Gustave Flaubert (1821-1880), escritor francês nascido
em Rouen, autor de Madame Bovary um dos maiores romances de todos os tempos. Em
1871 ele publicou um pequeno livro com três contos. Entre eles “Um coração simples.” Nele Flaubert demonstra
a mesma riqueza de detalhes que transportam o leitor para dentro do universo da
história e a mesma força na construção de um personagem Sua Felicidade, assim
como alguns personagens de Garcia Marquez, parecem ter sido condenados a nunca
mais serem esquecidos.
Um coração simples
Gustave Flaubert
Durante meio século, os burgueses de
Pont-l’Évêque invejaram a Sra. Aubain por sua criada Felicidade. Por cem
francos ao ano, ela cozinhava e limpava a casa, costurava, lavava, passava,
sabia arrear cavalos, engordar aves, bater a manteiga; permaneceu fiel à sua
patroa, que, no entanto, não era uma pessoa agradável.
Ela esposara um belo rapaz sem fortuna, que
falecera no começo de 1809, deixando-lhe duas crianças pequenas e uma
quantidade considerável de dívidas. Então, vendeu seus imóveis, exceto as
terras arrendadas de Toucques e de Geffosses, cujos rendimentos atingiam, no
máximo, 5 mil francos, e deixou sua casa de Saint-Melaine para morar em outra
menos dispendiosa que pertencera a seus ancestrais, localizada atrás do
mercado.
Essa casa, revestida de ardósia, situava-se
entre um beco e uma ruela que terminava no riacho. Seu interior tinha desníveis
que faziam tropeçar. Um vestíbulo estreito separava a cozinha da sala onde a
Sra. Aubain permanecia durante o dia, sentada em uma poltrona de palha, perto
da janela. Encostadas no lambri, pintado de branco, alinhavam-se oito cadeiras
de acaju. Um velho piano sustentava, sob um barômetro, um pilha piramidal de
caixas variadas, algumas de papelão. Duas “bergères” em tapeçaria, ladeavam a
lareira em mármore amarelo, em estilo Luís XV. O relógio, no meio, representava
um templo de Vesta — e todo o ambiente cheirava um pouco a mofo, pois o piso
era mais baixo do que o quintal.
No primeiro andar, havia primeiro o quarto da
“senhora”, muito grande, forrado com um papel de flores desbotadas, contendo o
retrato do “senhor”, de aparência janota. Ele se comunicava com um quarto
menor, onde se viam duas camas de crianças sem colchões. Depois, vinha a sala
de visitas, sempre fechada, cheia de móveis cobertos por lençóis. Em seguida,
um corredor levava a um escritório; livros e papéis lotavam as prateleiras de
uma estante que tomava três lados de uma escrivaninha grande em madeira escura.
Dois painéis, por sua vez, desapareciam sob desenhos em bico de pena, paisagens
a guache e gravuras de Audran, lembranças de um tempo melhor e de um luxo
perdido. Uma lucarna, no segundo andar, clareava um pouco o quarto de
Felicidade, com vista para os campos.
Felicidade levantava-se com a madrugada, para
não perder a missa, e trabalhava até a noite, sem interrupção; depois,
terminado o jantar, a louça em ordem e a porta bem fechada, ela cobria de
cinzas a acha de lenha e adormecia diante da lareira com o rosário na mão.
Ninguém, nas redondezas, demonstrava mais perseverança. Quanto à limpeza, o
brilho de suas panelas levava ao desespero as outras criadas. Econômica, ela
comia com lentidão e recolhia com os dedos as migalhas de pão — um pão de doze
libras, especialmente feito para ela, que durava vinte dias.
Em todas as estações do ano, ela usava um
lenço indiano fixado nas costas por um alfinete, uma touca escondendo-lhe os
cabelos, meias cinzas, um saiote vermelho e sobre a camisola, um avental
inteiriço, como o das enfermeiras de hospital.
Seu rosto era magro e sua voz aguda. Com vinte
e cinco anos, davam-lhe quarenta. A partir dos cinquenta, não aparentava mais
nenhuma idade; e, sempre silenciosa, postura ereta e gestos comedidos, parecia
uma mulher de madeira, funcionando de maneira automática.
II
Ela tivera, como qualquer outra, sua história
de amor.
O pai, pedreiro, morreu quando caiu de um
andaime. Depois, a mãe faleceu, as irmãs se dispersaram, um arrendatário
recolheu-a e empregou-a, ainda pequena, para cuidar das vacas no pasto. Ela
tremia de frio em seus farrapos, bebia, deitada no chão, a água das poças,
apanhava por qualquer motivo; por fim, acabou sendo expulsa por causa de um
furto de trinta soldos, que não havia cometido. Foi para uma outra propriedade,
onde trabalhava no fundo do quintal, cuidando dos animais; e, como agradava aos
patrões, os outros criados invejavam-na.
Numa noite do mês de agosto (tinha, então,
dezoito anos), eles a levaram à feira em Colleville. Imediatamente ficou
atordoada, estupefata pela balbúrdia dos violeiros, pelas luzes nas árvores,
pela miscelânea de cores das roupas, pelas rendas, crucifixos de ouro, pela
multidão indo e vindo ao mesmo tempo. Mantinha-se a distância, modestamente,
quando um jovem, de aparência abastada, fumando cachimbo, com os dois cotovelos
sobre o timão de uma carroça, veio tirá-la para dançar. Pagou-lhe sidra, café,
bolo, um lenço e, imaginando que ela o adivinharia, ofereceu-se para levá-la
para casa. Ao lado de um aveal, ele a derrubou brutalmente. Ela teve medo e se
pôs a gritar. Ele se afastou.
Uma outra noite, na estrada de Beaumont, ela
quis ultrapassar uma grande carroça de feno que avançava lentamente; e, ao
esbarrar nas rodas, reconheceu Teodoro.
Ele a abordou com um ar tranquilo, dizendo que
precisava perdoar tudo, pois era “culpa da bebida”.
Ela não soube o que responder e teve vontade
de fugir.
Logo em seguida, ele falou das colheitas e das
pessoas importantes da comuna, pois seu pai tinha deixado Colleville pelas
terras de Écots, de modo que, agora, eram vizinhos.
— Ah! — disse ela.
Acrescentou que desejavam casá-lo. Porém não
estava apressado e aguardava uma mulher do seu agrado. Ela abaixou a cabeça.
Então, ele lhe perguntou se pensava em casamento. Ela respondeu, sorrindo, que
não era bom debochar.
— Mas, não, eu lhe juro! — e, com o braço
esquerdo ele lhe enlaçou a cintura.
Ela caminhava amparada pelo seu abraço;
diminuíram o passo. O vento estava suave, as estrelas brilhavam, a enorme
carroça de feno balançava diante deles; e os quatro cavalos arrastando os
passos, levantavam poeira. Em seguida sem comando, viraram à direita. Ele a
beijou ainda uma vez. Ela desapareceu na penumbra.
Teodoro, na semana seguinte, conseguiu marcar
encontros com ela.
Viam-se no fundo dos pátios, atrás de um muro,
sob uma árvore isolada. Ela não era inocente à maneira das moças finas — os
animais haviam-na instruído; — mas a razão e o instinto de honra impediram-na
de se entregar. Essa resistência exasperou o amor de Teodoro, de modo que para
satisfazê-lo (ou ingenuamente talvez) ele lhe propôs casamento. Ela hesitava em
acreditar. Ele fez grandes juras.
Logo em seguida, confessou-lhe algo
desagradável: seus pais, no ano anterior, haviam pago a um homem para se
alistar em seu lugar; contudo, cedo ou tarde, poderiam chamá-lo; a ideia do
recrutamento assustava-o. Essa covardia foi para Felicidade uma prova de afeto;
seu sentimento por ele redobrou. Ela escapava de noite, e uma vez juntos, Teodoro
torturava-a com suas inquietudes e insistências.
Enfim, Teodoro anunciou que ele mesmo iria à
administração para obter informações e as traria no domingo seguinte, entre
onze horas e meia-noite.
Chegado o momento, ela correu ao encontro de
seu amado.
Em seu lugar, encontrou um de seus amigos.
Este lhe disse que não mais deveria revê-lo.
Para se livrar do alistamento, Teodoro havia-se casado com uma mulher velha e
muito rica, sra. Lehoussais, de Toucques.
Foi uma crise de desgosto. Ela se atirou ao chão,
gritou, clamou pelo bom Deus, e gemeu sozinha no campo até o sol se levantar.
Depois, retornou à propriedade, declarou sua intenção de ir embora; e, no final
do mês, tendo recebido suas contas, reuniu seus poucos pertences em uma trouxa
e foi para Pont-l’Évêque.
Diante de um albergue, interpelou uma burguesa
com capelina de viúva, que justamente procurava por uma cozinheira. A jovem não
sabia grande coisa, mas parecia ter tanta boa vontade e tão poucas exigências,
que a sra. Aubain acabou por dizer:
— Está bem, eu a admito!
Felicidade, quinze minutos depois, estava
instalada na casa dela.
