Miguel Torga é o pseudônimo
adotado por Adolfo Correia da Rocha (1907-1995) escritor português nascido em
São Martinho de Anta, Vila Real, Portugal. Ainda que ele tenha vivido no Brasil
de 1920 a 1925 apenas fui conhece-lo escarafunchando um sebo no Porto, (ou alfarrabista
que é como eles chamam os sebos por lá).
O conto, “Homens de Vilarinho” é parte dos Contos da Montanha publicados
em 1941 que não retratam a tão conhecida Lisboa mas sim a linguagem, os
costumes e os encantos da região de Trás-os-montes ao norte do país.
Homens de Vilarinho
Miguel
Torga
Foi um grande acontecimento em
Vilarinho, quando na Senhora da Agonia, à missa, o padre João leu os nomes dos
mordomos da próxima festa. É que, a cabeça do rol, vinha o Firmo, e todos
esperavam tudo menos isso.
– O Firmo?! – não se conteve, no
silêncio da igreja, o António Puga.
– Psiu!... – sibilou, dos lados da
pia benta, o sacristão, que andava às esmolas.
E o caso só à saída foi comentado
como merecia.
– O Firmo?! Mas então o Firmo,
daqui a um ano... – e o Puga nem era capaz de levar o raciocínio ao fim.
– Fica. Desta vez fica... –
garantiu a Margarida, que bebia do fino. – O padre Joao tantas lhe disse...
A assistência ouvia maravilhada. O
Firmo de pedra e cal em Vilarinho! O mundo sempre dá muita volta!
A notícia tinha realmente que se
lhe dissesse. Há muitos anos já que o Firmo desorientava Vilarinho. Desde que
viera de Amarante, da artilharia, e embarcara, nunca mais a seu respeito se
soube a quantas se andava. Nem a própria mulher. Quando lhe perguntavam pelo
homem, o que fazia, se voltava, se gozava saúde, respondia, já resignada:
– O meu Firmo?! Eu sei la do meu
Firmo!
No Brasil, na América, na
Argentina, os que o conheciam estavam na mesma. Sempre a variar de terra, sempre
a mudar de emprego, e às duas por três a oferecer os préstimos para Portugal.
– Oh! oh!
– São meia dúzia de dias. Daqui a
nada estou cá. É só o tempo de o navio chegar, esperar que eu faça um filho à
patroa, e levantar ferro...
Dito e feito. Daí a pouco
regressava com a mesma cara. De tal maneira que já todos se riam. Dera em
droga, não havia que ver. Só mesmo o padre João, cabeçudo, é que podia ter
ainda fé naquele valdevinos, e continuar junto dele o sermão deixado a meio da
última vez. O padre era o pároco de Vilarinho. E sempre que o Firmo vinha a
terra e acordava da primeira noite dormida com a mulher, lá estava ele à
entrada da porta com a sua batina rota e o seu cachaço de cavador.
– Dás licença, Firmo?
– Faça favor de entrar, senhor
padre João.
– Então tu não terás mais juízo,
homem de Deus?! Tu não veras que tens aqui um rebanho de filhos?!
Firmo baixava a cabeça diante
daquela voz amiga e repreensiva. Nem se defendia. Aceitava cada censura como o
golpe dum látego purificador. Mas passados dias, quando a Silvana começava a
pedir azeitonas às vizinhas, ia dizendo:
Es tu com desejos de azeitonas e eu com
desejos de mundo...
– Ah! Firmo, que sorte a minha!
Valia de bem o gemido da infeliz!
Quanto mais chorava, mais ele se enfrenisava na partida. Empenhava uma terra,
vendia-lhe o cordão se preciso fosse, recorria em ultimo caso ao próprio padre
João, mas abalava.
– Grandes terras, Ti Guilhermino!
– Não há dúvida, Firmo... Não há
dúvida... Os lucros que tens tirado delas é que são fracos... – respondia
melancolicamente o velho, quando o Firmo, a caminho do comboio, enchia a boca
com a Califórnia.
– Não tem calhado... Que ele também
para que é que o dinheiro presta?!
– Homessa!
– É o que lhe digo. Desde que uma
pessoa coma e beba...
– E a mulher e os filhos?
– A mulher e os filhos cá vão
vivendo...
E Vilarinho desanimava.
– Coisa assim, como ele se pôs! E
ainda se fosse de gente de outra condição, vá lá com mil demônios! Agora quem
lhe conheceu o pai, como eu, um homem serio, zelador do que lhe pertencia,
amigo da família, sempre agarrado a enxada... Que ele não é mau. Mas fazer-se
um traga-mundos daquela maneira! – gemia o abade, quando a Silvana lhe ia pagar
a côngrua. – Acredita que tenho uma paixão, que nem fazes ideia!
O padre era a própria seiva de
Vilarinho. Tão agarrado à terra que costumava dizer aos colegas:
– Eu, fora cá da minha freguesia,
nem latim sei.
Os outros riam-se e davam-lhe
palmadinhas intencionais no costado largo.
– Ora, ora, padre Joao! Esquece-se
do latim, mas lembra-se do português. Que o diga quem pode...
Aludiam risonhamente à conversa
que tivera na Vila com o novo bispo, quando foi chamado à pedra. O prelado,
muito severo, com ar de quem ia salvar o mundo, depois de lhe estender o anel e
de lhe indicar uma cadeira, pôs-se para ali a alanzoar. Que o incomodara para
tratar com ele dum caso grave de consciência e de disciplina. Que sabia que Sua
Reverencia vivia amancebado e tinha prole. Que tomara conta da diocese há pouco
tempo e que não desejava iniciar a pastoreação com atos de violência. Mas que,
por outro lado, não podia consentir desmandos a nenhum membro do reverendíssimo
clero. Por conseguinte, ou abandonava Sua Reverência o concubinato ou se via
obrigado a aplicar-lhe os castigos disciplinares.
O réu não esteve com meias
medidas.
– Olhe, senhor Bispo, cá por cima são
estes usos. Padre sim, padre não, faz o mesmo. Tenha a certeza. O que são é
mais finos do que eu. As fêmeas chamam-lhes criadas; e aos filhos, afilhados.
Ora eu cá sou pão, pão, queijo, queijo. Não nego. Para que? A mulher é minha,
nunca foi doutro, gosto dela e não a largo; os filhos tenho já cinco, quero
cria-los e ver se lhes deixo alguma coisa. De maneira que faça o senhor Bispo o
que entender.
A resposta ficou célebre. E os colegas,
sempre que vinha a propósito, davam-lhe o beliscão.
Ria-se com o seu riso aberto. E,
acabada a missa cantada, o oficio ou lá o que era, trepava para o lombo da
mula, cheio de saudades das suas leiras e das almas irmãs que governava.
Destas, só uma lhe fazia cabelos
brancos: o Firmo. O diabo sairá ave de arribação. E para quem como ele
mergulhava as raízes no chão de Vilarinho, uma realidade assim era um
sofrimento.
– Homem, mas tu, afinal, quando te
resolves a ser um pai de família e a ter vergonha na cara? – acabou por
perguntar ao Firmo, já sem mais paciência.
-Há-de ser um dia. Prometo-lhe que
há-de ser um dia!
E quando pela sexta vez o padre o
acordou do sono com a mulher, na véspera da Senhora da Agonia, o Firmo
sossegou-lhe o coração,
– É desta feita. Na Quaresma conte
com mais um pecador para a desobriga. Agora tem-me o resto da vida, caseiro
como uma galinha..
Padre João sentiu que um grande
peso lhe saía dos ombros. Até que enfim!
– Dás-me a tua palavra?
– Estou-lhe a falar a sério, pode
crer! Hei-de fazer tudo para isso. Já iam sendo horas...
A promessa tinha uma solidez de testamento.
Contudo, pelo sim, pelo não, no dia seguinte, à missa, o padre resolveu
amarrar o valdevinos a argola, pondo-o, com grande espanto de Vilarinho, no
princípio da lista dos mordomos da festa do ano que vinha.
– Será que ele desta vez fica
mesmo? – insistia o Puga na venda do
Trauliteiro.
– Parece que sim. O padre João lá
o convenceu...
– Custa-me a acreditar.
– Não tem que ver: está ou não
está mudado? Cava ou não cava o dia inteiro, como nós?
– Realmente...
E até os mais renitentes foram
cedendo terreno. A própria mulher, que nos primeiros dias andava abismada com
aquela resolução, enchia agora os olhos de paz ao vê-lo a tratar do estrume
para as próximas sementeiras, e de tempos a tempos a lembrar que era preciso não
esquecer de tirar a esmola para a festa, e que a respeito do arraial a coisa
havia de ser falada.
O padre, esse, andava de coração
em aleluia. A terra de lameiro de que era feito, grossa, funda, quente, só compreendia
as pessoas plantadas ali. Por isso, desde que Firmo parecia aclimatado a
Vilarinho, até a vida lhe sabia melhor.
– Com que então desta vez sempre
ficas por cá?! – foi perguntando o Puga, pela mansa, quando encontrou o Firmo a
jeito.
– É como dizes. O bom filho a casa
torna...
E Vilarinho assentou de vez que o réprobo,
afinal, ganhara juízo, tomara nas mãos macias as rédeas duras da casa e dera ao
demo o que e do demo - o mundo.
Nos Reis, para aumentar a receita
destinada a romaria, fez-se um peditório. E o Firmo, que tocava violão, puxou
ali pelas seis cordas como um valente.
– Ora vê lá tu se não é melhor a
vida que agora levas do que andar como um maltês por lá! – dizia-lhe o padre
João, como a varrer-lhe do pensamento qualquer resto de maluquice.
– Na verdade...
– Não há que ver: onde encontras
tu terras como esta? Bom pão, bom vinho, bons ares, e em nossa casa, ao pé da
mulher e dos filhos!
O mundo dera a Firmo luzes para além
das fragas nativas. Por isso tinha olhos para ver o padre em plena grandeza. Um
castanheiro. Tal é qual um castanheiro, redondo, maciço, frondoso. De tal modo
fincado onde nascera, que não havia formas que o fizessem mudar. Só a morte.
Ele, Firmo, filho de cavadores, cavador até aos vinte, que se casara, que não
tinha estudos - sem nenhum apego à terra, incapaz de se deixar penetrar da
verdade dos tojos e das leiras; e aquele homem letrado, que recebera ordens,
que prometera dar-se todo a quem proclamara que o seu reino não era deste mundo
- ali com mulher e filhos, cheio do amor deles, agarrado as verças como os
juncos as nascentes! As razões que apresentava eram sempre as mesmas. Tantas
vezes as ouvira que já nem lhes ligava sentido. Mas agora as palavras de ontem,
de antes de ontem, de há vinte anos, embora igualmente incapazes de o vencer -
pois sabia que não o movera nenhum dos argumentos invocados entravam-lhe pelos
ouvidos dentro com outra significação. Mandavam-no curvar-se de pura admiração
diante de uma vida sem fendas, inteira como um rochedo. Que bicho! Nem o próprio
bispo pudera com ele. Metera a viola no saco e deixara correr. O bloco de pedra
talvez estivesse errado em sítios onde já não tivesse valor o tamanho do
natural. Em Vilarinho, metia respeito.
– É assim. Eu vou à Vila, ando por
lá a dar as voltas precisas, e as duas por três tenho fome. Entro na Gaitas e
como uma malga de tripas. Pois acredita que nem as tripas me sabem. Há lá nada
como a nossa casa!
– São feitios, senhor padre
João... – tentou, em todo o caso, o
Firmo. – A vida...
– Quais feitios, qual vida!
Firmo calou-se. O amor daquele
homem à terra era tão absoluto como o seu próprio amor a vastidão do mundo.
Para que discutir?
– E de festa, que tal vamos? Vê lá
isso! Não me deixes ficar mal...
– Está justa a música velha de
Constantim, encomendamos o fogo em Cabeda e os saiais são de Sabrosa. Pregador,
o senhor padre João diáa...
Nem parecia o mesmo. Como um homem
se modificava! Lá diz o ditado: infeliz pássaro que nasce em ruim ninho. Tanto
monta correr, como saltar: as asas puxam-no sempre para onde aprendeu a voar.
Pusessem os olhos naquele exemplo.
Mas na véspera da Senhora da
Agonia, roído não se sabe por que melancólica inquietação, Firmo, que lutara
como um herói durante um ano para se aguentar ali, bateu a porta da residência.
– Da licença, senhor padre João?
– Entra, Firmo. Alguma novidade?
– Nada de importância...
No rosto largo do abade o sangue
correu mais tinto e mais alegre.
– Bem. Isso é que eu gosto de
ouvir.
Sem palavras para desiludir aquela
confiança, peado, o desertor começou a gaguejar:
– Pois é verdade... Afinal...
O padre, então, olhou-o com a sua
penetração profissional de confessor:
– Desembucha!
E Firmo escancarou-lhe a alma:
– Não posso mais, senhor padre
João. Embarco amanhã e venho dizer-lhe adeus.
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