a vida. Parecia-que o mundo tinha nos esquecido, que não nos relacionávamos
com ninguém e não iríamos a lugar algum; como por encanto, parecia que teríamos
de viver para sempre naquele porto, virar piada e escarnio para gerações de
estivadores e barqueiros desonestos. Eu consegui receber três meses de
pagamento e uma licença de cinco dias e corri para Londres. Levei um dia para
chegar e mais um para voltar — mas o dinheiro dos três meses desapareceu logo. Não
sei o que fiz com ele. Fui a um café-concerto, almocei, jantei e fiz uma ceia
num bom restaurante de Regent Street e voltei a tempo, sem outra coisa além das
obras completas de Byron e um novo cobertor — tudo por três meses de trabalho.
O barqueiro que me levou para o navio me disse: ‘Olá! Pensei que você tivesse
abandonado o velho navio. Aquilo nunca chegara em Bangkok.’ Com a: superior,
respondi: ‘Acha mesmo?’ Mas a verdade é que não gostei da profecia.
De repente, um homem, espécie de agente sei lá
de quem, apareceu com plenos poderes. Tinha espinhas por todo o rosto, uma energia
indomável e uma alma jovial. De mergulho voltamos a vida, e um batelão encostou
no navio e retirou a nossa carga e depois fomos atracar em um dique para
substituir as chapas de cobre. Não era de se admirar que o navio fizesse água.
Sacudido pelo temporal além de sua capacidade de resistência, o pobre do navio
como por desgosto, jogava fora toda a estopa que lhe incomodava juntas. O navio
foi novamente calafetado, provido de novas chapas de cobre e ficou tão estanque
como uma garrafa. Voltamos ao batelão e reembarcamos a carga.
Foi a essa altura, numa linda noite de luar, que
ratos começaram a abandonar o navio.
Os ratos até então tinham sido uma verdadeira
praga. Destruíam velas, consumiam mais provisões do que a tripulação inteira,
compartilhavam amigavelmente das nossas camas e dos nossos perigos. No momento
em que o navio estava em condições de navegar em alto-mar, resolverão abandoná-lo.
Chamei Mahon para apreciar o espetáculo. Ratos e ratos iam surgindo na amurada,
atiravam um último olhar por cima dos ombros e saltavam, com um ruído seco para
o mergulho no pontão vazio. Tentamos contá-los mas logo perdemos a conta. Mahon
falou: ‘Bem... não me fale na inteligência dos ratos. Deviam ter saído antes,
quando por um triz não fomos a pique. Aí está a prova de como é estupida a superstição
sobre os ratos. Deixaram um bom navio por um velho batelão caindo de podre,
onde não há nada para comer.. . Idiotas! Não acredito que saibam o que é bom e
seguro para eles, como eu e você não sabemos.
Depois de prolongarmos um pouco mais a conversa
concordamos que a sabedoria dos ratos era grandemente superestimada e que, na
verdade, não era maior do que a homens.
A essa altura, a história do navio era bem conhecida
em todo o Canal, de Lands End a Forelands, e nao conseguiamos uma tripulação na
costa sul. Mandaram-nos uma guarnição completa de Liverpool e partimos mais uma
vez — para Bangkok.
Tivemos boas brisas, mar de rosas nos trópicos e
velho Judea movimentava-se com dificuldade à luz do sol. Só fazíamos
oito nós — e tudo estalava, segurávamos nossos gorros na cabeça; mas em geral o
navio fazia uma média de três milhas por hora. Que outra coisa se podia
esperar? O velho navio estava cansado. A juventude dele estava onde está a
minha — onde está a de vocês que escutam estas peripécias. E que amigo atiraria
a sua idade e o seu cansaço na cara de vocês? Não reclamávamos contra o navio. Para
nós, pelo menos os da popa, era como se tivéssemos nele, sido criados ali, vivíamos
nele há séculos, jamais conhecêramos outro navio. Seria mais fácil insultar a velha
igreja de aldeia por nunca ter chegado a ser catedral.
E no meu caso havia a minha juventude para me
tornar paciente. Tinha todo o Oriente diante de mim, toda a vida e o pensamento
de que eu havia passado por uma dura prova naquele navio — e me saíra bem. E
pensava nos homens de antigamente que fizeram há séculos o mesmo caminho em
navios nada melhores em direção a terra das palmeiras, das especiarias, das
areias amarelas, das nações amorenadas sob o governo de reis mais cruéis do que
Nero, o romano, e mais esplêndidos do que Salomão, o judeu. O velho navio balançava
nas águas, curvado ao peso da idade e da carga, enquanto eu desfrutava da juventude,
ignorante e cheio de esperança. O navio singrou as águas por uma interminável
procissão de dias e a nova popa dourada reluzia ao sol poente, e parecia gritar
sobre o mar que se envolvia na escuridão as palavras pintadas na grinalda: ‘Judea.
— Fazer ou Morrer.
Depois entramos no Oceano Índico e velejamos
para o Norte, para a Ponta de Java. Os ventos eram ligeiros, semanas passavam.
O navio continuava sua marcha — fazer ou morrer —, e em terra já se pensava em
nos dar como perdidos.
Uma noite de sábado, já fora de serviço, os
homens me pediram um balde d’água extra para lavar as roupas. Como eu não
estava querendo trabalhar tão tarde na bomba de agua fresca, saí assobiando com
a chave na mão, a fim de abrir a escotilha da proa, pretendendo servir a água
de um tanque de reserva que ali mantínhamos.
O cheiro vindo de baixo foi tão inesperado
quanto assustador. Era como se centenas de lamparinas de parafina tivessem
estado acesas, enchendo de fumaça durante dias inteiros aquela cavidade. Fiquei
contente quando sai dali. O marinheiro que ia comigo pigarreou e falou: ‘Que
cheiro mais engraçado, senhor.’ Respondi, com ar de indiferença: ‘Dizem que e
bom para a saúde’ — e segui em direção a ré.
A primeira coisa que fiz foi meter a cabeça na
boca do ventilador central do navio. Quando levantei a tampa, um sopro visível,
alguma coisa como uma leve neblina, uma lufada de falsa cerração subiu então da
abertura. O ar que subia era quente e deixei cair a tampa. Não valia a pena me
chatear. A carga estava incendiando.
No dia seguinte a carga começou a produzir mais
fumaça. Era de se esperar, pois, embora o carvão fosse de boa qualidade, ele
fora tão manipulado, tão desintegrado com a carga e descarga, que mais parecia carvão
de forja de ferreiro. E depois havia se molhado — mais de uma vez. Choveu
durante todo o tempo em que passávamos o carvão de volta do batelão para o
navio, e agora, com esta longa viagem, o carvão se aquecera — e era mais outro
caso de combustão espontânea.