No começo, conviveu com uma espécie de
estremecimento que lhe causavam “o estilo da casa” e a lembrança do “senhor”,
pairando sobre tudo! Paulo e Virgínia, aquele com sete anos, esta com apenas
quatro, pareciam-lhe formados de uma matéria preciosa; ela os carregava nas
suas costas como se fosse um cavalo, e a sra. Aubain proibiu-lhe de beijá-los a
cada minuto, o que a mortificava. No entanto estava feliz. A suavidade do
ambiente tinha dissolvido sua tristeza.
Todas as quintas-feiras, frequentadores
assíduos vinham jogar uma partida de bóston. Felicidade preparava com
antecedência as cartas e os aquecedores. Eles chegavam às oito horas em ponto e
se retiravam antes de soar as onze.
Toda segunda-feira, o vendedor de objetos
usados que morava no lado de baixo da alameda esparramava pelo chão suas
tranqueiras. Depois a cidade enchia-se de um murmúrio de vozes, ao qual se
misturavam relinchos de cavalos, balidos de carneiros, grunhidos de porcos, com
o barulho seco das charretes na rua. Por volta de meio-dia, no auge da feira,
via-se surgir na soleira um velho camponês de estatura alta, com boné para
trás, nariz adunco, e que era Robelin, o arrendatário das terras de Geffosses.
Logo depois, chegava Liébard, arrendatário de Toucques, pequeno, vermelho,
obeso, usando um casaco cinza e botinas munidas de esporas.
Os dois ofereciam à proprietária galinhas ou
queijos. Felicidade invariavelmente adivinhava suas astúcias; e eles iam embora
plenos de consideração por ela.
De quando em quando, a sra. Aubain recebia a
visita do marquês de Gremanville, um tio seu, arruinado pela devassidão, que
vivia em Falaise no seu último quinhão de terra. Chegava sempre na hora do
almoço, com um cão insuportável cujas patas sujavam todos os móveis. Apesar de
seus esforços para parecer um fidalgo, chegando mesmo a tirar o chapéu cada vez
que dizia: “Meu falecido pai”, o hábito era mais forte, ele bebia um copo após
o outro e deixava escapar inconveniências. Felicidade colocava-o para fora
polidamente. “Já é o bastante, senhor de Gremanville! Até uma outra vez!” E
fechava a porta.
Ela a abria com prazer para o sr. Bourais,
antigo procurador judicial. Sua gravata branca e sua calvície, o peitilho da
camisa, ampla sobrecasaca marrom, o modo de tomar o rapé curvando o braço, todo
o seu ser produzia-lhe uma perturbação em que nos lança o espetáculo dos homens
extraordinários.
Como ele gerenciava as propriedades da
“senhora”, trancava-se com ela, durante horas, no escritório do “senhor” e
sempre temia comprometer-se, respeitava infinitamente a magistratura, tinha
pretensões de conhecer o latim.
Para instruir as crianças de um modo
agradável, deu-lhes de presente um livro de geografia em estampas. Elas
representavam diferentes cenas do mundo, antropófagos com as cabeças cobertas
de penas, um macaco aprisionando uma moça, beduínos no deserto, uma baleia
arpoada etc.
Paulo explicou essas gravuras a Felicidade.
Essa foi toda sua educação literária.
A das crianças era feita por Guyot, um
pobre-coitado, empregado da prefeitura, famoso por sua bela caligrafia, que
afiava o canivete na bota.
Quando o tempo estava bom, iam bem cedo para
as terras de Geffosses.
No pátio em declive, a casa ficava no meio; e
o mar, ao longe, surgia como uma mancha cinza.
Felicidade retirava de seu cesto fatias de
carne fria e almoçavam em uma peça contígua à leiteria. Foi a única que restou
de uma construção de lazer, agora desaparecida. O papel da parede, todo
rasgado, tremia com as correntes de ar. A sra. Aubain abaixava a cabeça,
abatida pelas lembranças; as crianças não se atreviam mais a falar. “Brinquem,
vamos!” dizia ela; elas saíam correndo.
Paulo subia no celeiro, apanhava pássaros,
fazia ricochetes sobre as poças, ou batia com um bastão os largos barris que
ressoavam como tambores.
Virgínia dava comida aos coelhos, corria para
colher florezinhas azuis, e a rapidez de suas pernas descobria as pequenas
calças bordadas.
Numa noite de outono, voltaram pelas
pastagens.
A lua, em quarto crescente, iluminava uma
parte do céu e uma neblina flutuava como um véu sobre as sinuosidades do rio
Toucques. Alguns bois, deitados na relva, olhavam tranquilamente passarem essas
quatro pessoas. No terceiro pasto cercado, alguns se levantaram, puseram-se, em
seguida, em círculo diante delas.
— Não tenham medo! — disse Felicidade e,
murmurando uma espécie de lamento, acariciou o dorso do animal que se
encontrava mais próximo; ele fez meia-volta, os outros o imitaram. Porém,
quando atravessaram o pasto seguinte, um mugido medonho soou. Era um touro que
a neblina escondia. Ele avançou em direção às duas mulheres. A sra. Aubain ia
correr.
— Não! Não! Mais devagar!
Elas apertaram o passo, contudo, e ouviam por
trás uma respiração forte que se aproximava. Seus tamancos, como martelos,
batiam na relva da campina; e agora ele galopava! Felicidade virou-se; com as
duas mãos arrancava placas de terra e jogava-lhe nos olhos. Ele abaixava o
focinho, sacudia os chifres e tremia de furor, mugindo horrivelmente. A sra.
Aubain, no fim do pasto, com as duas crianças, procurava, perdida, como
atravessar a cerca alta. Felicidade recuava sempre diante do touro e lançava
continuamente torrões de relva que o cegavam, enquanto gritava:
— Corram! Corram!
A sra. Aubain desceu a vala, empurrou
Virgínia, Paulo em seguida; caiu muitas vezes tentando subir o talude, e, à
força de muita de coragem, conseguiu fazê-lo.
O touro tinha encurralado Felicidade contra
uma cerca; sua baba jorrava no rosto dela, um segundo mais ele a estriparia.
Ela teve tempo de deslizar entre duas barras da cerca, e o grande animal,
surpreso, parou.
Esse acontecimento, durante muitos anos, foi
assunto de conversa em Pont-l’Évêque. Felicidade não tirou nenhuma vantagem
disso, duvidando até mesmo de que tivesse feito algo de heroico.
Virgínia sozinha ocupava todo o seu tempo —
porque teve, após o seu pavor, uma afecção nervosa e o doutor Poupart
aconselhou banhos de mar de Trouville.
Naquele tempo, não se tomavam banhos de mar. A
sra. Aubain informou-se, consultou Bourais, fez preparativos como se fosse
fazer uma longa viagem.
Seus pertences partiram na véspera, na
charrete de Liébard. No dia seguinte, ele levou dois cavalos; um tinha uma sela
para mulher, munida de um encosto de veludo; na garupa do segundo, um manto
enrolado formava uma espécie de assento. A sra. Aubain sentou-se atrás dele.
Felicidade encarregou-se de Virgínia, e Paulo
montou o burro do sr. Lechaptois, emprestado com a condição de se ter muito
cuidado com ele.
A estrada era tão ruim que seus oitos quilômetros
exigiram duas horas. Os cavalos enterravam até as quartelas na lama e, para
sair, faziam bruscos movimentos de ancas; ou, então, apoiavam-se nos sulcos na
estrada; outras vezes, era-lhes preciso pular. A égua de Liébard, em certos
lugares, parava de repente. Ele esperava pacientemente que ela se pusesse em
marcha; e falava de pessoas cujas propriedades margeavam a estrada,
acrescentando a suas histórias reflexões morais. Assim, no meio de Toucques,
quando passaram sob umas janelas rodeadas de capuchinhas, ele disse, levantando
os ombros:
— Aí está uma, a sra. Lehoussais, que em vez
de aceitar um jovem rapaz...
Felicidade não ouviu o resto; os cavalos
trotavam, o burro galopava; todos entraram por um caminho estreito, uma
porteira se abriu, dois garotos apareceram, e desceram em frente da purina, na
soleira da porta.
A velha Liébard, vendo sua patroa,
prodigalizou demonstrações de alegria. Serviu-lhe um almoço com lombo de boi,
rabada, chouriço, um fricassê de frango, sidra espumante, uma torta de compotas
e ameixas embebidas em aguardente, tudo regado com cortesias à senhora que
parecia cheia de saúde, e à senhorita que se tinha tornado “maravilhosa”, ao
sr. Paulo excepcionalmente “gordo”, sem esquecer seus avós falecidos que os
Liébard tinham conhecido, pois estavam a serviço da família havia muitas
gerações. As terras tinham, como eles, caráter de antiguidade. As vigotas do
teto estavam corroídas, as paredes, negras de fumaça, os ladrilhos cinza de
poeira. Um aparador de carvalho mantinha todos os tipos de utensílios, jarras,
pratos, tigelas de estanho, armadilhas de lobo, tesouras para a tosquia de
carneiros; uma enorme seringa provocou risos nas crianças. Não havia nenhuma
macieira nos três pátios que não tivesse cogumelos em sua base ou, em seus
galhos, um tufo de visgo. O vento derrubara várias delas. Voltaram a brotar
pelo meio; e todas se curvavam com a quantidade de maçãs. Os telhados de palha,
como veludos castanhos de diferentes espessuras, resistiam aos mais fortes
vendavais. Entretanto a cocheira caía em ruínas. A sra. Aubain disse que iria
partir e mandou selar os animais.
