sexta-feira, 25 de março de 2016

89 – A pequena dançarina de Izu – Y Kawabata

Yasunari Kawabata (1899-1972) escritor japonês, prêmio Nobel de literatura em 1968. O conto destacado esta semana “A pequena dançarina de Izu” é um dos maiores exemplos literários da sensibilidade japonesa.

A pequena dançarina de Izu
Yasunari Kawabata

I
Foi quando o caminho começava a ziguezaguear e já estava próximo do Passo do Amagui, no sopé da montanha onde embranquecia a mata de cedros, que desencadeou-se uma violenta tempestade.
Tinha eu, nessa época, vinte anos de idade. Vestia um quimono azul salpicado de branco, e hakama. Do ombro, pendia-me a bolsa de estudante, e, à cabeça, trazia eu o boné de colegial. Era o quarto dia da minha solitária viagem a Izu. Havia passado uma noite na estancia termal de Shuzenji e duas na de Yukashima. A essa altura, eu subia o Amagui, saboreando o outono, visível ainda nas altas montanhas sobrepostas, bem como nos vales profundos. Animava-me uma expectativa que me fazia acelerar o passo. Fustigado pela chuva violenta, galguei o forte aclive e cheguei, esbaforido, a casa de chá da saída norte do Passo. Então, respirei aliviado e verifiquei, com surpresa, que minha expectativa fora inesperadamente satisfeita ao encontrar ali o grupo de artistas ambulantes.
Vendo-me em pé, apressou-se a pequena dançarina do grupo a oferecer-me o seu coxim.
— Ah!... — exclamei, sentando-me. Sem folego, devido a corrida, e surpreso pelo encontro, o “obrigado” ficou-me entalado na garganta.
Com certo alvoroço, tirei os cigarros do bolso. A pe­quena dançarina apanhou o cinzeiro que se encontrava diante de uma das suas companheiras e colocou-o perto de mim. Também dessa vez, eu nada disse.
Enquanto fumava, ocupei-me em examiná-la. Pareceu-me não ter mais que dezessete anos. Trazia os cabelos penteados à antiga, num estilo para mim desconhecido, mas que, entretanto, se harmonizava lindamente com o seu rosto oval e de expressão firme. Lembrava uma figura saída de um conto de fadas, a cujos cabe­los houvesse sido dado um toque exagerado. Acompanhavam-na uma mulher de cerca de quarenta anos, duas jovens, e um homem de mais ou menos vinte e cinco anos, que usava hanten com a marca do hotel das termas de Nagaoka.
Era essa a terceira vez que eu via as dançarinas. A primeira fora perto da ponte de Yukawa, no caminho de Shuzenji. Havia três moças na ocasião. A pequena carregava um tambor. Deram-me a impressão de estar tristes e fatigadas. Depois disso, na segunda noite que passei em Yukashima, aportaram ao hotel onde eu estava hospedado. Sentado no meio da escadaria, fiquei a contemplar a pequena dançando sobre o assoalho de madeira da entrada.
“Se anteontem estavam em Shuzenji e hoje estão em Yukashima, certamente escalarão amanha o Amagui para o sul, rumo a estancia termal de Yukano”,pensei então.  “Durante a caminhada de vinte e oito quilômetros, poderei, sem duvida, alcançá-los.”
E, no entanto, eu, que me apressara em segui-las, ali estava embaraçado por tê-las encontrado na casa de chá onde viera refugiar-me da chuva...
Momentos depois, a velhinha da casa conduziu-me a outro aposento, que parecia estar fora de uso. Nem porta havia no shoji. Dele, porém, podia-se descortinar a paisagem do vale, que afundava a perder de vista. Senti arrepios e estremeci, a bater os dentes. A velha trouxe-me chá e convidou-me a passar para um terceiro aposento:
Nossa! Como o senhor esta molhado! Venha esquentar-se ao fogo. Olhe ponha sua roupa a secar.
Quando abriu o shoji, veio da lareira um calor convidativo. Mesmo assim, hesitei na soleira da porta. É que um velhinho, todo inchado e esverdeado qual cadáver de afogado, se achava junto da lareira. Olhou em minha direção e pude ver-lhe as retinas amareladas, com a aparência de podres. Tinha, a sua volta, pilhas e pilhas de velhas cartas e sacos de papel, e não seria descabido dizer que estava sepultado nesse lixo. Parei imóvel diante desse ser monstruoso, que nem parecia estar vi­vo.
– Sinto-me penalizada por ter de mostrá-lo ao se­nhor nesse lamentável estado — desculpou-se a mulher.
– Não se preocupe com ele: é o avô da casa. Está paralitico. Peço-lhe permissão para deixá-lo ai aonde está.
Pelo que a velhinha me contou, depois de ter-se as­sim desculpado, o ancião estava com o corpo todo paralisado havia já vários anos. A montanha de papel que quase o soterrava eram as cartas que recebera dos mais diversos rincões, com ensinamentos sobre o tratamento da paralisia, e os pacotes vazios de medicamentos mandados buscar em várias localidades. O ancião interrogava todos os viajantes que transpunham o Passo; lia todos os anúncios de jornal referentes a remédios para a cura da paralisia, que mandava comprar sem perda de tempo. Não jogava fora nem os envoltórios, nem as car­tas ou as bulas. Passava o dia a contemplá-los e, com o decorrer dos anos, tinha-se cercado de uma verdadeira montanha de papel velho.
Sem nada responder à minha interlocutora, permaneci cabisbaixo diante da lareira. Um automóvel que subia a montanha fez estremecer a casa. Eu não conseguia atinar com a razão por que os moradores não abandonavam uma montanha tão feia, que começava a cobrir-se de neve já no outono. Da minha roupa desprendia-se vapor d’água, e o fogo, de tão intenso, causava-me dor de cabeça. A velhinha havia retomado a sala de chá e conversava com uma das artistas ambulantes:
– Puxa, está é a mesma menina que aqui esteve da outra vez? Que bela moça ficou! Essas meninas não perdem tempo! És uma felizarda por teres uma filha linda assim!
Ao cabo de uma hora, ouvi ruídos indicativos de que o grupo se preparava para partir. Fiquei agitado, mas não tive coragem de levantar-me. Pensei comigo que, mesmo estando habituadas a viajar a pé, as artistas eram mulheres, afinal de contas, e eu poderia alcançá-las facilmente, ainda que as deixasse se adiantarem um ou dois quilômetros. E permaneci sentado, algo apreensivo, junto da lareira. Na ausência das dançarinas, mi­nha imaginação se pôs a funcionar furiosamente, como se liberta de todos os entraves. Perguntei à velha, que fora despedir-se do grupo:
– Onde acha que a pequena bailarina dormirá hoje a noite?
– Como poderia eu saber onde um tipo desses vai dormir, meu senhor? — respondeu-me. — Havendo freguês, dorme em qualquer lugar. Não deve estar muito preocupada com a pousada para esta noite.
