sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

30 – Diga a eles que não me matem – J. Rulfo

Este pequeno conto é uma grande oportunidade para conhecer Juan Rulfo (1917-1986) escritor mexicano nascido no estado de Jalisco e autor de um dos mais importantes romances da literatura Latinoamericana: Pedro Páramo.

Diga a eles que não me matem!
Juan Rulfo

- Diga a eles que não me matem, Justino! Anda, vai dizer isso. Que por caridade. Diga a eles assim. Diga que o façam por caridade.
- Não posso. Há ali um sargento que nem quer ouvir falar de ti.
- Faz com que te ouça. Usa as tuas manhas e diga que para sustos já chega. Diga que o faça pela caridade de Deus.
- Não se trata de sustos. Parece que te vão matar de verdade. Eu já não quero voltar lá.
- Vai outra vez. Só mais uma vez, a ver o que consegues.
- Não. Não tenho vontade de ir. É evidente que eu sou teu filho. E, se vou muitas vezes ter com eles, acabarão por saber quem sou e pode dar-lhes para me fuzilarem a mim também. É melhor deixar as coisas tal como estão.
- Anda, Justino. Diz-lhes que tenham só um bocadinho de lástima de mim. Diga só isso.
Justino apertou os dentes e moveu a cabeça, dizendo:
- Não.
E continuou a abanar a cabeça durante muito tempo
- Diga ao sargento que te deixe ver o coronel. E conta-lhe quão velho estou. O pouco que valho. Que lucro terá por matar-me? Nenhum lucro. Ao fim e ao cabo ele deve ter uma alma. Diga que o faça pela bendita salvação da sua alma.
Justino levantou-se do monte de pedras em que estava sentado e caminhou até à porta do curral. Depois voltou-se para dizer:
- Vou, então. Mas se por acaso me fuzilam a mim também, quem cuidará da minha mulher e dos filhos?

- A Providência, Justino. Ela se encarregará deles. Preocupa-te em ir lá e ver que coisas fazes por mim. Isso é que urge.
Tinham-no trazido de madrugada. E agora já ia avançada a manhã e ele continuava ainda ali, amarrado a uma estaca, esperando. Não conseguia estar quieto. Tinha feito a tentativa de dormir um pouco para se apaziguar, mas o sono tinha abalado. Também tinha abalado a fome. Não tinha vontade de nada. Só de viver. Agora que sabia bastante bem que o iam matar, tinha-lhe entrado uma vontade tão grande de viver como só a pode sentir um recém-ressuscitado.
Quem lhe haveria de dizer que havia de voltar àquele assunto tão velho, tão rançoso, tão enterrado como pensava que estava. Aquele assunto de quando teve que matar dom Lupe. Não foi sem mais nem menos, como lhe quiseram fazer crer os de Alima, mas sim porque teve as suas razões. Ele lembrava-se: Dom Lupe Terreros, o dono da Puerta de Piedra, ainda por cima seu compadre. Ao qual ele, Juvêncio Nava, teve que matar por isso mesmo; por ser o dono da Puerta de Piedra e porque, sendo também seu compadre, lhe negou o pasto para os seus animais.
Primeiro aguentou-se por mero compromisso. Mas depois, quando da seca, em que viu como lhe morriam um atrás do outro os seus animais fustigados pela fome e que o seu compadre dom Lupe continuava a negar-lhe a erva dos seus pastos, foi então que se pôs a partir a cerca e a empurrar a massa de animais magros até ao capim para que se fartassem de comer. E o dom Lupe não tinha gostado disso, tanto que mandou tapar outra vez a cerca para que ele, Juvêncio Nava, lhe voltasse a abrir outra vez o buraco. Assim, de dia tapava-se o buraco e de noite voltava a abrir-se, enquanto o gado estava ali, sempre colado à cerca, sempre esperando; aquele seu gado que antes só vivia cheirando o pasto sem o poder provar.
E ele e dom Lupe discutiam e voltavam a discutir sem chegarem a acordo.
Até que uma vez dom Lupe lhe disse:
- Olha, Juvêncio, outro animal mais que tu metes no pasto e eu mato.