Levaram ainda meia hora antes de chegar a
Trouville. O pequeno grupo teve que apear para passar as Écores, tratava-se de
uma falésia que pendia sobre os barcos; e três minutos mais tarde, no fim do
cais, entraram no pátio do Agneau d’or, na casa da velha David.
Virgínia, desde os primeiros dias, sentiu-se
um pouco mais forte, resultado da mudança de ares e da ação dos banhos. Ela os
tomava de camisa, por não ter roupa apropriada; e sua empregada a vestia em uma
cabana de aduaneiro que servia aos banhistas.
À tarde, ia-se com o burro para além de
Roches-Noires, ao lado de Hennequeville. O caminho, no começo, subia entre
terrenos com vales como o gramado de um parque depois, chegava a um planalto
onde alternavam as pastagens e as plantações. À beira do caminho, no amontoado
de espinheiros, azevinhos erguiam-se; aqui e acolá, havia grandes árvores
mortas que faziam ziguezagues com seu galhos no ar azul.
Quase sempre, eles repousavam em um campo,
tendo Deauville à esquerda, o Havre à direita e, em frente, o mar aberto. Ele
brilhava sob o sol, liso como um espelho tão calmo que mal se escutava seu
murmúrio; pardais escondidos chilreavam, e a imensa abóbada celeste recobria
tudo. A sra. Aubain, sentada, trabalhava em sua costura; Virgínia, próxima a
ela, trançava juncos; Felicidade arrancava flores de lavanda; Paulo, que se
entediava, queria ir embora.
Outras vezes, tendo passado de barco por
Toucques eles procuravam conchas. A maré baixa deixava à mostra ouriços-do-mar,
moluscos, medusas; as crianças corriam para pegar os flocos de espuma que o
vento carregava. As ondas adormecidas, quebrando na areia, desenrolavam-se ao
longo da praia; esta se estendia a perder de vista, mas, do lado da terra,
tinha como limite as dunas que a separavam do Marais, ampla pradaria em forma
de hipódromo. Quando retornavam por aí, Trouville, ao fundo sobre o penhasco da
encosta, a cada passo, aumentava, e com todas suas casas desiguais parecia
desabrochar-se em uma alegre desordem.
Nos dias de muito calor, eles não saíam do
quarto. A ofuscante claridade do exterior imprimia faixas de luz entre as
lâminas das persianas. Nenhum ruído no vilarejo. Embaixo, na calçada, ninguém.
Esse silêncio espalhado aumentava a tranquilidade das coisas. Ao longe, os
martelos dos calafates batiam nas carenas, e uma brisa densa trazia o cheiro do
piche.
O principal divertimento era o regresso da
barca. Assim que ultrapassavam as boias, eles começavam a bordejar. As velas
dos mastros vinham dois terços arriadas; e, com a mezena cheia como um balão,
eles avançavam, deslizavam no marulho das ondas, até o meio do porto, onde, de
repente, lançavam a âncora. Em seguida, o barco se colocava junto ao cais. Os
marujos jogavam por cima da borda peixes ainda palpitantes, uma fila de
charretes os aguardava e mulheres com gorros de algodão corriam para pegar as
cestas e abraçar seus homens.
Uma delas, um dia, abordou Felicidade, que
pouco tempo após entrou no quarto, toda feliz. Havia reencontrado uma de suas
irmãs; e Nastácia Barette, mulher de Leroux, apareceu, com um bebê no colo,
segurando à mão direita uma outra criança, e tendo à sua esquerda um pequeno
grumete com os punhos nas ancas e a boina até as orelhas.
Ao cabo de quinze minutos, a sra. Aubain
dispensou-a.
Reencontravam-se sempre nos arredores da
cozinha ou nos passeios que faziam. O marido nunca aparecia.
Felicidade afeiçoou-se por eles. Ela lhes deu
um cobertor, camisas, um fogão; evidentemente, eles a exploravam. Essa fraqueza
irritava a sra. Aubain, que, aliás, não gostava das familiaridades do sobrinho,
porque ele tratava seu filho por “você”; e, como Virgínia estivesse tossindo e
como o tempo tivesse mudado, retornou a Pont-l’Évêque.
O sr. Bourais orientou-a na escolha de um colégio.
O de Caen parecia ser o melhor. Paulo foi enviado para lá; e despediu-se
valentemente, satisfeito por ir viver em uma casa onde teria amigos.
A sra. Aubain conformou-se com o afastamento
do filho, porque era indispensável. Virgínia pensava nisso cada vez menos.
Felicidade, sentia falta da balbúrdia que ele fazia. Mas uma ocupação veio
distraí-la; depois do Natal, ela levava todos os dias a menina ao catecismo.
III
Uma vez feita, à porta, uma genuflexão, ela
avançava sob a alta nave entre as duas fileiras de cadeiras, abria o banco da
sra. Aubain, sentava-se e deixava os olhos vagarem à sua volta.
Os rapazes à direita, as moças à esquerda
ocupavam a estala do coro; o pároco permanecia de pé perto da estante do coro;
em um vitral da abside, o Espírito Santo se elevava sobre a Virgem; um outro
mostrava-a de joelhos diante do Menino Jesus e, atrás do tabernáculo, um grupo
em madeira representava São Miguel subjugando o dragão.
De início, o padre fez um resumo da História
Sagrada. Ela acreditava ver o paraíso, o dilúvio, a torre de Babel, as cidades
completamente em chamas, pessoas que morriam, ídolos derrubados; e guardava
desse assombro o respeito pelo Altíssimo e o temor de sua cólera. Depois,
chorou ao ouvir a Paixão. Por que o haviam crucificado, ele que amava as
crianças, alimentava as multidões, curava os cegos e quisera, por bondade,
nascer entre os pobres, sobre o esterco de um estábulo? A semeadura, a
colheita, o lagar, todas essas coisas familiares de que fala o Evangelho,
encontravam-se em sua vida; a passagem de Deus as havia santificado; e ela
sentia mais afeto pelos cordeiros por amor ao Cordeiro, e pelas pombas, por
causa do Espírito Santo.
Era-lhe difícil imaginar sua pessoa; já que
não era apenas uma ave, mas ainda um fogo e, outras vezes, um sopro. Talvez
seja sua luz que paira à noite sobre a margem dos pântanos, sua respiração que
empurra as nuvens, sua voz que torna os sinos harmoniosos; e ela se estendia em
uma adoração, gozando o frescor das paredes e a tranquilidade da igreja.
Quanto aos dogmas, não compreendia
absolutamente nada, nem mesmo se esforçava para compreendê-los. O padre
discorria, as crianças recitavam, ela acabava por adormecer; e acordava de
repente, quando os outros, ao saírem, faziam soar os tamancos sobre o piso.
Foi dessa maneira, de tanto ouvi-lo, que
aprendeu o catecismo, uma vez que sua educação religiosa tinha sido
negligenciada na juventude; e desde aquele momento, imitava todas as práticas
de Virgínia, jejuando como ela, confessando-se com ela. Para a festa de Corpos
Christi fizeram juntas um andor.
A primeira comunhão atormentava-a por
antecipação. Preocupou-se com os sapatos, o terço, o livro, as luvas. Com que
tremor não ajudou a mãe a vesti-la!
Durante toda a missa, sentiu uma angústia. O
Bourais escondia-lhe um lado do coro; mas logo à frente o bando de virgens
usando coroas brancas sobre os véus abaixados formavam como que um campo de
neve; e reconhecia de longe a menina querida pelo pescoço fino e a atitude
recolhida. O sino tocou. As cabeças se curvaram; fez-se silêncio. Ao som do
órgão, os cantores e a multidão entoaram o Agnus Dei; então começou o desfile
dos meninos; e, depois deles, as meninas se levantaram. Passo a passo e de mãos
juntas andavam em direção ao altar todo iluminado, ajoelhavam-se no primeiro degrau,
recebiam sucessivamente a hóstia e, na mesma ordem, voltavam aos seus
genuflexórios. Quando foi a vez de Virgínia, Felicidade debruçou-se para vê-la
e, com a imaginação dos verdadeiros afetos, parecia ser ela mesma aquela
criança; aquele rosto se tornava seu, aquele vestido a vestia, aquele coração
batia em seu peito; no momento de abrir a boca, fechando as pálpebras, estava a
ponto de desmaiar.
No dia seguinte, logo cedo, apresentou-se na
sacristia para que o padre lhe desse a comunhão. Recebeu-a devotamente, mas não
experimentou as mesmas delícias. A sra. Aubain queria tornar sua filha uma
pessoa perfeita e, como Guyot não pudesse lhe ensinar inglês e tampouco música,
resolveu colocá-la em um pensionato nas Ursulinas de Honfleur.
A criança não fez nenhuma objeção. Felicidade
suspirava, julgando a senhora insensível. Depois considerou que talvez a sua
patroa tivesse razão. Todas essas coisas ultrapassavam sua competência.
