Raymond Douglas “Ray”
Bradbury (1920-2012) escritor norte americano nascido em Waukegan, Illinois, é reconhecido
como um dos maiores escritores de ficção cientifica de todo o mundo. Fahrenheit 451, de sua
autoria é um dos grandes romances do gênero. O conto “Um som de
trovão”, publicado em 1952, conta a história do caos que poderia ser
causado pela morte acidental de uma simples borboleta pré-histórica. Um clássico.
Um som de trovão
Ray Bradbury
O anúncio
na parede parecia tremular sob uma película de água quente. Eckels sentiu suas
pálpebras estremecerem sobre seu olhar, e o anúncio queimava, na momentânea
escuridão:
SAFARIS NO TEMPO, INC.
SAFARIS PARA QUALQUER ANO DO
PASSADO
VOCÊ DIZ QUE ANIMAL.
NÓS O LEVAMOS LÁ.
VOCÊ O ABATE.
Uma flegma
quente acumulou-se na garganta de Eckels; engoliu e empurrou-a para baixo. Os
músculos ao redor de sua boca formaram um sorriso enquanto ele estendeu sua mão
lentamente pelo ar, e naquela mão, balançava-se um cheque de dez mil dólares,
para o homem atrás da escrivaninha.
— Este
safári garante que eu volte vivo?
— Não
garantimos nada — falou o funcionário — exceto os dinossauros. — Voltou-se. —
Este é o Sr. Travis, seu Guia, no safári ao passado. Ele vai dizer-lhe o que e
aonde atirar. Se ele disser para não atirar, não se atira. Se desobedecer às
instruções, há uma pesada multa de mais de dez mil dólares, mais um possível
processo do governo, quando voltar.
Eckels
olhou, através do amplo escritório, numa completa confusão disforme, de fios entrelaçados
e caixas de aço zumbindo, para uma aurora que agora reluzia laranja, então
prateada, e então, azul. Havia um som como uma descomunal pira queimando todo o
tempo, todos os anos e todos os calendários, todas as horas empilhadas e
incendiadas.
Um toque da
mão e esta queima, instantaneamente, se reverteria lindamente. Eckels
lembrou-se literalmente das palavras da propaganda. De carvões e cinzas, da
poeira e das brasas, como salamandras douradas, os velhos tempos, os anos jovens,
podem saltar; rosas suavizando o ar; cabelo branco enegrecendo-se, rugas
desaparecendo; tudo ,voltando totalmente à origem, fugir à morte, precipitar-se
para o começo de tudo, o sol nascendo nos céus ocidentais, e pondo-se gloriosamente
no leste, luas devorando-se a si mesmas no sentido oposto ao costumeiro, e tudo
se sobrepondo, como caixas chinesas, coelhos em cartolas, tudo e todos retornando
à morte viva, a morte da semente, a morte verde, ao tempo de antes do começo. O
toque da mão poderia fazê-lo, o mero toque da mão.
—
Inacreditável. — Eckels respirava, com a luz da Máquina sobre seu rosto fino. —
Uma verdadeira Máquina do Tempo. — Abanou a cabeça. — É de fazer pensar. Se a
eleição tivesse ido mal ontem, eu poderia estar agora me afastando dos
resultados. Felizmente Keith ganhou. Será um bom presidente para os Estados
Unidos.
— Sim —
falou o homem por trás da mesa. — Temos sorte. Se Deutscher tivesse ganho,
teríamos a pior ditadura. Há sempre um homem anti-tudo, um militarista, um
anti-Cristo, anti-humano, anti-intelectual. O povo nos requisitou, sabe, como
que brincando, mas a sério. Diziam que se Deutscher se tornasse presidente,
queriam viver em 1492. Claro, não é o nosso negócio conduzir Fugas, mas organizar
Safáris. De qualquer maneira, Keth é o presidente, agora. Tudo com que precisa
preocupar-se agora é...
