Anibal Machado (1894-1964), mineiro de Sabará,
escritor, futebolista (autor do primeiro
gol do Galo mineiro) e professor, autor de contos magistrais como Viagem aos
seios de Duília e Tati, a garota aqui reproduzido.
Tati, a garota
Aníbal Machado
Vendo que era mesmo impossível,
Tati desistiu de pegar o raio de sol estendido no chão. Os dedos feriam a terra
inutilmente: o reflexo não tinha espessura.
Seu capricho agora era com a água. Queria ver se
retirava ao menos um pedacinho do tanque, mas o liquido suspenso em suas mãos
vira uma coisa diferente que se desmancha logo, cintilando entre os dedinhos. E
na superfície do tanque não ficava a menor cicatriz!...
É a primeira vez que Tati brinca na agua com intenção
de agarrá-la, de sentir-lhe o mistério. Fica tão absorta, que os apelos “Anda,
Tati! Larga isso, menina!” que vem da janela, nem chegam a ser ouvidos.
Logo depois, começa a ventar. Mas, com o vento era
diferente: Tati já sabia que ele nunca se deixa agarrar nem ver, embora viva
sempre em toda parte dando demonstrações de sua presença. Esse vento!...
Antes de subir, joga água em si mesma, apressadamente,
borrifando-se no rosto, no vestido, como mulher que se perfuma.
Chegando a noite, Manuela atira-se à cama, sem
responder a algumas perguntas que lhe faz a filha, sempre intrigada com a água.
Debaixo das cobertas, Tati ainda balbucia os últimos pedidos: um carrinho e um
patinho igual ao que viu nas mãos de outra criança.
—Esse menino que tinha patinho, não sabe, mamãe? comia
cada bombom que só você vendo!... O papel era uma beleza! Aqui, eu acho que
todo mundo come muita bala, também...
—Dorme, Tati.
—Aqui é bom.
—Dorme...
O mar seria visto em toda a sua extensão se não fosse
o arranha-céu. Os outros personagens da vida de Tati, as amiguinhas do subúrbio,
de onde a mãe se mudara, baralharam-se naquele momento na memoria. Uma porção
de crianças sumindo-se na poeira, na neblina, dentro da noite... Quem mais
necessitava do sono era a costureira. Exausta, só no dia seguinte trataria de pôr em ordem o aposento.
O bairro era outra coisa agora, bem diferente de há seis anos atrás, quando
costurava para uma família rica, já gravida de Tati. O rapaz se casara e
partira para a Europa. Para que pensar em coisas tristes?...
—Mamãe esse barulho e mar, não é?
—É. Não tenhas medo, não. Dorme...
A mãe se enganou. Tati não estava com medo; estava era
louca por que o dia amanhecesse depressa e ela pudesse correr ate à praia,
chegar bem perto das ondas. Enquanto a mãe dormia, Tati, ainda acordada no
quarto escuro, sentia estar num lugar muito diferente, muito longe de tudo. Os
trens do subúrbio não passavam ali. Ouvia-se tanto e tão perto o mar que, na escuridão,
parecia que o quarto navegava...
Quando, na manhã seguinte, a menina abriu os olhos,
uma faixa de sol cortava ao meio o corpo da costureira. Tati ficou esperando
que ela acordasse. Em vez de despertá-la diretamente, começou a fazer barulho,
como se fosse sem querer. As perguntas a fazer-lhe estavam se acumulando na sua
impaciência. O corpo de Manuela dividia a cama em duas metades, como uma
muralha branca. Tati imaginou que o outro lado seria o melhor; deu uma
cambalhota e passou-se para o outro lado. Gostou e riu. Quis repetir o salto e transpôs
novamente a colina de carne no vale da cintura.—Ih! esta mamãe não acorda.
Era grande sua mãe. Como ela começasse a despertar,
Tati se alvoroçou, agarrou-se a seu rosto, aos beijos, cascateando frases e
perguntas:
—Mamãe, você pode ter um filho patinho?... Eu já
acordei, já fui até lá longe, no fim do corredor... Essa casa e engraçada.
Deixa eu ir ver o mar agora?
Logo depois, a figurinha da criança se perdia entre as
pernas dos pescadores de arrastão.
O bairro tinha agora mais aquela garota. Pediam-lhe
cachos de cabelo, mexiam com ela, davam-lhe restos de frutas na quitanda. Duas
vezes, a mãe pensou que ela tivesse sido raptada. Os motoristas do “ponto”
levavam-na como mascote. A costureira, a princípio, se assustava, depois se
habituou.
—Olha, se foges para o meio do arrastão, os pescadores
um dia te pisam, e te botam no balaio, pensando que es peixe.
Tati esta ouvindo com atenção. Ser jogada no balaio,
de mistura com os peixes!—“E depois, mamãe?”—“Depois... eles te vendem aos
fregueses.” A garota, emocionada agora, sente- se vendida. Estava quase a
chorar, imaginando o seu destino: cortada, frita ou cozida, explicou-lhe a mãe.—E
servida, depois, nalgum pastelão ou mayonnaise,
você vai ver.
Os gritos de dois garotos na calçada interrompem-lhe a
angústia. Tati desce depressa, aos trambolhões. Lá de baixo ainda faz uma
pergunta:—Não vou ser vendida, não! Não é, mamãe?
Era a hora combinada para uma concentração de bonecas
num lote vazio. Chegaram algumas crianças timidamente, cada qual sobraçando uma
boneca pavorosa. Tati, a mais despachada, ia-as colocando de maneira a que
formassem uma grande família. As bonecas de pano, pretinhas, se misturavam no
terreiro com as brancas, de louça, com as índias e mulatas de palha de milho.
Uma menina, que se conservava longe, agarrando a sua, acabou aderindo. Mas a
que ficou solitária, no sexto andar do apartamento, apenas olhava, cheia de inveja.
De baixo, as crianças gesticulavam para ela:
—Vem brincar também, boba! Vem!
A ama, quando a mamãe saíra a passeio à cidade, tivera
ordem de não deixar. A garota estava louca de vontade. Um moleque que apreciava
a festa de longe, gargalha:
—Olha aquele lá, sem cabeça! Que gozado!...
Era o Gerê, guilhotinado o ano passado numa janela.
