segunda-feira, 4 de julho de 2016

095 – Guy de Maupassant – I. Babel

Isaac Emanullovich Babel (1894-1940) escritor russo nascido em Odessa, foi um dos maiores romancistas daquele pais. Neste conto ele presta homenagem a Guy de Maupassant, um dos maiores contistas de todos os tempos.
Guy de Maupassant
 Isaac Babel
Tradução de Nivaldo dos Santos

No inverno de mil novecentos e dezesseis fui parar em Petersburgo com um passaporte falso e sem um vintém sequer. Fui acolhido por Aleksei Kazántsev, um professor de filologia russa.
Ele morava em Pieski, numa rua gelada, amarelada e fedorenta. Um ganho extra para seu modesto salario eram as traduções do espanhol; naquela época, Blasco Ibañez estava ganhando fama.
Kazántsev nunca fora a Espanha, mas o amor a esse pais preenchia o seu ser; conhecia todos os castelos, jardins e rios espanhóis. Além de mim, amparava-se em Kazántsev uma multidão de pessoas excluídas da vida legal. Nos passávamos fome. De vez em quando, os jornalecos publicavam em letras miúdas as nossas notas sobre os acontecimentos.
De manha, eu perambulava pelos necrotérios e delegacias de polícia.
Mais feliz do que nós era mesmo Kazántsev. Ele tinha uma pátria: a Espanha.
Em novembro, ofereceram-me uma vaga no escritório da fábrica Obukhovski, um emprego muito bom, que dispensava do serviço militar.
Eu me recusei a me tornar um funcionário de escritório.
Já naquela época, com vinte anos de idade, eu disse a mim mesmo: é melhor a fome, a cadeia e a vagabundagem do que ficar sentado a mesa de um escritório dez horas por dia. Não havia nenhuma grande coragem nessa promessa, mas eu não a quebrei e nem vou quebrá-la. A sabedoria de meus antepassados estava na minha cabeça: nascemos para nos deliciar com o trabalho, a luta e o amor; nascemos para isso e nada mais.
Enquanto ouvia meu sermão, Kazántsev emaranhava a penugem curta e amarelada de sua cabeça. O horror em seu olhar misturava-se com a admiração.
No Natal tivemos sorte. O advogado Bendiérski, dono da editora Altsion, pensou em publicar uma nova edição das obras de Maupassant. A tradução ficou a cargo da esposa do advogado, Raíssa. Mas do intento senhorial não saiu nada.
Perguntaram a Kazántsev, o tradutor de espanhol, se ele não conhecia alguém para ajudar Raissa Mikhailovna. Kazántsev indicou a mim.
No dia seguinte, vestindo um casaco emprestado, eu me dirigi à casa dos Bendiérski. Moravam na esquina da Nievski com o Moika, numa casa construída com granito finlandês e revestida com colunas rosadas, seteiras e brasões de pedra. Banqueiros sem linhagem nem herdeiros cristãos convertidos que enriqueceram no comércio, tinham construído em Petersburgo, antes da guerra, muitos desses castelos vulgares e falsamente majestosos.
Pela escada estendia-se um tapete vermelho. Nos patamares havia ursos empalhados.
Em suas goelas escancaradas brilhavam redomas de cristal.
Os Bendiérski moravam no terceiro andar. A porta foi aberta por uma criada de busto alto, usando uma coifa. Ela me conduziu a uma sala com acabamento em estilo eslavo antigo. Nas paredes havia quadros azuis de Roerich: monstros e pedras pré-históricas. Pelos canto, em suportes, estavam dispostos ícones de escrita antiga. A criada de busto alto movia-se de modo solene pela sala. Era esbelta, míope e arrogante. A libertinagem estava petrificada em seus olhos cinzentos e arregalados. A moça movia-se devagar. Eu imaginei que, durante o amor, talvez ela se revirasse com uma agilidade furiosa. Uma cortina brocada pendurada acima da porta começou a balançar. Na sala, carregando grandes seios entrou uma mulher de cabelos negros e olhos rosados. Não foi preciso muito tempo para reconhecer na senhora Bendiérskaia aquela linhagem arrebatadora das judias vindas de Kíev e Poltava, das ricas cidades das estepes, cercadas de castanheiras e acácias. Essas mulheres transformavam o dinheiro de seus habilidosos maridos na gordura rosada do ventre, da nuca e dos ombros arredondados. O risinho sonolento e carinhoso delas tirava o juízo dos oficiais da guarnição.
— Maupassant é a única paixão da minha vida — disse-me Raissa.
Tentando conter o balanço dos grandes quadris, ela saiu da sala e voltou com uma tradução de “Miss Harriet”. Em sua tradução não restava nenhum vestígio da frase de Maupassant, livre, corrente, com um demorado sopro de paixão. Bendierskaia escrevia de um jeito enfadonhamente correto, sem vida e sem cerimônia, tal como os judeus escreviam antes em russo.
Levei o manuscrito, e em casa, na mansarda de Kazántsev, entre as pessoas que dormiam, passei a noite toda desbastando uma tradução alheia. O trabalho não estava tão ruim como parecia. Uma frase nasce boa ou ruim a um só tempo. O segredo está numa virada quase imperceptível. A chave deve ficar na mão, ser aquecida. é preciso virá-la uma vez, e não duas.