As palavras da velha, impregnadas de fundo desprezo, deixaram-me excitado a tal ponto, que me pus a refletir se não deveria ter convidado a pequena dançarina para passar a noite comigo.
A chuva diminuiu de intensidade, finalmente, e a névoa que amortalhava o Pico começou a dissipar-se. Apesar das instancias da velha para que eu ficasse mais um pouco — dizia-me que o tempo limparia de todo dentro de uns dez minutos —, preparei-me febrilmente para partir.
– Muito cuidado consigo, vovô. Vai fazer muito frio, — adverti afetuosamente ao ancião. Este, movendo com dificuldade os olhos amarelados fez leve sinal de agradecimento.
Pouco depois de haver partido, ouvi os gritos da ve­lha atrás de mim:
– Meu senhor, meu senhor! Não sei como lhe agradecer. Eu não merecia tanto! — balbuciou, ao alcançar-me, desfazendo-se em agradecimentos pela gorjeta que eu lhe havia dado. Por mais que tentasse dissuadi-la, insistiu em acompanhar-me mais alguns minutos e fez questão de carregar minha bagagem. Caminhava atrás de mim, com passos miúdos, exclamando a cada cem metros a mesma coisa:
– Eu não merecia tanto! Perdoe-me se cometi alguma falta. Eu me lembrarei para sempre do seu rosto. Da próxima vez que o senhor passar por aqui, procurarei retribuir a sua generosidade. Não se esqueça de parar em minha casa, da próxima vez. Eu me lembrarei do senhor.
Como eu lhe havia dado tão somente uma moeda de cinquenta sens, espantaram-me tão chorosas manifestações de gratidão. Ansioso que estava para alcançar a pequena bailarina, era-me incomodo reprimir a pressa e acompanhar o andar inseguro da velhinha. Chegamos, afinal, ao túnel do Passo.
– Muito obrigado. É melhor que a senhora volte daqui: o vovô se encontra sozinho — disse eu, despedindo-me da minha acompanhante, que me devolveu a bolsa de viagem e afastou-se.
Do teto do túnel imerso na obscuridade pingavam, uma após outra, grossas gotas de água frigida. Ao fundo do túnel, um pequeno retângulo de claridade indicava a saída para Izu, ao sul.

II
Da boca do túnel, o caminho, ladeado por uma cerca pintada de branco, emergia ziguezagueante. Na direção da fralda da montanha, avistei as figuras das dançarinas. Ao cabo de meio quilometro de caminhada, consegui alcançá-las. Como, porém, não me parecesse conveniente diminuir o passo, ultrapassei-as simulando indiferença. O chefe do grupo, que caminhava adiante deste cerca de uns setenta passos, deteve-se ao me avistar, exclamando:
– Como o senhor anda depressa! Felizmente, o tempo limpou, não acha?
Respirei aliviado e dispus-me a marchar ao seu lado. Meu interlocutor fez-me diversas perguntas. Vendo-nos a conversar, as mulheres vieram ao nosso encontro.
O chefe do grupo carregava às costas uma grande mala de vime. A senhora de meia-idade trazia nos braços um cachorrinho. A dançarina mais velha, uma trouxa; sua companheira, outra mala de vime; a pe­quena bailarina, finalmente, levava as costas um tambor com suporte. A senhora de meia-idade pôs-se a con­versar comigo.
– É um estudante, sabes? — informou, num sussurro, a dançarina mais velha à caçula do grupo. Quando me voltei ela confirmou, sorridente:
– Sei que o senhor é estudante. Vejo sempre estudantes na ilha.
Pelo que me contaram, fiquei sabendo que procediam todos do Porto de Habu de Oshima. Haviam deixado a ilha durante a primavera, mas, como não tinham trazido roupa de inverno e o frio anunciava-se rigoroso, pretendiam voltar para lá depois de uma breve temporada nas termas de Ito, e de uma estada de dez dias em Shimoda. Quando ouvi o nome de Oshima, senti a presença da poesia, e fixei os olhos nos lindos cabelos da pequena dançarina. Fiz varias perguntas sobre Oshima.
– Os estudantes vão a ilha para nadar, não é mesmo? — perguntou a pequena dançarina a uma das companheiras.
– Mas isso só no verão, não é? — interpus, para a atrapalhação da pequena bailarina, que respondeu, à meia voz:
– No inverno também aparecem...
– No inverno, também? — insisti.
A rapariga, olhando de novo para a companheira, riu-se.
– Então, no inverno também se nada? — tornei a insistir, e a minha pequena interlocutora, pondo-se muito séria, e com o rosto ruborizado, fez que sim com a cabeça.
– Que bobinha é esta menina! — escarneceu a senhora de meia-idade.
O caminho para Yukano era em declive e estendia-se por doze quilômetros, ao longo do vale do Rio Kawatsu. Transposto o Passo, tinha-se a impressão de que até a cor das montanhas e do céu adquiriam uma particular tonalidade sulina. Eu e o chefe do grupo mantivemos uma conversação ininterrupta e nos tornamos bons amigos. Transpusemos diversos vilarejos, como Haguinori e Kashimoto, e, chegados ao sopé, pudemos divisar ao longe os telhados de palha de Yukano. Munindo-me de coragem, declarei ao meu companheiro de viagem que gostaria muitíssimo de acompanhá-los ate Shimoda. Ele mostrou-se deveras satisfeito com a perspectiva de continuar a ter-me a seu lado.
Quando chegamos a hospedaria de Yukano, a mulher de meia-idade fez menção de despedir-se de mim. O chefe do grupo explicou-lhe:
– Este senhor deseja viajar em nossa companhia.
– Ora muito bem! — respondeu ela com desembaraço. — Na viagem, quer-se companhia; na vida, simpatia. Se companhia como a nossa não lhe desagrada, garanto que se distraíra conosco. Entre para descansar.
As moças me olharam em silêncio, com ar de indiferença, mas algo ruborizadas.
Subindo, em companhia dos demais, para o andar superior da hospedaria, desfiz a bagagem e retirei os aprestos. O tatami e o fussuma estavam velhos e sujos. O chá foi servido pela pequena bailarina. Ficou ruborizada ao sentar-se diante de mim; a xícara quase escorregou do pires, devido ao tremor de suas mãos, e ela acabou derramando chá sobre o tatami. Surpreendeu-me aquele acanhamento, que reputei exagerado.
– Céus! Que coisa! Esta menina já começa a por reparo nos homens! — resmungou a mulher de meia- idade, com a testa enrugada, atirando um pano a pequena bailarina, que o apanhou, muito embaraçada, e se pôs a enxugar o tatami.
Essas palavras fizeram-me inadvertidamente voltar a mim mesmo, e destruíram todas as imagens sensuais que se haviam formado no meu espirito sob o influxo da velha do Passo.
Momentos depois, a mulher de meia-idade, olhando-me com atenção, exclamou:
– Como é bonito esse tecido azul, salpicado de branco, do seu quimono! tem o mesmo desenho do de Tamiji? Não tem? — perguntou a moça sentada ao seu lado, dirigindo-lhe um olhar jocoso.