O capitão nos chamou ao camarote. Estava com um
mapa aberto em cima da mesa e parecia infeliz. ‘A costa oeste da Austrália está
próxima mas pretendo prosseguir até o nosso destino. Este é o mês dos furacões;
além disso, manteremos a proa em direção a Bangkok e combateremos o fogo. Nada
mais de arribar em parte alguma, nem mesmo se ficarmos assados. Tentaremos
primeiro abafar esse diabo dessa combustão impedindo a entrada do ar.’
Tentamos. Tentamos de tudo — e a fumaça
continuava saindo. Saía por frinchas imperceptíveis; forçava caminho através
dos compartimentos e das cobertas; escapava por aqui, por ali, por toda a parte,
em pequenos fios, numa invisível nuvem, de uma maneira incompreensível. A fumaça
encontrou seu caminho até o camarote, até o castelo da proa, envenenou os
lugares mais abrigados do convés. Claro que se a fumaça saia, o ar entrava. Era
desanimador. A combustão se recusava a acabar.
Resolvemos tentar a água e abrimos as
escotilhas. Enormes volumes de fumaça, esbranquiçada, amarelada, espessa, gordurosa,
nevoenta, sufocante, se elevaram até os altos dos mastros. Todos os marinheiros
correram para a ré. Então a nuvem
venenosa se desfez e voltamos a trabalhar dentro de uma fumaçada que já não era
mais espessa do que a de uma chaminé comum de fabrica.
Instalamos uma bomba de incêndio e estendemos
uma mangueira que logo rebentou. Era tão velha quanto o navio — uma mangueira pré-histórica,
impossível de ser remendada. Em seguida, bombeamos com a fraca bomba da proa,
retiramos água com balde e conseguimos despejar um pouco do Oceano índico
dentro da escotilha. A corrente límpida brilhava à luz do sol, caia numa camada
de fumaça branca e preguiçosa e desaparecia na negra superfície do carvão. O
vapor subia, misturando-se com a fumaça. Derramávamos água salgada como se fosse
num barril sem fundo. Era o nosso destino bombear naquele navio — para fora ou
para dentro — e, depois de retirar água do navio para evitar que morrêssemos
afogados, freneticamente lhe atirávamos água para não morrermos queimados.
E o navio se arrastava — fazer ou morrer — com
tempo sereno. O céu era um milagre de pureza, um milagre de azul. O mar estava
polido, azul, transparente, cintilava como uma pedra preciosa, estendendo-se
para todos os lados do horizonte — como se todo o globo terrestre fosse uma
joia, uma colossal safira, uma única gema modelada em forma de planeta. A superfície
das grandes e tranquilas aguas, Judea deslizava, imperceptivelmente,
envolvido em vapores lânguidos e sujos, numa nuvem preguiçosa que derivava para
bombordo, leve e vagarosa, uma nuvem de peste que profanava o esplendor do mar
e do céu.
Durante todo este tempo naturalmente não vimos o
fogo. A carga queimava lentamente em algum lugar do fundo do navio. Certa vez
Mahon, quando trabalhávamos lado a lado, me disse com um sorriso singular: ‘Se
o navio fizesse água, como da primeira vez que deixamos o Canal, o fogo acabaria,
não é mesmo?’ Observei, inoportunamente: ‘Lembra-se dos ratos?’
Combatemos o fogo e velejamos cuidadosamente
como nada estivesse acontecendo. O despenseiro cozinhava para nós. Dos outros
doze homens, oito trabalhavam enquanto quatro descansavam. Todos tinham a sua
vez, inclusive o capitão. Havia igualdade e, se não exatamente fraternidade, pelo
menos boa dose de camaradagem. As vezes um dos homens, ao atirar um balde d’água
pela escotilha, gritava: Viva Bangkok!’ — e os outros riam. Mas em geral estávamos
preocupados e sérios — e com sede. Ah, que sede! Precisávamos ser cuidadosos
com a água. Rações rigorosas. O navio soltava fumaça, o sol brilhava... Passe a
garrafa.
* * *
Tentamos de tudo. Até mesmo isolar o fogo lá
embaixo. Claro que não funcionou. Nenhum dos homens conseguiu ficar no porão
mais de um minuto. Mahon, que desceu em primeiro lugar, desmaiou e o homem que
foi socorrê-lo também. Arrastamos os dois para o convés. Depois desci para
mostrar como era fácil, mas a essa altura os marinheiros já haviam aprendido e
se contentaram em me pescar com uma corrente de gancho presa a um cabo de vassoura,
creio eu. Nem mesmo me ofereci para recuperar a pá que deixara lá embaixo.
A coisa começou a ficar feia e lançamos o bote
n’água. O segundo escaler também estava pronto para descer ao mar. Tínhamos
ainda outro, de 14 pés, amarrado na popa.
De repente, então, a fumaçada diminuiu.
Redobramos nossos esforços para inundar o porão do navio. Em dois dias já não
havia mais fumaça. Todo mundo ria de contente. Isso foi numa sexta-feira. No sábado
não se trabalhou, fizemos apenas coisas de rotina. Os homens lavaram as roupas
e o rosto pela primeira vez em duas semanas e se reuniram num jantar especial.
Falavam com desprezo da combustão espontânea e davam a entender que isso de combustão
era com eles mesmos. Na verdade, sentiam-se todos como que herdeiros de uma
grande fortuna. Mas um cheiro horrível de queimado pesava sobre o navio. O capitão
Beard tinha os olhos no fundo, faces encovadas. Nunca notara antes como era
encurvado e manco. Ele e Mahon examinavam, dos, escotilhas e ventiladores,
cheirando. De repente observei que Mahon era bem velho. Quanto a mim, estava
contente e orgulhoso, como se tivesse ajudado a vencer uma grande batalha
naval. Ah, juventude!
A noite estava belíssima. Pela manha passara por
nós um navio rumo a pátria — o primeiro que víamos ha meses. Mas, finalmente, estávamos
próximos de terra, a Ponta de Java ficava a 190 milhas, ao norte.