— Caçar meu
dinossauro — Eckels acabou para ele.
— Um
Tyranossaurus rex. O Lagarto Tirano, o monstro mais inacreditável de toda a
história. Assine este termo. O que quer que aconteça com você, não somos
responsáveis. Esses dinossauros são muito vorazes.
Eckels
animou-se, nervoso. — Tentando assustar-me!
—
Francamente, sim. Não queremos que vá alguém que entre em pânico ao primeiro
tiro. Seis lideres de safári foram mortos no ano passado, e uma dúzia de
caçadores. Estamos aqui para dar-lhe a maior emoção que um caçador de verdade
jamais almejou. Mandá-lo de volta sessenta milhões de anos, para pegar a maior
caça de todos os tempos. Seu cheque ainda está aqui. Pode rasgá-lo.
O Sr.
Eckels olhou para o cheque. Seus dedos retorceram-se.
— Boa-sorte
— falou o homem atrás da escrivaninha. — Sr. Travis, ele é todo seu.
Moveram-se
silenciosamente, atravessando a sala, levando suas armas com eles, em direção à
Máquina, rumo ao metal prateado e às luzes gritantes.
Primeiro,
um dia e então uma noite e então um dia e então uma noite, e então era
dia-noite-dia-noite-dia. Uma semana, um mês, um ano. uma década! 2055 a. D.,
2019 a. D., 1999! 1957! Partida! A máquina rugia.
Puseram
suas máscaras de oxigênio e testaram os intercomunicadores.
Eckels
inclinou-se no assento estofado, rosto pálido, maxilar enrijecido. Sentia o
tremor em seus braços, olhou para baixo e achou suas mãos firmes no novo rifle.
Haviam quatro outros homens na Máquinas. Travis, o líder do Safári, seu
assistente, Lesperance, e mais dois outros caçadores, Billings e Kramer.
Sentavam-se olhando uns para os outros, e os anos ardiam à volta deles.
— Estas
armas podem dar conta de um dinossauro? — Eckels sentiu sua boca dizendo.
— Se os
acertar direito — disse Travis pelo rádio do capacete. — Alguns dinossauros têm
dois cérebros, um na cabeça e outro no fim da espinha. Ficamos longe destes. É
abusar da sorte. Atire as duas primeiras vezes nos olhos, se puder, e cegue-os,
e volte a atirar no cérebro.
A Máquina
bramia. O Tempo era um filme passado ao contrário. Os sóis voavam e dez
milhões de luas, atrás deles. — Pense só — disse Eckels. — Todos os caçadores
que jamais viveram nos invejariam hoje. Isto faz a África parecer com o
Illinois.
A Máquina
desacelerou; seu grito caiu para um sussurro. A Máquina parou.
O sol parou
no céu.
A névoa que
envolvera a Máquina dissipou-se e estavam num tempo antigo, muito antigo mesmo,
três caçadores e dois chefes de safári com suas armas metálicas sobre os
joelhos.
— Cristo
ainda não nasceu — disse Travis. — Moisés ainda não foi à montanha, para falar
com Deus. As pirâmides ainda estão na terra, esperando para serem recortadas e montadas.
Lembrem-se disso. Alexandre; César; Napoleão; Hitler; nenhum deles existe.
O homem fez
que sim.
— Aquilo. —
Apontou o Sr. Travis — é a selva de sessenta milhões dois mil e cinquenta e
cinco anos antes do presidente Keith.
Mostrou o
caminho de metal que cruzava o verde selvagem, sobre um amplo pântano, por
entre fetos e palmeiras.
E aquele —
disse — é o Caminho, colocado por Safáris no Tempo, para seu uso. Flutua a seis
polegadas acima da terra. Não toca senão no máximo uma grama, flor ou árvore. É
um metal anti-gravitacional. Seu propósito é evitar que vocês toquem, de
qualquer maneira que seja, este mundo do passado. Fiquem no Caminho. Não saiam
dele. Repito. Não saiam. Por qualquer razão que seja! Se caírem, serão
multados. E não disparem em nenhum animal que não aprovemos.