Esse boneco não devia figurar no meio dos outros. Mas Tati votava-lhe estima
particular. Sujo, esventrado, arrastado pelos cachorros, tantas vezes
encharcado pela chuva e salvo da lata de lixo, Gerê vinha tendo quase a mesma
idade e era o companheiro inseparável de Tati.
—Espera aí, que vou buscar a cabeça dele! disse Tati,
correndo.
Não achou a cabeça. Na janela do apartamento, a menina
solitária exibia uma boneca maravilhosa, que seria a rainha no meio das outras,
se descesse. Tão imóvel parecia a menina da janela e bem vestida, que não se
distinguia bem qual das duas era a boneca. Tati, ao voltar, explicou que Gerê
era assim mesmo: de vez em quando, caía-lhe a cabeça; as pernas, as tripas, já
foram mudadas.
—Vocês não estão vendo este braço aqui? Pois foi mamãe
que botou. Mamãe vai dar agora um bebê de verdade. Quando papai chegar, ele vai
colar a cabeça.
—Você tem pai?
—Tenho, uai! Tenho até muitos...
As crianças se riram. Tati ficou desconcertada.
—A gente tem um pai só, boba! explicou uma lourinha.
Tati ficou imaginando que ter mais de um, ter muitos,
era mais vantajoso. Mas as crianças continuaram a rir. Então, pensou Tati, com
certeza era porque só se podia ter um pai... e o dela, nesse caso, devia ser ..
quem? O seu Vicente, com certeza, que a levou a Niterói tantas vezes, que lhe
compra brinquedos, que a acompanha a Feira de Amostras—o melhor lugar que já se
viu no mundo...
Mas ficou na dúvida. Parecia-lhe que a mãe lhe havia
dito, há muito tempo, que o pai tinha viajado—viajado ou morrido, não se
lembrava bem. Outros pareciam “pai”, mas desapareceram logo, Tati se esqueceu
deles. Um, com quem simpatizara, que passeara com ela num domingo, já era pai
de outra menina, estava ocupado... Precisava, entretanto, arranjar pai, cada
amiguinha tinha o seu, que era visto todo dia saindo cedo e voltando com
embrulhos, com certeza de bombons. Ficaria então sendo o seu Vicente mesmo,
nome que lhe acudira assim de momento.
—Eu acho que meu pai é o seu Vicente... disse sem
convicção.
As crianças sorriram.
—Então você não sabe quem e seu pai?... Que é isso?...
Apertada pelas perguntas, Tati achou melhor correr
para casa. Sua mãe é que devia saber tudo. Ao passar debaixo do arranha-céu,
recolheu, maravilhada, uma caixa vazia de bombons atirada lá de cima. Pediu a mãe
os esclarecimentos. Não compreendeu nada, mas deu-se por satisfeita.
— ...Enfim, teu pai, não sei se voltara, disse-lhe
Manuela. Também para que ter pai?
—As outras usam, mamãe...
—Tua boneca tem pai, tem? Então!?
Tati deixou cair uma cortina sobre esse mistério. Mas
devia ser aquilo mesmo: boneca não precisa ter pai... Tinha mãe, que era ela,
Tati.
A porta parou uma garotinha sobraçando Gerê e
Carolina, os dois bonecos que ficaram esquecidos no brinquedo. Carolina
apresentava uma inchação no braço:—“Acho que foi escorpião que mordeu ela, lá
no mato, mamãe!... Eu posso ir na praia?” “Quando neném nascer, eu levo ele lá
para brincar comigo. Você deixa, não deixa, mamãe? Carolina também vai.” Uma
hora depois Tati voltava em pranto, toda suja de areia, indignada com um avião
que passou baixinho por ela, quase lhe levando a cabeça.
—Garanto que foi de proposito, mamãe. Garanto... Eu
xinguei ele e ele voltou com mais raiva ainda...
Contou então que ela e a pretinha, quando perceberam o
avião voltando, se haviam deitado na areia; pois não é que o bicho ainda esvoaçou
mais baixo, mesmo em cima delas, como um gavião enorme!.. –Uma coisa medonha, mamãe!
Horas monótonas, depois que todas as amiguinhas
seguiram para a escola. Que fazer? Ninguém quer brincar. Não há ninguém para
brincar. A filha do tintureiro não se mexe, quase nem fala. É com a pretinha
Zuli que Tati se arranja. Já plantaram feijão e milho na areia. Feijão e milho
de verdade. Tati deseja também ir para a escola, carregando a maleta cheia de
objetos. Aliás, a escola tinha menos importância, o principal era a maleta com
os objetos. Fica horas rabiscando a porta de entrada, aprendendo sozinha. Começa
a conceber uma carta para o bebê que ia nascer. Queria dizer-lhe que viesse
depressa, o novo bairro era uma maravilha, o mar pertinho mesmo. Às vezes, à
sua maneira, cantava o “Ouviram do Ipiranga”, e se imaginava na escola.
—Vai chamar mamãe, disse-lhe uma freguesa ao chegar à
porta.
—Não posso.
—Uai! Você é tão boazinha! Vai.
—Você não vê que estou trabalhando!
Ficou séria. Depois de algum tempo, levantou para a
desconhecida o papel:
—Vê se saiu algum negócio ai. A mulher finge ler alto
qualquer coisa na folha rabiscada. Tati se levanta, exclama exaltada:—Pois é
isso mesmo que eu tinha escrito! E, logo depois, subiu ao primeiro andar:—Mamãe,
eu aprendi sozinha a escrever. Sabe como é que a gente faz? A gente esfrega bem
o lápis no papel, esfrega bem e pronto! Sai logo uma coisa; lê isso aqui.
A mãe sorri, olhando para o papel. Depois pergunta:—E
esses rabiscos?
—Isso é o Brasil... A menina tomou-lhe de novo a folha
e, deitada no chão, continuou rabiscando:—Mamãe, acho que tem uma moça chamando
você lá embaixo...
—Por que não me disse logo?
—Me esqueci.
Tati só deixava de ser alegre quando dormindo. Mesmo
assim, se tocassem nela, a garota sorria. E amanhecia sempre rindo, como o sol.
Quando lhe perguntavam por ela, a mãe respondia:—Sei lá! Anda por aí pulando...
As pessoas da vizinhança assustavam Manuela:—“A
senhora ainda perde sua filha. Esses choferes não tem entranhas, os caminhões são
malucos!” Que podia ela fazer? Não tinha quem tomasse conta da filha. Prendê-la,
impossível...
