quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

101 – Páginas de Cold Point – P. Bowles

Páginas de Cold Point
Paul Bowles
Nossa civilização está condenada a uma vida curta: suas partes constituintes são excessivamente heterogêneas. Pessoalmente, sinto- me satisfeito por ver tudo em processo de decadência. Quanto maiores as bombas, mais rápido este processo será cumprido. A vida repugna demais aos olhos para que alguém se esforce em preservá-la. Deixe-a ir. Talvez algum dia uma outra forma de vida apareça. De qualquer modo, não faz diferença. Ao mesmo tempo, eu ainda sou uma parte da vida, e por isso estou condicionado a me proteger de todas as formas possíveis. E assim estou aqui. Aqui nas Ilhas, a vegetação ainda tem a preponderância, e o homem precisa lutar, nem que seja apenas para fazer notada sua presença. Aqui é maravilhoso, os ventos alísios sopram o ano inteiro, e desconfio ser muito improvável que desperdicem bombas em uma parte tão pouco frequentada da ilha, e mesmo em qualquer parte dela.
Eu estava relutante em desistir da casa após a morte de Hope. Mas era a atitude mais óbvia. Uma vez que minha carreira universitária era uma rematada farsa (pois não acredito que possam ser válidas quaisquer das razões que levam um homem a “ensinar”), fiquei eufórico com a ideia de me demitir, e logo que os negócios dela foram resolvidos e o dinheiro aplicado de modo conveniente, eu não hesitei um minuto em me exonerar.
Acho que aquela semana foi a primeira vez, desde a infância, que consegui recobrar o sentimento de haver algum contentamento na existência. Passei por todas aquelas lindas casas me despedindo dos impostores da Língua Inglesa, dos faquires da Filosofia, e de todos os demais — mesmo dos colegas que eu apenas cumprimentava de passagem. Eu via a inveja nos seus rostos quando anunciava que ia partir pela Pan American no sábado de manhã; e o maior prazer que sentia nisso tudo vinha de eu poder responder “Nada”, quando me perguntavam, e invariavelmente perguntavam, o que eu pretendia fazer.
Quando eu era garoto, as pessoas costumavam se referir a Charles como “O Irmão Mais Velho C.”, embora ele seja apenas um escasso ano mais velho que eu. Agora para mim ele é apenas “O Irmão Mais Gordo C.”, um advogado bem-sucedido. Suas mãos e sua cara, vermelhas e opulentas, sua jovialidade amistosa, e a insondável hipocrisia de seu puritanismo, estas as qualidades que o tornam realmente repulsivo para mim. Há também o fato de que houve um tempo em que ele não parecia diferente do jeito atual de Racky. E apesar de tudo ele ainda é meu irmão, e condena declaradamente tudo que eu faço. A aversão que sinto por ele e tão forte que durante anos eu era obrigado a fazer um esforço prodigioso para engolir uma garfada de comida ou uma gota de líquido na sua presença. Ninguém sabe disso, além de mim — naturalmente Charles o ignora, seria o ultimo a quem eu contaria. Ele veio no último trem, duas noites antes de eu partir. Foi direto ao assunto — logo que se calibrou com uma bebida forte.
– Então está de partida para o mundo das selvas - disse ele, sentando-se na ponta da cadeira como um vendedor.
– Se é que se pode chamar de selva — repliquei. — Sem dúvida não e tão selvagem quanto Mitichi. — Ele tinha uma casa de campo no norte do Quebec. — Na verdade, considero o local civilizado.
Ele bebeu e estalou os lábios com firmeza, baixando o copo com certa força até bater no joelho.
– E Racky. Vai levá-lo também?
– Claro.
– Fora da escola. Longe. Ninguém para ver senão você. Você acha isso bom?
Olhei para ele e disse:
– Acho.
– Meu Deus, se eu pudesse impedir você legalmente, eu impediria! - Gritou, ficando de pé e pondo seu copo no porta-copos.
Eu tremia de excitação por dentro, mas fiquei apenas ali parado, olhando para ele. Prosseguiu:
– Você não está apto a exercer a custódia da criança! - Gritou. Fuzilou-me com um olhar severo por cima dos óculos.
– Você acha que não? - Eu perguntei delicadamente.
De novo, lançou em mim um olhar penetrante.
– Acha que eu esqueci?
Eu estava compreensivelmente ansioso em ver meu irmão fora da minha casa o mais cedo possível. Enquanto empilhava e escolhia cartas e revistas na escrivaninha, eu disse:
– Isso é tudo o que veio me dizer? Tenho muita coisa para fazer amanhã e preciso dormir um pouco mais. Não é provável que eu encontre você no café da manhã. Agnes vai cuidar para que você possa comer a tempo de pegar o primeiro trem.
Tudo que ele disse foi:
– Meu Deus! Acorde! Veja o que está fazendo! Você não está enganando ninguém, e sabe disso.
Esta espécie de conversa é típica do Charles. Sua mente é lenta e obtusa; constantemente imagina que todas as pessoas que encontra pretendem envolvê-lo nas trapaças de algum tipo de joguinho privado. Ele é tão completamente incapaz de seguir o funcionamento mesmo de um intelecto moderadamente desenvolvido que descobre intenções de duplicidade e segredo em toda parte.
– Não tenho tempo para ouvir estes absurdos - disse eu preparando-me para sair do quarto.
Mas ele gritou:
– Você não quer ouvir! Não! É claro que não! Você só quer fazer o que quer fazer. Você só quer ir lá para não sei onde e viver como bem entende, e as consequências que vão para o inferno!
Nesta altura, ouvi Racky descendo a escada. C., naturalmente, nada ouviu e continuou a vociferar:
– Mas lembre-se, tenho a sua ficha direitinho, e se houver qualquer problema com o garoto eu vou saber de quem é a culpa.
Atravessei o quarto às pressas e abri a porta de modo que ele pudesse ver que Racky estava ali do lado. Isso fez parar sua diatribe. Era difícil saber se Racky ouvira alguma coisa ou não. Embora não seja um jovem muito quieto, é a alma da discrição, e quase nunca é possível saber o que se passa na sua cabeça, senão aquilo que ele permite que os outros saibam.
Eu estava aborrecido por C. ter gritado comigo na minha própria casa. Na verdade, ele é o único de quem eu aceitaria tal comportamento, mas pai algum gosta que seu filho o veja ser criticado sem reação. Racky simplesmente ficou ali de pé no seu robe de banho, sua cara de anjo desprovida de expressão, e falou:
– Diga boa-noite ao tio Charles por mim, está bem? Eu esqueci.
Eu respondi que sim e fechei a porta depressa. Quando achei que Racky já estava de volta ao seu quarto, dei boa-noite a Charles. Nunca fui capaz de me livrar de sua presença rápido como eu desejava. O poder que exercia sobre mim data de um período antigo de nossas vidas, de dias que me desagradam lembrar.