Um dia, afinal, uma velha traquitana parou em
frente à porta e dela desceu uma religiosa que vinha buscar a senhorita.
Felicidade pôs a bagagem no carro, fez recomendações ao cocheiro e colocou no
baú seis potes de doces e uma dúzia de peras com um ramalhete de violetas.
Virgínia, no último momento, foi tomada por um
grande choro; abraçava a mãe que a beijava no rosto, repetindo:
— Vamos! Coragem! Coragem!
O degrau foi levantado e o carro partiu.
Então, a sra. Aubain teve um desfalecimento e
à noite todos os amigos — o casal Lormeau, a sra. Lechaptois, as senhoritas
Rochefeuille, o sr. de Houppeville e Bourais — apareceram para consolá-la.
De início, a privação de sua filha foi muito
dolorosa. Mas três vezes por semana recebia uma carta, nos demais dias
escrevia-lhe, passeava no quintal, lia um pouco e, dessa forma, preenchia o
vazio das horas.
De manhã, por força do hábito, Felicidade
entrava no quarto de Virgínia e olhava as paredes. Sentia falta de pentear os
seus cabelos, amarrar-lhe as botinas, colocá-la na cama, — e de ver
continuamente seu delicado rosto, de segurá-la pela mão quando saíam juntas. Em
sua ociosidade, tentou fazer rendas. Os dedos pesados demais rompiam os fios;
não ouvia nada, perdera o sono, segundo sua palavra, estava “minada”.
Para “se distrair”, pediu a permissão para
receber seu sobrinho Vítor.
Ele chegava aos domingos após a missa, com as
faces rosadas, o peito nu e cheirando aos campos que atravessara. Imediatamente
ela botava a mesa. Almoçavam um diante do outro e, comendo ela o menos possível
para evitar as despesas, empanturrava-o de tal maneira que ele acabava por
adormecer. Ao primeiro toque das vésperas, ela o acordava, escovava suas
calças, apertava-lhe a gravata e dirigia-se à igreja, apoiada em seu braço com
um orgulho maternal.
Seus pais sempre o encarregavam de conseguir
alguma coisa, fosse um pacote de açúcar, sabonete, aguardente, às vezes até
mesmo dinheiro. Trazia suas roupas velhas para remendar; e ela aceitava esse
trabalho, feliz por haver uma oportunidade que o forçasse a voltar.
No mês de agosto, seu pai enviou-o à marinha.
Era época de férias. A chegada das crianças
consolou-a. Mas Paulo tornara-se caprichoso e Virgínia não tinha mais idade
para ser tratada por “você”, o que colocava um constrangimento, uma barreira
entre elas.
Vítor foi sucessivamente a Morlaix, Dunkerque
e Brighton; no regresso de cada viagem ele lhe trazia um presente. Da primeira
vez, foi uma caixa de conchas; da segunda, uma xícara de café; da terceira, um
grande boneco de pão de mel. Estava tornando-se belo, era magro, tinha um
bigodinho, olhos sãos e francos e um pequeno chapéu de couro, que usava para
trás como um piloto. Divertia-a contando histórias repletas de termos de
marinheiro.
Em uma segunda-feira, 14 de julho de 1819 (ela
não esqueceu a data), Vítor anunciou que havia sido recrutado para uma longa
viagem e que dali a duas noites, com o navio de Honfleur, iria juntar-se à
galé, que deveria partir do porto do Havre em breve. Ele talvez ficasse fora
por dois anos.
A perspectiva de tal ausência deixou
Felicidade desolada; e, para ainda lhe dizer adeus, na quarta-feira à noite,
após o jantar da senhora, vestiu as galochas e percorreu as quatro léguas que
separavam Pont-l’Évêque de Honfleur.
Chegando diante do Calvário, em vez de pegar a
esquerda, pegou a direita, perdeu-se nos canteiros de obras, voltou para trás;
as pessoas que abordava mandavam-na apressar-se. Ela deu a volta na doca
repleta de navios, batia nas amarras; depois o terreno se inclinou, as luzes se
entrecruzaram e ela acreditou estar louca, avistando cavalos no céu.
À margem do cais, outros relinchavam
assustados com o mar. Uma talha, que os levantava, desceu-os no barco onde os
viajantes se acotovelavam entre os barris de sidra, os cestos de queijo, os
sacos de grãos; ouvia-se o barulho das galinhas, o capitão blasfemava e um
grumete permanecia apoiado ao turco da embarcação, indiferente a tudo aquilo.
Felicidade, que não o reconhecera, gritou:
— Vítor!
Ele levantou a cabeça; ela avançou quando, de
repente, retiraram a escada.
O navio, que mulheres cantando puxavam pelas
cordas, deixou o porto. A carcaça estalava, as ondas pesadas fustigavam a proa.
A vela virara, não se via mais ninguém; e, sobre o mar prateado pela lua, o
navio deixou uma mancha negra que se ia empalidecendo, embrenhou-se nas águas,
desapareceu.
— Felicidade, ao passar perto do Calvário,
quis recomendar a Deus o que mais amava; e rezou muito tempo de pé, com as
faces banhadas em lágrimas, os olhos em direção às nuvens. A cidade dormia, os
aduaneiros passeavam; e a água caía sem parar pelos buracos da eclusa com um
barulho de torrente. Soaram duas horas.
O locutório não abriria antes do amanhecer. Um
atraso, certamente, deixaria a senhora contrariada e, apesar do desejo de
beijar a outra criança, ela voltou. As moças do albergue despertavam quando ela
entrou em Pont-l’Évêque.
O pobre rapaz durante meses iria então vaguear
sobre as ondas! Suas viagens precedentes não a haviam assustado. Da Inglaterra
e da Bretanha podia-se voltar; mas a América, as Colônias, as Ilhas, aquilo
ficava perdido em uma região incerta, do outro lado do mundo.
Desde então, Felicidade pensou exclusivamente
em seu sobrinho. Nos dias de sol, atormentava-se com a sede; quando caía um
temporal, temia os raios por ele. Escutando o vento que troava na chaminé e
varria as ardósias, via-o batido pela mesma tempestade, no topo de um mastro
despedaçado, com o corpo todo para trás, sob um lençol e espuma; ou então —
lembranças do livro de geografia estampas — ele era devorado pelos selvagens,
aprisionado pelos macacos em uma floresta, morria ao longo de uma praia
deserta. E jamais falou de suas inquietudes.
A sra. Aubain tinha outras pela filha.
As freiras achavam que ela era afetuosa, mas
delicada. A mínima emoção deixava-a nervosa. Era preciso largar o piano.
A mãe exigia do convento uma correspondência
regular. Numa manhã em que o carteiro não viera, impacientou-se e andava pela
sala, da poltrona até a janela. Era realmente extraordinário! quatro dias, sem
notícias!
Para que ela se consolasse com o exemplo,
Felicidade disse-lhe:
— E eu, senhora, já faz seis meses que não
recebo nada!...
— Mas de quem?...
A criada replicou suavemente:
— Mas ... de meu sobrinho!
— Ah! seu sobrinho! — E, dando de ombros, a
sra. Aubain retomou seu passo, o que queria dizer: “Eu nem penso nele!... Além
disso, pouco me importa! Um grumete, um miserável, grande coisa!... Enquanto
que minha filha... Imagine só!...
Felicidade, embora crescida em meio à
crueldade, indignou-se com a senhora, depois esqueceu.
Parecia-lhe fácil perder a cabeça em se
tratando da menina.
As duas crianças tinham uma importância igual;
um lugar em seu coração as unia e seus destinos deviam ser os mesmos.
O farmacêutico contou-lhe que o barco de Vítor
chegara a Havana. Lera essa informação em uma gazeta.
Por conta dos charutos, ela imaginava Havana
como um país onde não se fazia outra coisa senão fumar, e Vítor circulava entre
os negros em uma nuvem de tabaco. Podia-se “em caso de necessidade” voltar de
lá por terra? A que distância ficava de Pont-l’Évêque? Para sabê-lo, interrogou
o sr. Bourais.
Ele pegou o atlas, depois começou explicações
sobre longitudes; e estampava no rosto um grande sorriso pedante diante do
pasmo de Felicidade. Por fim, com sua lapiseira, indicou nos recortes de uma
mancha oval um ponto negro, imperceptível, acrescentando:
— Aqui está.
Ela se debruçou sobre o mapa; aquela malha de
linhas coloridas cansava a vista, sem lhe ensinar coisa alguma; e a Bourais, o
qual insistia que lhe dissesse o que a perturbava, pediu que lhe mostrasse a
casa onde morava Vítor.
Bourais levantou os braços, espirrou, riu a
valer; tamanha candura excitava sua alegria; e Felicidade não compreendia o
motivo, — ela que esperava talvez ver até o retrato do sobrinho, de tal modo
sua inteligência era limitada!
Foi após quinze dias que Liébard, na hora do
mercado, como de costume, entrou na cozinha e entregou-lhe uma carta enviada
pelo cunhado. Uma vez que nenhum dos dois sabia ler, ela recorreu à patroa.