Brincava sempre na calçada do lado esquerdo do
arranha-céu. O lado milagroso. Era de lá que caiam os objetos. Depois que
descobriu esse segredo, a menina passava horas ali, na expectativa. Constantemente
entravam embrulhos no edifício. Tati imaginava que lá dentro se passava muito
bem. Uma espécie de paraíso. De vez em quando descia uma nuvem de papeis
multicores que ela apanhava depressa, maravilhada. Sempre do lado esquerdo. Uma
mulher loura, que devia ser uma fada, tinha mania de jogar fora objetos de pouco
uso. De proposito já atirara aos pés de Tati uma bonequinha e um vidro vazio de
perfume. Certa vez, a garota entrou na casa com um porta-seios amarrado a
cintura. Tinha-o encontrado no capinzal do outro lado do arranha-céu. Achou
esquisito que aquilo houvesse chamado a atenção de todo mundo. De outra feita,
apareceu com uma seringa de borracha, mas sua mãe lhe arrebatou imediatamente
das mãos o estranho objeto. Tati ficou sem compreender. Sua mãe era formidável,
mas fazia muita bobagem. Que é que tem seringa?...
Já há muito não cai nada do lado esquerdo. Com certeza
a fada se mudou. Enquanto espera o vulto de cabeleira loura, joga “amarelinha”
com a preta. Avista o Pão de Açúcar e diz pulando na corda:—“Eu vou lá um dia.”
Olhando para o sétimo andar:—“O arranha-céu hoje está ruim. Quando eu subir o Pão
de Açúcar, vou jogar pedra nos navios que passam embaixo; tem um homem que
largou mamãe e que foi-se embora num navio...”
Não caia mesmo nenhum brinquedo do arranha-céu. O
calção de Tati secava-lhe no corpo e do mar ventava frio.
No dia seguinte voltou na esperança de encontrar ainda
alguma coisa. Mas não podia olhar para cima, para o apartamento da fada, que a cabeça
lhe doía.
Uma vizinha gritou para Manuela que viesse depressa
carregar a criança. Se não queria vê-la mortal... A portuguesa da quitanda
tapava a cara para não presenciar o esmagamento.
—Parece até criança enjeitada...
Mas os motoristas faziam a curva com agilidade, os
pneumáticos cantando, e Tati continuava dormindo no asfalto, quase no meio da
rua. Manuela desceu, arrecadou a filha. A menina estava febril, respirava mal.
Mudaram-lhe a roupinha, limparam-lhe a cara.
Dessa vez, não achou sabor no passeio de ônibus. Mal
teve tempo de agarrar Carolina no tumulto da saída. Foi levada num turbilhão
para a cidade. Apearam-na, meteram-na num elevador, tudo num turbilhão. Num turbilhão
foi embrulhada no lençol, deram-lhe injeções, arrancaram-lhe as amigdalas.
Dias depois, mal pode recordar-se do que lhe sucedera.
Só se lembrava dos dois brutos de avental que a agarraram, do sangue que saia
pela boca e molhava a bacia. Não compreendia como é que sua mãe, tão poderosa e
tão boa, houvesse consentido em tamanha estupidez. Ficou ressentida durante
dias, soluçando às vezes; mas, com os sorvetes sucessivos que a mãe lhe dava,
convenceu-se que ela continuava a ser a mesma. Narrava com orgulho a outras crianças
a proeza em que estivera metida.
—Você agora não saia de perto de mim, ouviu?
Tati aceitou. Com a condição de ganhar mais sorvetes.
Seu lugar ficou sendo a janela. Passava horas quietinha lá em cima, espiando a
vida. Que graça tinha aquilo? Domingo pau! Viu uma onda enorme crescendo para
se arrebentar na praia. —“Mamãe, chegou agora uma onda do tamanho do arranha-céu.
Eu pensei que ela fosse levar a nossa casa...” Continuou espiando. Não
acontecia nada, não passava ninguém. De repente, observou:—“Mamãe, subiu um
homem de preto!...”
A costureira nada respondia, mais atenta ao rumor
ultimo de seus pensamentos do que ao barulho da máquina e à voz da filha. O tempo
passava. O tédio pesava. Ate o mar parecia dormir. Tati também quase dormia no
parapeito. De novo a voz dela:—“Mamãe, mamãe! Desceu outro homem de preto...”
Fez uma pausa.—“Isso e engraçado, não é?”
Manuela, com o pensamento longe. A máquina parou o
movimento. A costureira agora se assusta, porque os gritos que vem da janela são
fortes.—Mamãe, mamãe!...
—Que é, minha filha? Que foi?... Manuela receava que a
menina estivesse a precipitar-se. Entrou atemorizada no aposento.—Mamãe,
perguntou-lhe Tati, baixando a voz, quando é que eu vou ficar grande?...
- Assustando sua mamãe!...
Da janela, apontando para os horizontes do mar, pedia explicações:
—Pra lá, o que é que tem?
—É o mar ainda.
—E depois?
—Depois, é a África.
—E pra lá?
—Pra lá é a Tijuca.
—Não! Eu pergunto: pra lááá, o que é que tem?
—Ah! minha filhinha, não sei não, sua mãe tem mais o
que fazer.
—E pra lá?—insistiu ainda, virando-se para outro lado
—É o resto do Brasil. Depois é a America do Norte.
Com ar de interpelação:
—E o mundo mesmo, onde é que fica?
—Uai, bobinha, o mundo é isto tudo!...
O que Tati quereria fazer se não estivesse presa era
abrir um túnel na areia, brincar de casinha, e depois subir o elevador do
arranha-céu para ver melhor o mundo que Manuela lhe vinha explicando. Mas sua mãe
estava ruim aquele dia, proibiu tudo e agora jogou-a na cama. Sem ação, sem
sono, começa a imaginar e faz perguntas:—Mamãe, filho de elefante já sai
daquele tamanho? Por que e que bicho não fala, hein?... Você não sabe o
Zequinha? Ele é moleque mesmo... Outro dia ele quis suspender a minha saia, eu
dei um soco nele. Eu também tenho muque, não tenho, mamãe? Quem tem mais muque
que eu sei é o seu Vicente, mas o muque de Popeye ainda é muito maior... O
muque de Deus, então nem se fala, não é, mamãe?...
