Começo
por um conto de impacto. Um exemplo de como, em poucas paginas, um grande autor
pode inspirar mais emoções que muitos longos romances: "To build a
fire" (Acendendo a fogueira em português) de Jack London (escritor
americano que viveu de 1876 a 1916.) Conto de um autor maduro; provavelmente
escrito em torno a 1904, quando London estava próximo aos trinta anos e já
tinha escrito e publicado "The call of the wind." É um exemplo
clássico de um conto escrito na terceira pessoa que permite ao autor transitar,
sempre que necessário, das reflexões do homem para as percepções do cão. O que merece
destaque é como o autor consegue manter o suspense até o final em uma historia
com tão poucos elementos (apenas o frio, o fogo e o cão.) E incrível a emoção
que ele provoca (com elegância e sem exageros) quando o homem considera a opção
de utilizar o cão para aaquecer suas mãos. Aqui no blog você pode encontrar a versão em português e se quiser em inglês: http://www.jacklondons.net/buildafire.html Ou espanhol: http://www.ciudadseva.com/textos/cuentos/ing/london/encender_una_hoguera.htm.
Jack London
Tradução
do texto original com o título
To Build a Fire
in SELECTED
NORTHLAND TALES
Oxford University Press,
Oxford-New York, 1996
©Luís Varela
Pinto
Fazer uma Fogueira
O dia tinha já rompido frio e cinzento,
extremamente frio e cinzento, quando o homem deixou o trilho principal do Yukon
e subiu pela alta margem de terra, onde um trilho muito leve, pouco pisado, se
dirigia para Leste por entre uma floresta de grossos abetos. A margem era
íngreme e ele parou para tomar fôlego, olhando o relógio para justificar aquela
paragem perante si próprio. Não havia sol, nem vestígios dele, embora não
houvesse uma só nuvem no céu. Estava um dia claro, e contudo parecia haver um
manto intangível a cobrir todas as coisas, uma subtil melancolia que tornava o
dia escuro e que se devia à ausência do sol no céu. Este facto não preocupava o
homem. Já estava habituado à falta do sol. Já não o via há alguns dias e sabia
que mais alguns se passariam antes que a alegre esfera, a cumprir o seu
percurso a Sul, espreitasse apenas acima do horizonte para logo desaparecer da
vista.
O homem lançou um olhar para trás, para
o caminho que trouxera. Lá estava o Yukon, uma milha de largura, escondido sob
um metro de gelo. E sobre este gelo outro tanto de neve. Era toda uma brancura
imaculada, rolando em suaves ondulações nos sítios onde a congelação tinha
formado montes de gelo. Para Norte e para Sul, até onde a vista alcançava, era
tudo de uma brancura ininterrupta, salvo uma fina linha escura que em curva se
afastava da ilha coberta de abetos em direção ao Sul, e que curvava depois para
Norte e desaparecia por detrás de outra ilha coberta de abetos. Esta fina linha
escura era o trilho — o trilho principal — que levava até ao Chilcoot Pass,
Dyea, e à água salgada, quinhentas milhas mais adiante; e que para Norte ia até
Dawson, a setenta milhas, e ainda mais para Norte até Nulata, a mil milhas, e
finalmente até St.Michael, no Mar de Bering, mil e quinhentas milhas mais
adiante.
Mas nada disto — nem a misteriosa linha
do trilho a perder de vista, nem a ausência do sol, nem o tremendo frio, nem a
singularidade ou o carácter estranho de tudo aquilo — deixava qualquer
impressão no homem. Não que ele já estivesse há muito habituado a eles. Ele era
novo naquelas terras, um chechaquo, e este era o seu primeiro inverno naquelas
paragens. O problema dele era a falta de imaginação. Era esperto e estava
atento às coisas da vida, mas apenas às coisas e não ao significado delas.
Cinquenta graus negativos significavam oitenta e tal graus de congelação. Tal
facto, para ele, significava frio e desconforto, e apenas isso. Não o levava a
meditar sobre a sua fragilidade como criatura de temperatura que era, ou sobre
a fragilidade do homem em geral, apenas capaz de viver dentro de certos limites
muito estreitos de calor e frio; e não o levava, daí para a frente, para o
campo das conjecturas sobre a imortalidade e sobre o lugar do homem no
universo. Cinquenta graus negativos representavam uma picada do frio, que faz
doer e de que a gente se deve resguardar usando luvas, lobos de orelha, botas
quentes de pele e meias grossas. Cinquenta graus negativos, para ele, eram
apenas e só cinquenta graus negativos. Nunca lhe passara pela cabeça que
pudessem ser mais alguma coisa.
Quando se virou para prosseguir o seu
caminho, cuspiu, distraído a refletir. Ouviu um estalido agudo que o despertou.
Cuspiu outra vez. E outra vez, no ar, antes de cair na neve, o cuspo estalou.