Racky é um garoto maravilhoso. Depois que chegamos, quando concluímos ser impossível obter uma casa adequada, próxima de alguma cidade onde ele pudesse ter a companhia de meninos e meninas ingleses da sua faixa de idade, ele não demonstrou qualquer magoa, embora deva ter ficado desapontado. Em lugar disso, ao sair do escritório da empresa imobiliária para a rua ensolarada, ele forçou um e disse:
– Bom, acho que vamos precisar de bicicletas, só isso.
As poucas casas disponíveis perto do que Charles chamaria “civilização” provaram ser tão feias e com uma atmosfera de prisão tão insuportável que decidimos de imediato ficar em Cold Point, muito embora ficasse no extremo da ilha e bastante isolado com seus penhascos a beira-mar. Não havia duvida de ser uma das propriedades mais desejáveis da ilha, e Racky estava tão entusiasmado quanto eu com seus esplendores.
– Você vai ficar cansado de morar sozinho lá, só comigo — disse eu enquanto andávamos de volta para o hotel.
– Ah, eu vou me dar muito bem. Quando vamos comprar as bicicletas?
Sob tal insistência, compramos duas na manhã seguinte. Eu tinha certeza de não poder usar muito a minha, mas ponderei que ter uma bicicleta extra na casa podia ser conveniente. Vim a constatar que os criados todos possuíam bicicletas, sem as quais não poderiam ir e vir da aldeia de Orange Walk, a treze quilômetros pela costa. Assim, por certo tempo, todas as manhãs antes do café, me vi obrigado a pedalar furiosamente minha bicicleta ao lado de Racky durante meia hora. Dávamos um passeio pelo ar frio da manhã, sob as paineiras altas como torres perto da casa, e íamos até a grande curva que há na linha do litoral, no ponto onde as palmeiras oscilantes curvam-se para a terra sob a brisa persistente que lá bate sempre. Depois fazíamos uma grande curva e retornávamos em alta velocidade, debatendo aos brados a intensidade de nosso desejo pelos vários itens do café da manhã que sabíamos estar a nossa espera no terraço. Em casa, comíamos sob o vento, olhando de lá para o mar das Caraíbas, e conversávamos sobre as notícias do jornal local do dia anterior, trazido todas as manhãs de Orange Walk por Isiah. Depois, Racky desaparecia em sua bicicleta a manhã inteira, pedalando ferozmente pela estrada, em uma ou outra direção, até descobrir uma faixa de areia não notada até então, ao longo da costa, que passava a considerar como uma nova praia. No almoço, ele me descrevia isso em detalhes, acompanhado de um relato das vicissitudes físicas decorrentes de pedalar a bicicleta por entre as árvores, de modo que os nativos caminhando descalços pela estrada não o pudessem identificar, ou de escalar penhascos inacessíveis que provavam ser bem mais altos do que pareciam à primeira vista, ou de medir a profundidade da água antes de mergulhar saltando das rochas, ou de julgar a eficiência dos recifes para barrar a passagem dos tubarões e barracudas. Jamais havia qualquer componente de fanfarronice nos relatos de Racky — apenas a alegre excitação que experimentava por contar de que modo satisfazia sua inesgotável curiosidade. E sua mente mostrava-se alerta em todas as direções ao mesmo tempo. Não quero sugerir que eu alimentasse a expectativa de ele se tornar um “intelectual”. Isso não é da minha conta, e não estou particularmente preocupado em vir ele a ser ou não um homem de ideias. Sei que sempre terá certa ousadia na sua conduta e uma grande pureza de espirito em julgar valores. A primeira virtude ira preservá-lo de ser transformado no que eu chamo de “vitima”: nunca será brutalizado pelos fatos. Seu seguro senso de justiça nas considerações éticas ira protegê-lo do efeito paralisante do materialismo contemporâneo.
Para um garoto de dezesseis anos, Racky é dotado de uma extraordinária inocência de visão. Não digo isto como um pai abobalhado de amor pelo filho, embora Deus saiba que não posso sequer pensar no menino sem experimentar uma avassaladora sensação familiar de regozijo e gratidão por me ser concedido o privilégio de partilhar minha vida com ele. Nossa vida aqui juntos, que ele encara com a mais completa naturalidade, constitui para mim uma fonte inesgotável de maravilhas; e reflito sobre isto uma boa parte dos dias, apenas sentado e consciente de minha grande ventura em possuí-lo só para mim, fora do alcance de olhares curiosos e línguas malévolas. (Suponho que pense na verdade em C. quando escrevo isto.) E creio que parte do encanto de compartilhar a vida de Racky deriva justamente dele considerar isto tudo absolutamente normal. Nunca lhe perguntei se gosta daqui - é obvio demais que gosta. Acho que se um dia ele virar para mim e disser que se sente muito feliz, talvez esse encanto possa até de algum modo ser quebrado. Mesmo assim, se ele se mostrasse desatencioso e inconsiderado, ou mesmo indelicado comigo, sinto que isto só me faria amá-lo ainda mais.
Reli a ultima frase. O que significa? E por que eu imaginaria que pudesse significar mais do que afirma?
Ainda assim, por mais que eu tente, não posso acreditar no fato isolado, gratuito. O que devo estar sugerindo é que sinto que Racky de algum modo já se mostrou desatento. Mas de que modo? Sem duvida não posso ressentir-me de seus longos passeios de bicicleta; não posso pretender que fique sentado conversando comigo o dia inteiro. E nunca me preocupo se ele está enfrentando alguma situação perigosa; sei que sabe se cuidar melhor do que a maioria dos adultos, e que tem as mesmas chances que qualquer nativo de se ferir escalando os penhascos ou nadando na enseadas. Ao mesmo tempo, não existe a menor duvida em minha mente de que algo a respeito de nossa vida me incomoda, Devo ressentir-me de algum detalhe no esquema todo, seja qual for o esquema. Talvez seja apenas sua juventude, e eu tenho inveja de seu corpo ágil, de sua pele lisa, de sua graça e energia de animal.