No dia seguinte, das oito horas ao meio-dia, foi
o meu turno no convés. No café da manha o capitão observou: ‘É espantoso, mas o
cheiro chegou até o camarote!’ La pelas dez horas, estando o piloto na popa,
andei até a primeira coberta por momentos. O banco do carpinteiro ficava atrás
do mastro grande, Inclinei-me sobre ele, mordendo o cachimbo e o carpinteiro,
um jovem marinheiro, veio falar comigo: ‘Acho que trabalhamos bem, não é
mesmo?’ Em seguida, com irritação, percebi que o maluco estava tentando
empurrar o banco. Disse, delicadamente: ‘Nao faça isso, Chips’ — e
imediatamente senti uma estranha sensação, uma absurda ilusão, parecia que de
certa maneira me encontrava no ar. Escutei em torno de mim uma respiração
suspensa exalada de repente, como se milhares de gigantes dissessem ‘fu-u-u’ —
e senti um choque surdo que me fez todas as costelas doerem. Não havia duvida —
eu estava no ar e o meu corpo descrevia uma rápida parábola. No entanto, embora
curta, tive tempo de pensar em varias coisas, na seguinte ordem, na medida em
que me recordo delas: ‘Não pode ter sido o carpinteiro — Que foi? Algum
acidente — Um vulcão submarino? — Carvão, gases — Meu Deus vamos todos pelos
ares — Todos mortos — Estou caindo na escotilha da ré — Estou vendo o fogo lá
dentro... ’
O pó de hulha no momento de explodir ardera como
um clarão vermelho suspenso no ar do porão. Num abrir e fechar de olhos, numa infinitíssima
fração de segundo, depois do banco ser jogado, eu já estava estatelado ao comprido
na carga. Levantei-me sozinho e fugi. Tão rápido como se desse um pulo. O convés
transformara-se numa selva de paus de lenha, emaranhado como uma floresta após
o tufão; uma imensa cortina de farrapos drapejava suavemente diante de mim —
era a vela grande reduzida a farrapos. Pensei: ‘Os mastros estão a ponto de
cair’ — e para sair do caminho me atirei de quatro pela escada do tombadilho
abaixo. A primeira pessoa que vi foi Mahon, de olhos vidrados, boca aberta e os
longos cabelos brancos arrepiados em volta da cabeça como um halo de prata.
Estava para descer quando a visão da coberta estalou, saltou e se fez em pedaços
diante de seus olhos, deixando-o literalmente petrificado. Olhei para ele, incrédulo,
e Mahon me fitou com uma curiosidade chocante, única. Eu não sabia que estava
sem cabelos, sem sobrancelhas, sem cílios, nem que meu bigode juvenil tinha
desaparecido, nem que meu rosto estava negro e ferido, o nariz machucado,
queixo sangrando. Perdera o gorro, um dos meus sapatos e a minha camisa estava
toda rasgada. Não sabia de nada disso. Estava surpreso por ver o navio ainda a superfície,
o tombadilho ainda inteiro — e mais do que tudo, por ver alguém vivo. Também a
paz que reinava no céu e a tranquilidade do mar me eram surpreendentes. Acho
que esperava vê-los convulsionados de horror... Passe a garrafa.
* * *
Ouvi uma voz vinda de algum lugar — do ar, do céu,
não sei dizer. De repente vi o capitão a gritar como um doido ‘Onde está a mesa
do camarote?’ — e escutar uma pergunta destas foi um choque terrível. Eu acabara
de ser apanhado em cheio por uma explosão, vocês podem compreender, e tremia
ainda devido aquela experiência — nem mesmo tinha a certeza de estar vivo.
Mahon começou a bater com os pés e gritou para o capitão: ‘Meu Deus! Não esta
vendo que o convés foi pelos ares?’ Recuperei a minha voz e gaguejei, como se
estivesse consciente de uma grande falta: ‘Não sei onde está a mesa do
camarote.’ Era tudo como um sonho absurdo.
Sabem o que é que o capitão queria, logo em
seguida? Pois bem: queria as vergas. Placidamente, como se tivesse perdido a razão,
insistiu para que se guarnecesse as vergas de vante. ‘Não sei se ha alguém vivo
depois disso’, disse Mahon, com voz de choro. ‘Com certeza haverá alguém para
guarnecer as vergas de vante’, disse o capitão.
Parece que o velho marinheiro estava no seu
beliche dando corda nos cronômetros quando o choque o pôs fora de si.
Imediatamente lhe ocorreu — como disse mais tarde — que o navio havia batido em
alguma coisa, e correu para o camarote. La ele viu que a mesa havia
desaparecido. Como o convés fora pelos ares, a mesa naturalmente caíra no paiol
da popa. Onde tínhamos comido pela manha, o capitão vira apenas um grande
buraco. Fato que lhe pareceu tão terrivelmente misterioso e o impressionou
tanto que tudo o que viu e ouviu depois de chegar ao convés era quase nada
comparativamente. E, vejam bem, notou logo o timão sem ninguém e o escaler fora
de rumo — e seu único pensamento foi repor esta miserável carcaça de navio
destripada, sem coberta, presa das chamas, com a proa dirigida para seu porto
de destino. Bangkok !Era o que ele pretendia. Digo para vocês que aquele
homenzinho tranquilo, encurvado, capenga, quase deformado, era enorme quando se
tratava da obstinação de sua ideia e na sua plácida ignorância em relação a
nossa agitação. Mandou-nos para a proa com um gesto de comando e pessoalmente
guarneceu o timão.
Sim, esta foi a primeira coisa que fizemos —
guarnecer as vergas daquela ruina! Ninguém havia morrido, ninguém ficara
invalido, mas todos estavam mais ou menos feridos. Só vendo! Alguns ficaram esfarrapados,
com os rostos enegrecidos, como carregadores de carvão, como limpa-chaminés, e
as cabeças pareciam embutidas no ombro, mas na realidade estavam queimados,
com as peles chamuscadas. Outros, que estavam no quarto da coberta, despertaram
ao serem atirados para fora de seus beliches, e tremiam sem parar, resmungando,
mesmo quando continuamos com o trabalho. Mas todos trabalharam. A tripulação de
Liverpool era feita de gente boa. Pela minha experiência, sempre são boa gente.
E o mar que faz isto — a vastidão, a solidão que cerca suas almas sombrias. .. Tropeçamos,
arrastamo-nos, caímos, arranhamos as pernas por entre os destroços, manobramos.
Os mastros aguentaram mas não sabíamos quantos estariam queimados na base. O
tempo estava quase calmo mas uma longa rajada veio do oeste e fez o navio
andar. Os mastros poderiam cair a qualquer momento. Olhávamos para eles,
apreensivos. Para que lado cairiam, não se podia prever.
Em seguida recuamos para a proa e olhamos a
nossa volta. O convés era uma confusão de pranchas, de lascas de pau, de
madeira arrebentada. Os mastros se elevaram deste caos como grandes arvores
acima de uma rasteira e intrincada vegetação. Os interstícios dessa massa de
destroços estavam tomados por alguma coisa esbranquiçada, vagarosa, irritante
— de alguma coisa que se assemelhava a uma nevoa gordurosa. A fumaçada do incêndio
invisível novamente se elevava, estava se arrastando como uma neblina espessa e
venenosa num vale povoado de árvores mortas. Pequenas e preguiçosas faíscas já começavam
a se elevar por entre os escombros. Aqui e ali, de pé, um pedaço de madeira
parecia um poste. Metade de uma roda de leme fora cuspida através da vela de
vante e o céu era um pedaço de azul por entre as velas terrivelmente sujas. Um
feixe de tábuas caíra no corrimão, atravessadas, e um dos extremos despontava
na borda como um trampolim que levasse a lugar algum, um trampolim sobre o mar
profundo, sobre a morte — como se nos convidasse a andar rapidamente sobre a
prancha e acabar assim com nossas ridículas inquietações. E o ar, o céu,
pressentia-se, um fantasma, qualquer coisa de invisível continuava chamando o
navio.