A sra. Aubain, que contava as malhas de um
tricô, colocou-o de lado, deslacrou a carta, estremeceu e, com uma voz baixa,
um olhar profundo:
— É uma desgraça... que lhe é anunciada. Seu
sobrinho...
Morrera. Não estava escrito mais nada.
Felicidade caiu sobre uma cadeira, apoiando a
cabeça na parede e fechou as pálpebras, que, de repente, tornaram-se rosadas.
Depois, com a fronte baixa, as mãos caídas, o olhar fixo, repetia em
intervalos:
— Pobre menino! Pobre menino!
Liébard via-a soltando suspiros. A sra. Aubain
tremia um pouco.
Ela lhe propôs ir ver a irmã em Trouville.
Felicidade respondeu, com um gesto, que não
era preciso.
Fez-se silêncio. Liébard, homem simples,
julgou conveniente se retirar.
Então ela disse:
— Para eles, isso não significou nada!
Sua cabeça baixou; e maquinalmente ela erguia,
de tempos em tempos, as longas agulhas sobre a mesa de costura.
Algumas mulheres passaram no pátio com uma
padiola de onde gotejava a roupa.
Vendo-as pela janela, lembrou-se da roupa
lavada; tendo-a deixado de molho no dia anterior, precisava hoje enxaguá-la; e
saiu do aposento.
A tábua de bater roupa e a tina estavam nos
limites do Toucques. Jogou sobre o talude uma pilha de camisas, arregaçou as
mangas, pegou a tábua de bater; e os fortes golpes que dava eram ouvidos nos
outros quintais ao lado. Os campos estavam vazios, o vento agitava o riacho; ao
fundo, a relva alta se inclinava sobre ele como cabeleiras de cadáveres
flutuando na água. Reteve sua dor, até a noite foi muito corajosa; mas, em seu
quarto, jogou-se de ventre sobre o colchão, com o rosto no travesseiro e os
dois punhos contra as têmporas.
Muito depois, pelo próprio capitão de Vítor,
conheceu as circunstâncias de seu fim.
Haviam-no sangrado demais no hospital, por
causa da febre amarela. Quatro médicos ocuparam-se dele ao mesmo tempo. Morreu
imediatamente e o médico chefe dissera:
— Bem! Mais um!
Os pais sempre o tinham tratado com crueldade.
Preferiu não os rever; e eles não tentaram nenhuma aproximação, por
esquecimento ou por endurecimento dos miseráveis.
Virgínia enfraquecia.
Sufocações, tosse, uma febre contínua e marcas
na face revelavam uma enfermidade profunda. O dr. Poupart aconselhara uma
estada na Provence. A sra. Aubain decidiu-se e teria imediatamente trazido sua
filha para casa, se não fosse pelo clima de Pont-l’Évêque.
Fez um trato com um dono de carros que a
levava ao convento todas as terças-feiras. Há no jardim um terraço de onde se
descobre o Sena. Ali Virgínia passeava de braços dados com ela sobre as folhas
caídas das videiras. Às vezes o sol atravessando as nuvens forçava-a a piscar,
enquanto olhava as velas ao longe e todo o horizonte, desde o castelo de
Tancarville até o farol do Havre. Em seguida repousavam sob o caramanchão. Sua
mãe providenciara um pequeno barril de excelente vinho de Málaga; e rindo com a
ideia de ficar levemente embriagada, bebia dois dedos, não mais.
Recobrou forças. O outono passou suavemente. Felicidade
tranquilizava a sra. Aubain. Mas, certa noite, quando fora aos arredores fazer
compras, encontrou à porta o cabriolé do sr. Poupart; e ele estava no
vestíbulo. A sra. Aubain amarrava o chapéu.
— Dê-me meu aquecedor, minha bolsa, minhas
luvas. Ande, mais rápido!
Virgínia tinha uma fluxão do peito. Talvez
fosse grave.
— Ainda não! — disse o médico; e ambos subiram
no carro, sob os flocos de neve que turbilhavam. A noite estava por chegar.
Fazia muito frio.
Felicidade precipitou-se para a igreja para
acender uma vela. Depois correu atrás do cabriolé, que alcançou uma hora mais
tarde, saltou ligeiramente por trás, segurando-se nas barras, quando lhe veio
um pensamento: “O pátio não estava fechado! e se entrassem ladrões?” E ela
desceu.
No dia seguinte, logo de madrugada, apareceu
na casa do médico. Ele tinha chegado e saído novamente para o campo. Depois ela
permaneceu no albergue, acreditando que algum desconhecido lhe entregaria uma
carta. Por fim, ao amanhecer, pegou a diligência de Lisieux.
O convento encontrava-se no fim de uma ruela
íngreme. Aproximadamente no meio, ela ouviu sons estranhos, um toque de
finados. “É para outra pessoa”, pensou ela; e Felicidade puxou violentamente a
aldrava.
Ao cabo de alguns minutos, chinelos
arrastaram-se, a porta entreabriu-se e uma religiosa apareceu.
A freira com um ar de compunção disse que “ela
acabara de falecer”. Ao mesmo tempo o sino fúnebre de São Leonardo tocou.
Felicidade chegou ao segundo andar.
Já na soleira do quarto, viu Virgínia
estendida de costas, com as mãos juntas, a boca aberta e a cabeça para trás sob
uma cruz negra que se inclinava sobre ela, entre as cortinas imóveis, menos
pálidas que seu rosto. A sra. Aubain, aos pés do leito que abraçava, soluçava
de agonia. A madre superiora estava de pé à direita: Três candelabros sobre a
cômoda faziam manchas vermelhas e a névoa esbranquiçava as janelas. Algumas
religiosas retiraram a sra. Aubain.
Durante duas noites, Felicidade não deixou a
morta. Repetia as mesmas preces, aspergia água benta sobre os lençóis, voltava
a sentar-se e contemplava-a. Ao final da primeira noite, notou que o rosto
havia amarelado, os lábios azulado, o nariz afinava-se, os olhos afundavam.
Beijou-os diversas vezes e não teria experimentado nenhuma imensa surpresa se
Virgínia os houvesse reaberto; para semelhantes almas o sobrenatural é muito
simples. Fez sua toalete, envolveu-a no lençol, desceu-a para o esquife,
colocou-lhe uma coroa, estendeu seus cabelos. Eram louros e de extraordinário
comprimento para sua idade. Felicidade cortou uma grande mecha, cuja metade
deixou deslizar dentro do peito, decidida a jamais dela se separar.
O corpo foi levado a Pont-l’Évêque, seguindo
as intenções da sra. Aubain, que seguia o féretro em um carro fechado.
Após a missa foram necessárias ainda quatro
horas para alcançar o cemitério. Paulo andava à frente e soluçava. O sr.
Bourais vinha atrás, depois os principais habitantes, as mulheres cobertas de
mantas negras e Felicidade. Sonhava com seu sobrinho e por não haver podido lhe
render suas honrarias, sentia um acréscimo em sua tristeza, como se o
estivessem enterrando com a outra.
O desespero da sra. Aubain foi ilimitado.
Primeiro, revoltou-se contra Deus, julgando
injusto de sua parte ter levado sua filha, — ela que jamais fizera mal algum e
cuja consciência era tão pura! Mas não! ela deveria tê-la levado ao Sul. Outros
médicos a teriam salvado! Acusava-se, queria juntar-se a ela, gritava de
angústia no meio dos sonhos. Um deles, sobretudo, obcecava-a. Seu marido,
vestido como um marinheiro, voltava de uma longa viagem e dizia-lhe chorando,
que havia recebido a ordem de levar Virgínia. Então, planejaram juntos de
encontrar um esconderijo em alguma parte.
Certa vez, voltou do quintal, transtornada.
Havia pouco (ela mostrava o lugar) o pai e a filha tinham-lhe aparecido um após
o outro e não faziam nada; observavam-na.
Durante vários meses, permaneceu no quarto,
inerte. Felicidade reprimia-a delicadamente; era preciso conservar-se pelo
filho e pela outra, em memória “dela”.
— Ela? — repetia a sra. Aubain, como que
acordando. — Ah! sim!... sim!... Você não esquece mesmo! — Alusão ao cemitério
que lhe haviam proibido escrupulosamente.
Felicidade lá ia todos os dias.
Às quatro horas precisamente, passava ao longo
das casas, subia a encosta, abria a grade e chegava à tumba de Virgínia. Era
uma pequena coluna de mármore rosa com uma laje por baixo e correntes em volta
circundando um pequeno jardim. Os canteiros desapareciam sob uma cobertura de
flores. Regava as folhas, renovava a areia, ajoelhava-se para melhor trabalhar
a terra. A sra. Aubain, quando podia vir, sentia um alívio, uma espécie de
consolo.
Depois os anos passaram, todos iguais e sem
outros episódios senão a volta das grandes festas: Páscoa, Assunção, Todos os
Santos. Alguns acontecimentos no interior da casa marcaram data, a que se
reportavam mais tarde. Assim, em 1825, dois vidraceiros pintaram o vestíbulo;
em 1827 uma parte do teto, ao cair no pátio, quase matou um homem. No verão de
1828, foi a vez de a senhora oferecer o pão bento; Bourais, nessa época,
ausentou-se misteriosamente; e os antigos conhecidos aos poucos se foram:
Guyot, Liébard, a sra. Léchaptois, Robelin, o tio Gremanville, paralítico havia
tempos.