Na manha seguinte levei o manuscrito corrigido. Raissa não mentiu quando falou de sua paixão por Maupassant. Ela permaneceu imóvel na hora da leitura, com as mãos entrelaçadas; aqueles bravos de cetim escorregavam para o chão, sua testa ficava pálida, a renda entre seus seios comprimidos deslocava-se e tremia.
— Como o senhor fez isso?
Então comecei a falar sobre o estilo, sobre o exército de palavras, um exército no qual circula todo tipo de arma. Nenhum ferro pode penetrar no coração humano de forma tão congelante quanto um ponto colocado na hora certa. Ela escutava com a cabeça inclinada e os lábios pintados entreabertos. Um raio negro resplandeceu em seus cabelos laqueados, bem presos e repartidos. As pernas esmaltadas pela meia, com panturrilhas fortes e delicadas, estavam separadas sobre o tapete.
A criada, desviando os olhos devassos e petrificados, trouxe o café da manhã numa bandeja.
O vítreo sol petersburguense deitava-se sobre o tapete descorado e áspero. Vinte e nove livros de Maupassant estavam numa estante, acima da mesa. O sol tocava com dedos derretidos as lombadas de marroquim dos livros, o maravilhoso túmulo do coração humano.
Serviram-nos café em pequenas xicaras azuis, e nós começamos a traduzir “Idylle”. Todos se lembram do conto do jovem carpinteiro faminto que sugou de uma ama gorda o leite que a oprimia. Isso aconteceu num trem que ia de Nice para Marselha, num meio-dia abrasador, no pais das rosas, na pátria das rosas, lá onde as plantações de flores descem até a beira do mar...
Saí da casa dos Bendiérski com um adiantamento de vinte e cinco rublos. Naquela noite, a nossa comuna de Pieski ficou bêbada como um bando de gansos embriagados. Pegávamos caviar granulado e o comíamos com linguiça de fígado para tirar seu gosto. Meio embriagado, comecei a maldizer Tolstói.
Ele se assustou, o nosso conde, ficou com medo... Sua religião é o medo... Assustado com o frio, com a velhice, o conde teceu uma camisola de fé...
– E o que mais? — perguntou-me Kazántsev, balançando a cabeça de pássaro.
Adormecemos ao lado de nossas camas. Sonhei com Katia, uma lavadeira de quarenta anos que morava no andar de baixo. De manhã, pegávamos água quente com ela. Não tive tempo de enxergar claramente o seu rosto, mas Deus sabe o que eu e Katia fazíamos no sonho. Exauríamos um ao outro com beijos. Não me abstive de passar em sua casa na manhã seguinte em busca de água quente.
Fui recebido por uma mulher definhada, enrolada num xale, com as madeixas grisalhas despenteadas e as mãos úmidas.

