terça-feira, 15 de dezembro de 2015

77 – Crônica Decorativa I – F. Pessoa

Fernando Pessoa (1888-1935), poeta português (para mim o maior de todos em nossa língua) que também escreveu alguns poucos contos.  O mais conhecido é provavelmente O Banqueiro Anarquista (talvez um pouco excessivamente didático) mas este, Crônica Decorativa I é brilhante.

Crônica Decorativa I
Fernando Pessoa

A circunstancia humana de eu ter amigos fez com que ontem me acontecesse vir a conhecer o Dr. Boro, professor da Universidade de Tóquio. Surpreendeu-me a realidade quase evidente da sua presença. Nunca supus que um professor da Universidade de Tóquio fosse uma criatura, ou sequer coisa, real.
O Dr. Boro — sinto que me custa doutora-lo — pareceu-me escandalosamente humano e parecido com gente. Vibrou um golpe, que me esforço por desviar de decisivo, nas minhas ideias sobre o que é o Japão. Trajava à europeia, e, como qualquer mero professor existente na Universidade de Lisboa, tinha o casaco por escovar. Ainda assim, por delicadeza, dei-me por ciente, durante duas horas, da sua presença próxima.
Preciso explicar que as minhas ideias do Japão, da sua flora e da fauna, dos seus habitantes humanos e das varias modalidades de vida que lhes são próprias, derivam de um estudo demorado de vários bules e chávenas. Eu por isso sempre julguei que um japonês ou uma japonesa tivesse apenas duas dimensões; e essa delicadeza para com o espaço deu-me uma afeição doentia por aquele país econômico de realidade. O professor Boro é sólido, tem sombra — varias vezes fiz com que o meu olhar o verificasse — e além de falar e falar inglês, coloca ideias e noções compreensíveis dentro das suas palavras. A circunstância de que as suas ideias não comportam nem novidade nem relevo apenas o aproxima dos professores europeus, pavorosamente europeus, que conheço.
Além disto, o professor Boro tem movimento, desloca-se, não sei como, de um lado para o outro, o que, feito perante quem sempre teve o Japão por uma nação de quadro, parada e apenas real sobre transparência de louça, é requintadamente ordinário e desiludidor.
Falamos de politica internacional, da guerra europeia, e fizemos várias incursões pelos vários fenômenos literários característicos da nossa época. A ignorância que o professor Boro tinha de futurismo foi a única benzina para a nódoa da sua realidade moderna. Mas há algum professor de alguma Universidade da Europa que siga de perto os movi- mentos da arte contemporânea?
Dado os fatos que venho explicando, compreende-se que eu fosse avaro de o interrogar sobre o Japão. Para que? Ele era capaz de atirar para dentro da minha ignorância uma quantidade de coisas falsas. Quem sabe se ele se atreveria a insinuar pela conversa fora, como coisa normalmente acreditável, que no Japão há problemas econômicos, dificuldades de vida para várias pessoas, cidades com lojas reais, campos com colheitas como as nossas, exércitos realmente parecidos com os da Europa e com execráveis aperfeiçoamentos científicos para guerras em verdade contemporâneas? Daqui ele não hesitaria talvez em me afirmar — com que cinismo nem eu meço — que no Japão os homens tem relações sexuais com as mulheres, que nascem crianças, que a gente de lá, em vez de estar sempre vestida como as figuras da louça japonesa, despe-se e veste-se como se fosse europeia. Por isso não tratamos do Japão. Perguntei ao professor se ele tinha tido uma boa viagem, e ele caiu em dizer-me que não — como se um estudioso como eu da porcelana nipônica pudesse admitir que há más viagens para os japoneses, que — delicioso povo! — nem sequer se dá ao trabalho de existir. As chávenas partem-se, não comportam tormentas. A frase «uma tempestade num copo de água» ou «numa chávena», como dizem outros, e puramente europeia.
Uma frase houve (casual, quero crer, no professor Boro) que me magoou mais do que outra.