Alguém teve o bom senso de olhar para as águas: lá
estava o homem do leme que impulsivamente havia se atirado ao mar, ansioso
agora para voltar a bordo. Gritava e nadava com vigor, como um Tritão
acompanhando o navio. Atiramos uma corda para ele e logo o timoneiro estava
entre nós, escorrendo água, abatido. O capitão, que entregara o leme a outro,
olhava fixamente o mar, com os cotovelos fixos na amurada, queixo na mão, solitário.
Nós nos perguntávamos o que viria depois. Eu pensava: ‘Eis alguma coisa de
grande! É espantoso! Gostaria de adivinhar o que nos espera.’ Ah, juventude De
repente, Mahon avistou um navio pela popa. O capitão Beard disse: ‘Ainda
podemos fazer alguma coisa.’ Içamos duas bandeiras, que na linguagem
internacional do mar queriam dizer: ‘Incêndio a bordo. Precisamos de
assistência imediata.’ O vapor parecia crescer e pouco depois falava com duas bandeiras
no mastro: ‘Vamos ajudá-los.’
Meia hora depois emparelhava conosco, a
barlavento e ao alcance da voz, maquinas paradas. Perdemos a calma e desatamos
a gritar, juntos e excitados: ‘Sofremos uma explosão!’ Um homem de
capacete branco, na ponte, gritou: ‘Sim! Não há de ser nada! Não há de ser
nada!’ e sacudiu a cabeça, sorriu e fez gestos tranquilizadores com a mão, como
se falasse a um bando de crianças assustadas. Um dos botes desceu a água e veio
em nossa direção, na crista da onda, com seus remos compridos. Era movido por
quatro calaches, a um ritmo bem balançado. Era a primeira vez que via
marinheiros malaios. Vi-os depois, mas o que me surpreendeu então foi o seu
descaso: chegaram ao costado do navio e nem mesmo o proeiro, de pé', segurando
a escada de quebra-peito com o croque, se dignou a levantar a cabeça para
olhar. Eu pensava que os tripulantes de um navio que sofrera uma explosão
mereceriam maior deferência.
Subiu a bordo um homenzinho seco como uma palha
e ágil como um macaco. Era o piloto do vapor. Passou os olhos pelo navio e
gritou: ‘Olá, rapaziada! E melhor vocês abandonarem isso aqui!’ Ficamos em
silencio. O piloto conversou durante algum tempo a sós com o capitão. Pareciam
discutir. Depois seguiram juntos para o vapor.
Quando o nosso capitão voltou, soubemos que o
vapor se chamava Sommerville e era comandado pelo capitão Nash; ia de
Singapura a Batávia levando correspondência, e que tinha chegado a um acordo
para nos rebocar ate Anjer ou Batávia, se possível, onde poderíamos extinguir o
fogo abrindo as escotilhas e em seguida prosseguir a nossa viagem — para
Bangkok! O velho parecia excitado: ‘Haveremos de conseguir!’, disse a Mahon, sério.
Fechou o punho num desafio ao céu. Ninguém disse uma palavra.
Ao meio-dia, o vapor começou a nos rebocar.
Seguia na frente, elegante, aprumado, e o que restava do Judea seguia-o
no extremo do cabo de reboque de 70 braças — seguia-o rapidamente como uma
nuvem de fumaça da qual se elevavam borlas de mastros. Subimos aos mastros para
ferrar as velas. Tossíamos nas vergas e tomávamos precauções com a boa armação
das velas. Vocês podem nos ver lá em cima, ferrando novamente as velas daquele
navio condenado a não chegar a parte alguma? Pois não havia um único homem que não
pensasse que a qualquer momento os mastros poderiam desabar. De cima não podíamos
ver o navio devido a fumaça, e trabalhávamos cuidadosamente dando o mesmo numero
de voltas nas antegalhas. ‘Ó de boreste, ferra com firmeza!’, gritava Mahon, do
convés.
Conseguem compreender a situação? Não acho que
nenhum daqueles marujos esperasse descer normalmente. Quando desci, escutei-os
dizendo um para o outro: ‘Puxa! Pensei que íamos descer num salto por cima da
borda, dos mastros e de tudo. . . macacos me mordam se não pensei. . ‘Era o
que eu também estava pensando’, respondeu, em voz cansada, outro espantalho
sujo e esfarrapado. E lembrem-se que aqueles homens não tinham o habito militar
da obediência. Para um estranho seria um punhado de gente sem valor nenhum. Por
que faziam aquilo? Por que obedeceram quando achei, muito convencido, que havia
uma beleza evidente naquele trabalho e os mandei arrear duas vezes a vela do
traquete para fazer o trabalho bem feito? O que! Não tinham reputação
profissional a zelar — nenhum exemplo, nenhum elogio. Não era senso de dever;
todos sabiam muito bem como fugir as tarefas, como fazer corpo mole, preguiçosos
— quando queriam, e na maioria das vezes o queriam. Seriam as duas libras e dez
xelins por mês? Não, nenhum deles achava que o pagamento pagasse a metade da
canseira. Não. Era alguma coisa que havia neles, alguma coisa inata, sutil,
duradoura. Não digo positivamente que a tripulação de um navio mercante francês
ou alemão não fizesse a mesma coisa, mas duvido que o fizesse da mesma maneira.
Havia certa plenitude, qualquer coisa tão solida como um principio e tão dominadora
quanto um instinto —- a revelação de alguma coisa secreta, essa coisa oculta,
esse dom do mal ou do bem que faz a diferença das raças e modela o destino das
nações.
Foi nessa noite, às 10 horas que, pela primeira
vez desde que o vínhamos combatendo, vimos o fogo. A rapidez do reboque
estimulara a lenta destruição. Uma chama azul apareceu na proa refulgindo por
baixo dos destroços do convés. Desdobrava-se em camadas, parecia estimular-se e
tremeluzir como o pisca-pisca de um vagalume. Fui o primeiro a vê-la e avisei
Mahon. ‘Então já perdemos a partida’, disse ele. ‘Seria melhor desistir do
reboque caso contrario o navio poderá explodir de repente, da proa a ré, antes
que a gente tenha tempo de cair fora.’ Gritamos; tocamos campainhas para atrair
a atenção do vapor; o reboque continuou. Finalmente eu e Mahon tivemos de nos
arrastar até a proa e cortar o cabo com uma machadinha. Não houve tempo para
desfazer os nós. Línguas vermelhas de fogo lambiam a confusão de tabuas sob
nossos pés, quando voltávamos para a popa.