E ele respondeu:
- Olhe, dom Lupe, eu não tenho a culpa que os animais procurem o seu conforto. Eles são inocentes. Você verá as consequências, se os matar.
E matou-me um novilho.
Isto aconteceu há trinta e cinco anos, em Março, porque em Abril eu já andava no monte, fugindo da precatória. De nada me serviram as dez vacas que dei ao juiz, nem a penhora da minha casa para lhe pagar a minha saída da prisão. Ainda depois se pagaram com o que restava, só para não me perseguirem, embora de toda a maneira me tenham perseguido. Por isso vim viver com o meu filho neste outro terrenozinho que eu tinha e que se chama Paio de Venado. E o meu filho cresceu e casou-se com a minha nora Ignacia e já teve oito filhos. Assim como assim a coisa já vai para velha, e por isso deveria estar esquecida. Mas, pelos vistos, não está.
Eu então calculei que com uns cem pesos ficava tudo arrumado. O defunto dom Lupe era sozinho, vivia só com a mulher e os dois rapazinhos ainda de gatas. E a viúva depressa morreu também, dizem que de tristeza. E aos rapazinhos levaram-nos para longe, para casa de uns parentes. Assim que, pela parte deles, não havia que ter medo.
Mas os demais insistiam em que eu andava com a precatórias em julgamento para me assustarem e continuarem a roubar-me. Cada vez que alguém chegava à aldeia avisavam-me:
- Andam por aí uns forasteiros, Juvêncio.
E eu fugia para o monte, emaranhando-me entre os medronheiros e passando os dias a comer só beldroegas. Às vezes tinha que sair à meia-noite, como se me estivessem perseguindo os cães. Isso durou a vida toda. Não foi um ano nem dois. Foi a vida toda.
E agora tinham ido à sua procura, quando já não esperava ninguém, confiado no esquecimento em que as pessoas o tinham; acreditando que pelo menos os seus últimos dias os passaria tranquilo. «Pelo menos isto» pensou «conseguirei com estar velho. Deixar-me-ão em paz.»
Tinha-se entregado a esta esperança por inteiro. Era por isso que lhe custava trabalho imaginar que ia morrer assim de repente, nesta altura da sua vida, depois de tanto lutar para se livrar da morte; de ter passado o seu melhor tempo andando de um lado para o outro arrastado pelos sobressaltos e quando o seu corpo tinha acabado por ser um simples couro duro, curtido pelos maus dias em que teve que andar a esconder-se de todos.
Não tinha ele, por acaso, deixado até que a mulher lhe abalasse? Naquele dia que amanheceu com a novidade de que a mulher se tinha ido embora, nem sequer lhe passou pela cabeça a intenção de sair a procurá-la. Deixou que abalasse sem perguntar nem com quem nem para onde, para não ter de descer à aldeia. Deixou que se fosse como se lhe tinha ido tudo o resto, sem mexer uma palha. A única coisa que lhe restava para cuidar era a vida, e esta conservá-la-ia fosse como fosse. Não podia deixar que o matassem. Não podia. Muito menos agora. Mas para isso o tinham trazido de lá, de Paio de Venado. Não precisaram de amarrá-lo para que os seguisse. Ele andou sozinho, unicamente manietado pelo medo. Eles deram-se conta de que ele não podia correr com aquele corpo velho, com aquelas pernas fracas como cordas secas, inteiriçadas, com o medo de morrer. Porque ia para isso. Para morrer, disseram.
Soube desde então. Começou a sentir essa comichão no estômago, que lhe chegava de repente sempre que via a morte de perto e que lhe puxava a ânsia pelos olhos, e que lhe inchava a boca com aqueles goles de água azeda que tinha que engolir sem querer. E essa coisa que lhe fazia os pés pesados enquanto a cabeça lhe amolecia e o coração lhe batia com todas as suas forças nas costelas. Não, não se podia acostumar à ideia que o matassem.
Tinha que haver alguma esperança. Em algum lugar poderia ainda restar alguma esperança. Talvez eles se tivessem enganado. Talvez procurassem outro Juvêncio Nava e não o Juvêncio Nava que ele era.
Caminhou entre aqueles homens em silêncio, de braços caídos. A madrugada era escura, sem estrelas. O vento soprava devagar, levava consigo a terra seca e trazia mais, cheio desse cheiro como de urina que tem o pó dos caminhos.
Os seus olhos, que com os anos se tinham encarquilhado, vinham vendo a terra, aqui, debaixo dos seus pés, apesar da escuridão. Ali na terra estava toda a sua vida. Sessenta anos a viver dela, contendo-a entre as suas mãos, depois de a ter provado como se prova o sabor da carne. Veio durante longo tempo esmiuçando-a com os olhos, saboreando cada pedaço como se fosse o último, quase sabendo que seria o último.
Depois, como querendo dizer alguma coisa, olhava os homens que iam junto dele. Ia dizer-lhes que o soltassem, que o deixassem abalar: «Eu não fiz mal a ninguém, rapazes», ia dizer-lhes, mas ficava calado. «Mais adiante digo-lhes», pensava. E só os olhava. Podia até imaginar que eram seus amigos; mas não o queria fazer. Não eram. Não sabia quem eram. Via-os a seu lado inclinando-se e agachando-se de vez em quando para ver por onde seguia o caminho.