A partir de então, passei a tomar o café da manha na casa dos Bendiérski todos os dias. Em nossa mansarda apareceram um fogão novo, arenque e chocolate. Raíssa levou-me às ilhas duas vezes. Eu não me contive, e contei a ela sobre minha infância. Para minha própria surpresa, a história saiu sombria. Sob o gorro de pele de toupeira, olhos brilhantes e assustados olhavam para mim. A tez ruiva dos cílios tremia melancolicamente
Conheci o marido de Raíssa, um judeu de cara amarela com uma cabeça calva e um corpo forte e delgado, que parecia inclinar-se, precipitando-se para o voo. Corriam rumores sobre sua proximidade com Rasputin. Os lucros obtidos por ele com suprimentos de guerra deram-lhe a aparência de um endemoniado. Seus olhos vagavam, o tecido da realidade tinha se rompido para ele. Raíssa ficava confusa ao apresentar novas pessoas a seu marido. Em razão de minha juventude, percebi isso uma semana depois de ocorrido.
Depois do Ano Novo, chegaram à casa de Raissa suas duas irmãs de Kíev. Um dia levei o manuscrito de “A confissão”, mas como não encontrei Raíssa, voltei à noite. Estavam ceando na sala de jantar. De lá vinha um relincho argênteo e um ruído surdo de vozes masculinas excessivamente alegres. Na casa de ricos sem tradições, as refeições são barulhentas. O barulho era judaico, com estrondos e desfechos melodiosos. Raíssa me recebeu num vestido de baile, com as costas nuas. Os pés, em sapatinhos laqueados e inseguros, pisavam desajeitados.
— Estou bêbada, querido — e ela me estendeu os braços cobertos de correntes de platina e estrelas de esmeraldas.
Seu corpo balançava como o de uma cobra erguendo-se para o teto ao som de uma música. Ela balançava a cabeça ondulada, tilintando os anéis, e de repente caiu numa poltrona com entalho russo antigo. Em suas costas empoadas ardiam cicatrizes.
Atrás da parede explodiu mais uma vez o riso feminino. Da sala de jantar saíram as irmãs de bigodinhos, tão peitudas e altas quanto Raíssa. Seus seios estavam projetados para a frente, os cabelos negros esvoaçados. Ambas eram casadas com seus próprios Bendiérskis. A sala ficou cheia daquela alegria feminina inconsequente, da alegria de mulheres maduras. Os maridos agasalharam as irmãs com casacos de pele de lontra e xales de Orenburg e calçaram-nas com botas negras; sob a viseira de neve dos xales ficaram apenas as bochechas ardentes e coradas, os narizes de mármore e os olhos de brilho semítico e míope. Depois de fazer barulho, eles saíram para o teatro, onde era apresentada “Judith”, com Chaliápin.