Claro que notaram lá do vapor, tempos depois,
que o cabo se partira. O vapor soltou um apito agudo, seus holofotes
descreveram um grande círculo e o navio aproximou-se, emparelhou conosco e
parou. Estávamos reunidos em grupo, na popa, olhando. Todos os homens haviam
salvo um pequeno embrulho ou uma mala. De repente uma chama cônica, retorcida
na ponta, se lançou para o alto e descreveu sobre o negro mar um círculo de
luz, com os dois navios, juntos, balançando suavemente no centro. O capitão Beard
estivera durante horas sentado na grade do tombadilho, em silêncio, mas levantou-se
vagarosamente e avançou a nossa frente e foi em direção a enxárcia da mezena. O
capitão Nash gritou:
‘Vamos embora! Depressa, que tenho malas postais
a bordo! Levarei o senhor e seus homens até Singapura.’
– ‘Não, obrigado’, disse o velho. ‘Temos de
ficar até o fim.’
O outro gritou:
– ‘Não posso demorar mais! A correspondência, o
senhor tem de compreender.’
– ‘Sim, sim estamos bem.’
– ‘Pois muito bem. Darei notícias de vocês em
Singapura. .. Até a vista!’
Acenou com a mão. Os nossos homens arriaram os
embrulhos, tranquilamente. O vapor pôs-se em marcha e, saindo do círculo de
luz, desapareceu imediatamente da nossa vista, ofuscado pelo fogo que
resplandecia. Nesta altura fiquei certo que iria ver pela primeira vez o
Oriente comandando um pequeno bote. Achei que seria bom — e a fidelidade ao
velho navio era uma coisa bonita. Tínhamos de ficar até o fim. Ah, o esplendor
da juventude! Ah, o seu fogo, mais ofuscante do que as chamas do navio
incendiado, atirando uma luz mágica pela extensão do mundo, saltando
audaciosamente para o céu — um fogo que será extinto pelo tempo, mais cruel,
mais impiedoso, mais amargo do que o mar — e
— é como as chamas do navio incendiado, cercado por uma noite impenetrável!
O velho no seu jeitão suave e inflexível, nos
avisou que fazia parte do nosso dever salvar todos os equipamentos que fosse
possível para as agencias de seguro. Começamos a trabalhar na popa, enquanto o
navio permanecia bem iluminado pelas labaredas da proa. Retiramos uma porção de
destroços. O que não salvamos nós? Um velho barômetro preso com uma absurda
quantidade de parafusos quase me custou a vida: uma súbita coluna de fumaça
caiu sobre mim e eu tive apenas o tempo necessário para correr. Havia vários depósitos,
rolos de velas, maços de cabos; a popa se parecia a um bazar da Marinha e os
botes estavam jogados contra a amurada. Era de se supor que o velho queria
levar consigo tudo o que podia daquele seu primeiro comando. Estava tranquilo,
mas era óbvio que perdera o equilíbrio mental. Podem acreditar? Ele quis levar
na lancha um pedaço de cabo velho e um ancorote. Nos dissemos: ‘Pois não,
senhor!’, com deferência, e tranquilamente deixamos essas coisas escorregarem
pela borda. O pesado saco dos medicamentos desceu, também, da mesma maneira,
dois sacos de café verde, latas de tinta — vejam só, latas de tinta! — e uma
porção de coisas. Depois recebi ordens de baixar os botes, com mais dois
marinheiros, e prepará-los para o momento de abandonar o navio.
Pusemos tudo em ordem, arvoramos o mastro do
bote para o capitão que deveria comandá-lo. Sentei-me por instantes. Sentia o
rosto duro, meus membros doíam como se estivessem quebrados. Sentia todas as
minhas costelas e sabia exatamente onde se encontravam todos os ossos da minha
coluna vertebral. Os botes, amarrados à popa, estavam envolvidos em uma sombra
profunda e à volta eu podia ver o circulo do mar iluminado pelo fogo. Uma chama
gigantesca se elevou, clara e direta. Brilhava com violência, com ruídos
semelhantes ao bater de asas, com rumores de trovão. Houve estalos, detonações
e, do cone das chamas, as faíscas se elevaram no ar. O homem nasceu para a
dificuldade, para os navios que fazem água e para os navios que se incendeiam.
O que mais me incomodava era ver que o navio
adernava sob o brando vento — um simples sopro — e que os botes não se
mantinham na proa, teimando, com a teimosia própria dos barcos, em se meter por
baixo da popa e rodar até ficarem paralelos ao casco. Os botes dançavam
perigosamente e se aproximavam da chama enquanto eram sacudidos pelo navio e
naturalmente havia sempre o perigo dos mastros tombarem a qualquer momento. Eu
e os dois marinheiros mantivemos os botes a distância da melhor forma que
conseguimos, com remos e croques, mas este trabalho nos exasperava pois não
havia razão para não abandonarmos imediatamente o navio. Não podíamos ver os
que estavam a bordo, nem imaginar a causa daquele atraso. Os homens blasfemavam
em voz baixa e eu devia não somente fazer a minha parte do trabalho como também
fazer com que trabalhassem aqueles dois homens que manifestavam constante inclinação
para largar tudo e deixar as coisas rolarem.
Finalmente, gritei:
– ‘Ó do convés!’ — e alguém apareceu. ‘Aqui já
estamos prontos, disse eu. A cabeça desapareceu e logo depois surgiu novamente:
– ‘O capitão diz que tudo bem, senhor, e que
mantenha os botes bem distantes do navio.’
Meia hora se passou. De repente houve um
espantoso estrondo, um ruído de ferragens, correntes a chiar, um jato d’água e milhões
de faíscas voaram para a tremula coluna de fumaça que se inclinava ligeiramente
por cima do navio. Os guindastes haviam se alterado pelo fogo e os dois ferros
em brasa tinham descido para o fundo do mar, arrastando consigo duzentas braças
de amarras igualmente em brasa. O navio tremeu, a massa de chamas oscilou como
se fosse cair e o mastaréu da proa tombou como uma flecha de fogo, ricocheteando.
Logo em seguida, com um salto do tamanho de um dos nossos remos, ficou
flutuando tranquilo e muito negro no mar resplandecente. Novamente chamei do convés.
Passado um tempo, um homem com um tom de voz inesperadamente alegre, embora
abafado como se tentasse falar com a boca fechada, me informou: ‘Estamos indo,
senhor!’ — e desapareceu. Nada mais ouvi a não ser o estalar e o rugir do fogo
durante algum tempo. Havia também assobios. Os botes saltavam, davam guinadas e
puxavam pelas amarras, jogavam-se uns contra os outros, batiam seus cascos ou,
a despeito de nossos esforços, se reuniam em grupo contra o navio. Não consegui
aguentar mais e, pegando um cabo, subi para bordo pela popa.
Estava claro como um dia. Vindo do mar, o lençol
de fogo que se apresentava diante de mim era uma visão terrível e o calor a
principio mal parecia suportável. Num colchão retirado do camarote, o capitão
Beard, de pernas estiradas e um braço debaixo da cabeça, dormia, com a
luminosidade a brincar sobre seu corpo. Pois sabem o que os outros estavam
fazendo? Estavam sentados no convés da popa em volta de um saco aberto, comendo
pão com queijo e bebendo cerveja!