— Por quê?
— perguntou Eckels.
Sentaram-se,
na floresta antiga. Gritos distantes de pássaros vieram com o vento, e o cheiro
de alcatrão e de um velho oceano salgado, grama úmida, e flores da cor de
sangue.
— Não
queremos mudar o Futuro. Não pertencemos ao Passado. O governo não gosta de nós
aqui. Temos que pagar muita propina para garantir nossa licença. A Máquina do
Tempo é um negócio extremamente delicado. Sem saber, poderíamos matar um animal
importante, um pequeno pássaro, uma barata; mesmo uma flor, assim destruindo um
elo importante, numa espécie em evolução.
— Isso não
fica muito claro, — falou Eckels.
– Está bem
— continuou Travis, — suponhamos que acidentalmente matemos um rato, aqui. Isso
quer dizer que todos as futuras famílias deste rato, em particular, serão
destruídas, certo?
— Certo.
— E todas
as famílias das famílias, daquele rato! Com um pisão de seu pé, você aniquila
primeiro um, então uma dúzia, então mil, um milhão, um bilhão de ratos,
possivelmente!
— Então
estarão mortos; e daí?
— E daí? —
Travis torceu o nariz. — Bem, e as raposas que precisariam daqueles ratos para
sobreviver? Para cada dez ratos a menos, morre uma raposa. Para cada dez
raposas a menos, um leão morre de fome. Para cada leão a menos, insetos,
abutres, infinitos bilhões de formas de vida são lançados ao caos e à
destruição. Eventualmente, tudo recai no seguinte: cinquenta e nove milhões de
anos depois, um troglodita, um, de uma dúzia no mundo inteiro, vai caçar
javalis ou tigres de dentes de sabre para comer. Mas você, amigo, pisou em
todos os tigres daquela região. Pisando num só rato. Assim o troglodita morre
de fome. E este homem das cavernas, note bem, não é qualquer um dispensável,
não senhor! Ele é toda uma nação futura. Dele, teriam saído dez filhos. E
destes, mais cem, e assim por diante, até a civilização. Destruindo este único
homem, destrói-se uma raça, um povo, toda uma história. É comparável a matar um
neto de Adão. O pisão de seu pé, num rato, poderia principiar um terremoto,
cujos efeitos poderiam abalar nossa terra e destinos pelo Tempo afora, até seus
alicerces. Com a morte daquele troglodita, um bilhão de outros ainda não
nascidos são mortos no útero. Talvez Roma nunca se erga sobre suas sete
colinas. Talvez a Europa fique para sempre uma floresta espessa, e apenas a
Ásia cresça, forte e saudável. Pise num rato e esmagará as Pirâmides. Pise num
rato e deixará sua marca, como um Grand Canyon, pela Eternidade. A rainha
Elizabete poderá nunca nascer. Washington poderá não cruzar o Delaware, poderá
nunca haver Estados Unidos. Portanto, seja cuidadoso. Fique no caminho. Nunca
pise fora!
— Percebo —
comentou Eckels. — Então não poderíamos nem tocar a grama?
— Exato.
Esmagar certas plantas poderia causar somas infinitesimais. Um erro mínimo
seria multiplicado por sessenta milhões de anos, desmesuradamente. Claro,
talvez nossa teoria esteja errada. Talvez o Tempo não possa ser alterado por
nós. Ou talvez só possa ser alterado de maneiras sutis. Um rato morto aqui causa
um desequilíbrio dos insetos ali, uma desproporção populacional mais tarde, uma
colheita má mais adiante, uma depressão, fome, e finalmente uma mudança no
temperamento social em países remotos. Algo muito mais sutil, como isso. Talvez
algo ainda muito mais sutil. Talvez apenas uma respiração, um sussurro, um
cabelo, um pólen no ar, uma mudança tão levezinha que se olhasse atentamente,
não notaria. Quem sabe? Quem pode dizer que realmente sabe? Não sabemos.