Era o defeito de sua mãe, refletia Tati: quase não
conversa. Quando conversa é com gente grande sobre costura e doenças: —Só
bobagens. Saltou no colo dela. Era quente esse colo.
Tati esperava amanhecer para se dirigir ao mar. O mar estava
sempre em seu pensamento, diante do olhar ou nos ouvidos. Louca por ele.
Respeitava-o como à sua mãe. Ambos eram até parecidos, não sabia bem por quê.
Grandes, poderosos e macios, podendo enraivecer de repente, podendo matá-la se
quisessem. Misteriosa, sua mãe era também; mas perto dela, como agora, Tati se
sentia abrigada, ao passo que o mar era terrível, oh! terrível...
—Não brinca muito longe de casa, recomendou-lhe
Manuela, quando o sol do dia seguinte clareou a praia. A criança respondeu que
tinha pensado num brinquedo muito bom para não ir longe—o de horta. Num canto
do terreiro abriu com a pretinha uns buraquinhos, atirou dentro grãos de milho
e feijão. Uma empregada da lavanderia disse que pegava. Os dias iam passando.
—Quando você for na cidade você me leva, mamãe?
Delicia era ver as vitrinas. A principio Tati queria
possuir tudo que aparecia nelas. Custara a compreender como é que as pessoas não
furtavam aquelas maravilhas. Agarrada ao dedo de sua mãe, ia ouvindo as razoes
por que não se podia fazer isso. A explicação não a convence, tanto mais que
outros mostruários belíssimos de frutos, brinquedos e objetos bonitos vão
sucessivamente se oferecendo e provocando.
—Eu acho que neste mundo tem tudo, não é, mamãe?
Impressionada com uma vitrina de queijos, pergunta
qual a árvore que dava aquilo. Alguns manequins, parecendo gente de verdade, a
irritavam; tinha vontade de atirar pedra neles. A mãe se demora nas compras, a
garota aproveita as quadras do passeio para jogar amarelinha. Indiferente aos empurrões,
vai sendo arrastada para longe, pela onda de transeuntes apressados. Meu Deus,
em que casa mesmo entrou sua mãe? Tati já esta longe, mais absorta no jogo do
que amedrontada. Mas sua mãe está demorando. De que porta sairá Manuela? Sente-se
perdida, angustiada, a querer gritar pela salvadora, quando uma mão aflita a
agarra e lhe dá um beliscão. Viera assustada sua mãe. A garotinha chora. E como
pede entre lágrimas um automovelzinho, a mãe não sabe se esta chorando pelo
beliscão ou pela falta do brinquedo. A costureira consulta a bolsa. O dinheiro não
dá. A porta de uma casa de pássaros, Manuela não tem forças para arrancar a
filha do êxtase que a deixara ali boquiaberta. Os canários cantavam e saltavam.
Tati foi logo escolhendo com avidez:
—Eu quero aquele, mamãe; aquele que esta mais maduro...
E os peixinhos no aquário agora!—Ai! que coisa mais
linda do mundo, você um dia me dá aquilo, mamãe?
Tati quase perde a respiração diante do aquário.
Mais adiante, a entrada da Policlínica, lembra-se de
dizer que esta sentindo o “cheiro do Dr. Almeida”, o que a operou.
Aqui, seus olhos se levantam com terror para o rosto
de Manuela. Estaria sendo conduzida para algum novo sacrifício? Ficou
caladinha, sua mamãe prosseguiu, entrou em outras casas, cumprimentou gente,
discutiu preços. O perigo passou... Tati respirou. Sua mamãe sempre desembaraçada
e corajosa, os homens a olharem para ela e ela firme, sem se perder na floresta
da cidade!
Era mesmo formidável sua mãe! Tati a admirava. As meninas
do bairro, as vezes, apostavam quem tinha mãe mais importante, mais bonita. Foi
quando estacionara na calçada uma senhora trajada com luxo, que uma das garotas
gritou orgulhosa:—“Aquela ali e que é minha mãe, olha lá!” A mulher
impressionava pela riqueza da toilette.
As outras meninas olhavam com respeito. Tati ficou a contemplá-la, meio triste.
De repente, abriu um sorriso, deu um grito:—“Mas quem fez o vestido dela foi mamãe,
taí.”—Foi nada! É prosa sua!—Foi, sim! Que vê?—Atravessou a avenida e fez a pergunta:—“Não
foi mamãe que fez o seu vestido, moça?” A senhora se atrapalhava com a bolsa, o
lorgnon, e as luvas.—“Não foi mamãe
que fez, moça?” Um ônibus foi parando, a senhora embarcou depressa, um tanto
perturbada. Tati ainda exclamou atrás do veiculo:—“Foi mamãe, sim, foi mamãe!”
Como a discussão terminasse em briga, Manuela prendeu
a garota. Estranhou que ela ficasse quieta tanto tempo e foi ver. Tati se
achava diante do espelho, colocando grampos nos cabelos, em atitude de grande
dama, pondo-se rouge e fazendo
ademanes de estilo. Manuela se ri. Tati despertando
de seu sonho, recebeu um susto, começou a chorar. Chorou bastante. É manha. A
vida estava ficando monótona. As bonecas estão quebradas, as amiguinhas não
aparecem. Será fome? Não. É sono.
Tati dorme. Desperta algumas
horas depois, a ouvir uma conversa esquisita entre sua mãe e outra mulher. Faz
uma pergunta, Manuela responde que mais tarde, quando ela for grande, explicara
tudo.
Já era enorme a quantidade de
coisas que Tati iria saber quando ficasse grande.
As amas impeliam os bebês nos
carrinhos, a hora matinal. Tati chegava perto para acarinhá-los, mas era
repelida por causa das mãos sujas. Então ia brincar com as ondas. De repente, a
praia começou a ficar vazia de crianças. Os carrinhos atravessavam a rua e se
recolhiam precipitadamente. Algumas amas que costuravam nos bancos ao lado dos
bebês levantavam-se e fugiam. Depois, outras; e, assim, todas se foram. Alguém
viera anunciar que Febrônio, o “monstro”, havia fugido da prisão e passeava ali
pelas imediações. A notícia ainda assustou mais devido ao céu que escureceu
subitamente, e ao vento que começava a encapelar o mar. As vidraças batiam,
fechando-se. O monstro já devia estar presente por ali, a pegar crianças.
E mês de agosto
O vento sopra
Lá vem Febrônio
Corre, gente!...