– Eu quero trabalhar — balbuciou Raíssa, estendendo os braços nus —, perdemos uma semana inteira...
Ela trouxe uma garrafa e duas taças da sala de jantar. Seus seios repousavam livremente no saco de seda do vestido; os mamilos estavam eretos, cobertos pela seda.
– Reserva especial — disse Raíssa, servindo o vinho —, um moscatel de mil oitocentos e oitenta e três. Meu marido vai me matar quando souber...
Eu nunca experimentara um moscatel de mil oitocentos e oitenta e três, nem imaginara beber três taças, uma após a outra. Eles me levaram de imediato para vielas onde tremulava uma chama alaranjada e ouvia-se música.
– Estou bêbada, querido... O que temos hoje?
– Hoje temos “L’aveu”...
– Pois bem, “A confissão”. O sol é o herói desse conto, le soleil de France... Gotas derretidas de sol, ao caírem sobre a ruiva Celeste, transformaram-se em sardas. O sol polia com seus raios íngremes, vinho e sidra a cara do cocheiro Polyte. Duas vezes por semana, Celeste ia à cidade vender creme, ovos e galinhas. Por viagem, ela pagava a Polyte dez tostões por si e quatro pela cesta. E a cada viagem, Polyte dava piscadelas e indagava a ruiva Celeste: “Quando vamos nos divertir, ma belle?”.  “O que quer dizer isso, monsieur Polyte?” Saltitando na boleia, o cocheiro explicou: “Mas que diabo, ‘divertir-se’ quer dizer ‘divertir-se’... Um rapaz e uma moça não precisam de musica...”. “Eu não gosto dessas brincadeiras, monsieur Polyte” — respondeu Celeste e afastou do rapaz as suas saias, que estavam em desalinho sobre as panturrilhas poderosas com meias vermelhas. Mas o diabo do Polyte gargalhava e tossia: “Um dia vamos nos divertir, ma belle”. E lágrimas felizes rolavam em seu rosto cor de sangue, tijolo e vinho.
Eu bebi mais uma taça do moscatel especial. Raíssa brindou comigo.
A criada de olhos petrificados passou pela sala e desapareceu.
Ce diable de Polyte... Em dois anos, Celeste havia pagado quarenta e oito francos. Eram cinquenta francos menos dois. Ao final dos dois anos, quando eles estavam sozinhos na diligência e Polyte, que tinha tomado sidra antes da partida, perguntou como de costume: “Que tal nos divertirmos hoje, mademoiselle Celeste?”, ela respondeu de olhos baixos: “Estou a seu dispor, monsieur Polyte...”.
Raíssa desabou sobre a mesa com uma gargalhada. Esse diabo do Polyte...
A diligência foi atrelada a um pangaré branco. O animal de lábios rosados por causa da velhice foi a passo. O sol alegre da França cercou o veículo protegido do mundo por uma capota desbotada. Um rapaz e uma moça; eles não precisavam de música...

Raissa estendeu-me a taça. Era a quinta.
Mon vieux, a Maupassant...
Que tal nos divertirmos hoje, ma belle...?
Eu me estiquei para Raissa e beijei seus lábios. Eles ficaram trêmulos e inchados.
– O senhor é divertido — murmurou Raíssa entre lábios e recuou.
Ela se encostou na parede, com os braços nus estirados. Pintas brilharam em seus braços e ombros. De todos os deuses crucificados, esse era o mais sedutor.
– Tenha a bondade de sentar-se, monsieur Polyte...
Ela me indicou uma poltrona azul reclinada, feita ao estilo eslavo. Seu encosto era um entrelaçamento de madeira esculpida com pontas pintadas. Caminhei até lá, tropeçando.
A noite pôs diante da minha juventude faminta uma garrafa de moscatel de mil oitocentos oitenta e três e vinte e nove livros, vinte e nove petardos recheados de piedade, espírito, paixão... Eu dei um salto, derrubei a mesa, esbarrei na estante. Os vinte e nove volumes desabaram sobre o tapete; suas páginas se espalharam, eles ficaram virados... e o pangaré branco do meu destino foi a passo.
– O senhor é divertido — rugiu Raíssa.
Saí da casa de granito no Moika depois das onze horas, antes que as irmãs e o marido voltassem do teatro. Eu estava sóbrio e poderia andar sobre uma tábua, mas era bem melhor cambalear; e eu balançava de um lado para outro, cantando numa língua inventada só por mim. Nos tuneis das ruas contornadas por uma cadeia de lampiões, os vapores da neblina vagavam em ondas. Monstros urravam atrás das paredes em ebulição As calçadas decepavam as pernas que seguiam por elas.
Em casa, dormia Kazántsev. Dormia sentado, com as pernas magra: esticadas em botas de feltro. Adormecera junto ao fogão, inclinado sobre o Dom Quixote, uma edição de 1624. No titulo desse livro havia um: dedicatória ao duque de Broglio. Eu me deitei em silêncio para não acordar Kazántsev, aproximei a lâmpada e comecei a ler o livro de Édouard de Maynial Sobre a vida e a obra de Guy de Maupassant.
Os lábios de Kazántsev se mexiam, sua cabeça pendia.