Certa noite, o condutor da mala-posta anunciou
em Pont-l’Évêque a Revolução de Julho. Um novo subprefeito, poucos dias depois,
foi nomeado: o barão de Larsonnière, ex-cônsul na América e que tinha em casa,
além da mulher, a cunhada com três senhoritas, já bem grandes. Eram vistas na
relva vestidas de blusas esvoaçantes; possuíam um negro e um papagaio. A sra.
Aubain recebeu a visita deles e não se esqueceu de fazer a sua. Por mais longe
que fosse de onde aparecessem, Felicidade corria para avisá-la. Mas uma coisa
apenas era capaz de comovê-la, as cartas de seu filho.
Ele não podia seguir nenhuma profissão, por
estar absorvido nos botequins. Ela lhe pagava as dívidas, ele fazia outras; e
os suspiros que soltava a sra. Aubain, tricotando perto da janela, chegavam até
Felicidade, que girava a roca na cozinha.
Elas passeavam juntas ao longo da fileira de
árvores e falavam sempre de Virgínia, perguntando-se se tal coisa lhe teria
agradado, em tal ocasião o que provavelmente teria dito.
Todos os seus pequenos objetos ocupavam um
armário no quarto com duas camas. A sra. Aubain os inspecionava o menos
possível. Certo dia de verão, resignou-se; e borboletas saíram voando do
armário.
Os vestidos alinhavam-se sob uma prateleira
onde havia três bonecas, arcos, uma casinha, a bacia de mãos de que se servia.
Elas retiraram igualmente os saiotes, as meias, os lenços e estenderam-nos
sobre os dois leitos antes de dobrá-los novamente. O sol iluminava aqueles
pobres objetos, fazendo aparecer as manchas e as dobras formadas pelo movimento
do corpo. O ar estava quente e azul, um melro chilreou, tudo parecia viver em
uma profunda tranquilidade. Reencontraram um pequeno chapéu de pelúcia, com
longos pelos, de cor marrom; mas estava todo comido por traças. Fixaram os
olhos uma na outra, eles se encheram de lágrimas; por fim a patroa abriu os
braços, a criada neles se jogou; e abraçaram-se, satisfazendo a dor em um
abraço que as igualava.
Foi a primeira vez de suas vidas, pois a sra.
Aubain não era uma pessoa de natureza expansiva. Felicidade ficou-lhe grata
como por uma caridade e doravante adorava-a com uma devoção bestial e uma
veneração religiosa.
A bondade de seu coração desenvolveu-se.
Quando ouvia na rua os tambores de um
regimento em marcha colocava-se à porta com uma moringa de sidra e oferecia de
beber aos soldados.
Cuidava dos doentes de cólera. Protegia os
poloneses; e houve mesmo um que declarou querer se casar com ela. Mas eles se
desentenderam; pois certa manhã, ao voltar da igreja, encontrou-o na cozinha,
onde entrara e preparara um molho vinagrete que comia tranquilamente.
Depois dos poloneses, foi a vez do velho
Colmiche, conhecido por cometer atrocidades em 93. Vivia à margem do riacho,
nos escombros de uma pocilga. Os meninos observavam-no pelas fendas do muro e
atiravam-lhe pedregulhos que lhe caíam sobre a enxerga, onde jazia,
continuamente abalado por um catarro, com os cabelos muito longos, as pálpebras
vermelhas e no braço um tumor maior que a cabeça. Ela lhe providenciou roupas,
tratou de limpar aquele chiqueiro, sonhava em instalá-lo na casa do forno, sem
que isso incomodasse a senhora. Quando o câncer rebentou, ela o tratava todos
os dias, algumas vezes trazia-lhe um pouco de bolo, sentava-o no sol sobre um
feixe de palha; e o pobre velho, babando e tremendo, agradecia-lhe com a voz
apagada, temendo perdê-la, estendia as mãos assim que a via afastar-se. Ele
morreu; ela encomendou uma missa para o descanso de sua alma.
Naquele dia teve uma grande felicidade: na
hora do jantar, o negro da sra. de Larsonnière apareceu segurando o papagaio na
gaiola, com o bastão, a corrente e o cadeado. Um bilhete da baronesa anunciava
à sra. Aubain que, na vez que seu marido havia sido promovido para uma
prefeitura, eles partiriam àquela noite; e ela pedia que aceitasse este pássaro
como uma lembrança e testemunho de seu respeito por ela.
Ele já ocupava há muito tempo a imaginação de
Felicidade, pois vinha da América; aquela palavra lembrava-lhe Vítor, tanto que
se informava sobre ele com o negro. Certa vez até disse:
— A senhora é que ficaria feliz em tê-lo!
O negro repetira aquela fala à sua patroa que,
não podendo levá-lo, livrou-se dele dessa maneira.
IV
Ele se chamava Lulu. Seu corpo era verde, as
pontas das asas rosa, a fronte azul e o pescoço dourado.
Mas tinha a irritante mania de morder seu
bastão, arrancava as penas, espalhava sua sujeira, derramava a água de sua
banheira; a sra. Aubain, a quem aborrecia, deu-o para sempre para Felicidade.
Ela se ocupou a ensiná-lo; logo ele repetia:
“Belo rapaz! Às ordens, senhor! Ave Maria!” Ficava perto da porta e muitos
espantavam-se que não atendesse pelo nome de Jacquot, uma vez que todos os
papagaios se chamam Jacquot. Comparavam-no a um peru, achavam-no estúpido:
tantas punhaladas para Felicidade! Estranha obstinação de Lulu de não falar
assim que o observavam!
No entanto procurava companhia; pois aos
domingos, enquanto as senhoritas Rochefeuille, o sr. de Houppeville e novos
freqüentadores — Onfroy o boticário, senhor Varin e o capitão Mathieu — jogavam
sua partida de cartas, ele batia nos vidros com as asas e agitava-se tão
furiosamente, que era impossível ouvir qualquer coisa.
O rosto de Bourais, provavelmente, parecia-lhe
muito engraçado. Logo que o via, começava a rir com todas as forças. Os estalos
de sua voz repercutiam no pátio, o eco repetia-os, os vizinhos colocavam-se às
janelas, rindo também; e, para não ser visto pelo papagaio, o sr. Bourais
passava rente ao muro, dissimulando o perfil com o chapéu, alcançava o riacho,
depois entrava pela porta do quintal; e os olhares que lançava ao pássaro não
tinham nenhuma ternura.
Lulu recebera do empregado do açougueiro um
piparote, quando se permitira afundar a cabeça em seu cesto; e desde então
tratava sempre de beliscá-lo através da camisa. Fabu ameaçava torcer-lhe o
pescoço, se bem que não fosse cruel, apesar das tatuagens nos braços e das
grandes suíças. Pelo contrário! tinha até uma afeição pelo papagaio, querendo
mesmo, por brincadeira jovial, ensinar-lhe alguns palavrões.
Felicidade, a quem estas, maneiras
desagradavam, colocou-o na cozinha. Tirou-lhe a corrente e ele circulava pela
casa.
Quando descia as escadas, apoiava sobre os
degraus a curva do bico, levantava a pata direita, depois a esquerda; e ela
temia que tal ginástica lhe causasse tonturas. Ele ficou doente, não podia mais
falar nem comer. Tinha sob a língua uma membrana grossa, como às vezes a tem
algumas galinhas. Ela o curou arrancando essa película com suas unhas. O sr.
Paulo, certo dia, teve a imprudência de soprar-lhe nas narinas a fumaça de um
charuto; uma outra vez a sra. Lormeau provocou-o com a ponta de sua sombrinha,
ele engoliu o aro da mesma, por fim desapareceu.
Ela o havia colocado sobre a relva para
refrescá-lo, ausentando-se por um minuto e, quando voltou, nada do papagaio!
Primeiro procurou-o nas moitas à beira da água e sobre os telhados, sem ouvir
sua patroa que gritava:
— Tome cuidado! Você está louca! Em seguida
verificou todos os quintais de Pont-l’Évêque; e parava os passantes.
— Não viram, por acaso, meu papagaio?
— Àqueles que não conheciam o papagaio, dava
uma descrição. De repente, acreditou distinguir detrás dos moinhos, ao final
das ladeiras, uma coisa verde que esvoaçava. Mas do alto das ladeiras, nada! Um
mascate lhe afirmou que o havia encontrado agora mesmo, em Saint-Melaine, na
loja da velha Simão. Para lá ela correu. Não entendiam o que ela queria dizer.
Por fim, voltou para casa esgotada, os chinelos aos farrapos, com a morte na
alma; e sentada no meio do banco, perto da senhora, contava todas as suas
peripécias, quando um leve peso lhe pousou sobre o ombro. Lulu! Que diabos
tinha ele feito? Talvez tivesse passeado pelos arredores!
Custou-lhe recompor-se, ou melhor, não se
recompôs jamais.