Por um longo tempo esta manhã, fiquei observando o mar, tentando solucionar este pequeno quebra-cabeça. Duas garças brancas vieram e se empoleiraram num toco de árvore morta no lado leste do jardim, Ficaram ali um longo tempo sem se mover. Eu virava a cabeça para outra direção e esperava meus olhos se acostumarem ao brilho do mar no horizonte, e então de repente voltava a olhar para elas, para ver se haviam mudado de posição, mas permaneciam sempre na mesma atitude. Eu tentei imaginar o toco preto sem as garças — uma paisagem puramente vegetal — mas era impossível. Enquanto isso, lentamente me forcava a aceitar uma ridícula explicação para minha inquietação com Racky. Apenas ontem ela me veio a mente, quando, em lugar de vir almoçar, Racky enviou um garoto negro de Orange Walk com o recado de que ia almoçar na aldeia. Não pude deixar de notar que o menino usava a bicicleta de Racky. Eu o havia esperado para almoçar uma boa meia hora, e fiz Gloria servir a comida imediatamente apos o menino ir embora de volta a aldeia. Fiquei curioso em saber em que tipo de lugar e com quem Racky estaria almoçando, pois Orange Walk, até onde eu saiba, é habitada apenas por negros, e eu tinha certeza de que Gloria poderia lançar alguma luz na questão, mas eu mal pude perguntar a ela. No entanto, ao trazer a sobremesa. falei:
- Quem é o garoto que trouxe o recado do senhor Racky? Ela ergueu os ombros.
— Um moleque de Orange Walk. Seu nome e Wilmot.
Quando Racky voltou, ao cair da noite, vermelho com o esforço do exercício (pois nunca anda de bicicleta só para se distrair), eu o observei atentamente. Sua conduta veio ferir minhas suspeitas, por manifestar um falso entusiasmo e um bom humor bastante forçado. Foi para seu quarto cedo e leu por algum tempo antes de apagar a luz. Eu dei uma boa caminhada sob o luar que iluminava como o dia, escutando a musica dos insetos noturnos nas árvores. Sentei um pouco no escuro, no parapeito de pedra na ponte sobre o Rio Negro. (Na verdade e só um córrego entre as rochas, que desce da montanha alguns quilômetros no interior da ilha, e vem desembocar na praia perto da casa.) A noite, seu ruído sempre sugere uma corrente mais volumosa que durante o dia. A musica da água contra as pedras acalmava meus nervos, embora achasse difícil entender por que eu precisava disso, a não ser que estivesse mesmo aborrecido por Racky não ter vindo almoçar. Mas se fosse verdade, seria absurdo, e sobretudo perigoso — exatamente o tipo de coisa contra a qual o pai de um adolescente deve sempre se prevenir, e resistir, a menos que seja indiferente a perspectiva de perder em definitivo a confiança e a afeição de seu rebento. Racky deve ficar fora de casa sempre que quiser, com quem quiser, e por quanto tempo quiser, e não devo hesitar a respeito disso, muito menos mencionar o assunto diante dele, ou de algum modo dar a impressão de estar me intrometendo. Falta de confiança é o pecado mortal, imperdoável, da parte de um pai.
Embora ainda tomemos juntos nosso banho de mar matutino, já faz três semanas que não andamos lado a lado de bicicleta na nossa corrida antes do café da manhã. Um dia, enquanto eu ainda nadava, vi que Racky tomava sua bicicleta com o calção molhado e partia sozinho. Desde então se estabeleceu uma espécie de acordo tácito entre nós, de que este passaria a ser o procedimento; ele iria sozinho. Talvez eu o retardasse; ele gosta de andar tão rápido na bicicleta.
O jovem Peter, o jardineiro sorridente que mora na enseada de Saint Ives, é o grande amigo de Racky. É divertido ver os dois juntos entre os arbustos, debruçados sobre um formigueiro, ou correndo na tentativa de pegar um lagarto, ambos quase na mesma idade, ainda que tão diferentes - Racky com sua pele corada parecendo branca em contraste com o negro brilhante da pele do outro. Hoje sei que vou almoçar sozinho, pois é o dia de folga de Peter. Nesses dias, eles geralmente vão de bicicleta para a enseada de Saint Ives, onde Peter tem um pequeno barco de remo. La, pescam ao longo da costa, embora nunca tenham voltado com nada até agora.
Enquanto isso fico aqui sozinho, sentado nas pedras sob o sol, de vez em quando descendo até a água para me refrescar, sempre consciente de que a casa está às minhas costas, por trás das altas palmeiras, como um grande barco de vidro repleto de orquídeas e lírios. Os criados são limpos e quietos, e o trabalho dá a impressão de ser executado quase automaticamente. Os bons criados negros parecem ser outra benção das ilhas; os britânicos, nascidos aqui neste paraíso, não tem ideia da sorte que desfrutam. Na verdade, só fazem reclamar. É preciso ter vivido nos Estados Unidos para apreciar a maravilha deste lugar. Apesar de tudo, mesmo aqui as ideias mudam todos os dias. Logo as pessoas resolverão que sua terra deve fazer parte do monstruoso mundo atual, e uma vez assim ocorra, tudo estará acabado. A partir do momento em que as pessoas tem este desejo, estão infectadas com um vírus mortal, e começam a mostrar sintomas da doença. Passam a viver nos termos do tempo e do dinheiro, e a pensar em termos de sociedade e progresso. Então tudo o que resta fazer é matar outras pessoas que pensam da mesma maneira, junto com muitas outras que não pensam assim, visto que está é a manifestação final da moléstia. Por enquanto, aqui se experimenta um sentimento de estagnação — a existência estanca, como nos últimos segundos da ampulheta quando o que sobrou da areia de repente escorre rápido para o fundo, de uma só vez. Por enquanto, tudo parece em suspenso. E se parece, é porque está. Cada onda no pé, cada pio de pássaro na floresta atrás de mim, não me arrasta um passo que seja na direção do desastre final. O desastre é certo, mas em um instante já terá ocorrido, e pronto. Até lá, o tempo permanece estático.

Estou aborrecido com uma carta que veio no correio desta manhã: o Banco Real do Canadá requisita minha presença no seu escritório central para assinar os bilhetes de depósito e outros papéis referentes a uma soma que foi transferida por cabograma do Banco de Boston. Como o escritório central fica no outro lado da ilha, a oitenta quilômetros daqui, serei obrigado a passar a noite lá e voltar no dia seguinte. Não há razão para levar Racky comigo. A vista da “civilização” pode despertar nele certos desejos; nunca se sabe. Tenho certeza de que os despertaria em mim, na idade dele. E uma vez que isso comece, seria apenas outro infeliz, pois nada há para ele senão ficar aqui ao meu lado, pelo menos durante os próximos dois anos, quando espero renovar o aluguel, ou, caso as coisas em Nova York se recuperem, comprar a propriedade. Estou enviando um recado pelo Isiah, quando for a Orange Walk está tarde, para que o carro de McCoigh venha me buscar amanhã as sete e meia da manhã. É um enorme e velho Packard aberto, e Isiah pode se eximir do cansaço da viagem de volta até o trabalho, pondo sua bicicleta no banco de trás e vindo ao lado de McCoigh.