Sobre aquele fundo de chamas que se retorciam em
esquisitas línguas de fogo acima de suas cabeças, pareciam estar em casa, como
salamandras, e aparentavam um bando de piratas desesperados. O fogo refletia-se
no branco dos olhos, cintilava nos pedaços de pele branca que as camisas rotas
mostravam. Em todos, os sinais de batalha: cabeças enfaixadas, braços na
tipoia, um farrapo sujo em torno do joelho. .. e cada homem tinha uma garrafa
entre as pernas e um pedaço de queijo nas mãos. Mahon se levantou. Com sua bela
cabeça, perfil de anzol, longa barba branca, uma garrafa ainda fechada na mão,
parecia um antigo bucaneiro entregando-se ao prazer em meio a violência e ao
desastre.
– ‘A ultima refeição a bordo’, explicou solenemente.
‘Não comemos nada durante o dia e não valeria a pena deixar tudo isto pra trás.’
Com a garrafa indicou o capitão dormindo. ‘Ele disse que não podia beber, de
maneira que lhe arrumei a cama’, continuou Mahon enquanto eu olhava para ele. ‘Não
sei se esta sabendo, meu rapaz, que o homem não dormiu durante dias inteiros, e
que haverá muito pouco tempo para se dormir nesses botes.’
Respondi, indignado:
– ‘Não haverá nenhum bote por perto se vocês continuarem
nisso por muito tempo.’ Aproximei-me do capitão e o sacudi pelos ombros.
Finalmente o velho abriu os olhos, mas não se moveu: ‘E hora de abandonar o
navio, senhor’ — disse eu, em tom calmo.
Ele se levantou dolorosamente, olhou para as chamas,
para o mar que cintilava à volta do navio e que mais longe permanecia negro
como tinta; olhou para as estrelas que tremeluziam através de um delgado véu de
fumaça num céu negro, negro como Érebo.
– ‘Os mais jovens em primeiro lugar’, disse ele.
E os marinheiros, limpando a boca com as costas
das mãos, se levantaram, galgaram a amurada da popa e desapareceram. Os demais
os seguiram. Um deles, na hora de saltar, parou um pouco para ver o fundo da
garrafa e, abrindo os bravos, jogou-a ao fogo, gritando: ‘Toma isto!’
O capitão se demorava, desconsolado, e nos o deixamos
em paz com a comunhão solitária de seu primeiro comando. Depois, subi novamente
a bordo e o trouxe comigo, finalmente. Já era tempo. A ferragem da popa estava
quente, quando a tocávamos Em seguida, cortamos o cabo da baleeira e as três
embarcações, amarradas umas as outras, se afastaram do navio. Quando chegamos a
abandoná-lo estávamos exatamente a dezesseis horas da explosão. Mahon estava no
comando do segundo bote e eu tinha o menor — o de 14 pés. A lancha poderia
conter todos nós, mas o capitão dissera que deveríamos salvar tudo o que fosse possível
— para os homens do seguro — e assim eu tive o meu primeiro comando. Havia dois
homens comigo, uma caixa de biscoitos, algumas latas de carne e uma barrica d’água.
Recebi ordens de navegar perto da lancha para, em caso de mau tempo, passarmos
para bordo.
Pois sabem o que eu pensei? Pensei que deveria
dizer-lhes adeus tão logo fosse possível. Eu desejava ter o meu primeiro
comando somente para mim mesmo. Não iria velejar numa esquadra, se houvesse
oportunidade de um cruzeiro independente. Chegaria a terra sozinho. Iria à
frente dos outros botes. Juventude! Nada mais do que juventude! A estupida,
encantadora e bela juventude!
No entanto, não partimos de imediato. Devíamos
ver o navio afundar. E por isso os botes vogaram e vagaram em torno do navio
aquela noite, balançando-se nas ondas. Os homens cochilavam, despertavam,
suspiravam, resmungavam. Eu olhava para o navio em chamas.
Entre a escuridão de mar e céu, o navio se
consumia violentamente, sobre um círculo de água púrpura, desenhado pelas
chamas cor de sangue sobre um disco de água rebrilhante e sinistro. Uma chama
alta e esguia, uma imensa e solitária chama, se elevava do oceano e, do seu
alto, a fumaça negra subia constantemente para o céu. O navio ardia
furiosamente, imponente e aflitivo como uma peça de funeral plantada na noite,
cercada pelo mar, vigiada pelas estrelas. Uma morte magnifica viera como uma
graça, como uma dádiva, como uma recompensa para aquele velho brigue no final
de seus dias laboriosos. A entrega de seu cansado fantasma à guarda das
estrelas e do mar era excitante como a visão de um triunfo glorioso. Os mastros
caíram pouco antes de raiar o dia e por um instante houve um redemoinho de
faulhas que parecia encher de fogo volante a noite paciente e vigilante, a
vasta noite silenciosa sobre o mar. À luz do dia, o navio era apenas oca
carcaça flutuando, ainda sob uma nuvem de fumaça, transportando uma massa de
carvão em brasa.
Depois recolhemos os remos e os botes, em linha,
se movimentaram em torno dos restos do navio como numa procissão — a lancha à
frente. Quando passávamos pela popa, uma leve língua de fogo arremeteu-se
contra nós e, de repente, o navio foi a pique, da proa para baixo, cuspindo
agua. A popa, que não fora consumida pelo fogo, foi a ultima a afundar; mas a
pintura desaparecera, rachara, caíra e já não havia letras nem palavras, nada
que fosse, nenhuma obstinada divisa que lhe desse a alma que fazia, ao sol
nascente, que ele pudesse brilhar o seu credo e o seu nome.
* * *
Rumamos para o norte. Soprava uma brisa e mais
ou menos ao meio-dia todos os botes se reuniram pela última vez. Eu, no meu, não
tinha mastros nem velas, mas fiz um mastro com um remo sobressalente e icei um
toldo de navio como vela; tendo um croque como verga. Certamente o bote estava
com mastro demais mas eu tinha a satisfação de saber que, com o vento em popa,
venceria os outros dois. Precisei esperá-los. Depois, todos examinamos o mapa
do capitão e, após uma refeição em comum de pão duro e água, recebemos nossas
ultimas instruções. Elas eram simples: velejar para o norte e nos mantermos tão
juntos quanto possível. ‘Tenha cuidado com essa vela improvisada, Marlow’, me
disse o capitão, e Mahon franziu seu nariz recurvo quando passei orgulhosamente
por seu bote e advertiu: ‘Se não prestar atenção, você vai acabar jogando este
bote no fundo, rapaz.’ Era um velhote irônico — que o mar profundo, onde agora
dorme, o embale terna e suavemente até o fim dos tempos!