Como consequência de um resfriado, ela pegou
uma angina; pouco tempo depois, uma dor nos ouvidos. Três anos mais tarde, ela
ficou surda; e falava muito alto, mesmo na igreja. Ainda que seus pecados
pudessem, sem desonra para ela e sem inconveniência para o mundo, espalhar-se
pelos quatro cantos da diocese, o pároco julgou conveniente não mais ouvir sua
confissão na sacristia.
Zunidos ilusórios conseguiam atormentá-la.
Frequentemente sua patroa dizia:
— Meu Deus! Como você é tola!
Ela retrucava:
— Sim, senhora! — procurando alguma coisa à
sua volta.
O pequeno círculo de suas ideias encolheu
ainda mais e o badalar dos sinos, o mugido dos bois, não existiam mais. Todos
os seres funcionavam com o silêncio das almas. Um único som chegava agora a
seus ouvidos, a voz do papagaio.
Como que para distraí-la, ele reproduzia o
tique-taque do relógio, o grito agudo de um vendedor de peixes, o serrote do
marceneiro que morava em frente e, ao soar da campainha, imitava a sra. Aubain:
“Felicidade! A porta! A porta!”
Mantinham diálogos, ele recitando à saciedade
as três frases de seu repertório, e ela as respondendo com palavras sem lógica,
mas com as quais seu coração se extravasava, Lulu, em seu isolamento, era quase
um filho, um amado. Ele escalava seus dedos, mordia seus lábios, agarrava-se a
seu lenço; e quando ela se debruçava inclinando a cabeça como as babás, as
grandes asas de sua toca e as asas do papagaio tremiam juntas.
Quando nuvens se acumulavam e trovões
estrondavam, ele dava gritos talvez se recordando das tempestades de sua
floresta natal. O cair das águas excitava seu delírio. Esvoaçava, desvairado
subia ao teto, derrubava tudo e pela janela ia agitar-se no quintal; mas
voltava rapidamente sobre um dos cães da lareira, e saltitando para secar as
plumas, mostrava ora o rabo, ora o bico.
Numa manhã do terrível inverno de 1837, quando
ela o colocara diante da lareira, por causa do frio, encontrou-o morto, no meio
da gaiola, com a cabeça para baixo e as garras nas barras de ferro. Uma
congestão, talvez, o matara? Ela acreditava ter sido um envenenamento pela
salsa; e apesar da ausência de qualquer prova, suas suspeitas recaíram sobre
Fabu. Chorou tanto, que sua patroa lhe disse:
— Bom! Mande empalhá-lo!
Pediu conselho ao farmacêutico, que sempre
fora bom com o papagaio.
Ele escreveu ao Havre. Um certo Fellacher
encarregou-se desse trabalho. Mas, como a diligência por vezes perdia os
pacotes, ela resolveu levá-lo ela mesma até Honfleur.
As macieiras sem folhas sucediam-se à margem
do caminho. Gelo cobria as valas. Cães latiam ao redor das casas e, com as mãos
sob o manto, seus pequenos tamancos pretos e a sacola, andava apressadamente,
no meio da rua.
Atravessou a floresta, passou Haut-Chêne, chegou
a volt Saint-Gatien.
Atrás dela, em uma nuvem de poeira uma
mala-posta a todo galope vinha violentamente, acelerada pela descida. Vendo
aquela mulher que nem se incomodava, o condutor ergueu-se por sobre a capota e
o cocheiro também gritou, enquanto os quatro cavalos, que não conseguia conter,
aceleravam a marcha; os dois primeiros roçaram-na; com uma sacudida nas rédeas,
ele os jogou para fora do caminho, mas furioso levantou o braço, e com toda a
força e o grande chicote acertou-lhe do ventre ao coque um tamanho golpe que
ela caiu de costas.
O primeiro gesto ao recuperar a consciência
foi abrir o cesto. Lulu não tinha nada, felizmente. Sentiu uma queimação na
face direita; as mãos, que a tocaram, estavam vermelhas. O sangue corria.
Sentou-se sobre os pedregulhos, limpou o rosto
com o lenço, depois comeu uma côdea de pão colocada no cesto por precaução e
consolou-se de sua ferida olhando o pássaro.
Chegando ao topo de Ecquemauville, viu as
luzes de Honfleur que cintilavam na noite como um punhado de estrelas; o mar,
ao longe, estendia-se confusamente. Então uma fraqueza fê-la parar; e a miséria
de sua infância, a decepção do primeiro amor, a partida do sobrinho, a morte de
Virgínia, como o fluxo das marés, voltaram ao mesmo tempo e, subindo-lhe pela
garganta sufocavam-na.
Depois quis falar com o capitão do barco e,
sem lhe dizer o que estava enviando, fez-lhe muitas recomendações.
Fellacher ficou por muito tempo com o
papagaio. Prometia-o sempre para a semana seguinte; ao cabo de seis meses,
anunciou a remessa de um caixote; e não se falou mais naquilo. Parecia que Lulu
não voltaria jamais. “Eles o roubaram de mim!” — pensava ela.
Finalmente ele chegou, — e esplêndido, em pé
sobre um galho de árvore, que estava parafusado a um soquete de acaju, com uma
das patas no ar, a cabeça inclinada e mordendo uma noz que o empalhador tinha
dourado por amor ao grandioso.
Ela o trancou em seu quarto.
Neste lugar, onde apenas poucos podiam entrar,
havia um clima ao mesmo tempo de capela e de bazar, de tantos objetos religiosos
e coisas heteróclitas que continha.
Um grande armário dificultava a abertura da
porta. Do lado oposto da janela, dominando o quintal, um olho-de-boi dava para
o pátio; uma mesa, perto da cama de lona, continha um pote de água, dois pentes
e um cubo de sabonete azul em um pratinho lascado. Viam-se nas paredes: terços,
medalhas, diversas Virgens, uma pia batismal talhada em uma casca de coco;
sobre a cômoda coberta com um lençol, como um altar, a caixa de conchas que
Vítor lhe havia dado; depois um regador e uma bola, cadernos, o livro de
geografia em estampas, um par de botinas; e no prego do espelho, preso pelas
fitas, o chapéu de pelúcia! Felicidade cultivava mesmo esse tipo de respeito
tão distante que guardava uma das sobrecasacas do senhor. Todas as velharias
que a sra. Aubain não queria mais, ela levava para o quarto. Assim havia flores
artificiais no canto da cômoda e o retrato do conde de Artois no vão da
lucarna.
Com uma prancheta, Lulu foi instalado em um
canto da lareira que avançava para dentro do quarto. Todas as manhãs, ao
levantar, ela o via na claridade da aurora e se lembrava então dos dias
passados e de ações insignificantes em seus menores detalhes, sem dor, com toda
a tranquilidade.
Por não se comunicar com ninguém, vivia em um
torpor de sonâmbulo. As procissões de Corpus Christi reanimavam-na. Ela ia até
os vizinhos pedir tochas e esteiras para embelezar os andores que passavam na
rua.
Na igreja, sempre contemplava o Espírito Santo
observava que nele havia algo de similar com o papagaio. A semelhança
pareceu-lhe ainda mais evidente em uma imagem de Épinal representando o batismo
de Nosso Senhor. Com as asas de púrpura e o corpo de esmeralda era realmente o
retrato de Lulu.
Tendo-o comprado pendurou-o no lugar do conde
de Artois — de maneira que, com um só olhar, via-os juntos. Associavam-se em
seu pensamento, o papagaio santificado pela relação com o Espírito Santo, que
por sua vez se tornava mais vivo a seus olhos e inteligível. O Pai para
expressar-se não deveria ter escolhido uma pomba, uma vez que esses animais não
tem voz, mas antes um dos ancestrais de Lulu. E Felicidade fazia suas preces
olhando a imagem mas, de vez em quando, virava-se um pouco em direção ao
pássaro.
Ela teve vontade de entrar para as Filhas de
Maria. A sra. Aubain dissuadiu-a.
Um acontecimento considerável sucedeu: o
casamento de Paulo.
Após ter sido primeiro escrivão de cartório,
após ter trabalhado no comércio, na alfândega, nas arrecadações e ter mesmo
começado a pleitear um emprego nas águas e reflorestamento, aos trinta e seis
anos, de repente por uma inspiração dos céus, descobriu seu caminho: o
registro! e nele mostrava tamanha habilidade que um aferidor ofereceu-lhe a
filha, prometendo-lhe proteção.
Paulo, agora homem sério, trouxe-a até a mãe.
Ela denegriu os hábitos de Pont-l’Évêque, agiu
com ares de princesa, ofendeu Felicidade. A sra. Aubain, assim que ela saiu,
sentiu um alívio.
Na semana seguinte, souberam da morte do sr.
Bourais, na Baixa Bretanha, em um albergue. O rumor de um suicídio acabou se
confirmando; levantaram-se dúvidas quanto a sua probidade. A sra. Aubain
conferiu suas contas e não tardou a conhecer uma infinidade de falcatruas:
desvios de pagamentos, vendas de madeira dissimuladas, falsas quitações etc.
Além do mais, tinha um filho natural e “relações com uma certa pessoa de
Dozulé”.
