Ihara Saikaku, poeta e
escritor japonês do século XVII, nascido em Osaka. O conto “O Tambor chinês” destacado
em nosso blog, foi escrito há aproximadamente 340 anos atrás.
O Tambor Chinês
Ihara Saikaku
Tradução Tejiti Suzuki
No
bairro de Nishijin, na cidade de Quioto, estão localizadas as oficinas de
tecelagem de seda. Entre os mestres que viviam dessa profissão, havia um que, não
obstante a sua destreza no ofício, via a sua situação econômica piorar dia por dia.
No fim do ano, encontrava-se num beco sem saída. Falou com a mulher, e ficou
decidido que deixariam o bairro na calada da noite, às escondidas dos credores.
Começou ele, então, a vender os móveis e utensílios da oficina, secretamente,
mas o fato não passou desapercebido dos seus colegas. Os mais chegados, que
somavam uma dezena, lamentaram que tal ocorresse justamente com quem se
mostrara sempre comedido, honesto, prestativo, homem de alma piedosa e isenta
de pecados. Desejosos de salvá-lo da situação em que encontrava, encarregaram
um deles, escolhido por mais avisado, de indagar do estado real das dívidas do
colega. O enviado ficou sabendo que elas mal chegavam a oitenta ryos
(cerca de duas libras ouro). Disse então, ao casal em apuros:
–
Por que abandonar a oficina, que mantiveram durante tanto tempo por causa de tão
pouco? Não se amofinem: são coisas da vida. Deixem tudo por nossa conta. Vão
tratar dos preparativos para o Ano Novo. Deem as crianças presentes bonitos.
Quanto aos uniformes dos aprendizes, ainda há tempo de mandar fazê-los azuis,
sem o emblema da oficina. E, a senhora, deve cuidar mais da sua aparência,
principalmente numa ocasião como esta. Vá fazer um penteado vistoso: a sabedoria
da esposa consiste em não deixar ninguém perceber que o marido está em
dificuldades.
Na
noite de 26 de dezembro, conquanto estivessem todos atarefados, os dez colegas
do mestre tecelão combinaram entre si e foram ter à casa do amigo, levando cada
um consigo dez ryos. Pediram um vaso de madeira e nele depuseram as moedas
de ouro que haviam trazido, constituindo assim uma caixa de socorro mútuo.
–
As moedas aqui juntadas, que somam cem ryos, dentro em breve estarão
multiplicadas por dez — diziam.
Um
dos tecelões, com ar de entendido, levou o vaso até o santuário do Deus da
Prosperidade, diante do qual depois de bater palmas, disse, como se rezasse:
Ó
Deus da Prosperidade: multiplicai este tesouro; caso contrário, sereis jogado
ao Rio Kamiya.
Entre
os risos e aplausos de todos os presentes, teve inicio uma alegre libação, com
os vinhos e vitualhas trazidos pelos visitantes. Beneficiadores e beneficiados
estavam eufóricos.
Que
bela e inusitada maneira de comemorar a passagem do ano! — exclamavam, erguendo
as taças. Mesmo os menos afeitos às bebidas fartaram-se de beber. Cantaram e dançaram
até esgotarem todo o seu repertorio de habilidades artísticas. Faziam tamanha
algazarra que ninguém mais se entendia.
Eram
quatro horas da manhã, e os galos cantavam, quando os visitantes se retiraram,
após trocarem as sandálias, deixando suas capas e leques. Saíram abraçados uns
aos outros, esquecidos de se despedirem dos donos da casa. Fatigado pelas preocupações
da véspera, o mestre tecelão deitara-se no meio da sala, onde ficou a roncar
alto.
Sua
esposa fechou as portas, com maior cautela. Mandou a criadagem ir repousar. Não
se continha, porém, de júbilo. Foi acordar o marido e pediu-lhe que fizesse um
levantamento das contas à pagar: entregou- lhe, para tanto, o ábaco e o diário.
Brandindo
o ábaco, bravateou o marido:
–
Neste fim de ano, quando os cobradores me aparecerem, atiro-lhes com as moedas
de ouro na cara. Sobretudo aquele maldito Hatiemon, o dono do empório, que,
apesar de ser nosso parente afastado, e o mais intolerante de todos. Vou saldar
definitivamente nossa dívida com ele. Não lhe compre mais nada. Passe a comprar
no empório vizinho. E pague à vista, ouviu?
Enquanto
fazia suas contas e projetos de pagamento, o tecelão foi buscar o vaso de
madeira no santuário. Qual, porem, não foi a surpresa do casal quando constatou
que o vaso estava vazio! Não podia ser obra dos ratos: ratos não roem moedas de
ouro. Quem sabe se não seria uma brincadeira do Deus da Prosperidade? Vasculharam
o santuário, repetidas vezes, mas não encontraram nem sombra do tesouro.
A
grande alegria de havia pouco transformou-se numa tristeza sem fim. O tecelão
pôs-se a monologar em voz alta:
–
É destino. Não guardarei rancor de quem me roubou. Mas por que teria feito
isso? Aceitei um auxilio caritativo e vejo-me em dificuldades maiores do que antes.
Qual não será a maledicência das pessoas, agora? Não, não adianta continuar a
viver neste mundo ingrato. Vamos, querida, partamos juntos para outra vida,
levando as crianças conosco.
–
É verdade. Não adianta continuar a viver — concordou, resoluta, a mulher.