Antes do pôr-do-sol, um pesado aguaceiro passou
por cima das outras duas embarcações que estavam bem atrás e durante algum
tempo não voltei a vê-las. No dia seguinte, ao leme da minha casca-de-noz — o
meu primeiro comando — só tinha mar e céu a minha volta. À tarde, avistei as
velas altas de um navio muito distante, mas nada disse e os meus homens nada
perceberam. Compreendam vocês, eu temia que o navio estivesse de regresso e
absolutamente não me passava pela cabeça voltar das portas do Oriente. Eu
estava velejando para Java — outro nome abençoado como Bangkok. Velejei durante
dias e dias.
Não preciso dizer a vocês o que é estar a balançar
num bote desabrigado. Me lembro de noites e dias de calmaria, quando remávamos
e remávamos, e o bote parecia ficar tranquilo como que enfeitiçado dentro do
circulo do horizonte marítimo. Me lembro do calor, do diluvio que nos obrigava
a tirar água com balde para salvarmos a pele (mas pelo menos enchia o nosso
barril) durante dezesseis horas sem fim, de boca seca como cinza e o remo da
popa, a fim de manter o meu primeiro comando de proa contra a arrebentação. Não
sabia até então que eu era o que se pode chamar de um homem! Lembro os rostos
cansados, as figuras abatidas dos meus dois homens, me lembro da minha juventude
e um sentimento que nunca mais haverá de voltar — o sentimento de que eu podia
durar para sempre, mais do que o mar, do que a terra, do que todos os homens; o
ilusório sentimento que nos atrai para alegrias, para perigos, para o amor,
para o vão esforço — para a morte; a triunfante convicção de força, o calor da
vida numa mão cheia de pó, a chama de coração que todo ano diminui, esfria,
arrefece e expira — expira muito depressa, depressa demais, antes da própria
vida.
E foi assim que eu vi o Oriente! Vi os seus
lugares secretos e vislumbrei a sua alma; mas agora eu o vejo sempre de bordo
de um pequeno barco, uma linha alta de montanhas, azuis e distantes na manhã;
com uma leve neblina ao meio-dia; como uma muralha de púrpura recortada ao pôr-do-sol.
Sinto o remo na minha mão, tenho a visão do mar azul nos meus olhos. E vejo uma
baía, uma imensa baía, macia como um espelho e polida como gelo, cintilando no
escuro. Uma luz vermelha arde a distância sobre a escuridão da terra e a noite
está suave e cálida. Puxamos os remos com os nossos bravos doloridos e, de
repente, um sopro de vento, um sopro leve, tépido de vento carregado de
estranhos odores vegetais, de madeiras aromáticas, vem daquela noite tranquila
— o primeiro suspiro do Oriente no meu rosto. Nunca mais poderei esquecer isto.
Era impalpável e déspota como um encantamento, como uma sussurrada promessa de
algum prazer misterioso.
Na ultima etapa tínhamos remado onze horas seguidas.
Dois remavam e o que descansava segurava o leme. Havíamos visto a luz vermelha
da baia e velejávamos em sua direção, calculando que deveria representar algum
pequeno porto costeiro. Passamos por dois navios estrangeiros, de popa alta e exóticos,
que dormiam ancorados, e já próximos do farol esmaecido batemos com a proa do
bote na ponta de um ancoradouro. Estávamos cegos de tanta fadiga. Os homens
largaram os remos e caíram dos bancos, como mortos. Amarrei o bote numa estaca.
Uma corrente de ar agitava brandamente as águas. A obscuridade da costa se agrupava
em grandes massas, uma infinidade de camadas colossais de vegetação ao que
parecia — mudas e fantásticas sombras. E embaixo, o semicírculo de uma praia
reluzia debilmente — como uma ilusão. Não havia uma luz sequer, um movimento,
um som. O misterioso Oriente estava diante de mim, perfumado como uma flor,
silencioso como a morte, escuro como uma sepultura.
E lá estava eu, mais cansado do que saberia
descrever, exultante como um conquistador, insone e em transe como estivesse
frente a um enigma fatal e profundo.
Um bater de remos, um leve ruído rítmico ao nível
da água, ampliado pelo silêncio da costa, me fez saltar. Um bote, um bote
europeu estava chegando. Invoquei o nome do morto e chamei:
– “0 de bordo, do Judea!”
Um pequeno grito me respondeu. Era o capitão. Eu
havia ultrapassado sua lancha em três horas e estava contente por ouvir
novamente a voz do velho, trêmula e cansada.
– ‘É voce, Marlow?’
Gritei:
– ‘Cuidado com a ponta do molhe, senhor!’
O bote se aproximou cuidadosamente, manejado com
a linha de prumo que havíamos salvo — para os homens do seguro. Folguei a boça
do escaler e fiquei a seu lado. O capitão era uma figura abatida na popa, úmido
de sereno, as mãos cruzadas no peito. Seus homens já dormiam.
– ‘Foi terrível’, murmurou. ‘Mahon ficou para trás,
não muito distante.’
Conversávamos em voz baixa, como se receássemos
despertar a terra. Canhões, trovoadas, terremotos não poderiam despertar os
homens. Olhando a volta, enquanto conversávamos, vi, a distância, no mar, uma
límpida luz navegando na noite.
– ‘La vai um vapor passando pela baia’, disse
eu.
O vapor não estava passando, estava entrando — e
até mesmo se aproximou e lançou âncora.
– ‘Gostaria que você descobrisse se é um navio inglês’,
disse o capitão. ‘Talvez pudesse nos levar para algum lugar.’
Parecia excitado e nervoso. Assim, com murros e
pontapés, coloquei um dos meus homens em estado de sonambulismo e, dando-lhe um
dos remos, tomei o outro e remamos em direção as luzes do vapor.
Havia um murmúrio de vozes a bordo, ruídos
metálicos e cavos na casa de máquinas, passos no convés. As portinholas
brilhavam, redondas como olhos dilatados. Sombras se movimentavam e surgiu a
silhueta de um homem no alto da ponte de comando. Ele escutou o ruído dos meus
remos.
E então, antes que pudesse abrir os lábios, o
Oriente me falou, embora numa voz ocidental. Uma torrente de palavras foi
despejada no silencio enigmático e fatídico; palavras exóticas, iradas,
misturadas com palavras e mesmo frases inteiras em bom inglês, menos estranho
mas ainda assim mais surpreendente. A voz praguejava e xingava violentamente; destroçava
a solene paz da baia com uma enxurrada de injurias. Começou por me chamar de
porco e dai em diante continuou em crescendo para adjetivos impossíveis de se
reproduzir — em inglês. O homem que estava na ponte do comando se enraivecia em
voz alta, em duas línguas, com uma sinceridade na sua fúria que quase chegou a
me convencer de que, de alguma maneira, eu havia cometido um pecado contra a harmonia
universal. Mai podia vê-lo mas comecei a pensar que ele acabaria tendo um
acesso de loucura.