A viagem através da ilha era uma beleza, e teria sido altamente prazerosa caso minha imaginação não me tivesse pregado uma estranha peça logo no início. Paramos em Orange Walk para reabastecer o carro, e enquanto isso era feito, fui até uma loja na esquina comprar cigarro. Como não eram ainda oito horas, a loja estava fechada, e então entrei numa rua lateral onde havia outra loja que podia estar aberta. Estava, e comprei meus cigarros. No caminho de volta para a esquina, notei uma grande mulher negra com os braços apoiados no portão diante de sua casinha, observando a rua. Quando passei por ela, olhou fixo para minha cara e disse alguma coisa com o estranho sotaque da ilha. O tom de voz parecia pouco amistoso, ostensivamente dirigido a mim, mas eu não tinha ideia do que era. Voltei para o carro e o motorista deu a partida. No entanto, o som das palavras permaneceu em minha mente, assim como uma silhueta brilhante recortada contra um fundo escuro perdura na retina, de tal modo que ao fechar os olhos ainda é possível ver o exato contorno da forma. O motor do carro já rugia na subida do morro que leva a estrada principal, quando de repente voltei a ouvir as palavras. Eram as seguintes:
— Faça seu garoto ficar em casa, moço.
Fiquei estático por um momento, ali sentado, enquanto os campos abertos passavam por mim. Por que pensar que ela havia dito isto? Imediatamente concluí que eu atribuíra arbitrariamente um sentido a uma frase que não poderia compreender ainda que estivesse com toda atenção concentrada nela. E então me pus a imaginar por que meu subconsciente teria escolhido este significado, pois agora que eu sussurrava as palavras para mim mesmo, elas não conseguiam se combinar com nenhuma das ansiedades às quais minha mente se mostrava inclinada. De fato, eu nunca pensara a respeito dos passeios de Racky em Orange Walk. Nao posso ver aí nada com que me preocupar, por mais que eu me apresente esta questão. Na verdade, será que ela realmente poderia ter dito aquelas palavras? Durante todo o trajeto pelas montanhas, meditei sobre o assunto, muito embora fosse apenas um desperdício de energia. E logo não conseguia mais ouvir o som da voz dela em minha memória: eu tocara e repetira o disco em excesso, e agora estava estragado.
Aqui no hotel está em curso um baile de gala, A abominável orquestra, compreendendo dois saxofones e um rançoso violino, toca no jardim bem embaixo de minha janela, e os casais de ar muito sério deslizam pelo concreto encerado do terraço, sob a luz de lampiões de papel amarrados em cordões. Suponho que se pretenda recriar uma atmosfera japonesa.
Neste momento tento imaginar o que Racky estará fazendo lá em nossa casa, sozinho com Peter e Ernest, o vigia, para lhe fazer companhia. Será que já esta dormindo? A casa, a qual me habituei a achar risonha e benfazeja no seu jeito arejado, até parece que se encontra na mais sinistra e remota região do planeta, agora que estou aqui. Sentado, com essa orquestra absurda balindo lá embaixo, visualizei a casa e me sinto chocado com sua vulnerabilidade e seu isolamento. Em minha mente, vejo o promontório iluminado pelo luar com as palmeiras altas oscilando sem parar no vento, seus penhascos escuros lambidos no fundo pelas ondas. Súbito, embora eu tente resistir a sensação, sinto-me inexprimivelmente feliz por estar longe de casa, lá desamparada, perdida naquele promontório, no silêncio da noite. Então me recordo que a noite raramente e silenciosa. Há o barulho do mar no pé das rochas, o zunido de milhares de insetos, os gritos ocasionais das aves noturnas — todos os ruídos familiares que tornam o sono tão profundo. E Racky está lá, cercado por eles como sempre, e sem sequer ouvi-los. Mas me sinto duramente culpado por deixá-lo lá, tornado por uma ternura e uma tristeza inexprimíveis ao pensar nele, deitado sozinho na casa com dois negros, os únicos seres humanos num raio de quilômetros. Se continuar pensando em Cold Point, vou ficar cada vez mais nervoso.
Ainda não vou deitar. Estão gritando e rindo lá embaixo, os idiotas; não ia conseguir dormir mesmo. O bar ainda está aberto. Por sorte fica no outro lado da rua, em frente ao hotel. Excepcionalmente, eu preciso de alguns drinques.

Já é bem mais tarde, mas não me sinto melhor; devo estar um pouco bêbado. O baile terminou e o jardim esta em silêncio, mas o quarto está quente demais.

Quando eu estava adormecendo, na noite passada, ainda vestido, e com a luz do teto sordidamente acesa na minha cara, ouvi a voz da mulher negra de novo, com ainda maior nitidez do que ontem no carro. Por alguma razão, está manhã, não há a menor duvida em minha mente de que as palavras que ouvi são as que ela de fato disse. Aceito o fato e tento prosseguir daí. Vamos supor que ela disse mesmo para eu manter Racky em casa. Só pode significar que ela, ou outra pessoa de Orange Walk, teve algum desentendimento infantil com ele; embora eu deva dizer que é difícil conceber que Racky pudesse entrar em algum tipo de atrito ou discussão com aquela gente. Para acalmar meu pensamento (pois sem duvida parece que tomei tudo isso muito a sério), vou dar uma parada na aldeia está tarde antes de ir para casa, e tentar achar a mulher. Estou extremamente curioso para saber o que ela quis dizer.

Até esta tarde, quando voltei para Cold Point, não havia me conscientizado de como são poderosos todos estes elementos físicos que criam a atmosfera característica do lugar: o barulho do mar e do vento que isola a casa da estrada, o brilho da água, do céu e do sol, as cores cintilantes e o forte aroma das flores, a sensação de espaço, tanto fora quanto dentro da casa. Quando se mora aqui, é fácil aceitar tudo isto. Esta tarde, ao voltar, retomei consciência destes elementos, de sua existência e de sua força. Todos juntos são como um poderoso entorpecente; voltar me fez sentir como se estivesse desintoxicado e retornasse ao cenário de minhas anteriores liberalidades. Agora, onze horas, é como se nunca tivesse me ausentado sequer por uma hora. Tudo é o mesmo que sempre foi, até o seco ramo de palmeira que resvala contra a tela da janela junto a minha mesa. E de fato, passaram-se apenas trinta e seis horas da ultima vez que estive aqui; mas eu sempre tenho a expectativa de que minha ausência provoque irremediáveis mudanças no lugar que eu deixei.
Por estranho que pareça, agora que penso nisso, sinto que algo mudou desde que parti ontem de manhã, e foi a atitude dos criados - sua aura coletiva, por assim dizer. Percebi esta diferença imediatamente ao chegar, mas fui incapaz de defini-lo. Agora entendo claramente. A rede de compreensão geral que lentamente se irradia por um ambiente doméstico bem administrado fora destruída. Agora cada um agia por si. No entanto, não havia hostilidade, ao menos que eu visse. Todos se conduziam com a máxima cortesia, talvez com a exceção de Peter, que me chocou pelo seu invulgar mau humor quando o encontrei na cozinha após o jantar. Quis perguntar a Racky se ele notara algo, mas esqueci e ele foi dormir cedo.
Em Orange Walk fiz uma breve parada oferecendo a McCoigh a desculpa de que precisava ver a costureira na rua lateral. Passei em frente à casa onde vira a mulher, mas não havia ninguém.
Quanto a minha ausência, Racky parece ter passado a contento, consumindo a maior parte do dia a nadar junto as pedras abaixo do terraço. O barulho dos insetos agora chegou a seu auge, a brisa está mais fria que de costume, e eu devo aproveitar estas condições favoráveis para uma boa noite de sono.