Estamos só adivinhando. Mas até que tenhamos certeza, se nossos passeios pelo
Tempo podem fazer um barulhão ou um barulhinho na História, seremos
cuidadosos.. Esta Máquina, este Caminho, suas roupas e corpo, foram
esterilizados, como sabem, antes da viagem. Usamos estes capacetes de oxigênio
de modo que não possamos introduzir bactérias nesta atmosfera primitiva.
— Como
sabemos que animais abater?
— Estão
marcados com tinta vermelha — explicou Travis. — Hoje, antes da viagem,
mandamos Lesperance aqui com a Máquina. Ele veio a esta época em particular e
seguiu certos animais.
—
Estudando-os?
— Isso —
falou Lesperance. — Sigo-os por toda sua vida, observando quais vivem mais.
Quantas vezes se acasalam. Poucas vezes. A sua vida é curta. Quando vejo que
algum vai morrer com uma árvore caindo em cima dele, ou um que se afoga num
poço de alcatrão, anoto a hora, minuto, e segundos exatos. Disparo um revólver
de tinta. Deixa uma marca vermelha em seus flancos. Não podemos nos enganar.
Então correlaciono com a chegada ao Caminho, de modo que encontremos o monstro
a não mais de dois minutos de sua morte, inevitável. Desta forma, matamos
apenas animais sem futuro, que nunca vão se acasalar de novo. Vê como somos
cuidadosos?
— Mas se
esta manhã você voltou no tempo, deve ter cruzado conosco mesmos, nosso safári!
Como nos saímos? Tivemos sucesso? Conseguimos voltar todos... vivos?
Travis e
Lesperance entreolharam-se.
— Isso
seria um paradoxo, — falou este último. — O tempo não permite esse tipo de
confusão; um homem encontrando a si mesmo. Quando há o risco de tais situações,
o tempo desvia-se. Como um avião passando por um vácuo. Sentiu a Máquina pular
antes de pararmos? Éramos nós passando por nós mesmos, a caminho do Futuro. Não
vimos nada. Não há meio de dizer se esta expedição teve sucesso; se pegamos
nosso monstro, ou se todos nós, isto é, o senhor, Sr. Eckels, saiu vivo.
Eckels
sorriu, palidamente.
— Parem com
essa conversa — interrompeu Travis. — Todos de pé!
Estavam
prontos para deixar a Máquina.
A selva era
alta, a selva era larga, e a selva era todo o mundo, para sempre. Sons como
música, e sons como tendas voando, encheram o ar, e eram pterodátilos planando
com cavernosas asas cinzentas, morcegos gigantescos de delírio e febre noturna.
Eckels, equilibrado no estreito Caminho, apontou seu rifle, bem-humorado.
— Pare! —
falou Travis. — Não aponte nem mesmo por brincadeira, idiota! Se a arma
dispara...
Eckels
enrubesceu. — Aonde está nosso Tyranossaurus?
Lesperance
checou seu relógio de pulso. — Logo à frente. Vamos estar no caminho dele em
sessenta segundos. Atenção para a tinta vermelha! Não atire até que eu mande.
Fique no caminho. Fique no Caminho!
Moveram-se
adiante, pelo vento da manhã.
Estranho —
murmurou Eckels. — Lá adiante, daqui a sessenta milhões de anos, fim das
eleições. Keith presidente. Todos celebrando. E aqui estamos, perdidos num
milhão de anos, e eles não existem ainda. As coisas que nos preocuparam por
meses, por uma vida inteira, nem nasceram nem foram idealizadas, ainda.