Fechem as janelas
Que lá vem Febrônio
La vem que nem um maluco
Todo barbado
Na frente da ventania
Corre, gente!...
Tati ficou sozinha, pensando
fosse alguma coisa que viesse do mar. Quem pode saber tudo o que vem do mar?
Todas as crianças se foram, ela se sentia abandonada, querendo soluçar. Até as
ondas pareciam correr atrás, expulsando-a das águas. Uma criada explicou-lhe:—Febrônio
está solto, menina! Depressa pra casa!
—Que é, minha filha? perguntou Manuela, ao vê-la chegar pálida
de terror.
—Febrônio, mamãe, Febrônio!...
Diz que fugiu... Ele e o papão!... Deixa eu ficar no seu colo? Um tiquinho só...
Manuela carregou-a ao colo,
mas quase não podia mais, porque o “outro” não deixava lugar.
Um dia, sem que Tati pedisse,
todos insistiram para que fosse brincar. Quando voltou, uma senhora que ela mal
conhecia dera-lhe merenda com recomendação de que continuasse a brincar. Sempre
brincou, ora essa!
Por que é que aquele dia todo mundo estava fazendo questão?
Era o irmão que ia nascer. Ao perceber o que se
tratava, assumiu aspecto grave, não quis muita conversa com as companheiras.
Enfim, chegara o dia! No matinho do terreno baldio ficou colhendo umas flores
para o irmão, ¡a espera do aviso. A cegonha estava demorando muito. Já tarde
foram dizer-lhe que podia vir. Voltou correndo, a respiração cortada. No quarto
se discutia a melhor maneira de dar a notícia.
—Eu acho que a senhora e quem devia explicar, disse
uma velha dirigindo-se a parteira.
—Eu não. Não gosto de dar má noticia a ninguém.
—Olha, decidam depressa que a menina já vem subindo.
—Eu não digo.
—Nem eu.
—Eu acho que a senhora, como tia, é quem devia contar.
Manuela murmurou com a voz sumida:—Mas é preciso dizer
com muito jeito.
Os passos iam crescendo.
—Ih, ela vem vindo!... Já está subindo as escadas!...
—Como é que há de ser, gente? .. Ela vem reclamar o irmão.
Como vai ser?...
Os passos de Tati eram fortes. Subia com o ramalhete.
Achou tudo diferente no quarto. Figuras estranhas, caladas, e um desagradável
cheiro de desinfetante, aquele “cheiro do Dr. Almeida”. Reparou bem no teto,
nas janelas. Nenhuma abertura. Por onde teria passado a cegonha? Quando virou o
rosto para o berço, as mulheres se entreolharam, comovidas. Foi primeiro pelo
olhar que ela fez a interrogação muda. E, em seguida:
—Cadê neném?...
—Fala a senhora em primeiro lugar, insistia alguém,
baixnho, com a parteira.
—Cadê neném?... repetiu a menina, deixando cair as
flores.
Manuela tapou o rosto com o lençol para não assistir a
cena.
—Cadê neném! reclamou ainda, com um crescendo soluçante
na voz. A pergunta fora feita agora com a vista baixada sobre o berço vazio. Uma
senhora levou-a ao canto para explicar:
—Escuta, minha filha, não fica triste não. Papai do Céu
levou neném, mas vai trazer outro, ouviu?
Para que foram dizer! Tati caiu no pranto. Esbravejou,
sacudiu-se no chão onde se espalharam as flores. Xingou Papai do Céu, não
admitiu que ninguém a tocasse.
As mulheres se limitaram a emudecer presenciando o
desespero de Tati. Apos alguns momentos, levantou-se grave, a fisionomia
desfeita, e se dirigiu a mãe. Sua mãe e quem devia responder.
—Cadê neném, mamãe? Fala de verdade.
Manuela apenas beijou-a, sem dizer palavra.
A segunda fase do desespero de Tati foi em tom de
manha e tinha a forma de uma reivindicação: “eu quero neném! eu quero neném! eu
quero neném!” De repente interrompeu o protesto. Encaminhou-se novamente para
sua mãe e, solene, propôs uma solução:
—Você podia repetir o neném, mamãe.
—Posso, meu bem...
—Mas pode ser para amanhã?...
Antes de ela perceber o sorriso de Manuela, ouviu os
gritos da pretinha Zuli, anunciando-lhe que as plantas tinham nascido, que
viesse ver depressa o milho e o feijão. Desceu como louca as escadas. Viu que o
feijão e o milho tinham nascido de verdade. Pegaram! Estavam vivos! Ficou
contemplando as hastes tenras brotando da terra. E pulava de alegria.
Deu a mão a pretinha, e ambas dançaram em torno. Durante
dias, Manuela já de pé, distraía-se a garota acompanhando o desenvolvimento dos
vegetais. Entusiasmava-se; saia a calçada, chamava os transeuntes para ver. Um inglês,
que se encaminhava cedo para o serviço, deixou-se arrastar pela mãozinha dela e
teve que entrar. A mãe disse:
—Esses homens não acham graça, minha filha. Eles vão
sempre muito ocupados...
E essa ventania agora? Manuela indo fechar as vidraças,
encontrou Tati e a pretinha agachadas no terreiro.
—Suba depressa, menina!
—Deixa o vento passar primeiro, mamãe.
—Mas é por causa do vento mesmo.
—Você não esta vendo que o vento quer quebrar o meu
milho!...
Tati de cócoras, imóvel, segurava as hastes do milho
com ambas as mãos. A pretinha se incumbia de proteger o feijão. O vento afinal
passou, o milho estava salvo. Tati subiu com vontade de levá-lo consigo para
que continuasse a crescer junto de sua cama, debaixo dos seus olhos.
A costureira teve de trabalhar dobrado para acudir as
despesas do parto. As encomendas de vestidos para as festas do fim do ano
faziam com que ela fosse mais procurada pela freguesia. Todas tinham pressa.
Algumas levavam as filhas vestidas como bonecas. Tati ficava admirando,
convidava-as a brincar, a ver o milho. Elas nada respondiam, permaneciam imóveis.
Tati estava certa de que eram meio bobas.