E naquela noite eu soube por Edouard de Maynial que Maupassant nascera em 1850, filho de um fidalgo da Normandia e de Laure de Poittevin, prima de Flaubert. Aos vinte anos teve seu primeiro ataque de sífilis hereditária. A criatividade e o entusiasmo que tinha em si resistiram a doença. No inicio sofreu dores de cabeça e acessos de hipocondria. Depois o fantasma da cegueira apareceu diante dele. Sua vista enfraqueceu. Ele desenvolveu uma mania de desconfiança, insociabilidade e trapaça. Lutou furiosamente, desvairou-se pelo Mar Mediterrâneo, foi a Túnis, ao Marrocos e a África Central; e escrevia sem cessar. Depois de alcançar a fama, cortou a garganta aos quarenta anos de idade, esvaiu-se em sangue, mas ficou vivo. Foi internado num hospício. Ali ele andava engatinhando... O ultimo relatório em sua triste ficha diz:
“Monsieur de Maupassant va s’animaliser.” (“O senhor Maupassant transformou-se num animal.”) Ele morreu aos quarenta e dois anos. Sua mãe sobreviveu a ele.
Li o livro ate o fim e levantei da cama. A nevoa se aproximou da janela e cobriu o mundo. Meu coração ficou apertado. Um pressagio da verdade me roçou



segunda-feira, 20 de junho de 2016

94 – A célebre rã saltadora do Condado de Calaveras – M.Twain

Samuel Langhorne Clemens (1835-1910) conhecido mundialmente como Mark Twain, nasceu e viveu no Missouri onde se inspirou para desenvolver o cenário de seus grandes romances Huckleberry Finn e Tom Sawyer, e onde ele ouviu a estória que deu origem a este conto, que é um dos contos mais geniais que tive o prazer de ler e reler.

A célebre rã saltadora do Condado de Calaveras
Mark Twain
Atendendo ao pedido de um amigo, que me escrevera de Leste, fui visitar Simão Wheeler, bom homem, sem outro defeito que urna grande loquacidade. Ia pedir-lhe notícias de um tal Leônidas W. Smiley, amigo de meu amigo, como este me recomendara. Cumprida a missão, venho relatar aqui o resultado da visita. Tenho uma vaga desconfiança de que Leônidas W. Smiley não passa de um mito e de que meu amigo não o conheceu senão em pensamento. Penso que ele tenha feito apenas conjeturas, pois falando ao velho Simão Wheeler, este naturalmente se lembraria do infame Jim Smiley, aborrecendo-me com alguma incrível reminiscência dele, não somente longa e fastidiosa, como também inútil para mim. Se foi essa a intenção, não há dúvida de que foi bem sucedido.


Encontrei Simão Wheeler dormindo confortavelmente, junto ao fogão da sala comum, numa velha e arruinada taverna do antigo campo mineiro do Anjo. Observei que ele era gordo e calvo, possuindo uma expressão de urbanidade insinuante e de simplicidade tranquila na fisionomia. Levantou-se e me deu os bons dias. Disse-lhe então que um dos meus amigos me encarregara de lhe fazer algumas perguntas acerca de um querido companheiro de infância chamado Leônidas W. Smiley — o Reverendo. Leônidas W. Smiley, jovem ministro evangélico que, segundo ele ouvira dizer, residira durante algum tempo no campo do Anjo. Acrescentei que se Mr. Wheeler me pudesse dizer alguma coisa sobre ele, os meus agradecimentos e os do meu amigo seriam eternos.