Essas baixezas afligiram-na muito. No mês de
março de 1853, teve uma dor no peito; sua língua parecia coberta de fumaça, as
sanguessugas não acalmaram suas sufocações; e na nona noite ela expirou tendo
precisamente setenta e dois anos.
Julgavam-na mais jovem, por causa dos cabelos
castanhos, cujos bandôs envolviam o rosto macilento, marcado pela varíola.
Poucos amigos entristeceram-se por ela, de tal forma suas maneiras eram de uma
altivez que distanciava.
Felicidade chorou-a como não se costuma chorar
os patrões. Que a senhora morresse antes dela, isso lhe perturbava as ideias,
parecia-lhe contrário à ordem natural das coisas, inadmissível, monstruoso.
Dez dias depois (o tempo de chegarem de
Besançon), os herdeiros apareceram. A nora vasculhou gavetas, escolheu alguns
móveis, vendeu os demais, depois recuperaram o registro.
A poltrona da senhora, sua mesinha redonda, o
aquecedor, as oito cadeiras, foram-se! No lugar das gravuras desenhavam-se
quadrados amarelos no meio das paredes. Eles haviam levado as duas camas e os
colchões, e dentro do armário não se via mais nenhum dos pertences de Virgínia!
Felicidade subiu os andares, ébria de tristeza.
No dia seguinte, havia sobre a porta um
cartaz; o boticário gritou-lhe aos ouvidos que a casa estava à venda.
Ela cambaleou e foi obrigada a se sentar.
O que a desolava principalmente era ter de
abandonar seu quarto, — tão cômodo para o pobre Lulu. Envolvendo-o em um olhar
de angústia, implorava ao Espírito Santo e adquiriu o hábito idólatra de dizer
as preces ajoelhada diante do papagaio. Às vezes, o sol entrando pela lucarna
atingia seu olho de vidro, fazendo jorrar um grande raio luminoso que a fazia
entrar em êxtase.
Tinha uma renda de trezentos e oitenta
francos, legados pela patroa. A horta fornecia-lhe legumes. Quanto as
vestimentas, tinha com o que se vestir até o fim de seus dias, e economizava
luz, deitando-se logo ao crepúsculo.
Ela não saía muito, a fim de evitar a loja do
antiquário, onde estavam expostos alguns dos antigos móveis. Desde seu
atordoamento, puxava uma perna; e, como suas forças minguavam, a velha Simão,
que perdera tudo no armazém, vinha todas as manhãs cortar a lenha e bombear
água.
Seus olhos enfraqueceram-se. As persianas não
se abriam mais. Muitos anos se passaram. E a casa nem se alugava, nem se
vendia.
Com medo de que fosse mandada embora,
Felicidade não pedia por nenhum conserto. As ripas do telhado apodreciam;
durante todo um inverno a cabeceira de sua cama ficou molhada. Depois da
Páscoa, cuspiu sangue. Então a velha Simão recorreu a um médico. Felicidade
quis saber o que tinha. Mas, surda demais para ouvir, uma única palavra
chegou-lhe aos ouvidos: “pneumonia”. Era-lhe conhecida e replicou suavemente:
— Ah! Como a senhora. — achando natural seguir
a patroa.
A época dos altares aproximava-se.
O primeiro era sempre montado ao pé da
encosta, o segundo na frente do correio, o terceiro no meio da rua. Houve
disputas a respeito desse último; e os paroquianos escolheram finalmente o
pátio da sra. Aubain.
As sufocações e a febre aumentavam. Felicidade
entristecia-se por nada fazer para o altar. Ao menos, se ela pudesse ter
colocado qualquer coisa sobre ele! Então pensou no papagaio. Não era
conveniente, objetaram os vizinhos. Mas o pároco deu a permissão; ela ficou tão
feliz, que lhe pediu que aceitasse, quando falecesse, Lulu, sua única riqueza.
Da terça-feira ao sábado, na véspera de Corpus
Christi, ela tossiu com mais frequência. À noite, seu rosto estava crispado, os
lábios colavam-se às gengivas, os vômitos surgiram; e no dia seguinte, ao
amanhecer, sentindo-se muito mal, mandou chamar um padre.
Três velhas rodeavam-na durante a
extrema-unção. Depois disse que precisava falar com Fabu.
Ele chegou em trajes de domingo, pouco à
vontade naquela atmosfera lúgubre.
— Perdoe-me — disse ela com um esforço para
estender o braço — Eu acreditava que fora você quem o havia matado!
O que significavam semelhantes asneiras? Ter
suspeitado dele como um assassino, um homem como ele! e indignou-se, ia fazer
um alvoroço.
— Ela perdeu o juízo, vocês estão vendo!
Felicidade, vez ou outra, falava com as
sombras. As velhas afastaram-se. A Simone foi almoçar.
Um pouco mais tarde, pegou Lulu e,
aproximando-o de Felicidade:
— Vamos! Diga-lhe adeus!
Embora não fosse um cadáver, os vermes
devoravam-no; uma de suas asas estava quebrada, a estopa saía-lhe do ventre.
Mas, cega agora, ela o beijou na fronte e o mantinha encostado à face. A Simone
pegou-o. de volta para colocá-lo sobre o altar.
V
As pastagens exalavam o aroma do verão; moscas
zumbiam; o sol fazia brilhar o ribeirão, aquecia as ardósias. A velha Simão, de
volta ao quarto, dormia tranquilamente.
Toques de sino acordaram-na; saía-se das
vésperas. O delírio de Felicidade diminuiu. Sonhando com a procissão, ela a
via, como se a tivesse acompanhado.
Todas as crianças das escolas, os cantores e
os bombeiros andavam nas calçadas, enquanto pelo meio da rua avançavam
primeiramente: o suíço carregando a alabarda, o sacristão com uma grande cruz,
o instrutor vigiando os garotos, a religiosa inquieta com suas meninas — três
das menores, cacheadas como anjos, lançavam no ar pétalas de rosas —, o
diácono, com os braços abertos, moderando a música e dois incensadores
voltando-se a cada passo em direção ao Santo Sacramento, que o pároco, na sua
bela casula, carregava, sob um pálio de veludo vermelho vivo, segurado por
quatro membros da igreja. Uma multidão seguia atrás, entre as toalhas brancas
cobrindo o murro das casas; e chegou ao final da ladeira.
Um suor frio molhava as têmporas de
Felicidade. A Simone a enxugava com um pano, dizendo que precisaria um dia
passar por lá.
O murmúrio da multidão aumentou. Tornou-se
muito forte por um momento, distanciou-se.
Uma rajada de fuzis abalou os ladrilhos. Eram
os postilhões saudando o ostensório. Felicidade virou suas pupilas, e disse, o
mais alto que pode:
— Ele está bem? — angustiada pelo papagaio.
Sua agonia começou. E estertores, cada vez
mais frequentes, erguiam-lhe as costas. Bolhas de espuma escorriam-lhe pelo
canto da boca, e todo seu corpo tremia.
Logo se distinguiu o ronco dos oficlides, as
vozes cristalinas das crianças, a voz grave dos homens. Tudo silenciava de vez
em quando, e a batida dos passos, amortecida pelas flores, fazia o barulho de
um rebanho sobre a relva.
O pároco surgiu no pátio. A Simone subiu em
uma cadeira para alcançar o olho-de-boi, e dessa maneira dominava o andor.
Guirlandas verdes pendiam sobre o altar,
ornado por um falbalá em ponto inglês. Havia no meio um pequeno quadro contendo
relíquias, duas laranjeiras nos cantos e, em todo o comprimento, candelabros de
prata e vasos de porcelana, de onde saíam girassóis, lírios, peônias,
dedaleiras, cachos de hortênsias. Esse amontoado de cores brilhantes descia
obliquamente, do primeiro andar até o tapete, prolongando-se sobre os
paralelepípedos; e objetos estranhos atraíam os olhares. Um açucareiro de prata
dourada tinha uma coroa de violetas, pingentes em pedras de Alençon brilhavam
sobre musgo, dois biombos chineses expunham suas paisagens. Lulu, escondido sob
as rosas, só deixava ver sua testa azul, parecida com uma placa de
lápis-lazúli.
Os membros da igreja, os cantores, as crianças
enfileiraram-se nos três lados do pátio. O padre subiu lentamente os degraus e
colocou sobre a renda seu grande sol de ouro que cintilava. Todos se
ajoelharam. Fez-se um grande silêncio. E os incensórios, balançados
vigorosamente, deslizavam em suas correntinhas.
Um vapor azul subiu no quarto de Felicidade.
Ela avançou as narinas, inalando-o com uma sensualidade mística; depois fechou
suas pálpebras. Seus lábios sorriam. Os movimentos de seu coração diminuíram um
a um, cada vez mais vagos, mais suaves, como uma fonte se esgota, como um eco
desaparece; e quando exalou seu último suspiro, ela acreditou ver, nos céus
entreabertos, um papagaio gigantesco, planando acima de sua cabeça.
Nota: Conto publicado no
livro “Um Coração Simples”, editora Paz e Terra, com tradução de Clotilde
Mariano Vaz, Daniel Vaz e Simia Katarina Rickmann.
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