– É que deixei, lá na minha terra, um filho no colégio — prosseguiu ela, voltando-se para mim — e me lembrei dele porque tem um quimono do mesmo tecido do seu. Nos dias de hoje um tecido assim custa tão caro que já nem se sabe como fazer.
– Em que grau ele está estudando? — perguntei.
– Esta matriculado no quinto ano do primário.
– No quinto ano do primário? — estranhei.
– Sim na escola de Kofu. Moramos há muito tempo em Oshima, mas viemos de Kofu em Kahi.
Depois de eu ter descansado cerca de uma hora, o chefe do grupo levou-me para outra hospedaria. Ate então, eu estivera certo de que iria passar a noite sob o mesmo teto que as dançarinas. Depois de andarmos cerca de cem metros, abandonamos a estrada e descemos por um atalho íngreme, de degraus talhados na pedra. Atravessamos uma ponte de bambu, junto da qual ficavam os banheiros públicos, à margem do riacho. O quintal da nova hospedaria começava pouco adiante da ponte.
Estava eu a banhar-me quando meu companheiro veio juntar-se a mim. Contou-me, então, que tinha vinte e quatro anos de idade e que sua mulher perdera dois filhos por parto precoce. Como vestia um hanten com a marca da estancia termal de Nagaoka, julguei que ele fosse de lá. A expressão do seu rosto e sua maneira de falar eram as de um homem educado, o que me levou a pensar se ele não se juntara ao grupo para distrair-se ou por amor da pequena dançarina.
Jantei logo depois do banho. Eram três horas da tarde; eu havia saído de Yukashima as oito da manhã.
O chefe do grupo despediu-se de mim.
– Não quer comprar caquis? — disse-lhe eu, atirando-lhe algum dinheiro. O homem fez que não com a cabeça e dispôs-se a continuar seu caminho. Ao ver o dinheiro no chão, deteve-se para apanha-lo e jogou-o de volta, dizendo:
– Não deve fazer isso.
O dinheiro caiu em cima do telhado de palha. Atirei-o novamente ao homem, que o aceitou dessa vez. Ao entardecer, começou a chover forte. O contorno das montanhas ao longe tornou-se indistinto, alvacento; as aguas do riacho se turvaram de um amarelo leitoso e puseram-se a correr mais ruidosas. Imaginando que a chuva iria impedir a exibição das bailarinas e afligido por esse pensamento, fiquei inquieto: fui tomar banho duas ou três vezes. Meu quarto estava mergulhado na obscuridade. Acima do corte quadrado do fussuma, que separava o meu do aposento vizinho, estava suspensa a lâmpada da qual provinha iluminação para ambos.
Subitamente, destacando-se do ruído forte da chuva, ouviu-se o tantã suave de um tambor. Abri de supetão a janela, como se quisesse arrebentá-la, e debrucei-me para fora. O som do tambor parecia vir de perto. A chuva fustigava-me o rosto. Cerrei os olhos e pus-me atentamente à escuta, procurando descobrir o caminho percorrido pelo som do tambor. Logo, fizeram-se ouvir também as notas de um shamissen  seguidas por um grito agudo de mulher e pelo ruído de risos festivos. Eu soube, então, que as artistas haviam sido contratadas pelo restaurante em frente a hospedaria. Foi-me possível distinguir as vozes de duas ou três mulheres, e as de três ou quatro homens. Julgando que, terminada a representação, as dançarinas viriam até a hospedaria onde eu estava, fiquei a espera. Todavia, logo depois fi­quei a conjeturar se toda aquela animação não acabaria em bebedeira e farra. Uma voz aguda de mulher cortava, de quando em quando, a noite compacta. Numa quietude absoluta, com todos os sentidos aguçados, continuei sentado, com a porta do quarto aberta. A cada pancada do tambor, meu coração se rejubilava como que por encanto. Pensava comigo mesmo:
— “Ah! a pequena dançarina está ainda sentada à mesa do banquete. Sentada, batendo o seu tambor.”
Quando o tambor parava, eu me sentia angustiado. O som da chuva trespassava-me.
Mais tarde, ouvi um arrastar de pés, que me fez imaginar estivessem brincando de pegador. Logo o silêncio. Meus olhos lançavam chispas. Eu procurava devassar as trevas para descobrir a razão do repentino silêncio. Doía-me pensar que estavam maculando a noite da pequena dançarina.
Mesmo depois de ter fechado a janela e ido deitar-me, eu continuava a me sentir opresso. Tomei banho novamente, estapeando, raivoso, a agua morna. A chuva havia cessado e a lua surgira no céu. Lavada pelo aguaceiro, a noite outonal estava virginalmente iluminada. Mesmo que saísse descalço do banheiro, pensei, nada poderia fazer. Passava das duas horas da manhã.

III
No dia seguinte, eram já mais de nove horas quando o homem veio procurar-me. Pus-me de pé e convidei-o a acompanhar-me ao banho. Estava um dia límpido e belo, tipicamente sulino; aumentadas pela chuva da noite anterior, as águas do riacho corriam iluminadas pelo sol tépido. Pareceu-me um sonho toda a angústia da noite anterior. Perguntei, aparentando despreocupação?
– A festa de ontem à noite esteve bem animada, não? Acabou muito tarde?
– Nada disso. Ouviu o barulho?
– Ouvi, sim.
– É o pessoal daqui. Só queriam farra. Não tinha graça.
Como meu interlocutor se mostrasse aborrecido, achei melhor calar-me.
– Olhe! — disse ele, chamando-me a atenção. — La estão elas, no banheiro da outra margem. Parece que nos viram, pois estão a rir.
Seguindo-lhe a indicação, olhei para o banheiro pú­blico da margem oposta: sete ou oito corpos nus eram palidamente visíveis no vapor d’água.
Emergindo da semi-escuridão do banheiro, apareceu outro corpo nu de mulher, a qual, detendo-se à porta do vestiário como se se preparasse para lançar-se ao ria­cho, gritou qualquer coisa, agitando os braços. Estava completamente despida. Era a pequena dançarina. Contemplando-lhe a carne alva, as pernas bem torneadas, esguias como caules novos de paulóvnia, senti no coraãao uma pureza de água de fonte, dei um fundo suspiro de alívio e pus-me a rir infantilmente. Uma criança, pensei. Uma criança que saltitava ao sol, inteiramente despida, alegre por nos ter descoberto, o corpo esticado e equilibrado na ponta dos pés. Continuei a rir, possuído de límpida alegria. Como que lavada dos maus pensamentos, minha mente ficou cristalina. Eu sorria sem parar.
Como os cabelos da pequena bailarina eram longos, parecera-me ela ter dezessete ou dezoito anos; além dis­so, ela os penteava como mulher adulta. Mas eu estava redondamente enganado.
Seguido pelo meu companheiro, regressei ao quarto e, logo depois, a moça mais idosa do grupo apareceu no quintal da hospedaria, onde se deixou ficar, admirando um canteiro de crisântemos. A pequena dançarina vinha atravessando a ponte. A mulher de meia-idade, saindo do banheiro público, olhou severamente para as duas. A pequena dançarina encolheu os ombros, como que a indicar ter-se dado conta da repreensão, e, rindo- se, arrepiou caminho. A mulher de meia-idade veio até a ponte e ordenou-lhe:
– Venha brincar.
A moça do jardim repetiu-lhe a mesma ordem e ambas se retiraram. O homem ficou em minha companhia até a tarde.
A noite, eu jogava go com um vendedor de artigos para papelaria, quando, subitamente, se fez ouvir, vindo quintal da hospedaria, o som do tambor. Quis levantar-me.
– As artistas vieram representar aqui — justifiquei-me.
– Qual, isso não tem graça — objetou meu parceiro. — Vamos, o lance é seu. Bati aqui.
O vendedor de papel estava inteiramente absorvido no jogo. Enquanto eu permanecia sentado, indeciso desassossegado, temeroso de que as artistas já estivessem de saída, o chefe do grupo cumprimentou-me do quintal:
– Boa noite.
Saí para o corredor e chamei-os com um gesto de mão. Após cochicharem entre si, as artistas deram a volta para entrar pela frente da casa. Seguindo o exemplo do homem, as três moças vieram cumprimentar-me, uma após a outra, como se fossem gueixas.
Voltei ao jogo, mas o tabuleiro demonstrava cabalmente a minha derrota.
– Assim não adianta. Estou vencido. É melhor terminar aqui a partida — disse ao meu parceiro.
– Nada disso. Eu é que estou em má situação. De qualquer forma, o lance é delicado.
Sem voltar-se sequer para olhar as dançarinas, o vendedor de papel pôs-se a contar as casas do tabuleiro, uma a uma, e a jogar com atenção redobrada. Depois de terem arrumado num canto da sala o tambor e o shimissen, as mulheres começaram a jogar gomoku-narabe no tabuleiro de shogui. Entrementes, eu perdia a partida. Meu parceiro insistiu que continuássemos:
– Então? Mais uma partida? Uma só, peço-lhe.
Como eu estava a rir bobamente para as visitantes, verificou a inutilidade da sua insistência e levantou-se.
As moças se aproximaram do tabuleiro de go.
– Vão representar em algum lugar esta noite? – perguntei-lhes.
– Vamos, sim, mas... — disse o homem, voltando se para as companheiras, e perguntando-lhes:
– Que tal faltarmos ao compromisso de hoje e ficarmos nos divertindo por aqui mesmo?
– Que bom! Que bom! — exclamaram elas.
– Não haverá perigo de serem repreendidas? – perguntei.
– Qual nada! — tranquilizou-me o homem. — Nem adianta ir porque não há fregueses.
E, entretidos com o gomoku-narabe e outras diversões, ficamos juntos até meia-noite passada.
Depois que as dançarinas se foram, e estando eu com a mente alerta demais para poder conciliar o sono, saí para o corredor e chamei:
– Senhor vendedor! Senhor vendedor!
– Ora viva! — respondeu o interpelado, que era um velhote de seus sessenta anos, saindo animosamente do seu quarto para o corredor.
– Vamos passar a noite jogando, quer? Vamos ficar acordados.
Eu também me sentia deveras animoso.

IV
Ficara combinado que partiríamos de Yukano às oito horas da manhã do dia seguinte. Com um boné recém-comprado na cabeça (guardara no fundo da mala meu boné de colegial), fui à hospedaria a beira da estrada. Como a porta do shoji do andar de cima estivesse escancarada, subi a escada despreocupadamente: as artistas se achavam deitadas ainda. Embaraçado, detive-me no corredor.
Deitada no leito mais próximo da porta, a pequena dançarina, ao ver-me, pôs-se toda vermelha e escondeu o rosto com ambas as mãos. Compartilhava o leito com outra moça. Conservava ainda a pintura exagerada da noite anterior, mas o carmim dos lábios e a sombra dos olhos já estavam borrados. Esse desalinho sensual excitou-me. Como se estivesse ofuscada, a pequena bailarina, mantendo o rosto oculto entre as mãos, escorregou do leito e veio sentar-se no corredor, a meus pés.
– Muito obrigada por tudo de ontem à noite — disse, deixando-me perplexo.
O homem estava deitado no mesmo leito que a moça mais idosa. Até então, eu não suspeitara que fossem marido e mulher.
– Pedimos-lhe muitas desculpas — disse-me a mulher de meia-idade, soerguendo-se no leito. — Íamos partir hoje, realmente, mas como parece provável recebermos um convite para representar à noite, decidimos adiar a partida. Se o senhor quiser partir ainda hoje, pode partir: ver-nos-emos em Shimoda. Acertamos que ficaríamos alojados numa hospedaria chamada Koshuya, de modo que lhe será fácil localizar-nos.
Tais palavras causaram-me um choque.
– Pego-lhe que adie sua partida para amanhã — rogou o homem. — Mamãe insiste em que fiquemos aqui ainda hoje. É sempre melhor viajar em companhia. Vamos sair amanhã, juntos.
A mulher de meia-idade corroborou-lhe os rogos:
– Isso mesmo. Depois de nos termos aproveitado da sua companhia, seria imperdoável pensarmos apenas em nossas próprias conveniências. Partiremos amanhã mesmo que chovam canivetes. Amanhã será o quadragésimo nono dia do falecimento do bebê e queríamos homenagear a sua memoria em Shimoda. Por isso apressamos a viagem: a fim de estar lá no dia certo. Sei que abuso da sua paciência dizendo-lhe todas estas coisas, mas confio em que, apesar, de recentes as nossa relações, não será demasiado pedir-lhe que nos acompanhe em nossas preces depois de amanhã.
– Resolvi adiar a partida e desci para o andar inferior. Fiquei a conversar com um hóspede na portaria suja, à espera de que se levantassem. O homem veio convidar-me para um passeio, pouco depois. Descemos estrada até o local onde havia uma linda ponte. Encostando-se ao corrimão, o homem pôs-se a contar-me, novamente, fatos da sua vida. Explicou-me que já fizera parte de um grupo de artistas de vanguarda, em Tóquio. Ainda hoje representava, de quando em vez, no Porto d Oshima. Eu vira, sobressaindo da sua trouxa de bagagem, a ponta de uma bainha de espada: contou-me também que improvisava representações teatrais em salões.
– Cometi muitos erros e acabei me atrapalhando na vida. Meu irmão, porém, continua vivendo com gente direita em Kofu. É quem toma conta da casa. Pode-se dizer, portanto, que sou dispensável.
– Eu estava seguro de que o senhor era das terma de Nagaoka — respondi-lhe.