Tinha-os visto pela primeira vez ao empardecer da tarde, nessa hora desbotada em que tudo parece chamuscado. Tinham atravessado os sulcos pisando o milho tenro. E ele tinha descido para isso: para lhes dizer que ali estava a começar a crescer o milho. Mas eles não se detiveram.
Tinha-os visto bastante tempo. Sempre teve a sorte de ver tudo com bastante tempo. Podia ter-se escondido, caminhar umas quantas horas pelo cerro enquanto eles não abalavam e depois voltar a descer. Ao fim e ao cabo, o milho não cresceria de maneira nenhuma. Já era tempo de terem chegado as águas e as águas não apareciam e o milho começava a murchar. Não tardaria em estar completamente seco.
Assim nem merecia a pena ter descido; ter-se metido entre aqueles homens como num buraco, para já não voltar a sair.
E agora continuava junto deles, aguentando a vontade de lhes dizer que o soltassem. Não lhes via a cara; só via os vultos que se juntavam ou se separavam dele. De tal maneira que, quando se pôs a falar, não soube se o tinham ouvido. Disse:
- Eu nunca fiz mal a ninguém - disse isso. Mas nada mudou. Nenhum dos vultos pareceu aperceber-se. As caras não se viraram para o ver. Continuaram na mesma, como se tivessem vindo a dormir.
Então pensou que não tinha mais nada para dizer, que teria de procurar a esperança em qualquer outro lugar. Deixou cair outra vez os braços e entrou nas primeiras casas da aldeia no meio daqueles quatro homens escurecidos pelo negro calor da noite.
- Meu coronel, aqui está o homem.
Tinham parado à frente da ombreira da porta. Ele, com o seu chapéu na mão, por respeito, esperando ver sair alguém. Mas só saiu a voz:
- Qual homem? - perguntaram.
- O de Paio de Venado, meu coronel. O que o senhor nos mandou buscar.
- Pergunta-lhe se alguma vez viveu em Alima - voltou a dizer a voz de lá de dentro.
- Eh, tu! O coronel pergunta se habitaste em Alima? repetiu o sargento que estava à frente dele. .
- Sim. Diga ao coronel que sou mesmo de lá. E que lá vivi até há pouco tempo.
- Pergunta-lhe se conheceu Guadalupe Terreros.
- Está a perguntar se conheceste Guadalupe Terreros.
- Ao dom Lupe? Sim. Diga que sim que o conheci. Já morreu.
Então a voz lá de dentro mudou de tom:
- Já sei que morreu - disse. E continuou a falar como se conversasse com alguém, do outro lado da parede de carriços:
- Guadalupe Terreros era meu pai. Quando cresci e o procurei disseram-me que estava morto. É um bocado difícil crescer sabendo que a coisa a que podemos agarrar-nos para criar raízes está morta. Conosco, aconteceu isso. Depois soube que o tinham matado à machadada, cravando-lhe depois uma vara de ferrão no estômago. Contaram-me que ele sobreviveu mais de dois dias perdido e que, quando o encontraram, atirado num arroio, ainda estava agonizando e pedindo que se encarregassem de lhe cuidar da família. Isto, com o tempo, parece que se esquece. Uma pessoa tenta esquecer. Aquilo que não se esquece é chegar a saber que quem fez aquilo ainda está vivo, alimentando a sua alma podre com a ilusão da vida eterna. Não poderia perdoar-lhe, embora não o conheça; mas o facto de se ter posto no lugar onde eu sei que está, dá-me ânimo para acabar com ele. Não lhe posso perdoar que continue a viver. Não devia ter nascido nunca.
Daqui, de cá de fora, ouviu-se claramente tudo o que disse. Depois ordenou:
- Levem-no e amarrem-no um bocado, para que padeça, e depois fuzilem-no!
- Olha para mim, coronel! - pediu ele. - Já não valho nada. Não tardarei em morrer sozinho, derreado de velho. Não me mates!
- Levem-no! - voltou a dizer a voz lá de dentro.
- ... Já paguei, coronel. Paguei muitas vezes. Tiraram-me tudo. Castigaram-me de muitas formas. Passei coisa de quarenta anos escondido como um pestilento, sempre com o palpite de que a qualquer momento me matariam. Não mereço morrer assim, coronel. Deixa que, pelo menos, o Senhor me perdoe. Não me mates! Diga que não me matem!
Estava ali, como se lhe tivessem batido, sacudindo o seu chapéu contra a terra. Gritando.
De seguida a voz lá de dentro disse:
- Amarrem-no e dêem-lhe alguma coisa para beber até que se embebede para não lhe doerem os tiros.
Agora, por fim, tinha-se apaziguado. Estava ali encostado ao pé da estaca. Tinha vindo o seu filho Justino e o seu filho Justino tinha abalado e tinha voltado e agora vinha outra vez.
Pô-lo em cima do burro. Amarrou-o bem amarrado aos arreios para que não caísse pelo caminho. Meteu-lhe a cabeça dentro de um saco para que não desse má impressão. E depois deu um puxão na crina do burro e abalaram, lançados, depressa, para chegar a Paio de Venado ainda com tempo para organizar o velório do defunto.

- A tua nora e os teus netos vão ter saudades tuas - ia dizendo. - Olhar-te-ão na cara e pensarão que não és tu. Vai parecer-lhes que foi o coiote que te comeu, quando te virem com essa cara tão cheia de buracos por causa de tanto tiro de misericórdia que te deram.

3 comentários: