Isaac Emanullovich Babel
(1894-1940) escritor russo nascido em Odessa, foi um dos maiores romancistas daquele pais. Neste conto ele presta homenagem a Guy de Maupassant, um dos maiores contistas de todos
os tempos.
Guy de Maupassant
Isaac Babel
Tradução de Nivaldo dos Santos
No inverno de mil
novecentos e dezesseis fui parar em Petersburgo com um passaporte falso e sem
um vintém sequer. Fui acolhido por Aleksei Kazántsev, um professor de filologia
russa.
Ele morava em
Pieski, numa rua gelada, amarelada e fedorenta. Um ganho extra para seu modesto
salario eram as traduções do espanhol; naquela época, Blasco Ibañez estava
ganhando fama.
Kazántsev nunca fora
a Espanha, mas o amor a esse pais preenchia o seu ser; conhecia todos os
castelos, jardins e rios espanhóis. Além de mim, amparava-se em Kazántsev uma multidão
de pessoas excluídas da vida legal. Nos passávamos fome. De vez em quando, os
jornalecos publicavam em letras miúdas as nossas notas sobre os acontecimentos.
De manha, eu
perambulava pelos necrotérios e delegacias de polícia.
Mais feliz do que
nós era mesmo Kazántsev. Ele tinha uma pátria: a Espanha.
Em novembro, ofereceram-me
uma vaga no escritório da fábrica Obukhovski, um emprego muito bom, que
dispensava do serviço militar.
Eu me recusei a me
tornar um funcionário de escritório.
Já naquela época,
com vinte anos de idade, eu disse a mim mesmo: é melhor a fome, a cadeia e a
vagabundagem do que ficar sentado a mesa de um escritório dez horas por dia. Não
havia nenhuma grande coragem nessa promessa, mas eu não a quebrei e nem vou
quebrá-la. A sabedoria de meus antepassados estava na minha cabeça: nascemos
para nos deliciar com o trabalho, a luta e o amor; nascemos para isso e nada
mais.
Enquanto ouvia meu sermão, Kazántsev emaranhava
a penugem curta e amarelada de sua cabeça. O horror em seu olhar misturava-se
com a admiração.
No Natal tivemos sorte. O advogado Bendiérski,
dono da editora Altsion, pensou em publicar uma nova edição das obras de
Maupassant. A tradução ficou a cargo da esposa do advogado, Raíssa. Mas do
intento senhorial não saiu nada.
Perguntaram a Kazántsev, o tradutor de espanhol,
se ele não conhecia alguém para ajudar Raissa Mikhailovna. Kazántsev indicou a
mim.
No dia seguinte, vestindo um casaco emprestado,
eu me dirigi à casa dos Bendiérski. Moravam na esquina da Nievski com o Moika,
numa casa construída com granito finlandês e revestida com colunas
rosadas, seteiras e brasões de pedra. Banqueiros sem linhagem nem herdeiros
cristãos convertidos que enriqueceram no comércio, tinham construído em
Petersburgo, antes da guerra, muitos desses castelos vulgares e falsamente
majestosos.
Pela escada estendia-se um tapete vermelho. Nos
patamares havia ursos empalhados.
Em suas goelas escancaradas brilhavam redomas de
cristal.
Os Bendiérski moravam no terceiro andar. A porta
foi aberta por uma criada de busto alto, usando uma coifa. Ela me conduziu a
uma sala com acabamento em estilo eslavo antigo. Nas paredes havia quadros
azuis de Roerich: monstros e pedras pré-históricas. Pelos canto, em suportes,
estavam dispostos ícones de escrita antiga. A criada de busto alto movia-se de
modo solene pela sala. Era esbelta, míope e arrogante. A libertinagem estava
petrificada em seus olhos cinzentos e arregalados. A moça movia-se devagar. Eu
imaginei que, durante o amor, talvez ela se revirasse com uma agilidade furiosa.
Uma cortina brocada pendurada acima da porta começou a balançar. Na sala,
carregando grandes seios entrou uma mulher de cabelos negros e olhos rosados. Não
foi preciso muito tempo para reconhecer na senhora Bendiérskaia aquela linhagem
arrebatadora das judias vindas de Kíev e Poltava, das ricas cidades das
estepes, cercadas de castanheiras e acácias. Essas mulheres transformavam o
dinheiro de seus habilidosos maridos na gordura rosada do ventre, da nuca e dos
ombros arredondados. O risinho sonolento e carinhoso delas tirava o juízo dos
oficiais da guarnição.