– Não sou, não. A moça mais idosa do grupo é minha mulher. Tem dezenove anos, um ano menos do que o senhor, portanto. Teve o seu segundo parto precoce em viagem. A criança morreu depois de uma semana de vida. Minha mulher não se recuperou ainda de todo. A mulher idosa e minha sogra. E a pequena dançarina minha irmã.
– Como? Não me disse que tinha uma irmã de quatorze anos?
– Pois é ela. Vivo sempre preocupado com o fato de permitir que ela siga uma carreira destas. Mas nada posso fazer. Não havia outra solução.
– Em seguida, explicou-me que o nome de sua esposa era Tiyoko; o dele, Eikiti; o da irma, Kaoru. A outra rapariga do grupo, que tinha dezessete anos, chamava-se Yuriko; nascera em Oshima e exercia tarefas de empregada. Depois de me ter falado disso tudo, seu rosto assumiu uma expressão de comoção e ele, guardando silêncio, pós-se a olhar o rio.
No passeio de volta, encontrei a pequena dançarina com o rosto lavado, sem maquilagem, acocorada à beira do caminho, a acariciar um cão. Como eu pensava em voltar à minha hospedaria, convidei-a:
– Venha dar um passeio comigo.
– Eu gostaria, mas, assim sozinha...
– Traga o seu irmão — sugeri.
– Esta certo. Irei logo — concordou.
Momentos depois, Eikiti aparecia na hospedaria.
– E as outras? — perguntei-lhe.
– O senhor entende: a mãe e muito severa...
Todavia enquanto estávamos a jogar gomoku-narabe, as mulheres transpuseram a ponte e chegaram até a hospedaria, subindo para o primeiro andar. Cumprimentaram-me respeitosamente, como de costume, e detiveram-se hesitantes no corredor, Tiyoko à frente.
– Este é o meu quarto. Entrem, sem cerimonia — convidei.
Jogamos durante cerca de uma hora; ao fim desse tempo, as mulheres se dirigiram ao banho. Convidaram-me a acompanhá-las, mas eu, como havia três moças presentes, achei melhor não aceitar, e menti que iria mais tarde. Logo depois, a pequena dançarina veio á minha procura.
– Minha irmã pede-lhe para vir. Ela lhe lavará as costas.
Não fui; fiquei a jogar gomoku com a mensageira. Curioso: ela jogava muito bem. Tanto Eikiti quanto as outras mulheres não conseguiam batê-la ao jogo. Eu próprio, que vencia a quase todos, tinha de me esforçar ao máximo. O fato de não ter de perder deliberadamente me punha a vontade. De começo, a pequena bailarina jogava longe do tabuleiro, esticando o braço para nele colocar as peças. Depois, foi-se esquecendo de si aos poucos até que, concentrada, debruçou-se sobre o tabu­leiro. Seus cabelos, cujo belo negror mal parecia natu­ral, chegaram a tocar-me o rosto. Subitamente, ela enrubesceu e disse-me:
­– Perdão, tenho de ir, senão serei censurada.
Retirou-se, indo ao encontro da mãe, que já a esperava diante do banheiro publico. Tiyoko e Yuriko sairam afoitamente do banho e todas juntas, sem voltarem ao meu quarto, retiraram-se.
Eikiti passou o dia inteiro comigo. A dona da hospe­daria, que parecia ser pessoa simples e atenciosa, advertiu-me de que seria desperdício oferecer almoço a um individuo como ele.
À noite, fui visitar as mulheres, e encontrei a pe­quena gangarina em companhia da mãe, aprendendo a acompanhar-se ao shamisen. Quando me viu, parou de cantar, mas, a uma ordem da sua mãe, recomeçou. Toda vez que sua voz se elevava um pouco, a mãe a repreendia:
– Já lhe disse para não erguer a voz.
De onde eu estava, podia ver Eikiti, no salão do an­dar superior do restaurante em frente, urrando algo ininteligível.
– Que esta ele a fazer? — perguntei.
– Representa um drama lírico — respondeu a mãe de Kaoru.
– Drama lírico?
– Eikiti é homem dos sete instrumentos. Nunca se sabe, ao certo o que ele poderá fazer.
Nesse momento, um homem, de meia-idade, que se dizia vendedor de aves, abriu o fussuma e chamou as moças, convidando-as para comerem guloseimas. A pequena dançarina, acompanhada de Yuriko, levou seu hashi ao quarto vizinho, e lá ficou a cutucar os restos de um cozido de aves deixados pelo vendedor. Quando voltamos para o quarto das bailarinas, ele tocou de leve o ombro de Kaoru. A mãe da rapariga olhou-o severamente:
– Por favor, não tome liberdades com essa criança.
A pequena dançarina, dirigindo-se ao homem e chamando-o de “senhor”, pediu-lhe que lesse para ela as Viagens de Mito Komon. Abespinhado com a censura de que fora alvo, o vendedor se retirou. Receando pedir diretamente a mim que lhe fizesse a leitura, Kaoru instou com a mãe para que fizesse ela o pedido. Animado por uma expectativa, apanhei o livro de narrativas; com efeito, quando me pus a ler, a pequena dançarina chegou-se para perto de mim, a face roçando-me o om­bro, e ficou a ouvir, séria, sem pestanejar, os olhos in- tensamente fitos no meu rosto. Essa atitude de concentração parecia ser-lhe habitual quando ouvia alguém a ler. Os olhos, graúdos e negros, de lindo brilho, eram o melhor atributo da sua beleza. A linha curva dos seus cílios tinha um encanto inefável. Ria como uma flor. É esta a expressão exata: como uma flor.
Mais tarde, a criada do restaurante veio buscá-la. Ela se preparou rapidamente e antes de sair disse-me:
– Voltarei breve. Espere para ler-me a continuação.
Saiu para o corredor e abaixou-se, tocando o assoalho com as mãos:
– Até logo.
– Não quero que cantes. Em hipótese alguma, ouviste? — recomendou-lhe a mãe.
A pequena assentiu e partiu, levando consigo o tambor. A mãe explicou-me:
Olhei para o restaurante e lá vi Kaoru, pouco depois, sentada com correção, percutindo o tambor. Via-a de costas; ela parecia estar na sala vizinha. O tantã do tambor fazia meu coração dançar alegremente.
– Como o tambor anima um salão, não acha? — disse a mãe de Kaoru olhando também para o restau­rante.
Tiyoko e Yuriko saíram para juntar-se a irmã.
Ao cabo de uma hora, voltaram todas juntas.
– Só isto... — disse a pequena dançarina, derramando um punhado de moedas de prata, de cinquenta sens, na mão aberta da mãe. Reiniciei a leitura das Viagens de Mito Komon. Finda a leitura, ficamos a conversar; contaram-me novamente o caso da criança nascida morta durante a viagem. Houvesse sobrevivido e seria um bebê pálido, como água. Não teria forças sequer para chorar. Não duraria mais do que uma semana.
Eu não sentia curiosidade nem alimentava desprezo por elas. Pouco me importava fossem meus companheiros simples artistas ambulantes. A simpatia que eu demonstrava tocou-lhes fundo o coração. Convidaram-me para ir a casa da família, em Oshima, e lá ficar hospedado.