Hoje foi um dos dias mais difíceis de minha vida. Acordei cedo, tomamos café da manha na hora de sempre, e Racky partiu na direção da enseada de Saint Ives. Deitei no terraço para tomar sol por um tempo, ouvindo os ruídos da gestão domestica. Peter circulava por toda a propriedade, recolhendo folhas mortas e botões de flores tombados em uma cesta enorme, que descarregava numa pilha de esterco. Aparentava um estado de espirito ainda pior que na noite passada. Quando chegou perto de mim no seu trajeto para outra parte do jardim, eu o chamei. Pôs o cesto no chão e ficou me olhando: depois começou a andar pela grama em minha direção, lentamente. com certa relutância, me pareceu.
– Peter, esta tudo bem com você?
– Sim senhor.
– Nenhum problema em casa?
– Ah, não senhor.
– Bom.
– Sim senhor.
Ele voltou ao seu trabalho. Mas seu rosto traía suas palavra: Não só parecia estar num estado de ânimo decididamente azedo; a fora no sol parecia sem dúvida alguma contrariado. Contudo, não era da minha conta, se ele mesmo recusava admiti-lo.
Quando o calor do sol atingiu um ponto que eu não mais podia suportar, saí de minha espreguiçadeira e desci a encosta do penhasco pelos degraus talhados na rocha. Embaixo há uma plataforma e um trampolim, pois a água é funda. As rochas se espalham para todos os lados, e as ondas quebram por cima delas, mas junto à plataforma o paredão de rocha e vertical e a água apenas esbarra contra ele sob o trampolim. O lugar é um pequeno anfiteatro, ao abrigo do som e da vista da casa. Ali também gosto de tomar sol; quando saio da água, muitas vezes tiro o calção e me deito, completamente nu, no trampolim. Em geral brinco com Racky porque ele se sente muito embaraçado em fazer o mesmo. Às vezes faz, mas nunca sem ser persuadido por mim. Eu estava lá estirado, nu em pelo, acalentado pelas batidas da água, quando uma voz desconhecida muito perto de mim falou:
– Senhor Norton?
Virei-me de um salto, nervoso, quase caí do trampolim, e me sentei, enquanto procurava em vão pelo meu calção, que estava sobre a rocha quase aos pés de um cavalheiro mulato de meia-idade. Vestia um terno de algodão branco e colarinho alto com uma gravata preta, e me pareceu que olhava para mim com um certo grau de horror.
Minha primeira reação foi de ira, por ter minha privacidade violada dessa maneira. Levantei e apanhei o calção, vestindo-o porém com calma e sem me preocupar em dizer nada além de:
– Não ouvi você descer os degraus.
– Devemos subir? - Perguntou o visitante.
Enquanto voltávamos pela escada, ele na minha frente, tive uma firme premonição de que ele estava aqui em alguma missão desagradável. Sentámo-nos no terraço, e ele me ofereceu um cigarro americano que não aceitei.
– Este é um lugar maravilhoso — ele disse, voltando os olhos para o mar e depois para a ponta do seu cigarro, que estava apenas parcialmente em brasa. Soprou-a.
Eu disse:
– Sim - e esperei que ele prosseguisse; logo ele retomou:
– Sou da guarda-civil da freguesia. A polícia, o senhor entende.
E encarando meu rosto, acrescentou:
– Esta é uma visita amigável. Mas ainda assim deve ser tratada como uma advertência, senhor Norton. É muito sério. Se qualquer outra pessoa vier procurar o senhor para tratar disso, o problema vai se tornar grave. Por isso eu quero falar com o senhor em particular e adverti-lo pessoalmente. O senhor entende.
Eu não podia acreditar que ouvia aquelas palavras. Afinal eu disse, com voz fraca:
– Mas o que houve? Não é uma visita oficial. Não deve ficar abalado. Eu me dei ao trabalho de vir falar pessoalmente porque quero evitar que o senhor tenha problemas maiores.
– Mas já estou abalado! — Gritei, enfim encontrando minha voz. - Como posso deixar de me abalar quando não sei do que você esta falando?
Ele chegou sua cadeira mais perto de mim e falou num tom de voz muito baixo.
– Esperei até que o moço estivesse longe de casa, de modo que pudéssemos falar em particular. O senhor entende, é sobre ele.
Por alguma razão, isto não me surpreendeu. Eu balancei a cabeça.
– Vou contar ao senhor de forma muito breve. As pessoas aqui são só gente simples do interior. Criam problema por qualquer coisa Agora mesmo andam todos falando sobre o moço que mora aqui com o senhor. Ele é seu filho, ouvi dizer.
Sua voz aqui ganhou um tom de ceticismo.
– Claro que ele é meu filho.
Sua expressão não se alterou, mas sua voz se ergueu indignada.
– Seja ele quem for, é um moço muito ruim.
– O que quer dizer? — Gritei, mas ele interrompeu de um modo veemente.
– Ele pode ser seu filho; pode não ser. Não me importo que ele seja. Não é da minha conta. Mas ele é mau, dos pés a cabeça. Aqui nos não temos esse tipo de coisa, senhor. As pessoas em Orange Walk e na enseada de Saint Ives estão muito zangadas. O senhor não sabe do que essa gente é capaz quando é provocada.
Achei que era minha vez de interromper.
– Por favor, explique por que diz que meu filho é mau. O que ele fez?
Talvez a sinceridade na minha voz o tenha tocado, pois seu rosto tomou um aspecto mais gentil. Ele se inclinou ainda mais para perto e quase sussurrou:
– Ele não tem vergonha nenhuma. Faz o que lhe agrada com todos os rapazes, e homens também, e lhes dá um shilling para que não contem nada. Mas eles contam. Claro que contam. Cada homem num raio de trinta quilômetros para cima e para baixo da costa sabe quem ele é. E as mulheres também, elas sabem tudo a respeito disso.
Houve um silencio.
Senti que eu, durante os últimos segundos, estivera me preparando para me por de pé, pois desejava ir para o meu quarto e ficar sozinho, longe daquele escandalizado sussurrar de teatro. Acho que balbuciei:
– Bom dia.
Ou então:
– Muito obrigado.
E lhe dei as costas, seguindo para a casa. Mas ele continuou ao meu lado, ainda sussurrando nos meus ouvidos como um conspirador fervoroso:
– Mantenha o moço em casa, senhor Norton. Ou mande-o de volta para a escola, se é seu filho. Mas faça que ele fique longe das aldeias. Pelo bem dele.
Apertei sua mão e fui me deitar na cama. Dali, ouvi a porta de seu carro bater, e partir. Eu sofria no esforço de formular uma frase clara que pudesse usar ao conversar com Racky sobre o caso, sentindo que essa frase clara definiria minha posição. O esforço não passava de uma espécie de ação terapêutica, a fim de evitar a ideia da coisa propriamente. Qualquer atitude parecia impossível. Não havia jeito de abordar o assunto. Subitamente me dei conta de que nunca seria capaz de falar abertamente com ele sobre isso. Com o advento dessa notícia, ele havia se tornado outra pessoa, um adulto, temível e misterioso. Para dizer a verdade, passou pela minha cabeça a possibilidade de que a historia do mulato fosse falsa, mas automaticamente rejeitei esta possibilidade. Era como se eu quisesse acreditar, quase como se eu já soubesse, e tivesse apenas obtido a confirmação.
Racky voltou ao meio-dia, ofegando e sorrindo. O inevitável pente surgiu e foi usado nos cachos do cabelo suado e em desordem. Sentando-se para almoçar, ele exclamou:
– Nossa! Que praia incrível eu achei esta manhã! Mas que trabalho para chegar lá!