— Maupassant é a única paixão da minha vida —
disse-me Raissa.
Tentando conter o balanço dos grandes quadris,
ela saiu da sala e voltou com uma tradução de “Miss Harriet”. Em sua tradução
não restava nenhum vestígio da frase de Maupassant, livre, corrente, com um
demorado sopro de paixão. Bendierskaia escrevia de um jeito enfadonhamente
correto, sem vida e sem cerimônia, tal como os judeus escreviam antes em russo.
Levei o manuscrito, e em casa, na mansarda de
Kazántsev, entre as pessoas que dormiam, passei a noite toda desbastando uma tradução
alheia. O trabalho não estava tão ruim como parecia. Uma frase nasce boa ou
ruim a um só tempo. O segredo está numa virada quase imperceptível. A chave
deve ficar na mão, ser aquecida. é preciso virá-la uma vez, e não duas.
Na manha seguinte levei o manuscrito corrigido.
Raissa não mentiu quando falou de sua paixão por Maupassant. Ela permaneceu imóvel
na hora da leitura, com as mãos entrelaçadas; aqueles bravos de cetim escorregavam
para o chão, sua testa ficava pálida, a renda entre seus seios comprimidos
deslocava-se e tremia.
— Como o senhor fez isso?
Então comecei a falar sobre o estilo, sobre o
exército de palavras, um exército no qual circula todo tipo de arma. Nenhum
ferro pode penetrar no coração humano de forma tão congelante quanto um ponto
colocado na hora certa. Ela escutava com a cabeça inclinada e os lábios
pintados entreabertos. Um raio negro resplandeceu em seus cabelos laqueados,
bem presos e repartidos. As pernas esmaltadas pela meia, com panturrilhas
fortes e delicadas, estavam separadas sobre o tapete.
A criada, desviando os olhos devassos e
petrificados, trouxe o café da manhã numa bandeja.
O vítreo sol petersburguense deitava-se sobre o
tapete descorado e áspero. Vinte e nove livros de Maupassant estavam numa
estante, acima da mesa. O sol tocava com dedos derretidos as lombadas de
marroquim dos livros, o maravilhoso túmulo do coração humano.
Serviram-nos café em pequenas xicaras azuis, e
nós começamos a traduzir “Idylle”. Todos se lembram do conto do jovem
carpinteiro faminto que sugou de uma ama gorda o leite que a oprimia. Isso
aconteceu num trem que ia de Nice para Marselha, num meio-dia abrasador, no
pais das rosas, na pátria das rosas, lá onde as plantações de flores descem até
a beira do mar...
Saí da casa dos Bendiérski com um adiantamento
de vinte e cinco rublos. Naquela noite, a nossa comuna de Pieski ficou bêbada
como um bando de gansos embriagados. Pegávamos caviar granulado e o comíamos
com linguiça de fígado para tirar seu gosto. Meio embriagado, comecei a
maldizer Tolstói.
Ele se assustou, o nosso conde, ficou com
medo... Sua religião é o medo... Assustado com o frio, com a velhice, o conde
teceu uma camisola de fé...
– E o que mais? — perguntou-me Kazántsev, balançando
a cabeça de pássaro.
Adormecemos ao lado de nossas camas. Sonhei com
Katia, uma lavadeira de quarenta anos que morava no andar de baixo. De manhã, pegávamos
água quente com ela. Não tive tempo de enxergar claramente o seu rosto, mas
Deus sabe o que eu e Katia fazíamos no sonho. Exauríamos um ao outro com
beijos. Não me abstive de passar em sua casa na manhã seguinte em busca de água
quente.
Fui recebido por uma mulher definhada, enrolada
num xale, com as madeixas grisalhas despenteadas e as mãos úmidas.
A partir de então, passei a tomar o café da
manha na casa dos Bendiérski todos os dias. Em nossa mansarda apareceram um
fogão novo, arenque e chocolate. Raíssa levou-me às ilhas duas vezes. Eu não me
contive, e contei a ela sobre minha infância. Para minha própria surpresa, a
história saiu sombria. Sob o gorro de pele de toupeira, olhos brilhantes e
assustados olhavam para mim. A tez ruiva dos cílios tremia melancolicamente
Conheci o marido de Raíssa, um judeu de cara
amarela com uma cabeça calva e um corpo forte e delgado, que parecia
inclinar-se, precipitando-se para o voo. Corriam rumores sobre sua proximidade
com Rasputin. Os lucros obtidos por ele com suprimentos de guerra deram-lhe a
aparência de um endemoniado. Seus olhos vagavam, o tecido da realidade tinha se
rompido para ele. Raíssa ficava confusa ao apresentar novas pessoas a seu
marido. Em razão de minha juventude, percebi isso uma semana depois de
ocorrido.