– Poderia morar na casa onde mora vovô. É ampla e sossegada, principalmente se dali mudarmos o velho. Lá estudaria a vontade, ficando o tempo que quisesse. Temos duas casas; essa de que falamos está perto da montanha.
Ficou igualmente acertado que, no Ano Novo, eu os acompanharia ao Porto de Habu, onde iriam dar espetáculos.
Compreendi que a vida errante não lhes calejara, o coração. Eram gente tranquila e despreocupada; não haviam ainda perdido a fragrância do campo. Estavam muito unidos entre si pelos laços do sangue. Apenas Yu­riko, a criada, por estar em plena adolescência, se acanhava na minha presença.
Já passava da meia-noite quando as deixei. As moças me acompanharam até o portão. Kaoru arrumou-me o gueta e, olhando para cima, para o céu límpido, dis­se:
– Que lua! Amanhã estaremos em Shimoda, felizmente. Lá celebraremos o quadragésimo nono dia da morte do bebê. Vou ganhar um pente de mamãe. Em Shimoda, ha uma porção de coisas. O senhor me levará ao cinema, não?
Shimoda é o lar dos artistas ambulantes. É a cidade que todos eles, peregrinando de terma em terma, entre Izu e Sagara, recordam nostálgicos sob um céu estranho, como se fosse a sua cidade natal.

V
Cada uma das artistas transportava a mesma bagagem que levava quando havíamos atravessado o Amagui. O cachorrinho que acompanhava o grupo tinha ares de quem estava habituado as viagens. Saímos de Yukano e penetramos de novo na zona montanhosa. O sol da manha, suspenso sobre o mar, aquecia também o dorso das montanhas. Contemplamos ao longe, ensolarada e aberta à claridade matinal, a praia do Rio Kawatsu.
– Aquele é o Oshima, não é? — disse eu.
– Como parece grande! — observou a pequena dançarina.
O céu outonal estava límpido e o mar, incendiado pelo sol, ofuscava como na primavera. Do ponto onde estávamos até Shimoda havia bem uns vinte quilômetros de caminho. Tocamos para a frente: o mar ora desaparecia, ora reaparecia aos nossos olhos. Tiyoko pôs­-se a cantar, despreocupada.
A certa altura, consultaram-me se devíamos ir pelo atalho que subia pela montanha e que encurtava o ca­minho de uns dois quilômetros, embora fosse um pouco áspero, ou pela estrada oficial, onde era mais fácil caminhar. Optei pelo caminho mais curto.
O aclive era forte e as folhas secas que o atapetavam faziam-no escorregadio. Eu resfolegava, mas, obstinando-me, apertei o passo, dando quanto tinha. Não tardou e eu deixava o grupo para trás; somente o ruído das conversas chegava até mim, por entre as árvores. Arregaçando a barra do vestido, a pequena bailarina apertou o passo também: foi a única a acompanhar-me. Seguia-me a uma distância de seis passos, que não procurava nem aumentar nem diminuir. Quando eu me voltava e lhe dirigia a palavra, ela se detinha e me respondia com um sorriso assustado. Ao falar, detinha-se igualmente. Eu ficava à sua espera; quando me movimentava novamente, ela continuava a andar. Ao chegar a uma curva do caminho, no ponto onde ele se tornava mais íngreme, apressei ainda mais o passo. A pequena dançarina esforçava-se por me acompanhar. A monta­nha estava em silencio: os demais haviam ficado bem atrás e já não se lhes ouvia a conversa.
– Em que lugar de Tóquio fica a sua casa?
– Moro no internato da escola — respondi.
– Eu também conheço Tóquio. Fui lá dançar na época das flores. Mas como era pequena, não me lembro de nada.
Continuamos a caminhar. Ela me perguntou se meu pai estava ainda vivo e se eu havia ido alguma vez a Kofu. Depois, pôs-se a tagarelar; repetiu que iria ao ci­nema quando chegássemos a Shimoda; falou nova­mente na morte do bebê.
Alcançamos o cimo da montanha. Depondo o tambor sobre o tapete de grama seca, a pequena dançarina enxugou o suor do rosto com um lencinho. Agachou-se, em seguida, para tirar o pó das sandálias, mas, como se espertada por uma ideia súbita, veio limpar-me a barra do quimono. Recuei de súbito e a pequena dançarina caiu de joelhos no chão; permanecendo nessa posição, pôs-se a espanar a minha roupa e disse-me, a mim que permanecia de pé, ofegante:
– Sente-se.
Sentei-me. Veio fazer-nos companhia um bando de passarinhos, que pousou perto de nós. O silêncio era tal que se ouvia o ruído feito pelas folhas secas, quando as aves nelas pousavam.
– Por que anda tão depressa?
A pequena dançarina parecia estar com calor. Quando percuti o tambor duas ou três vezes com o dedo, os passarinhos levantaram voo.
– Ah! que sede! — exclamei.
– Espere, vou ver se arranjo água — disse ela.
Mas dentro em pouco voltava de mãos abanando.
Perguntei-lhe:
– Que é que você costuma fazer quando está em Oshima?
De súbito, a pequena dançarina citou dois ou três nomes de mulheres e pôs-se a falar de coisas que me eram estranhas. Ao que deduzi, falava, não de Oshima, mas de Kofu. Pareceu-me que se referia a uma colega da escola primária que frequentara até o segundo ano, e cuja lembrança então lhe ocorrera.
Ali ficamos mais uns dez minutos e logo depois as três jovens atingiam o cimo. A senhora de meia-idade chegou com atraso.
Durante a descida, eu e Eikiti pusemo-nos a conversar sossegadamente e atrasamo-nos de propósito. A pe­quena dançarina, que se adiantara a nós cerca de duzentos metros, voltou a correr:
– Ali embaixo há uma fonte — avisou-nos. — Elas pedem-lhes que se apressem, que não beberão enquanto não chegarem.
Ao ouvir falar em água, corri. A sombra de uma árvore, gorgolejava a água por entre rochas. As mulheres estavam de pé, em tomo da fonte.
– Beba primeiro — convidou-me a senhora de meia-idade. — Se mulher puser a mão primeiro, a água fica suja e turva.
Colhi a água fresca nas mãos e bebi. As mulheres permaneceram por ali enxugando o suor com os lenços.
Finda a descida da montanha, e ao entrarmos na estrada de Shimoda, vimos vários fios de fumaça de carvoeiras. Sentei-me num toco de madeira a beira do caminho para descansar. A pequena dançarina de cócoras, pôs-se a pentear com um pente cor de pêssego o pelo longo do cão.
– Vais acabar quebrando os dentes desse pente! — advertiu-a a mãe.
– Não tem importância. Vou comprar outro em Shimoda.
Desde Yukano que eu estava com a ideia de pedir-lhe aquele pente que lhe enfeitava a cabeça, e não gostei nada de vê-lo sendo usado para pentear pelo de cachorro...
Descobrimos um grande numero de bambus fincados do outro lado da estrada formando cerca. Eu e Eikiti adiantamo-nos ao grupo, tagarelando sobre o fato de os bambus fazerem ótimas bengalas. A pequena dançarina veio correndo atrás de nós. Trazia na mão um bambu mais comprido que ela própria.
– Que pretendes fazer com isso? — perguntou-lhe Eikiti. Meio confusa, ela me apontou com o bambu.
– Dou-lhe para bengala. Escolhi o mais grosso.
– Não, esse não serve. Quem vir bambu assim grosso, descobrirá logo que é roubado. Vá devolvê-lo.
A pequena dançarina voltou para junto da cerca e logo regressou às carreiras. Desta vez, trazia um bambu da grossura de um dedo. Depois, sentou-se no chão, ofegante, ficando a espera das companheiras.
Eu e Eikiti continuávamos a caminhar, sempre uns trinta passos a frente do grupo.
– Para isso, basta arrancar os dentes e por outros de ouro — ouvi a pequena dançarina tagarelar atrás de mim. Voltei-me e vi que ela caminhava ao lado de Tiyoko, seguida pela avó e por Yuriko. Não se dando conta de que eu me havia voltado, Tiyoko disse:
– E isso mesmo. Diga a ele.
Pareciam conversar a meu respeito. Tiyoko se referira provavelmente aos meus dentes feios e Kaoru sugerira que eu os substituísse por outros de ouro. Embora falassem sobre a minha aparência, eu não me incomodei, tanto me sentia afeiçoado àqueles artistas. Continuaram a palestrar em voz baixa. A certo momento, ouvi Kaoru dizer:
– Ele e boa pessoa, não é?
– Sim. Parece ser boa pessoa.
– Não é mesmo uma boa pessoa? Bom que seja uma boa pessoa, não acha?
A simplicidade do seu modo de falar como que lhe punha em destaque a sinceridade. Era o modo de falar de quem estivesse demonstrando os sentimentos. Eu próprio me senti uma boa pessoa. Com a alma purificada, ergui os olhos e contemplei os claros montes. As pálpebras me doíam. Por força de intensa introspecção critica, eu me havia dado conta, já aos vinte anos, de que a minha índole fora afetada pela orfandade e que o pesar insuportável é que me levara aquela viagem até Izu. Por isso mesmo, o fato de eu ser considerado “boa pes­soa”, no sentido corrente que essa palavra tem entre os homens, era-me indizivelmente grato.
A nitidez com que avistávamos os montes era consequência da proximidade do mar, em Shimoda. Continuei a caminhar, decepando com a bengala de bambu as ervas outonais.
Na margem da estrada, a entrada das aldeias, deparávamos com cartazes:
E proibida a entrada de pedintes e artistas ambulantes.

VI
A Hospedaria Koshuya ficava logo a entrada norte de Shimoda. Nas pegadas dos meus companheiros de viagem, subi para o primeiro andar da hospedaria, que mais parecia um sótão. Não havia forro; quando me sentei junto da janela, minha cabeça esbarrou no teto.
– Não lhe doem os ombros? — perguntou a mãe de Kaoru a filha. E insistiu: — Não estas com as mãos doídas?
A pequena dançarina fez um gesto gracioso, como se percutisse o tambor:
– Não, senhora. Posso tocar muito bem.
– Ah! então esta bem.
Tentei erguer o tambor.
– Uf, como é pesado!
– Sim, é mais pesado do que pensa — respondeu, rindo, a pequena dançarina. — É mais pesado que a sua pasta de estudante.
Os artistas trocavam alegres cumprimentos com os fregueses da hospedaria, que eram também artistas ambulantes. O Porto de Shimoda devia ser o ninho dessas aves migradoras. Kaoru deu algumas moedas de cobre à filha do dono da hospedaria. Quando me despedi para sair, ela, arrumando-me o gueta, murmurou:
– Leve-me hoje ao cinema, sim?
Guiados por um homem de aparência duvidosa, eu e Eikiti fomo-nos instalar numa outra hospedaria, cujo dono se dizia ex-prefeito. Depois de banhar-nos, come­mos peixe fresco.
– Pego-lhe que compre algumas flores para os sacrifícios de amanhã — disse eu ao meu companheiro de viagem, dando-lhe algum dinheiro. Eu tinha de voltar para Tóquio no dia seguinte. Meu dinheiro acabara, e como dissera aos artistas que minha volta era devida a obrigações escolares, não puderam prender-me com insistências.
Jantei cedo, menos de três horas depois do almoço, e, sozinho, atravessei a ponte norte da cidade. Escalei o Fuji de Shimoda, e lá de cima fiquei a contemplar o porto. Na volta, passei pela Hospedaria Koshuya, e encontrei as artistas jantando um cozido de frango. Convidaram-me:
– Não quer provar um pouco? Esta sujo porque nos, mulheres, já pusemos o hashi dentro. Mas isso servirá, ao menos, como tema para anedotas de viagem...
A senhora de meia-idade tirou da mala uma xicara grande e hashi, e mandou Yuriko lavá-los.
Como o dia seguinte era o quadragésimo nono da morte do bebê, insistiram novamente comigo para que adiasse a partida, ao menos por um dia, mas, pretextando urgentes deveres escolares, escusei-me. A senhora de meia-idade repetiu-me, várias vezes:
– Então, nas ferias de inverno, iremos ao porto esperá-lo. Avise-nos do dia da sua chegada, por obséquio, sim? Ficaremos à sua espera; queremos hospedá-lo. Não vá para nenhum hotel, ouviu? Iremos recebe-lo no porto.
Quando, com a saída dos demais, ficaram na sala apenas Tiyoko e Yuriko, convidei-as para irem ao cinema. Tiyoko, apertando o ventre com as mãos e olhando-me com ar de abatimento, escusou-se:
– Estou adoentada. Sinto-me enfraquecida por ter andado daquele jeito.
Quanto a Yuriko, endireitou o corpo e baixou a cabeça.
A pequena dançarina estava no andar térreo brincando com a criança da hospedaria; tão logo me viu descer, começou a instar com a mãe para que a deixasse ir ao cinema. Em seguida, com ar desapontado, veio até mim e arrumou-me o gueta.
– Que foi? Por que não vais sozinha com ele? — perguntou Eikiti.
Ao que parece, a mãe negara consentimento a Kaoru. Eu não podia compreender por que não podia ela ir sozinha comigo.
Quando saí para a varanda, a pequena dançarina estava acariciando a cabeça do cachorro. Mostrava-se tão indiferente que desisti de lhe dirigir a palavra.
Fui só ao cinema. A narradora lia as explicações à luz da lamparina, quando lá cheguei. Pouco me demorei: voltei logo para a minha hospedaria onde, com o cotovelo apoiado no rebordo da janela, fiquei longas horas a contemplar a cidade trevosa e noturna. Pareceu-me ouvir ao longe, ininterrupto, o leve tantã de um tambor. Não sei por que razão, as lagrimas começaram a rolar-me pela face, uma após outra.