Costurando ou debruçada sobre os figurinos, Manuela
pouco se lembrava da filha, que lhe parecia algumas vezes um obstáculo e que
era, agora, como se não existisse. Mas Tati ia vivendo a seu modo. O negocio do
irmãozinho, tão esperado, e que não veio, ficou ainda meio obscuro na sua
ideia. Ah! se estivesse brincando com ele! Mais outro mistério aquilo... Não
era tarde e o aposento entrou na penumbra. Tati se espanta.
—O quarto está murchando, mamãe.—A costureira acendeu
as luzes, Tati achou engraçada aquela noite prematura. Como era fácil
improvisar-se uma noite! Ficou um pouco agitada:
—Vamos brincar de dormir, mamãe? Só de pândega!...
Seria possível que sua mãe recusasse uma ocasião como
aquela? Manuela nem responde. “Essa mamãe não gosta nunca de brincar com a
gente.”
Por que e que Tati está chorando agora, tão sentida? A
culpa foi de Manuela, que soltou uma risada quando a filha lhe apresentou a
boneca de barriga grande e lhe informou que “Carolina também estava esperando neném”.
Pois se estava esperando de verdade, pensou a garota, como e que sua mãe podia
duvidar?
Tati não gostava se fizesse brincadeira com coisas sérias.
Após o parto e apesar das labutas excessivas, voltaram
ao corpo de Manuela as formas e linhas habituais. Uma vontade maior de viver, de expandir-se. Dezembro
vinha chegando, ia-se entrar num período diferente. O verão que se anunciava,
as roupas estivais, o Natal, o reveillon,
as praias cheias, os primeiros sinais do carnaval próximo,—tudo lhe transmitia
uma exaltação que ninguém lhe notava no rosto calmo.
—Agora, minha filha, é hora de dormir.
Deitou a criança, cobriu-a. Fora, abria-se uma noite
fria e bela, a primeira após a invernada. Manuela terminou algumas arrumações
no apartamento e foi sentar-se junto a máquina de costura. Estava farta de
costuras. Viu um barco de pesca atravessar a zona de luar e apagar-se na de
sombra. Sua vontade era sair aquela noite de sábado, divertir-se um pouco.
Os namorados ressurgiram de novo na praia, depois da
temporada de chuva. Parecia terem ficado escondidos na neblina, parados,
esperando pelo tempo, até poderem continuar o eterno passeio.
Quando estaria a filha em idade de colégio? Manuela só
teria alguma liberdade depois que a internasse. Mas a pequerrucha tem apenas
seis anos. Criança é sempre um embaraço. Desfazer-se dela nao seria difícil, se
a entregasse a tia do subúrbio. Que fazia o pai? Abandonou a menina, nem mesmo
chegou a conhecê-la.
A costureira pousou o olhar na cama de Tati e sacudiu
a cabeça, afastando um pensamento sombrio. Não, isso não faria... A criança não
tinha culpa, entregá-la a tia feroz, seria maldade. Nem à tia, nem ao juiz de
menores.
Abriu a bolsa ao acaso, tirou um caderno de notas.
Muitos nomes e endereços. Os homens!... com a sua brutalidade, o seu egoísmo, a
furia de gozar as mulheres e passarem para diante, deixando-as caídas no
caminho.
Manuela era dessas muitas mulheres desiludidas do amor
e que, entretanto, se guardam toda a vida para um homem desconhecido. Esperava
sempre o amor, e os anos lhe iam chegando como comboios vazios, Tinham os seus
grandes olhos uma luz indireta; luz que não ia buscar as coisas onde elas se
achavam, como a dos holofotes; as coisas mesmas e que pareciam se vir banhar na
claridade deles. Quando caminhava pelas ruas, os homens que acaso a fitavam
deixavam-se ficar sob a difusão dessa claridade. Os que não lhe conheciam a voz
imaginavam-lhe um timbre veludoso como correspondência a doçura desse olhar
lento e absorvente de grande amorosa, pelo qual tudo mais dela se acertava,—o
busto, o andar, as maneiras. O corpo era delicado até a cintura; dai para baixo,
porem, e a medida que se aproximava do chão pelas pernas, ganhava força, era
mais apto a receber as correntes que vinham a terra. A decepção com um homem não
a tornara menos amorosa. Apenas se fechava mais, usava maior prudência antes de
dedicar-se a alguém. Era enorme o amor disponível que trazia, mas secreto e
cauteloso; não tão secreto, porém, que impedisse o transeunte sensível de
pensar ao vê-la: ali vai uma mulher que parece transbordar de amor.
Aquela noite, enquanto Tati dormia, pensava em sair
sem destino pela cidade. Valeria a pena aceitar algum convite? Ficou examinando
as propostas, os endereços: Capitão Xavier... um belo tipo, pensou, mas com
qualquer coisa de estúpido, de desagradável; e desses que só apaixonam as
mulheres a distância, perto dão enjoo; grupo numeroso. Dr. Bastos... este
parece um homem fino, mas envaidecido de sua situação social, de sua clínica;
no fundo, bem tolo e cheio de preconceitos. Heitor... atleta, rico... um tanto
imbecil...—Ó meu Deus, exclamou baixinho, será que uma pobre mulher não
encontra a quem confiar o seu coração?... Antônio... continuou, examinando os endereços.—Ah!
esse, sim; aqui está um que eu topava... Se dependesse de mim, ele nunca seria
infeliz... Onde andará a essas horas? Que camaradão! Tão sincero, tão espontâneo...
Era capaz de amá-lo... passear com ele por esta noite afora, até a madrugada.
—Mamãe, você gosta de mim?
Manuela se assustou. Nem se lembrava de que a filha
existia. Que ideia de fazer-lhe Tati essa pergunta!
—Você não estava dormindo, minha filha?...
—Mas você gosta de mim?
Sua mãe estava tão misteriosa aquela noite!
—Dorme, menina. Olha: Carolina já está sonhando.
—Mas gosta, não gosta?
Tati abraçou Carolina e continuou a fingir que dormia.
Manuela começara a despir-se. Sua mãe era mais bela fora da roupa, notava
agora. Mais bela que todas as freguesas que vinham provar vestidos. Sua mãe era
divina...
Dela lhe vinha tudo. Quando tiritava de frio,
saltava-lhe ao colo e era logo aquele calor! Pena que só gostasse de conversar
com gente grande.
A menina, deslumbrada, prosseguia na inspeção do corpo
que a gerou:—Ah, é verdade, antigamente havia uma barriga enorme... Com
certeza, foi Papai do Céu que levou também aquilo... Esta aí, isso foi bom...