Simão Wheeler colocou-me de costas a um canto da sala e ali me bloqueou com uma cadeira; fez-me então sentar e desenrolou a monótona história que se vai ouvir. Simão Wheeler não sorriu nem se alterou uma única vez; manteve, até o fim, o mesmo tom de voz manso e fluente com que iniciou a narrativa. No entanto, através do interminável raconto, transparecia a seriedade com que ele encarava o assunto. Pude convencer-me de que, longe de ver qualquer coisa de ridículo na sua história, ele a considerava como realmente importante, e admirava os seus dois heróis como homens geniais, sobretudo, quanto à delicadeza de maneiras. Para mim, o espetáculo de um homem deslizando tão serenamente em meio a tão extravagante enredo, sem sorrir uma vez sequer, era perfeitamente absurdo. Como já disse, pedi-lhe que me informasse o que sabia a respeito do Reverendo Leônidas W. Smiley. Deixei-o falar, sem interrompê-lo uma única vez:


Havia aqui um indivíduo conhecido pelo nome de Jim Smiley, no inverno de 1849 — ou talvez na primavera de 50 — não posso recordar exatamente, pois o que me faz crer numa ou noutra data é a lembrança de que o grande canal ainda não estava concluído quando ele apareceu pela primeira vez. Mas, em 49 ou 50, o fato é que ele era o homem mais notável que se pode imaginar. A propósito de qualquer coisa, estava sempre disposto a fazer uma aposta. Era a sua mania. Se não podia levar o adversário para o lado contrário, mudava de opinião. O que ele queria era apostar. Tinha sorte extraordinária: ganhava sempre. Não se podia falar no objeto mais isolado sem que o tal camarada logo sugerisse uma apostazinha, pró ou contra. Se se tratava de uma corrida de cavalos o nosso homem enriquecia ou ficava a nenhum. Se era de luta de cães, apostava; se uma briga de galos, apostava; se estavam dois pássaros pousados numa árvore, queria logo apostar qual dos dois voaria primeiro; se havia reunião no campo era certo apresentar-se a apostar pelo Cura Walker, que ele afirmava ser o melhor pregador da redondeza. Se visse uma barata encaminhar-se para qualquer parte, queria logo apostar para saber quanto tempo ela levaria para chegar ao ponto do seu destino, e se pegassem na sua palavra iria atrás da barata até o México, sem pensar na distância ou no tempo que iria perder.


Ainda vivem inúmeras pessoas que o conheceram e que lhe poderão contar muitos casos sobre ele. O fato é que ninguém jamais notou a mínima diferença no seu estado de ânimo: estava sempre pronto a fazer uma aposta. Uma vez a mulher do Cura Walker esteve muito doente e parecia que não se salvaria. Certa manhã este veio ao campo e Smiley perguntou-lhe por ela. Respondeu-lhe o cura que ela estava consideravelmente melhor — graças à infinita misericórdia do Senhor e que se sentia já tão forte que, com o fervor da Providência, em breve estaria completamente restabelecida. Smiley, sem pensar no que dizia, retrucou-lhe: "Aposto o que quiser como ela não vai melhorar!"


Este mesmo Smiley possuía uma égua a que os rapazes — por brincadeira, está claro — chamavam "Lerdona". A verdade é que ele ganhava seus bons cobres com ela, apesar da sua lerdice e das suas doenças, pois estava sempre. com asma, disenteria, tísica ou qualquer outra coisa parecida. Nas corridas costumavam dar-lhe cem, duzentos ou trezentos metros de vantagem e assim mesmo passavam-lhe adiante sem dificuldade. Mas no fim da carreira ela sempre se excitava, enfurecendo-se e o resultado é que chegava — à custa de coices, corcoveios, de muita poeira levantada e muitos rinchos e roncos — à meta quase sempre em primeiro lugar e pela diferença exatamente de uma cabeça.