— Soltar as
travas, todos! — ordenou Travis. Você dá o primeiro tiro, Eckels, Billings o
segundo, e Kramer o terceiro.
— Já cacei
tigre, javali, búfalo, elefante, mas agora, isto é incomparável — disse Eckels.
— Estou tremendo como uma criança.
— Ah — fez
Travis. Todos pararam.
Travis
ergueu a mão. — À frente — falou, em voz baixa. — Na neblina. Lá está ele. Ali
está Sua Majestade Real, agora.
A selva era
ampla, e cheia de gorjeios, farfalhares, murmúrios e suspiros.
Subitamente,
tudo cessou, como se alguém tivesse fechado a porta.
Silêncio.
Um som de
trovão.
Da neblina,
a cem jardas, vinha o Tyranossaurus rex.
— É ele —
cochichou Eckels, — é ele... —Psss!
Ele veio
sobre grandes pernas, oleosas, resilientes. Erguia-se a trinta pés, acima da
metade das árvores, um grande deus do mal, dobrando suas delicadas garras de
relojoeiro perto de seu peito oleoso, reptílico. Cada pata inferior era um
pistão, mil libras de osso branco, mergulhadas em grossas cordas de músculos,
revestidas por um brilho de uma pele pedregosa, como a malha de um terrível
guerreiro. Cada coxa, uma tonelada de carne, marfim, e aço trançado. E da
grande gaiola arquejante da parte superior do corpo, aqueles dois braços
delicados pendurados para a frente, braços que poderiam erguer e examinar os
homens como brinquedos, enquanto se dobrava o pescoço de serpente. E a cabeça
mesmo, uma tonelada de pedra esculpida, erguida com facilidade contra o céu.
Sua boca escancarava-se, expondo uma cerca de dentes como dardos. Seus olhos
rolavam, ovos de avestruz, vazios de qualquer expressão, exceto fome. Fechava a
boca num sorriso da morte. Corria, seus ossos pélvicos derrubando para os lados
árvores e arbustos, seus pés, com garras, afundando-se na terra úmida, deixando
marcas de seis polegadas de profundidade aonde quer que apoiasse seu peso.
Corria com um passo deslizante de ballet, muito aprumado e equilibrado para
suas dez toneladas. Movia-se, cansado, numa arena ensolarada, suas mãos
lindamente reptilianas tateando o ar.
— Ora,
vejam — Eckels torceu a boca. — Poderia esticar-se e pegar a lua.
— Pssst! —
fez Travis, nervoso. — Ele ainda não nos viu.
— Não pode
ser morto. — Eckels pronunciou seu veredito, quieto, como se não pudesse haver
discussão. Tinha avaliado a evidência, e era esta sua abalizada opinião. O rifle
em sua mão parecia uma arma de brinquedo. — Fomos loucos de ter vindo. Isto é
impossível.
— Cale-se!
— silvou Travis.
— Pesadelo.
— Dê meia
volta — comandou Travis. — Vá em silêncio para a Máquina. Podemos reembolsar-lhe
metade da sua passagem.
— Não
percebia como seria grande, — falou Eckels. — Avaliei mal, foi isso. E agora,
quero desistir.
— Ele nos
viu!
Lá está a
tinta vermelha em seu peito!
O Lagarto
Tirano levantou-se. Sua carne de armadura rebrilhava como mil moedas verdes. As
moedas, com uma crosta de lama, ferviam. No lodo, pequenos insetos esperneavam,
de modo que todo o corpo parecia retorcer-se e ondular, mesmo enquanto o
monstro não se movia. Expirou. O cheiro de carne crua foi soprado pelos ermos.
— Deixe-me
sair daqui — disse Eckels. — Nunca foi como isto, agora. Eu sempre estava certo
de que poderia sair vivo. Eu tinha bons guias, bons safáris, e segurança. Desta
vez, enganei-me. Encontrei algo que me supera, e reconheço. É demais para eu
enfrentar.