Eu tentei parecer desinteressado ao encontrar seus olhos; era como se nossas posições se tivessem invertido, e eu procurasse ganhar confiança para refrear suas críticas. Ele ficou tagarelando sobre espinhos e plantas rastejantes e seu facão de mato. Durante toda a refeição, eu repetia para mim mesmo: “Agora é o momento. É preciso dizer alguma coisa.” Mas tudo que eu dizia era:
– Quer mais salada? - Ou:
– Prefere sua sobremesa agora?
Então o almoço passou e nada aconteceu. Depois de tomar o café, fui para o meu quarto e me olhei no amplo espelho. Vi meus olhos tentando transmitir um pouco de coragem a seus irmãos refletidos. Enquanto estava lá, ouvi alguma confusão na outra ala da casa; vozes, batidas, o barulho de uma briga. Acima dos ruídos, elevou-se a penetrante voz de Gloria, imperiosa e excitada:
– Não, homem! Não bate nele! Peter, não, homem!
Desci rapidamente para a cozinha, de onde parecia vir o tumulto, mas no caminho esbarrei com Racky, que cambaleava na entrada com as mãos cobrindo o rosto.
– O que foi, Racky? - Gritei.
Ele me empurrou e foi para a sala de estar sem retirar as mãos do rosto; virei-me e fui atrás dele. De lá, ele foi para seu próprio quarto, deixando a porta aberta atrás de si. Ouvi o ruído de água correndo no banheiro. Fiquei indeciso. De repente Peter apareceu na porta do corredor, com o chapéu na mão. Quando ergueu a cabeça, fiquei surpreso ao ver que sua bochecha sangrava. Nos olhos havia uma expressão confusa, estranha, de um temor momentâneo e uma profunda hostilidade. Baixou os olhos outra vez.
– Podia por favor falar com o senhor?
– O que foi todo esse barulho? O que está acontecendo?
– Posso falar com o senhor lá fora? - Ele perguntou obstinadamente, ainda sem levantar os olhos.
Em vista das circunstâncias, fiz sua vontade. Caminhamos lentamente pela estrada de cinzas vulcânicas até a estrada principal, através da ponte e da floresta, enquanto ele me narrava sua historia. Eu nada dizia.
– E então ele declarou:
– Eu nunca quis, senhor. Mesmo da primeira vez. Mas depois da primeira vez eu fiquei com medo, e o senhor Racky me perseguia todo dia.
Fiquei parado e, afinal, disse:
– Se você me tivesse contado da primeira vez que aconteceu, teria sido melhor para todos.
Ele girou o chapéu nas mãos, examinando-o atentamente.
– Sim, senhor. Mas até hoje eu não sabia o que todo mundo andava falando dele em Orange Walk. O senhor sabe que sempre vou à praia na enseada de Saint Ives com o senhor Racky nos meus dias de folga. Se eu soubesse o que todo mundo anda falando, eu não teria medo. E eu queria manter meu emprego aqui. Eu preciso do dinheiro.
Então repetiu o que já dissera três vezes.
– O senhor Racky disse que se o senhor descobrisse eu ia para a cadeia. Sou um ano mais velho que o senhor Racky, senhor.
– Eu sei, eu sei - disse com impaciência. E concluindo que o que Peter esperava de mim naquele momento era severidade, acrescentei:
– É melhor você pegar suas coisas e ir para casa. Você não pode mais trabalhar aqui, você sabe.
A hostilidade em seu rosto assumiu proporções assustadoras quando disse:
– Se o senhor me matasse eu não trabalharia mais em Cold Point.
Virei-me e segui com presteza para casa, deixando-o ali parado na estrada. Parece que ele voltou ao entardecer, agora ainda há pouco, e apanhou seus pertences.
Em seu quarto, Racky lia. Pusera um esparadrapo no queixo e na maça do rosto.
– Demiti Peter — anunciei. - Ele bateu em você, não foi?
Ele ergueu os olhos. Seu olho esquerdo estava inchado, mas ainda não estava preto.
– Bateu sim. Mas eu também acertei uma nele. E acho que eu merecia mesmo apanhar, de qualquer jeito.
Recostei-me na mesa.
– Por quê? — Perguntei de um modo casual.
– Ah, eu sabia uma coisa sobre ele, de muito tempo atrás, e ele tinha medo que eu contasse a você.
– E só agora você ameaçou me contar?
– Ah, não! Ele disse que ia se demitir do emprego aqui, e eu brinquei com ele sugerindo que era por covardia.
– Por que ele quis ir embora? Pensei que ele gostava do emprego.
– Bem, gostava sim, eu acho. Mas não gostava de mim.
O olhar cândido de Racky traía uma sombra de ressentimento. Eu ainda estava recostado na mesa. E insisti:
– Mas eu pensei que vocês dois fossem bons amigos. Pareciam se dar bem.
– Nada. Ele estava apenas apavorado com a possibilidade de perder o emprego. Eu sabia uma coisa sobre ele. Mas ele era um bom sujeito; eu gostava dele. - Fez uma pausa. — Ele já se foi?
Um estranho tremor se insinuou em sua voz ao dizer as últimas palavras, e eu compreendi que pela primeira vez até então a impecavel encenação de Racky não se coadunava com a ocasião. Ele estava muito perturbado por ter perdido Peter.
– Sim, já foi — respondi rápido. - E também não vai voltar.
Racky, ao ouvir o meu tom de voz pouco comum, virou para mim seus olhos jovens nos quais vislumbrei uma frouxa perplexidade. Compreendi que era o momento de pressioná-lo, e dizer:
– O que você sabia a respeito de Peter?
Mas como se ele tivesse alcançado o mesmo ponto do meu pensamento uma fração de segundo antes, Racky retirou de mim a vantagem saltando da cama, entoando uma canção aos brados, e despindo toda sua roupa ao mesmo tempo. Quando ficou diante de mim, nu, cantando a plenos pulmões, e enfiou os pés no seu calção de banho, tomei consciência outra vez de que eu seria incapaz de dizer a ele o que deveria dizer.
Entrou e saiu da casa a tarde inteira: uma parte do tempo, ficou lendo no quarto, e a maior parte dele passou no trampolim. É um comportamento estranho para ele; daria tudo para saber o que se passa em sua mente. À medida que a noite se aproximava, meu problema assumia um caráter puramente obsessivo. Andava de um lado para outro no meu quarto, sempre parando numa extremidade para olhar o mar pela janela, e na outra para fitar meu próprio rosto no espelho. Como se isso pudesse me ajudar! Então tomei uma bebida. E outra. Achei que talvez eu fosse capaz de falar durante o jantar, revigorado pelo uísque. Mas não. Logo ele teria ido para a cama. Não que eu pretenda confrontá-lo com uma serie de acusações. Isto eu sei que nunca poderei fazer. Mas devo encontrar um modo de impedir suas escapadas, e devo dar uma razão para isso, de modo que ele nunca venha a suspeitar de nada.
Nós tememos pelo futuro de nossos rebentos. E ridículo, mas um ridículo apenas um pouco mais palpável que tudo o mais na vida.  Passou um certo tempo; dias que estou contente por ter vivido mesmo que agora tenham terminado. Acho ter sido esse o período que sempre esperei que a vida me proporcionasse, a recompensa que inconscientemente, mas inabalavelmente, esperava, em troca por ter sido submetido e pressionado tão duramente sob as garras da existência por todos esses anos.
Esta noite parece ter sido há muito tempo, pois rememorei seus detalhes tantas vezes que veio a tomar as feições de uma lenda. Na realidade meu problema já fora solucionado naquele mesmo momen­to, embora eu não soubesse disso. Como eu não podia perceber as linhas gerais da questão, imaginei estupidamente que deveria quebrar a cabeça em busca das palavras corretas para abordar Racky. Mas foi ele que veio até mim. Nessa mesma noite, quando eu me preparava para dar uma volta sozinho, coisa que eu supunha poder me ajudar a encontrar uma formula, ele apareceu na minha porta.