No dia de Natal a praça amanheceu vibrante de campainhas,
atravessada por dezenas de bicicletas novas, luminosas. Nenhuma criança quis
emprestar a sua a Tati.
Sentada no banco, olhando com inveja para as que se divertiam,
estava indignada com Papai Noel que não lhe trouxera nada. Desde o ano passado
guardara essa magoa. O velho só botava brinquedo para as outras crianças.
Resolveu queixar-se à sua mãe, levando pela mão a pretinha Zuli, que também não
ganhou nada. Na praça, já se tinha acamaradado com outras que ficaram chupando
dedo, de longe. Sua mãe, sendo tão poderosa, devia ter conseguido de Papai Noel
alguma coisa. Uma freguesa prometera um brinquedo que nunca mais chegava. Mas o
ideal de Tati, o que ela desejava mesmo, era uma bicicleta. Não a tendo obtido,
retirou da gaveta Carolina e Gerê e arranjou-se com os dois. Manuela sentiu a solidão
da filha. Amargurou-se ao vê-la brincar com Gerê, todo esfrangalhado, como
sempre. Levou-a ao alto de Santa Teresa. Lá em cima, um português veio brincar
com a menina, enquanto a mãe contemplava o oceano. Ao descerem do bonde, a noitinha,
já a criança dormia no colo.
Na verdade, quem descia de bonde era só Manuela,
porque a filha vinha descendo de bicicleta, uma linda e macia bicicleta, como não
havia igual na praça. As outras crianças faziam ala para vê-la passar... E Tati
passava fazendo vibrar as campainhas com orgulho, um pouco pálida, os cachos do
cabelo esvoaçando... Sentia uma delicia enorme naquela corrida. O bondezinho
chegou ao Viaduto, a mãe teve que acordá-la para a baldeação próxima. Foi o único
trecho que Tati viajou de bonde, dormindo logo em seguida para retomar a sua
bicicleta macia e velocíssima. Zuli, a pretinha, viajava na garupa...
Decorreram mais alguns dias. A noite de S. Silvestre
estava quase... Nas ruas reinava alegria, tamanho o alvoroço da população às
portas do Ano Novo. Compras, abraços, encomendas, convites, pressa. Parecia
certo que desta vez a cidade inteira ia mesmo ficar feliz dentro de poucas horas.
As freguesas de Manuela exigiam que ela terminasse depressa os vestidos a
fantasia. A costureira trabalhava dobrado, ela mesma adiantando a compra dos
aviamentos, escolhendo os figurinos.
Tati demorava-se muito no parapeito da janela vendo o
mar, vendo a vida. No arranha-céu entravam centenas de embrulhos de encomendas.
Que haveria dentro deles? interrogava. Que vontade de abri-los para ver o que
tem dentro¡
Na calçada, nos ônibus, nos bondes, desfilavam os
gigantes, gente que não brincava, ocupada sempre com qualquer coisa que Tati
não compreendia e que era um mistério. As mulheres que passavam na praia
pareciam-lhe divindades...
Algumas dessas divindades não costumavam pagar as
contas. Manuela teve prejuízo. A dona da casa sabia disso. Entretanto, veio
declarar a costureira que não podia esperar mais, o atraso já era grande:
—A senhora compreende, não é? Eu não quero desconfiar
de ninguém... Longe de mim... Mas os impostos estão cada vez... A senhora
sabe... Além disso, estamos no fim do ano, vem ai o reveillon, as minhas filhas precisam se divertir, tudo são
despesas... A vida esta difícil.
Tati, chegando da praia no momento, interveio na
conversa das duas mulheres:
—Fizemos uma montanha de areia, mamãe, que só você
vendo...
—Espera, minha filha, deixa tua mãe conversar.
—... E lá em cima pusemos, sabe quem? Carolina...
—Em todo caso, prosseguiu a proprietária, ainda posso
esperar uns três dias.
—Depois, continuava por sua vez Tati, fizemos um
buraco que eu acho que vai sair na Europa...
—Não atrapalha, menina! gritou a costureira, afastando
a filha. E virando-se para a proprietária:
—Mas a senhora podia deixar que eu levasse ao menos a
maquina para terminar algumas costuras.
—Só se deixar a vitrola, como garantia.
A proprietária ficou satisfeita, as filhas teriam
vitrola para dançar. E Manuela deixou correr uma lágrima.
Como a receberia sua irmã, em Deodoro? Começou a arrumar
as tralhas, não se esquecendo de embrulhar alguns mantimentos para os primeiros
dias. Telefonou a algumas freguesas pedindo pagamento, mas ou elas não se
achavam em casa, ou não podiam pagar. Acabou vendendo, no dia seguinte, uma joia
a mulher do térreo, para as despesas de carreto e passagem. A joia que Tati
tinha pedido “quando ela morresse”.
Terrível o estrepito de trens e veículos da noite,
ressoando aos ouvidos da criança, relampagueando pela janela aos seus olhos.
Tati sentiu que a cidade não acabava mais. Só sua mãe nunca se perdia naquela
floresta.
Sempre formidável, sua mãe!... Mas tão silenciosa!...
Aconchegou-se bem ao colo dela. Viu passar coisas estranhas pela vidraça.
Anúncios luminosos. Cinemas borbulhantes. Para onde estaria sendo levada dessa
vez? Haverá criança no lugar aonde ia? Haverá mar? Que lhe estaria reservando
sua mãe?
Tati inesperadamente teve a sensação paradisíaca de um
lugar por onde passara, onde vivera entre delicias. Onde esse lugar, não se
lembrava bem... Mas havia estado lá, acordada ou dormindo... Quanto tempo? Não
era nos subúrbios, não era também na praia. Parecia-lhe que foi há muitos anos.
Talvez no fundo do mar, debaixo das aguas... Antes de nascer.
Passaram Engenho Novo, Meyer, Piedade, Encantado, Cascadura...
Manuela silenciosa, humilhada, fazia conjeturas amargas. Nunca mais voltaria a
Copacabana. Da primeira vez perdera lá a virgindade, agora já ia ficando a
maquina de costura. As freguesas, aquela hora, já se estavam preparando para o reveillon, muitas delas vestindo a
fantasia que ela, Manuela, fizera com suas mãos, sem ter sido paga. E, agora,
num carro de segunda classe, a caminho do subúrbio, lá se ia para a casa de uma
irmã geniosa, a implorar-lhe favor, levando aquela criança, aquele trambolho!