— Não corra
— falou Lesperance. — Dê a volta. Esconda-se na Máquina.
— Sim, —
Eckels parecia entorpecido. Olhou para seus pés, como que tentando fazê-los
mover-se. Deu um grunhido, incapaz.
— Eckels!
Deu alguns
passos, piscando, hesitante,
— Não por
aí!
O Monstro,
ao primeiro movimento, impulsionou-se para a frente com um grito terrível.
Cobriu cem jardas em seis segundos. Os rifles ergueram-se rapidamente e iluminaram-se,
com o fogo. Um vendaval da boca da besta engolfou-os na fedentina do lodo, e
sangue envelhecido. O Monstro rugiu, dentes brilhando ao sol.
Eckels, sem
olhar para trás, caminhou cegamente para a borda do Caminho, sua arma carregada
frouxamente em seus braços, saiu do caminho, e andou, inadvertidamente, pela
floresta. Seus pés afundaram em musgo verde. Suas pernas o carregavam, e ele se
sentia só e afastado dos eventos lá atrás.
Os rifles
dispararam de novo. O som perdeu-se no grito e no trovão do lagarto. O grande
volume da cauda do animal lançou-se para cima, e para o lado. Árvores explodiram
em nuvens de folhas e ramos. O Monstro torceu suas mãos de joalheiro para
acariciar os homens, para dobrá-los ao meio, para esmagá-los, como frutinhas,
para empurrá-los para seus dentes e sua garganta ruidosa. Seus olhos, quais
rochedos, estavam ao nível dos homens. Viram-se espelhados. Dispararam nas
pálpebras metálicas e na luminosa íris.
Como um
ídolo de pedra, como uma avalanche de montanha, o Tyranossaurus caiu.
Trovejando, agarrou árvores, e puxou-as consigo. Agarrou e cortou o Caminho. Os
homens precipitaram-se para trás, e para longe. O corpo abateu-se, dez
toneladas de carne fria e pedra. Os rifles dispararam. O Monstro brandiu sua
cauda blindada, crispou suas mandíbulas de serpente, e imobilizou-se. Uma fonte
de sangue jorrava de sua garganta. Em algum lugar lá dentro, um saco de fluido
estourou. Borbotões nauseantes inundaram os caçadores. Lá estavam vermelhos,
brilhantes.
O trovão
dissipou-se.
A selva
estava silenciosa. Depois da avalanche, uma paz verde. Depois do pesadelo, o
amanhecer.
Billings e
Kramer praguejavam pesadamente, com seus rifles ainda fumegando.
Na Máquina
do Tempo, face abatida, Eckels tremia. Tinha conseguido voltar ao caminho, e
subira na Máquina.
Travis
chegou, olhou para Eckels, pegou gaze de algodão e, virou-se para os outros,
que estavam sentados sobre o Caminho.
—
Limpem-se.
Limparam o
sangue de seus capacetes. Começaram a resmungar, também. O Monstro jazia ali
como uma montanha de carne. Dentro dele, podia-se ouvir os sopros e murmúrios,
enquanto seus recessos iam morrendo, os órgãos parando de funcionar, líquidos circulam
do um último instante, de saco para a bolsa, para vesícula, tudo desligando-se,
parando para sempre. Era como ficar perto de uma locomotiva acidentada, ou uma
escavadeira a vapor, no momento de desligar, com todas as válvulas sendo
desativadas. Ossos estalavam; a tonelagem de sua própria carne, desequilibrada,
peso morto, quebrava os delicados braços, do lado de baixo. A carne se
assentava aos tremores.
Outro
estalido. Mais acima, um enorme galho de árvore partiu de sua pesada ancoragem,
caiu. Golpeou certeiramente a fera morta.
— Pronto. —
Lesperance verificou seu relógio. — Bem na hora. Essa era a grande árvore que
deveria cair e matar este animal, originalmente. — Olhou para os dois
caçadores. — Querem tirar a foto de troféu?