Smiley possuía, também, um pequeno "bull-dog" tão insignificante que ao vê-lo não se podia imaginar valesse coisa alguma. Chegava mesmo a parecer um cão que vivia a vaguear à espera de uma oportunidade para roubar qualquer coisa. Bastava, porém, haver dinheiro em lance para que o cão se tomasse outro. O queixo alongava-se como o castelo de proa de um vapor, os dentes brilhantes, ferozes e unidos como as muralhas de uma fortaleza. Qualquer cão podia agarrá-lo e mordê-lo à vontade, girando-o para todos os lados, até pô-lo. em fuga. Andrew Jackson — assim se chamava o "bull-dog" — mantinha-se firme, sem denotar surpresa alguma, até que as apostas se desdobrassem ou multiplicassem. Quando já não havia mais dinheiro para ser jogado, ele, num salto imprevisto, agarrava o adversário pela junta da pata direita e, fincando-lhe os dentes, suspendia-o como que por brincadeira, assim permanecendo, se fosse preciso, um ano inteiro. Smiley ganhava sempre com ele. Um dia, porém, trouxeram um cão que não possuía a pata direita. Quando as coisas estavam no ponto desejado e em apostas todo o dinheiro que havia, Andrew Jackson atirou-se ao ponto predileto, mas viu, num relance, que fora logrado. Parou surpreendido e desorientado, sem fazer o menor esforço para vencer. Dirigiu a Smiley um olhar cheio de lástima, como que para lhe dizer que o seu coração estava partido e que o culpado era ele, por ter colocado à sua frente um adversário sem pata direita. Soltou, depois, um longo e angustiado gemido e, estendendo-se no chão, ali soltou o último suspiro. Era um excelente cachorro o tal Andrew Jackson. Prometia vir a ter um grande nome se vivesse, pois possuía estofo para tanto. Era genial, não há dúvida; as circunstâncias é que não o favoreceram. Concordareis comigo que se requer grande talento para lutar da maneira como ele fazia. Ainda fico triste quando me lembro do seu último combate e do modo como ele terminou. Continuemos, porém.


O tal Smiley possuía galos de briga, gatos bravos e tudo o mais que se pode imaginar no gênero. Ninguém podia permanecer quieto perto dele, pois não era possível apresentar-lhe nenhum objeto de aposta que ele não tivesse logo outro para opor.


Um dia Smiley apanhou uma rã e levando-a para casa nos disse que ia domesticá-la. Durante três meses não fez outra coisa senão ensiná-la a saltar. Dava-lhe. uma pancadinha atrás e logo em seguida via-se a rã dar uma ou duas voltas no ar, segundo o impulso recebido, indo cair lá adiante, sobre as patas, como um gato. Exercitou-a na arte de apanhar moscas e fez desse exercício uma prática tão constante que as moscas, por mais longe que passassem, eram logo abocanhadas. Smiley costumava dizer que às rãs faltava somente a educação e que, uma vez educadas, seria possível fazer com elas o que bem quiséssemos. Não uma, mas inúmeras vezes vi Daniel Webster — era o nome da rã — exibir as suas habilidades. Smiley dizia-lhe:


— Moscas, Daniel. moscas!


Num abrir e fechar de olhos Daniel dava um pulo, apanhava 11 moscas, e punha-se a coçar a cabeça com uma das pernas traseiras, como se não tivesse a menor ideia de ter realizado uma proeza superior a qualquer outra rã. Não há memória de se ter visto rã tão modesta e simples, levando-se em conta, está claro, os extraordinários dotes do que ela era dotada. Quando se tratava de avançar em terreno plano, dava pulos de que nenhum outro animal da sua espécie seria capaz. O salto para a frente constituía o seu forte. Neste caso Smiley apostava nela todo o dinheiro que possuía no momento. Tinha um monstruoso orgulho da sua rã, e nada mais razoável do que isso, porque pessoas que tinham viajado e visto inúmeras coisas, ao chegarem ali, ficavam boquiabertas.


Smiley guardava a rã numa gaiola e frequentemente a levava à cidade para apostas.


Um dia, um indivíduo — estranho ao lugar — vendo-o com a gaiola perguntou-lhe:


— Que diabo levas aí?


Smiley respondeu-lhe, com grande indiferença:


— Isto podia ser um papagaio ou um canário, mas não é; é simplesmente uma rã.