– Vai andar um pouco? - Ele perguntou, notando o bastão em minha mão.
A perspectiva de sair imediatamente após ter falado com ele fez as coisas parecerem mais simples para mim.
– Vou — respondi. — Mas antes queria ter uma conversa com você.
– Claro. O que foi?
Não olhei para ele, pois não queria ver a luz alerta que eu tinha certeza de encontrar no seus olhos naquele momento. Enquanto falava, eu batia com meu bastão nos desenhos que os azulejos formavam no pavimento.
– Racky, você gostaria de voltar a escola?
– Você está brincando? Sabe que detesto a escola.
Olhei para ele.
– Não, não estou brincando. Não fique tão horrorizado. Você provavelmente vai adorar estar em companhia de pessoas de sua idade. (Este não era um dos argumentos que planejara usar.)
– Posso gostar de ficar com caras da minha idade, mas não quero ter de ir a escola para isso. Já tive bastante escola na vida.
Fui ate a porta e disse, sem muita convicção.
– Pensei que fosse ganhar sua adesão.
Ele riu.
– Não, obrigado.
– O que não significa que você deixará de fazer o que eu disse. — Falei por cima do ombro ao sair.
Durante meu passeio, martelava o asfalto da estrada com o bastão, e me vi parado na ponte, assaltado por visões dramáticas envolvendo toda sorte de imprevistos antes de nossa mudança para os Estados Unidos, Racky levando um tombo feio da bicicleta e ficando paralisado durante alguns meses, e até a possibilidade de eu deixar os acontecimentos seguirem seu curso, o que sem duvida significaria a necessidade de eu ter de visitá-lo de vez em quando na prisão governamental, para levar comida e presentes, se não sobrevivesse nada mais trágico ou violento. “Mas nada disso vai acontecer”, eu disse para mim mesmo, e sabia que estava desperdiçando um tempo precioso; ele não deve voltar a Orange Walk amanhã.
Voltei para o promontório a passos de tartaruga. Não havia lua e a brisa era muito pouca. Quando me aproximava da casa, tentando pisar de leve nas cinzas vulcânicas a fim de não acordar o vigia Ernest e ter de explicar que era eu, notei que não havia luz no quarto de Racky. A casa estava escura, exceto pela luz fraca na minha mesa-de-cabeceira. Em lugar de entrar, contornei todo o prédio, chocando-me com os arbustos e grudando o rosto em teias de aranha, e fui sentar um pouco no terraço onde me pareceu correr uma aragem. O barulho do mar vinha de algum ponto além do penhasco, onde as ondas quebravam suspirando. Aqui embaixo, só havia vez por outra um leve burburinho de água. A maré estava mais baixa que o normal. Fumei três cigarros mecanicamente, tendo deixado até de pensar, e então. com um gosto amargo de fumaça na boca, entrei.
Meu quarto estava abafado. Larguei minhas roupas na cadeira e olhei para a mesa-de-cabeceira, a fim de verificar se a moringa de água ainda estava lá. Então minha boca abriu. A colcha da minha cama fora puxada. Na extremidade da cama, numa linha escura contra a brancura do lençol, jazia Racky, adormecido de lado, e nu.
Fiquei olhando para ele um longo tempo, provavelmente contendo o fôlego, pois me lembro de ter sentido uma tonteira a certa altura. Eu sussurrava para mim mesmo, enquanto meus olhos seguiam a curva de seu braço, ombro, costas, quadris, pernas: “Uma criança. Uma criança.” O destino, quando é visto com clareza e de muito perto, é desprovido de qualidades. O seu reconhecimento e a consciência da nitidez da visão não deixam espaço no horizonte da mente. Por fim apaguei a luz e deitei-me num movimento suave. A noite era completamente escura.
Ele permaneceu numa quietude absoluta até o nascer do sol Nunca vou saber se ele estava ou não realmente adormecido todo esse tempo. Naturalmente não poderia estar, e apesar disso ficou imóvel Quente e firme, mas imóvel como um morto. A escuridão e o silêncio ao nosso redor eram pesados. A medida que os pássaros começaram a cantar, afundei num torpor suave e aconchegante; quando acordei mais tarde com a luz do sol, ele havia saído.
Encontrei-o na água, brincando sozinho no trampolim; pela primeira vez, ele despira o calção sem que eu o sugerisse. Por todo o dia ficamos juntos, entre o terraço e as rochas, conversando, nadando, lendo, ou apenas deitando para tomar sol. Ele não voltou para seu quarto quando anoiteceu. Em lugar disso, depois que os criados foram dormir, trouxemos três garrafas de champanha para meu quarto e pusemos o balde de gelo na mesa-de-cabeceira.
Então, por fim, eu me vi capaz de tocar no assunto delicado que ainda me preocupava, e, tentando tirar proveito da nova situação de entendimento entre nós, fiz minha solicitação da maneira mais fácil e natural.
– Racky, você me faria um enorme favor, se eu lhe pedisse?
Ele deitou-se de costas, as mãos sob a cabeça. Seu olhar pareceu-me cauteloso, destituído de franqueza.
– Acho que sim — ele disse. — O que é?
– Você podia permanecer nas imediações da casa por alguns dias... digamos, uma semana? Só para minha satisfação? Podemos dar passeios de bicicleta juntos, tão longe quanto você quiser. Faria isso por mim?
– Claro que sim — respondeu sorrindo.
Eu estava contemporizando, mas me sentia desesperado.
Talvez uma semana depois - (só quando alguém não se sente plenamente feliz dedica uma atenção tão minuciosa ao tempo, portanto pode ter sido um pouco mais ou um pouco menos) — estávamos tomando o café da manha. Isiah permanecia de pé, na sombra, esperando para nos servir mais café.
– Notei que você recebeu uma carta do tio Charley outro dia — disse Racky. — Não acha que devíamos convidá-lo para vir aqui?
Meu coração começou a bater com força.
– Aqui? Ele ia odiar — eu disse em tom casual. — Além disso, não ha espaço. Onde dormiríamos?
No momento mesmo em que eu ouvia essas palavras, sabia que eram as palavras erradas, que eu não estava de fato tomando parte da conversa. De novo senti a fascinação do completo desamparo que assalta quem se torna, de súbito, um espectador consciente do perfil de seu destino.
– No meu quarto - respondeu Racky. — Está vazio.
Neste momento, pude vislumbrar uma extensão do traçado do destino que nunca suspeitara existir.
– É absurdo - eu disse. - Não é o tipo de lugar para o tio Charley.
Racky deu a impressão de ter tido uma ideia brilhante.
– Talvez se eu escrevesse e o convidasse – ele sugeriu, fazendo sinal para Isiah lhe servir mais café.
Absurdo — eu disse outra vez, contemplando ainda mais uma parte do traçado que se revelava, como uma figura em um papel fotográfico que gradualmente vai se tornando mais nítida, mergulhada na bandeja com liquido revelador.
Isiah encheu a xicara de Racky e voltou para a sombra. Racky bebeu lentamente, fingindo saborear o cafe.
– Bem, não vai fazer mal algum experimentar. Ele vai apreciar o convite — ele disse, como quem especula.
Por alguma razão, nesta conjuntura eu soube o que devia dizer, e quando o disse, sabia o que eu viria a fazer.
– Acho que devíamos viajar para Havana durante alguns dias semana que vem.
Ele pareceu cautelosamente interessado, e então abriu um largo sorriso forçado.
– Formidável! — Gritou. - Para que esperar a semana que vem?