— Quê?
— Não
podemos levar o troféu para o Futuro. O corpo deve ficar aqui, aonde deveria
originalmente morrer, de modo que os insetos, pássaros, e bactérias possam devorá-lo,
como devem. Tudo equilibrado. O corpo fica. Mas podemos tirar uma fotografia de
vocês a seu lado.
Os dois
homens fizeram força para pensar, mas desistiram, abanando as cabeças.
Deixaram-se
guiar ao longo do Caminho de metal. Afundaram cansados, nos assentos da
Máquina. Olharam de novo para o Monstro arruinado, o montículo em estagnação,
aonde já estranhos pássaros reptilianos e insetos dourados estavam ocupados com
a fumegante armadura.
Um som no
chão da Máquina do Tempo deixou-os tensos. Eckels estava lá, tremendo.
— Lamento
muitíssimo — disse.
— Levante-se!
— gritou Travis. Eckels levantou-se.
— Vá para o
Caminho sozinho — falou Travis, com seu rifle apontado. Não vai voltar para a
Máquina. Vamos deixá-lo aqui!
Lesperance
agarrou o braço de Travis. — Espere...
— Fique
fora disto! — Travis desvencilhou-se de sua mão. — Este louco quase matou-nos.
Mas isso não é tanto assim. Vejam seus sapatos! Vejam! Ele saiu do Caminho. Isso
nos arruína! Seremos multados! Milhares de dólares de seguro! Garantimos que
ninguém deixa o Caminho, e ele o deixou. Ora, o louco! Terei de informar o
Governo
Poderão
cancelar nossa licença para viajar. Quem sabe o que ele fez ao Tempo, à
História!
— Calma,
tudo o que ele fez foi pisar em alguma sujeira.
— Como
saber? — gritou Travis. — Não sabemos nada! É um mistério! Saia, Eckels!
Eckels
mexeu em sua camisa. — Pago qualquer coisa. Mil dólares!
Travis
olhou para o talão de cheques de Eckels e cuspiu. — Saia. O Monstro está perto
do Caminho. Afunde os braços até os cotovelos na boca dele. Então poderá
voltar conosco.
— Isto é
irrazoável!
— O Monstro
está morto, seu idiota. As balas! As balas não podem ser deixadas para trás.
Elas não pertencem ao Passado; poderão mudar alguma coisa. Aqui está a minha
faca. Cave-as!
A selva
estava viva de novo, cheia de antigos tremores e do barulho dos pássaros.
Eckels voltou-se lentamente para olhar o monte de carniça primordial, aquela
montanha de pesadelos e terror. Depois de um longo tempo, como um sonâmbulo,
arrastou-se ao longo do Caminho.
Voltou,
tremendo, cinco minutos depois, com seus braços ensopados e vermelhos até os
cotovelos. Estendeu as mãos. Cada uma segurava algumas balas de aço. Então caiu
e ficou lá, imóvel.
— Você não
precisava obrigá-lo a isso — comentou Lesperance.
— Não? É
cedo ainda para dizer. — Travis tocou o corpo, com o pé. — Viverá. Da próxima
vez não vai sair para caçar este tipo de caça. OK. — Ergueu o polegar para
Lesperance. — Dê a partida. Vamos para casa.
1492 . 1776
. 1812 .
Limparam
suas mãos e faces. Trocaram de roupa. Eckels estava de pé de novo, mudo. Travis
olhou para ele por dez minutos.
— Não olhe
para mim, — exclamou Eckels. — Não fiz nada.
— Quem pode
saber?
— Apenas
saí do Caminho, foi tudo, um pouco de lama em meus sapatos; que quer que eu faça?
Que me ajoelhe e reze?
— Talvez
precisemos disso. Estou lhe avisando, Eckels! Posso matá-lo, ainda. Minha arma
está engatilhada.