VII
No dia seguinte, as sete horas da manhã, eu estava tomando o desjejum quando ouvi Eikiti chamando-me da rua. Usava um haori de estampa preta. Devia ser a roupa de cerimonia que envergava para vir-se despedir de mim. Nenhuma das mulheres o acompanhava. Senti-me muito só, nesse momento. Eikiti subiu comigo para o quarto, e ali me explicou:
— Elas queriam vir-se despedir, mas como se deitaram muito tarde ontem, pediram-me que as desculpasse pela ausência. Pediram-me também que lhe dissesse que estarão a sua espera no inverno e insistem para que não deixe de vir.
Na cidade, o vento outonal da manhã estava gelado. Eikiti comprou para mim, no caminho, quatro magos de Shikishima, uns caquis e um vidro de dentifrício liquido chamado Kaol.
– E que minha irmã se chama Kaoru — disse-me com um leve sorriso. — No navio, não e bom chupar laranja. O caqui, sim: é bom para enjoo.
Agradeci-lhe os presentes e, tirando o boné da mnha cabeça, coloquei-o na dele:
– Dou-lhe isto.
Retirei da bolsa o meu chapéu de estudante, e endireitei-lhe as dobras. Rimo-nos os dois.
Quando nos aproximamos do cais de embarque, senti um baque no peito ao dar com a figura da pequena dançarina acocorada à beira da água. Ela se manteve imóvel enquanto nos aproximávamos e, em silencio, baixou a cabeça quando a alcançamos. A pintura da noite anterior fez com que aumentasse a minha emoção. O rubor ao canto dos olhos dava-lhe ao rosto um arzinho de zanga, de juvenil firmeza. Eikiti perguntou-lhe:
– As outras vem?
Kaoru meneou negativamente a cabeça.
– Estão ainda dormindo?
Ela fez que sim.
Enquanto Eikiti ia comprar-me a passagem para a barcaça que me levaria ao navio, tentei, de diversas maneiras, puxar conversa com a pequena dançarina, mas ela não disse palavra: mantinha a cabeça baixa e tinha os olhos fitos na água do canal. Limitava-se a assentir mecanicamente, sem esperar que eu terminasse de falar.
Nesse momento, aproximou-se de nós um homem acompanhado de uma velhinha. Tinha aparência de operário.
– Está bom este? — perguntou, dirigindo-se a velhinha. E depois, voltando-se para mim:
– Senhor estudante, tenho um favor a pedir-lhe. Não poderia levar esta velhinha até Tóquio? É uma pobre anciã: seu filho casado trabalhava em Guinzan de Rendaiji, mas, vitimado pela epidemia de influenza, morreu, juntamente com a esposa. Ficaram apenas estas três crianças, seus filhos. Como nada se pode fazer aqui, deliberamos envia-las, em companhia da avó, para a terra natal dela. É em Mito, sabe? A velhinha não conhece nada; por isso, quando chegar em Reiganjima, peço-lhe o favor de embarcá-la no trem elétrico de Ueno. É um incomodo, bem sei, mas suplicamos-lhe que nos preste esse favor. Olhe para ela: não lhe da pena?
Nas costas da velhinha apalermada, estava amarrada uma criança de colo. Duas meninas, a maior de uns cinco anos de idade, a menor de uns três, agarravam-se-lhe as mãos. De uma trouxa suja que levava, sobressaiam bolos de arroz e umeboshi. Cinco ou seis mineiros acompanhavam a velhinha. Aceitei de bom grado a incumbência de cuidar dela.
– É um grande favor que nos faz. Ótimo! Nós é que devíamos acompanhá-la a Mlto, mas é-nos impossível! — agradeceram os mineiros, despedindo-se de mim
A barcaça que ia levar-me até o navio balouçou violentamente. De lábios cerrados, a pequena bailarina, continuava a olhar fixamente para a água. No momento em que eu forcejava por agarrar-me a escada de cordas da barcaça, voltei-me para ela: fez menção de dizer-me adeus, mas desistiu, limitando-se a mover afirmativamente a cabeça, mais uma vez. A barcaça pôs-se em movimento. Eikiti começou a abanae insistentemente para mim o boné que eu lhe dera havia pouco. Só quando já estávamos longe do cais foi que a pequena dançarina se pôs a acenar para mim com algo branco.
Fiquei debruçado ao parapeito, absorto, contemplando Oshima, até o vapor deixar a Baia de Shimoda e desaparecer atrás da ponta sul das ilhas de Izu. Experimentava a estranha sensação de haver-me separado da pequena dançarina muito tempo atrás, num passado distante. Quando voltei os olhos para os camarins, à procura da velhinha, diversas pessoas já a cercavam e pareciam estar tentando consolá-la. Tranquilizado, entrei no camarim ao lado. As ondas de Sagaminada eram altas; o mar estava agitado. Embora sentado, eu de vez em quando perdia o equilíbrio. Um tripulante passou distribuindo aos passageiros pequenas bacias. Com a bolsa a servir de travesseiro, deitei-me. Minha cabeça estava como que vazia; perdera a noção do tempo. Minhas lagrimas ensoparam a bolsa de viagem, a tal ponto que tive de virá-la, para não lhe sentir o frio no rosto. Ao meu lado estava deitado um rapaz. Era filho de um industrial de Kawatsu, e ia para Tóquio fazer preparatório para os exames escolares. Acho que simpatizou comigo devido ao meu boné de estudante. Depois de algumas palavras convencionais, perguntou-me:
– Morreu alguém?
– Não. Separei-me agora de uma pessoa.
Respondi-lhe com voz dócil. Pouco me importava que me visse chorando. Eu não pensava em nada. Etava como que adormecido placidamente, dentro da mais pura satisfação.
O mar escurecera aos poucos, mas em Ajiro e Nekkai havia luzes acesas. Eu sentia frio no rosto, e fome. O rapaz ofereceu-me o conteúdo de um embrulho de folhas de bambu. Sem quase me dar conta de que era coisa de outrem, comi um bolo de arroz com algas. Finda a refeição, compartilhei da manta de estudante do meu companheiro de viagem. Embora ele me tratasse com extrema delicadeza, meu sentimento de um belo vazio fazia-me aceitar-lhe as gentilezas com naturalidade. O fato de, no dia seguinte pela manhã, eu ter de levar a velhinha até a estação de Ueno e de comprar-lhe passagem também me parecia muito natural. Todas as coisas se haviam confundido, para mim, numa coisa só.
A lâmpada do camarim foi apagada. O cheiro de peixe vivo e de maresia se fez mais forte. No escuro, aquecendo-me ao calor do meu companheiro de viagem, deixei que as lágrimas corressem livremente. Minha cabeça se transformara em água límpida, a gotejar, a gotejar, e era doce o gosto de nada restar depois da última gota.


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