Falávamos — eu, é claro, com o desprendimento com que se tratam estes assuntos feéricos — da influencia dos mecanismos sobre a psicologia do operário, quando se sabe — claro está — que o operário não tem psicologia. E o professor referiu-se aos progressos industriais do Japão e acrescentou umas palavras, que me esforcei com metade de êxito para não ouvir, sobre (creio) movimentos operários no Japão e um fuzilamento (suponho) de não sei que chefe socialista. Eu há tempos — numa coluna sem duvida humorística de um diário — vira em um telegrama de Tóquio constando qualquer coisa nesse tom; mas, além de não crer que de Tóquio se mandassem telegramas — visto Tóquio não dever ter mais do que duas dimensões —, ninguém que como eu tenha estudado a psicologia japonesa através das chávenas e dos pires, admite progressos de qualquer espécie no Japão, industrias japonesas, movimentos socialistas e chefes socialistas, ainda por cima fuzilados, como quaisquer europeus que vivem. Quem como eu conhece bem o Japão — o verdadeiro Japão, de porcelana e erros de desenho —, compreende bem a incompatibilidade entre o progresso, indústria e socialismo, e a absoluta não-existência daquele pais. Socialistas japoneses! Uma contradição flagrante! Uma frase sem sentido, como «circulo quadrado»! Se nem o inexistente estivesse livre do socialismo! Aquelas figuras deliciosas, eternamente sentadas ao pé de casas do tamanho delas, a beira de lagos absurdos, de um azul impossível, aquém de montanhas totalmente irreais — essas maravilhosas figuras, com uma perfeita e patriótica individualidade japonesa, não pertencem decerto ao horroroso mundo onde se progride, e onde sobre o artista desabam a morbidez do produtivo e a barbárie do humanitário.
E vem querer tirar-me estas convicções o profes­sor Boro, da Universidade de Tóquio! Não mas tira. Não é para ser enganado pela primeira realidade que se me atira aos olhos que eu tenho gasto minutos distensos na contemplação cientifica e estéril de bules e chávenas japonesas. O mais provável, a respeito deste Boro, e que nascesse em Lisboa e se chame José. Do Japão, ele? Nunca.
Se ao menos achei japonesa a sua cara? Absolutamente nada. Basta dizer que era real e existiu ali diante de mim, duas dolorosas horas, em plena ocupação inestética de todas as dimensões aproveitáveis (felizmente só três) do espaço autentico. A sua cara parecia-se, e certo, com certas fotografias de «japoneses» que as ilustrações trouxeram há anos, e de vez em quando reincidindo trazem; mas toda a gente que sabe o que é o Japão por nunca lá ter ido sabe de cor que aquilo não são japoneses. E, de mais a mais, essas ilustrações eram principalmente de generais, almirantes, e operações guerreiras. Ora é absolutamente impossível que no Japão haja generais, almirantes e  guerra. Como, de resto, fotografar o Japão e os japoneses? A primeira coisa real que há no Japão e o fato de ele estar sempre longe de nós, estejamos nós onde estivermos. Não se pode lá ir, nem eles podem vir até nós. Concedo, se me forçarem a isso, que existam um Tóquio e um Iocoama. Mas isso não e no Japão, e apenas no Extremo Oriente.
O resto da minha vida, doravante, será escrupulosamente dedicado a esquecer o professor Boro e que ele — impronunciável absurdo! — se sentou na cadeira que está agora, na realidade de madeira, defronte de mim. Considero doentio esse fato, alucinatório talvez, e entrego-me com assiduidade a não me lembrar dele mais. Um japonês verdadeiro aqui, a falar comigo, a dizer-me coisas que nem mesmo eram falsas ou contraditórias! Não. Ele chama-se José e é de Lisboa. Falo simbolicamente, é claro. Porque ele pode chamar-se Macwhisky e ser de Inver­ness. O que ele não era decerto era japonês, real, e possível visitante de Lisboa. Isso nunca. Desse modo não havia ciência, se o primeiro ocasional nos viesse negar o que os nossos estudos assíduos nos fizeram ver.
Professor Boro, da Universidade de Tóquio? De Tóquio? Universidade de Tóquio? Nada disso existe. Isso é uma ilusão. Os inferiores e cábulas de nós construíram, para se não desorientarem, um Japão a imagem e semelhança da Europa, desta triste Europa tão excessivamente real. Sonhadores! Alucinados!

Basta-me olhar para aquela bandeja, pegar cariciosamente com o olhar naquele serviço de chá. Depois venham falar-me em Japão existente, em Japão comercial, em Japão guerreiro! Não é para nada que, através de esforços consecutivos, a nossa época ganhou o duro nome de científica. Japoneses com vida real, com três dimensões, com uma pátria com paisagens de cores autenticas! Lérias para entretenimento do povo, mas que a quem estudou não enganam...

2 comentários:

  1. O narrador não quer se desiludir, ironicamente; quer continuar a crer na imagem encantada que construiu para si. Conto maravilhoso, sintaxe castiça maravilhosa.

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  2. Incrível esse conto! Pena que F.P não tenha se exercitado mais no conto. Ele teria sido um contista fantástico...

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