De repente, parou de praguejar e consegui escutá-lo,
roncando e soprando como uma foca. Perguntei:
– ‘Por favor, que navio é este?’
– ‘Hem? O que é isto? E quem é você?’
– ‘Tripulação naufragada de um navio inglês que
se incendiou no mar. Chegamos aqui hoje à noite. Sou o segundo-piloto. O capitão
esta na lancha e deseja saber se vocês podem nos levar para algum lugar.’
– ‘Oh, meu Deus! Quer dizer... Este é o Celestial
vindo de Singapura em sua viagem de retorno. Pela manha combinarei com seu capitão...
e... o senhor me escutou gritando ha pouco?’
– ‘Creio que toda a baía escutou.’
– ‘Pensei que se tratasse de um barco costeiro.
Agora, escute aqui... esse diabo desse preguiçoso desse canalha do guarda esta
dormindo de novo, maldito seja! As luzes estavam apagadas e eu quase jogo o
navio de ponta nesse molhe do inferno. É a terceira vez que ele me prega uma
peça dessas. Diga-me se alguém pode tolerar uma coisa destas... É o suficiente
para deixar alguém maluco. Darei parte dele... Vou fazer com que o encarregado
o demita...! Esta vendo, não tem luz!? Imagine só... sem luz. O senhor é
testemunha que está apagada. Como deve saber precisa haver uma luz ali. Uma luz
vermelha no. . .’
– ‘Mas havia uma luz’, disse eu, calmamente.
– ‘Mas apagou-se, homem! De que adianta ficar
falando nisso. O senhor mesmo pode ver que ela desapareceu, não pode? Se o
senhor tivesse de trazer um vapor caro como este ao longo de uma danada de uma
costa, o senhor também iria querer uma luz. Mas hei de escorraça-lo daqui a
pontapés. Ora, vai ver se não vou... Vou... ’
– “Portanto posso dizer a meu capitão que irão
nos receber?”, interrompi.
– ‘Pode, vamos recebê-los. Boa noite’, disse
ele, bruscamente.
– Retornei ao molhe, amarrei novamente o bote e
finalmente dormi. Havia já enfrentado o silêncio do Oriente. Havia escutado um
pouco de sua linguagem. Mas quando abri meus olhos de novo o silêncio era tão
completo como se jamais tivesse sido interrompido. Eu estava deitado numa
torrente de luz debaixo de um céu que nunca me pareceu tão distante e tão alto.
Abri os olhos e fiquei assim mesmo, sem me mexer.
– Foi então que vi os homens do Oriente — eles
estavam me olhando. Toda a extensão do navio estava cheia de gente. Vi rostos
pardos, bronzeados, amarelos, olhos negros, o brilho, a cor da multidão
oriental. E todo esse pessoal me olhava fixamente sem um murmúrio, sem um
suspiro, sem um movimento. Fitavam os botes, os homens adormecidos que durante
a noite o mar lhes trouxera. Nada se mexia. As
copas das palmeiras mantinham-se tranquilas contra o céu. Nem um ramo oscilava
ao longo da costa e telhados castanhos de casas ocultas surgiam por entre folhagens
verdes, por entre os grandes galhos que pendiam brilhantes e tranquilos como
folhas forjadas em metal pesado. Aquele era o Oriente dos antigos navegadores,
velho misterioso, resplandecente e sombrio, vivo e inalterado, cheio de perigos
e promessas. E aqueles homens eram seus homens. Sentei- me rapidamente. A multidão
movimentou-se, como uma onda, de um extremo ao outro do molhe, balançando as
cabeças, oscilando os corpos, ao longo do molhe como uma mareta sobre a água,
como um sopro de vento no campo — e tudo voltou de novo a imobilidade. Posso
vê-lo agora — a ampla baía, as areias refulgentes, a riqueza do infinito e
variado verde, o mar azul como um mar de sonho, a multidão de rostos atentos, o
esplendor de cores vívidas — e a água refletindo tudo, a curva da costa, o
cais, o vapor estrangeiro de popa para o alto a flutuar mansamente e os três
botes com os homens do Ocidente cansados, e dormindo, inconscientes da terra e
das pessoas e da violência dos raios solares. Dormiam estendidos nos bancos dos
botes, encolhidos no convés, em poses descuidadas de morte. A cabeça do velho capitão
apoiada na borda da lancha deslizara para o peito e dava a impressão de que ele
jamais despertaria. Mais distante, o rosto de Mahon se encontrava de frente
para o céu, com a longa barba branca espalhada pelo peito, como se tivesse
morrido de tiro ali mesmo onde estava, ao pé do leme; e um dos homens,
encolhido na proa do bote, dormia com o rosto sobre a amurada, os bravos em
volta do bico da proa. O Oriente olhava para eles sem emitir um som.
– Desde então tenho sentido o seu fascínio; vi
as misteriosas praias, a tranquila água, as terras dos povos morenos, onde uma
furtiva Nêmeses espreitava, perseguindo, dominando tantos homens de uma raça conquistadora que se orgulha de
sua sabedoria, do seu conhecimento, de sua força. No entanto, para mim, todo o
Oriente esta contido nesta visão da minha juventude. Está tudo nesse momento em
que abri meus olhos juvenis sobre ele. Chegava ao Oriente depois de batalhar
contra o mar — e eu era jovem, e eu o vi olhando para mim. É isto tudo o que
restou. Apenas um momento — de juventude! Um raio de sol sobre uma costa
estranha, o tempo de lembrar, o tempo de suspirar e... bem, adeus! Noite —
adeus!”
Marlow bebeu.
“Ah, os bons tempos — os bons tempos. Juventude
e mar. Sedução e mar. O bom e poderoso mar, o salgado e amargo mar que podia sussurrar,
rugir ou tirar-nos o folego.”
Marlow bebeu novamente.
“Entre todas as maravilhas, é o mar, acredito, o
mar em si mesmo — ou é a juventude em si? Quem pode dizer? Mas vocês aí — vocês
que conseguiram alguma coisa da vida, dinheiro, amor, tudo o que se consegue na
terra — vocês não acham que o melhor dos tempos foi aquele em que éramos jovens
no mar, jovens que nada tinham, e no mar que não nos dá coisa alguma a não ser
pancadas e por vezes uma oportunidade de sentirmos nossa própria força? Não
seria somente esse o tempo que todos nos recordamos com saudade?”
E todos nos concordamos com ele: o homem de empresa,
o guarda-livros, o advogado, todos nós concordamos com ele, mexendo a cabeça
por sobre a mesa polida como um lençol tranquilo de água escura que refletia
nossos rostos vincados pelas rugas; nossos rostos marcados pelo trabalho, pelas
decepções, pelo sucesso, pelo amor; nossos olhos cansados, procurando
fixamente, sempre, com ansiedade, alguma coisa fora da vida que, enquanto se
espera, já se foi – passa sem ser vista, como um suspiro, como um relâmpago –
junto com a juventude, a força, o romance das ilusões.
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