A noite dos subúrbios apresentava aquela vez um
aspecto diferente, meio pânico. Trens apinhados, correria, grupos gritando.
Algum levante militar? Ou a busca da alegria, a corrida apressada para as
festas?
Manuela está triste. Tati, irrequieta. A menina
descobriu qualquer coisa ou alguém no banco do lado esquerdo. A todo momento se
levanta, olha e ri.—Toma modos, minha filha!
Mas a pequena não se corrige. A mãe impacienta-se, dá-lhe
um beliscão. Seu pensamento estava muito longe da filha, estava mesmo contra
ela. Tati começa a chorar. Menos pelo beliscão do que pela hostilidade tão
estranha que começava a pressentir na fisionomia de sua mãe. Como se a sua maior
amiga pensasse em abandoná-la naquele momento. Tati está mesmo magoada. O carro
de segunda classe tem pouca luz.
—Você é ruim, mamãe...
—Você não tem nada que estar olhando assim para essa
mulher, repreendeu Manuela.
Tati se explica então entre soluços:—É a maminha dela,
mamãe. A maminha dela nasceu no pescoço!...
—Fala baixo, que ela ouve. Aquilo não é maminha, minha
filha é papo...
—Como é então que a gente pode mamar ali?
Manuela ri-se. Que bola! Ri muito, abraça a filha.
Criança! Sente-a pela primeira vez. Que animalzinho feliz, despreocupado—sua
filha! Tão viva! Enchia uma casa, um bairro; poderá encher uma cidade inteira.
Olhou demoradamente para ela, encarou-a bem, como se fosse pela primeira vez.
Tinha cachos, a boca fresca, os olhos grandes. E era linda!
Tati!
Ainda pode ser tudo na vida. Como é que não a
descobrira antes? Só agora se rendia sem luta a filha que a vinha conquistando
há tanto tempo, sem esforço. Pega de novo a rir. Esquece tudo. Nem sabe qual o
subúrbio que passou pela janela. A menina não se espanta mais com o papo da
velha. O que a espanta é o riso convulsivo de sua mãe. Está até com medo dela.
Os passageiros pensam que a mulher enlouqueceu. Manuela aperta a filha ao
peito, beija-a muitas vezes, rindo, chorando... Caíram-lhe os embrulhos ao chão.
Os cacarecos estão sendo sacolejados. Alguns legumes rolaram, saíram pela
portinhola. Uma mulher vem entregar-lhe uns paninhos:—Isso não é da senhora?
Manuela continua rindo, a olhar para a filha, a
passar-lhe a mão pela cabeça.
—Eu adoro você, minha filha.
Vem se aproximando um estafeta do correio com um
objeto na mão:
—Olha a sua caneca, minha senhora.
Manuela nem se lembra de agradecer. Estava-se passando
dentro dela um acontecimento enorme.
Outros objetos foram sendo entregues pelo pessoal da
segunda classe. Sob a bota de um português, Carolina está sendo pisada. Boneca
infeliz, Carolina... A bota não era brinquedo. Tati dá um grito, corre até lá,
salva Carolina. Só agora, vencida pela filha, a mãe começa a achar-lhe graça
nos menores movimentos. E cheia de felicidade, envolve-a de novo no abraço.
Quem vem chegando agora, na direção de Manuela, é um operário:
—Olha a sua batata, minha senhora.
Manuela agarrada com Tati, Tati com Carolina—dormiram
as três, até que a locomotiva apitou para Deodoro.
A costureira desce com cuidado, sobraçando a filha,
Carolina e os embrulhos. Era preciso que a criança não acordasse. Tomou um
caminho escuro. O que ia dar a casa da irmã. Tati abre um pouco os olhos, espia
a espessura da noite. Está com medo.
—Tem Febrônio, mamãe?...
E adormece de novo. Passava ao longe um grupo com
estandarte. Mas o caminho que a costureira trilhava era deserto.
—Não vá arranjar outro filho por esses matos ai, moça!
gritou-lhe um soldado. Agora é hora dos bailes...
A mulher caminhava sem sentir cansaço. Outro dichote
injurioso bateu-lhe apenas no ouvido:—Tão sozinha, meu bem!.. .
Não ia sozinha. Ia com Tati. A menina acordou de novo,
ao som de uma canção que a mãe lhe cantava. As duas se entreolharam sorrindo. A
primeira vez que Manuela sorri de fato para a filha. Ouviu-se uma zoeira
enorme, ao longe, cortada de bombas e foguetes.
O ano virava. 1938.
Manuela galgou uma pequena colina. Chegou ao alpendre
do bangalô da irmã. Tudo fechado e de luzes apagadas. No trinco da porta havia
um escrito: “Fomos ao baile; pode bater que tem uma velha no fundo, tomando
conta.” Não bateu. A noite de céu alto estava clara. Relanceou a vista pelos
longes. De todos os horizontes vinham rumores e reflexos de festa, como se
houvesse naquele momento uma tentativa universal de esquecer guerras, perseguições
e misérias. O armistício do Ano-Bom. Manuela se esquece também de tudo, as
agruras passadas e as que ainda prometiam. Sai a caminhar pelas estradas. Uma
vaga de esperança enche seu coração. Tati esta vendo o céu.
—Aqueles furinhos todos são estrelas, mamãe? Todos?...
Sobre a relva da campina, Manuela começa a dançar como
louca:
—É o Ano Novo, Tati, meu passarinho, meu tesouro...
Precisamos também comemorar...
A costureira ergue Tati aos ombros. E, dentro da
noite, comemora a entrada do Ano Novo, empunhando sua filha. E continua a dançar,
carregando-a ao ombro, como um cântaro cheio de vinho.
—Daquele lado ainda tem mais estrelas, mamãe. Olha lá...
Este conto augusto, gigante pelo seu visceral humanismo,mostra que nem toda dor é pra gente carregar sozinho.Jogadas a própria sorte, como milhares de pessoas na terra brasilis e no mundo, Manoela e a pequena tati, entre muitos infortúnios e pedaços de ternura, vão construindo sua relação afetiva, sua tábua de salvação num mundo em convulsão, vão criando um antídoto contra a loucura que o desamor coletivo, este que vivemos em sociedade, criou.
ResponderExcluirToda vez que releio este conto, choro....
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