O outro pegou na gaiola, olhando-a por todos os lados atentamente e depois lhe disse:


— É verdade! E para que serve esse animal?


— Para que serve? Para muitas coisas. Pode bater, no salto, toda e qualquer rã do condado de Calaveras.


O outro torna a pegar na gaiola, examina-a com todo o cuidado e, restituindo-a ao dono, exclama com ar decidido:


— Já vi! E não creio que esta rã seja melhor ou pior de que qualquer outra.


— É possível, — respondeu Smiley. — Talvez o senhor entenda muito do assunto, ou talvez não entenda nada. Tenho, porém, minha opinião e aposto quarenta dólares em como esta rã será capaz de bater, no salto, qualquer outra rã do condado de Calaveras.


O outro esteve a meditar um instante depois disse com ar de tristeza:


– Pois bem: sou estrangeiro e não trago comigo nenhuma rã. Mas se tivesse uma aceitaria a aposta.


— Tudo se arranja, tudo se arranja, respondeu Smiley. Se quiser segurar a gaiola por um instante, irei buscar-lhe uma rã.

O estrangeiro toma a gaiola, coloca seus quarenta dólares sobre os de Smiley e senta-se, para esperar.


Como Smiley tardasse, teve tempo para pensar sobre o caso. E imagine do que foi ele se lembrar!... Agarrou Daniel, abriu-lhe a boca com uma colher de chá, encheu-lhe o bucho de chumbo e, depois de enchê-la bem, colocou-a novamente no chão. Smiley, durante esse tempo, esteve a patinhar no charco, até que por fim conseguiu apanhar uma rã, trazendo-a ao seu adversário:


— Agora, se está pronto coloque-a ao lado de Daniel, com os pés dianteiros na mesma linha. Eu darei o sinal.

Em seguida, gritou:


— Um, dois, três — salta. — E tanto Smiley como o estrangeiro tocaram, cada um, sua rã, para dar-lhes o impulso inicial. A nova rã saltou vivamente, mas Daniel limitou-se a soltar um gemido e, por mais esforços que fizesse, não conseguiu sair do lugar. Não podia mover-se. Estava cravada na terra mais solidamente do que uma catedral. Era como se estivesse ancorada. Smiley estava surpreendido e desgostoso, mas não desconfiava de coisa alguma.


O estrangeiro apanhou o dinheiro e preparou-se para ir embora, mas ao partir, com um ar impertinente, ainda murmurou:


— Não vejo no que esta rã é melhor do que as outras.


Smiley permaneceu um tempão a coçar a cabeça, com os olhos fitos em Daniel, até que por fim disse:


— Não posso explicar como diabo é que esta rã se recusa a saltar... A não ser que tenha alguma coisa... Doente, não está... Parece isto sim, mais gorda...


Agarra, então, Daniel, pela pele do pescoço e ao levantá-la exclama:

— Os diabos me levem se ela não pesa cinco libras...


Voltou-a de cabeça para baixo e a infeliz vomitou duas mãos cheias de chumbo. Quando Smiley percebeu o que sucedera, ficou como louco. Pôs a rã no chão e desatou a correr à. procura do estrangeiro mas não pôde alcançá-la. E...


Neste ponto da sua narrativa, Simão Wheeler ouviu que o chamavam e foi ver quem era. Antes disso, porém, voltou-se para mim, dizendo:

— Espere-me um instante, que não tardarei...


Mas, com licença de quem me ouve, não me pareceu que o resto da história de Jim Smiley pudesse trazer algum discernimento a respeito do Reverendo Leônidas W. Smiley e por isso tratei, também, de sair.


À porta, encontro o amável Simão Wheeler, que, segurando-me pelo braço, recomeçou:


— Pois este Smiley possuía uma vaca amarela, muito gorda, cega de um olho e sem rabo, isto é...



— Oh! Mande Smiley e sua vaca amarela para o inferno - resmunguei eu. E, desejando-lhes boas tardes parti.