Depois do Ano Novo, chegaram à casa de Raissa
suas duas irmãs de Kíev. Um dia levei o manuscrito de “A confissão”, mas como
não encontrei Raíssa, voltei à noite. Estavam ceando na sala de jantar. De lá
vinha um relincho argênteo e um ruído surdo de vozes masculinas excessivamente
alegres. Na casa de ricos sem tradições, as refeições são barulhentas. O
barulho era judaico, com estrondos e desfechos melodiosos. Raíssa me recebeu
num vestido de baile, com as costas nuas. Os pés, em sapatinhos laqueados e
inseguros, pisavam desajeitados.
— Estou bêbada, querido — e ela me estendeu os
braços cobertos de correntes de platina e estrelas de esmeraldas.
Seu corpo balançava como o de uma cobra erguendo-se
para o teto ao som de uma música. Ela balançava a cabeça ondulada, tilintando
os anéis, e de repente caiu numa poltrona com entalho russo antigo. Em suas
costas empoadas ardiam cicatrizes.
Atrás da parede explodiu mais uma vez o riso
feminino. Da sala de jantar saíram as irmãs de bigodinhos, tão peitudas e altas
quanto Raíssa. Seus seios estavam projetados para a frente, os cabelos negros
esvoaçados. Ambas eram casadas com seus próprios Bendiérskis. A sala ficou
cheia daquela alegria feminina inconsequente, da alegria de mulheres maduras.
Os maridos agasalharam as irmãs com casacos de pele de lontra e xales de
Orenburg e calçaram-nas com botas negras; sob a viseira de neve dos xales
ficaram apenas as bochechas ardentes e coradas, os narizes de mármore e os
olhos de brilho semítico e míope. Depois de fazer barulho, eles saíram para o
teatro, onde era apresentada “Judith”, com Chaliápin.
– Eu quero trabalhar — balbuciou Raíssa,
estendendo os braços nus —, perdemos uma semana inteira...
Ela trouxe uma garrafa e duas taças da sala de
jantar. Seus seios repousavam livremente no saco de seda do vestido; os mamilos
estavam eretos, cobertos pela seda.
– Reserva especial — disse Raíssa, servindo o
vinho —, um moscatel de mil oitocentos e oitenta e três. Meu marido vai me
matar quando souber...
Eu nunca experimentara um moscatel de mil
oitocentos e oitenta e três, nem imaginara beber três taças, uma após a outra.
Eles me levaram de imediato para vielas onde tremulava uma chama alaranjada e
ouvia-se música.
– Estou bêbada, querido... O que temos hoje?
– Hoje temos “L’aveu”...
– Pois bem, “A confissão”. O sol é o herói desse
conto, le soleil de France... Gotas derretidas de sol, ao caírem sobre a
ruiva Celeste, transformaram-se em sardas. O sol polia com seus raios íngremes,
vinho e sidra a cara do cocheiro Polyte. Duas vezes por semana, Celeste ia à
cidade vender creme, ovos e galinhas. Por viagem, ela pagava a Polyte dez
tostões por si e quatro pela cesta. E a cada viagem, Polyte dava piscadelas e
indagava a ruiva Celeste: “Quando vamos nos divertir, ma belle?”. “O que quer dizer isso, monsieur
Polyte?” Saltitando na boleia, o cocheiro explicou: “Mas que diabo,
‘divertir-se’ quer dizer ‘divertir-se’... Um rapaz e uma moça não precisam de
musica...”. “Eu não gosto dessas brincadeiras, monsieur Polyte” — respondeu
Celeste e afastou do rapaz as suas saias, que estavam em desalinho sobre as
panturrilhas poderosas com meias vermelhas. Mas o diabo do Polyte gargalhava e
tossia: “Um dia vamos nos divertir, ma belle”. E lágrimas felizes
rolavam em seu rosto cor de sangue, tijolo e vinho.
Eu bebi mais uma taça do moscatel especial.
Raíssa brindou comigo.
A criada de olhos petrificados passou pela sala
e desapareceu.