Lembrou-se
de que viria gente ver ambos, depois de mortos, e vestiu, então, o único
quimono de seda branca que ainda lhe restava. Arrumou o cabelo ao espelho, com
maior cuidado. Acarinhou a cabeça do marido: disse-lhe que, apesar dos dezenove
anos decorridos, o amor conjugal de ambos parecia o orvalho daquela mesma
madrugada. Com os olhos turvados pelas lágrimas, marido e mulher acenderam
velas no santuário dos antepassados. Acordaram os filhos com cuidado. A menina,
que era a mais velha, perguntou se já chegara o Ano Novo. Apesar de sonolento,
o caçula não se esqueceu do arco de brinquedo que lhe havia sido prometido de
presente.
Penalizados,
os dois puseram-se a chorar copiosamente. Nesse momento, banhada também em
prantos, a velha criada precipitou-se para dentro da sala:
–
Não precisam explicar nada. Sei de tudo. O senhor e a senhora podem morrer, mas
roubar a vida a estes inocentes! Não, isso não pode ser. Será que perderam a cabeça?
Eu me encarrego de criar estas duas crianças.
Tudo
isso foi dito aos gritos, enquanto ela protegia as crianças com seus braços. Os
demais residentes acordaram com o barulho e os vizinhos vieram ver o que se
passava. Em meio a confusão subsequente, o sol nasceu, e o projeto de suicídio
acabou sendo posto de lado.
A
noticia da ocorrência chegou aos ouvidos de alguns dos colegas do tecelão, os
quais, convocando os companheiros faltantes, promoveram, os dez reunidos, uma sessão
para deliberarem sobre o assunto. Ocorrência verdadeiramente incompreensível,
na verdade. Como todos se haviam declarado dispostos a salvar o amigo da
bancarrota, não seria admissível que algum deles fosse roubar o que ele próprio
doara espontaneamente. O ladrão, no entanto, tinha de ser um deles.
–
Só consultando a Providência é que se poderá provar a inocência de cada um de
nos — afirmavam alguns. Outros, mais sensatos, achavam que isso não resolvia.
Concordaram, por fim, em levar o caso ao conhecimento da autoridade, por
escrito, de quem solicitaram julgamento. Deferida a solicitação, a audiência ficou
marcada para o dia 25 de janeiro, ao termino das festas. Foi, outrossim,
ordenado aos suplicantes que não se ausentassem da cidade, sob pena de sofrerem
as sanções da lei, e que todos comparecessem a audiência em companhia de suas
respectivas esposas ou, na falta desta, de qualquer parente mais próximo, do
sexo feminino.
No
dia aprazado, os tecelões, acompanhados das esposas, que se mostravam
contrariadas, compareceram em juízo. Sorteado o número de ordem e afixada a
lista respectiva na parede, a autoridade sentenciou:
–
Julgo-vos responsáveis, coletivamente, pelo desaparecimento do dinheiro que constituía
o fundo de socorro mutuo, e condeno-vos à pena seguinte: todo o dia, durante
dez dias consecutivos, sairá um dos casais à rua, conduzindo, na ponta de uma
vara, aquele tambor chinês que ali está, e, fazendo o percurso que vai do palácio
até a alameda de pinheiros do templo, na direção oeste, voltará aqui pelo mesmo
trajeto. É terminantemente proibida a aproximação de curiosos.
O
tambor em questão era um tambor grande e pesado, pintado de vermelho berrante.
Durante
dez dias consecutivos, o caso manteve acesa a curiosidade publica.
Que
condenação esquisita! — comentavam todos.
Decorridos
dez dias, a autoridade convocou novamente os dez casais e disse-lhes:
–
Agradeço a colaboração de todos vós para a elucidação deste caso. Sinto muito
ter-vos submetido a tal ridículo e vexame. Dirijo-me particularmente aos maridos,
que parecem ter sofrido bastante, por causa das queixas e imprecações das
mulheres. Eu soube disso por meio de um garoto muito vivo que coloquei dentro
do tambor. Ele me contou ainda mais o seguinte: uma das mulheres se mostrou
particularmente veemente nas suas invectivas contra o marido. Queixava-se do
infortúnio de se ver assim exposta à curiosidade pública por culpa exclusiva
dele. Protestava contra a tolice de ajudar a outrem e sacrificar a própria família.
Suas lástimas e imprecações foram num crescendo. A certa altura, o
marido sussurrou ao ouvido da esposa: “Tenha um pouco de paciência. O dinheiro
é nosso. Você o verá em casa.” Não direi aqui de quem se trata, nem penso tenha
sido o roubo ato premeditado. Julgo-o, antes, fruto da embriaguez. Em consideração
ao seu louvável ato anterior, de ter prestado socorro a um necessitado, suspendo
a pena e ordeno ao culpado que se limite a devolver o dinheiro e a desaparecer
da cidade com a família. Cumprida minha ordem, arquive-se o processo. Podeis
retirar-vos. Tenho dito.
Boa noite, Sr. Marcelo!
ResponderExcluirMuito agradecida por dar continuidade à lista de Contos...
Hum! Mas ainda aguardo um de nossa Clarice Lispector e um de nosso Lobato.
Fique bem.
Mara Ghellere de Mendonça
Muito bom, embora não seja a minha praia.
ResponderExcluirEste conto procura ensinar, deixa alguma lição. É universal.