Na manhã seguinte os criados acenavam para se despedir de nós, enquanto partíamos pela estrada de cinza vulcânica no carro de McCoigh. Decolamos do aeroporto às seis horas da tarde. Racky estava muito animado; conversou com a aeromoça todo o tempo ate Camaguey.
Ele ficou encantado com Havana. Sentados no bar do Nacional continuamos a discutir a possibilidade de C. nos fazer uma visita na ilha. Não foi sem dificuldade que cheguei a persuadir Racky de que escrever para seu tio seria desaconselhável.
Decidimos procurar um apartamento para Racky bem aqui em Vedado. Ele não parecia interessado em voltar para Cold Poinl Decidimos também que, morando em Havana, ele necessitaria de uma receita maior que a minha. Já estou tratando de transferir a maior parte da herança de Hope para o nome dele, sob a forma de um fundo de crédito que eu deverei administrar até que ele atinja a maioridade Afinal, era o dinheiro de sua mãe.
Compramos um novo conversível, e ele o dirigiu para me levar até Rancho Boyeros quando fui pegar meu avião, Um cubano chamado Claudio, com dentes muito brancos, a quem Racky havia conhecido na piscina naquela manhã, veio sentado entre nós.
Esperávamos diante do campo de pouso. Um funcionário soltou a corrente para que os passageiros pudessem passar.
 – Se você se aborrecer, venha para Havana - disse Racky, apertando meu braço.
Os dois ficaram juntos atrás da corda, acenando para mim, suas camisas sacudindo com o vento enquanto o avião manobrava para decolar.

O vento bate na minha cabeça; entre uma onda e outra há milhares de minúsculos sons de água espirrando e engolindo enquan­to o mar escoa pelas gretas e furos das rochas; e o sentimento, em parte submerso, em parte na superfície, de estar na água assedia minha mente mesmo quando o sol quente queima meu rosto. Sento-me aqui e leio, e aguardo que a deliciosa sensação de saciedade que vem após uma boa refeição se transforme, à medida que as horas passem, em uma outra sensação ainda mais deliciosa, que com um leve arrebatamento interior nos comove, e que acompanha o despertar do apetite.
Na realidade, estou plenamente feliz aqui, pois ainda acredito ser muito pouco provável que algo drástico possa sobrevir nesta parte da ilha, num futuro próximo.



2 comentários:

  1. Oi Marcelo,

    Fantásticas suas escolhas. Vai aqui uma sugestão, de que você coloque no final dos contos, a referência de em que livro eles estão no Brasil.

    Abraço fraterno,

    Pedro

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  2. Visit the historical city of India and also see the beauty of Taj Mahal in the reflection of Sun in our Sunrise Tour of Taj Mahal.

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