Ce diable de Polyte... Em dois anos, Celeste havia pagado quarenta e oito francos. Eram
cinquenta francos menos dois. Ao final dos dois anos, quando eles estavam
sozinhos na diligência e Polyte, que tinha tomado sidra antes da partida,
perguntou como de costume: “Que tal nos divertirmos hoje, mademoiselle
Celeste?”, ela respondeu de olhos baixos: “Estou a seu dispor, monsieur
Polyte...”.
Raíssa desabou sobre a mesa com uma gargalhada.
Esse diabo do Polyte...
A diligência foi atrelada a um pangaré branco. O
animal de lábios rosados por causa da velhice foi a passo. O sol alegre da
França cercou o veículo protegido do mundo por uma capota desbotada. Um rapaz e
uma moça; eles não precisavam de música...
Raissa estendeu-me a taça. Era a quinta.
– Mon vieux, a Maupassant...
– Que
tal nos divertirmos hoje, ma belle...?
Eu me estiquei para Raissa e beijei seus lábios.
Eles ficaram trêmulos e inchados.
– O senhor é divertido — murmurou Raíssa entre
lábios e recuou.
Ela se encostou na parede, com os braços nus
estirados. Pintas brilharam em seus braços e ombros. De todos os deuses
crucificados, esse era o mais sedutor.
– Tenha a bondade de sentar-se, monsieur
Polyte...
Ela me indicou uma poltrona azul reclinada,
feita ao estilo eslavo. Seu encosto era um entrelaçamento de madeira esculpida
com pontas pintadas. Caminhei até lá, tropeçando.
A noite pôs diante da minha juventude faminta
uma garrafa de moscatel de mil oitocentos oitenta e três e vinte e nove livros,
vinte e nove petardos recheados de piedade, espírito, paixão... Eu dei um
salto, derrubei a mesa, esbarrei na estante. Os vinte e nove volumes desabaram
sobre o tapete; suas páginas se espalharam, eles ficaram virados... e o pangaré
branco do meu destino foi a passo.
– O senhor é divertido — rugiu Raíssa.
Saí da casa de granito no Moika depois das onze
horas, antes que as irmãs e o marido voltassem do teatro. Eu estava sóbrio e
poderia andar sobre uma tábua, mas era bem melhor cambalear; e eu balançava de
um lado para outro, cantando numa língua inventada só por mim. Nos tuneis das
ruas contornadas por uma cadeia de lampiões, os vapores da neblina vagavam em
ondas. Monstros urravam atrás das paredes em ebulição As calçadas decepavam as
pernas que seguiam por elas.
Em casa, dormia Kazántsev. Dormia sentado, com
as pernas magra: esticadas em botas de feltro. Adormecera junto ao fogão,
inclinado sobre o Dom Quixote, uma edição de 1624. No
titulo desse livro havia um: dedicatória ao duque de Broglio. Eu me deitei em
silêncio para não acordar Kazántsev, aproximei a lâmpada e comecei a ler o
livro de Édouard de Maynial Sobre a vida e a obra de Guy de Maupassant.
Os lábios de Kazántsev se mexiam, sua cabeça
pendia.
E naquela noite eu soube por Edouard de Maynial
que Maupassant nascera em 1850, filho de um fidalgo da Normandia e de Laure de
Poittevin, prima de Flaubert. Aos vinte anos teve seu primeiro ataque de sífilis
hereditária. A criatividade e o entusiasmo que tinha em si resistiram a doença.
No inicio sofreu dores de cabeça e acessos de hipocondria. Depois o fantasma da
cegueira apareceu diante dele. Sua vista enfraqueceu. Ele desenvolveu uma mania
de desconfiança, insociabilidade e trapaça. Lutou furiosamente, desvairou-se
pelo Mar Mediterrâneo, foi a Túnis, ao Marrocos e a África Central; e escrevia
sem cessar. Depois de alcançar a fama, cortou a garganta aos quarenta anos de
idade, esvaiu-se em sangue, mas ficou vivo. Foi internado num hospício. Ali ele
andava engatinhando... O ultimo relatório em sua triste ficha diz:
“Monsieur de Maupassant va
s’animaliser.” (“O senhor Maupassant transformou-se num
animal.”) Ele morreu aos quarenta e dois anos. Sua mãe sobreviveu a ele.
Li o livro ate o fim e levantei da cama. A nevoa
se aproximou da janela e cobriu o mundo. Meu coração ficou apertado. Um
pressagio da verdade me roçou
Nenhum comentário:
Postar um comentário