— Estou
inocente. Não fiz nada! 1999 . 2000 . 2055 .
A Máquina
parou.
— Saia —
ordenou Travis.
A sala lá
estava, tal como quando saíram. Mas não exatamente a mesma. O mesmo homem atrás
da mesma escrivaninha. Mas o mesmo homem não parecia estar sentado exatamente
atrás da mesma escrivaninha.
Travis
olhou em volta, depressa. — Tudo em ordem por aqui? — foi logo perguntando.
— Claro.
Bem vindos ao lar!
Travis não
relaxou. Parecia estar olhando para os próprios átomos do ar, e para o modo
pelo qual o sol entrava pela janela alta.
— OK,
Eckels, saia. E nunca mais volte. Eckels não podia mover-se.
— Ouviu-me,
— falou Travis. — Para o quê está olhando? Eckels ficou, cheirando o ar, e
havia algo no ar, uma substância tão tênue, tão sutil, que apenas um fraco
aviso de seus sentidos subliminares avisavam-lhe que estava ali. As cores,
branco, cinza, azul, laranja, na parede, na mobília, no céu, pela janela,
eram... eram... E havia uma sensação. Sua carne crispava-se. Ficou bebendo
aquela estranheza com os poros de seu corpo. Em algum lugar, alguém devia estar
soprando naqueles apitos que só os cães podem ouvir. Seu corpo gritava
silenciosamente, em resposta. Além deste aposento, além desta parede, além
deste homem, que não era exatamente o mesmo homem que estava sentado àquela
mesa, que não era bem a mesma mesa... estava todo um mundo de ruas e gente. Que
espécie de mundo era agora, não havia como dizer. Ele podia senti-los mover-se
ali, além das paredes, quase, como peças de xadrez por um vento quente...
Mas a coisa
mais imediata era o anúncio pintado na parede do escritório, o mesmo que havia
lido hoje ao entrar. De alguma forma, o anúncio havia mudado:
SEFARIS NU TENPO, INC.
SEFARIS PRA QUALQUER ANO PAÇADO.
CÊ DIS QUI ANIMAU.
NÔIS LEVAMOS CÊ LÃ.
CÊOABAT.
Eckels
sentiu-se caindo numa cadeira. Ficou mexendo, como louco, na lama em suas
botas. Ergueu um pedaço de algo enlameado, tremendo. — Não, não pode ser, não
uma coisinha assim, não!
Embebida na
lama, brilhando em verde e dourado e preto, havia uma borboleta, muito bela, e
muito morta.
– Não uma
coisa assim! Não uma borboleta! — gritou Eckels.
Caiu ao
chão, uma coisa exótica, pequena, que poderia desmanchar equilíbrios e derrubar
uma fila de dominós pequenos, e então grandes dominós, e então dominós gigantes,
por todos os anos através do Tempo. A mente de Eckels turbilhonava. Não podia
mudar as coisas. Matar uma borboleta não podia ser tão importante! Ou poderia?
Seu rosto
estava frio. Sua boca hesitava, ao perguntar: — Quem... quem ganhou a eleição
presidencial ontem?
O homem
atrás da escrivaninha riu-se. — Está brincando? Sabe muito bem. Deutscher,
claro! Quem mais? Não aquele maluco pusilânime do Keith. Temos um homem de
ferro, agora, um homem de peito! — O funcionário parou. — O que há de errado?
Eckels
gemeu. Caiu de joelhos. Examinava a borboleta dourada com dedos trêmulos. — Não
podemos — implorava ao mundo, a si mesmo, aos funcionários, à Máquina. — Não
podemos levá-la de volta, não podemos fazê-la viver de novo? Não podemos
recomeçar? Não poderíamos...
Não se
moveu. Olhos fechados, esperou, abalado. Ouviu Travis ofegando, na sala; ouviu
Travis apontar o rifle, destravá-lo.
Houve um som de trovão.
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