Ele sabia que a cinquenta graus abaixo de zero o cuspo estalava na neve, mas
este cuspo tinha estalado no ar. Não havia dúvida de que estava mais frio do
que cinquenta abaixo de zero — quanto é que ele não sabia. Mas a temperatura
não importava. Ele dirigia-se à velha concessão no braço esquerdo da bifurcação
do Henderson Creek, onde os rapazes já se encontravam. Eles tinham vindo da
região do Indian Creek, atravessando as montanhas, enquanto que ele tinha feito
um desvio para ver das possibilidades de retirar os toros de madeira das ilhas
do Yukon na Primavera. Ia lá chegar pelas seis horas; um pouco tarde,
realmente, mas os rapazes lá estariam, já teriam uma fogueira e uma refeição
quente pronta. Quanto ao almoço, apalpou o volume que sobressaía por baixo do
casaco. Estava também por baixo da camisa, embrulhado num lenço contra a pele
nua. Era a única maneira de conservar as bolachas sem congelarem. Sorriu para
si próprio quando pensou naquelas bolachas, abertas uma a uma e embebidas na
gordura do bacon e cada uma delas com uma generosa fatia de bacon frito.
Mergulhou na floresta, no meio dos
enormes abetos. O trilho estava muito sumido. Já tinham caído trinta
centímetros de neve desde a última passagem de um trenó, e ainda bem que ele
não trazia um trenó, e ia assim tão leve. De facto, ele não trazia senão o
almoço embrulhado num lenço. Estava era surpreendido com o frio. Estava
realmente muito frio, concluiu, enquanto esfregava, com a mão enluvada, o nariz
e as faces dormentes. Ele usava suíças, mas aqueles pelos não lhe protegiam a
parte frontal da cara e o nariz ansioso, que se espetava agressivamente no ar
gelado.
A trote e na peugada do homem, vinha um
cão, um cão grande arraçado de lobo, daqueles com que andam os esquimós, e em
nada diferente, física ou temperamentalmente do seu irmão, o lobo selvagem. O
animal estava abatido, daquele frio tremendo. Ele sabia que não era altura para
andar a viajar. O instinto fornecia-lhe uma informação mais real do que aquela
que o homem obtinha através da sua própria avaliação. Na verdade, aquele frio
não era só de cinquenta graus abaixo de zero; era de mais de sessenta ou setenta
graus abaixo de zero. Era de setenta e cinco graus abaixo de zero. Como o ponto
de congelação é de trinta e dois graus acima de zero, a temperatura chegara
portanto aos cento e sete graus abaixo do ponto de congelação*. O cão não sabia
nada de termómetros. Provavelmente não havia no seu cérebro qualquer noção exata
do frio como a que havia no do homem. Mas o animal tinha o seu instinto e
sentia uma vaga mas ameaçadora apreensão que o dominava e o fazia seguir na
peugada do homem e o fazia questionar ansiosamente cada um dos seus movimentos
menos habituais como se estivesse à espera que ele fosse acampar ali ou fosse
procurar abrigo algures e fazer uma fogueira. Ele aprendera a conhecer as
fogueiras e precisava de uma fogueira, ou então de escavar um buraco sob a neve
para se aquecer aninhando-se ao abrigo da atmosfera exterior.
O orvalho resultante da respiração
fixava-se-lhe no pelo na forma de um fino pó de gelo, e em especial o queixo, o
focinho e as pestanas estavam brancos do seu bafo cristalizado. A barba e o
bigode ruivos do homem estavam igualmente congelados, mas mais solidamente,
tendo aqui a forma de gelo mesmo e aumentando a cada uma das suas expirações
quentes e húmidas. Além disso, o homem ia a mascar tabaco e o gelo que lhe
cobria a boca firmava-lhe os lábios de tal maneira que ele não conseguia limpar
o queixo quando expelia o suco. O resultado era uma barba cristalizada da cor e
da consistência do âmbar e que ia aumentando de tamanho no queixo. Se ele
caísse, aquilo estilhaçava-se como vidro. Mas aquele apêndice não o preocupava.
Era o preço a pagar por aqueles que mascavam tabaco naquelas terras, e ele já
tinha tido duas experiências idênticas. O frio não era tanto, ele sabia-o, mas
pelo termómetro de álcool em Sixty Mile ele soubera que se tinham registado
temperaturas de cinquenta e cinquenta e cinco.
Continuou por uma extensão plana de
floresta durante algumas milhas, atravessou uma vasta planície coberta de
moitas e depois meteu por uma encosta abaixo em direção ao leito gelado de um
pequeno ribeiro. Era o Henderson Creek, e ele sabia que estava a dez milhas da
bifurcação. Consultou o relógio. Eram dez horas. Estava a fazer quatro milhas
por hora e calculou que devia chegar à bifurcação ao meio-dia e meia. Resolveu
que almoçaria lá para comemorar o acontecimento.
O cão continuava a segui-lo num desânimo
de cauda pendente enquanto o homem gingava ao longo do leito do ribeiro. O
sulco do velho rasto de trenó era bem visível, mas alguns centímetros de neve
cobriam as marcas de patins mais recentes. Há um mês que ninguém passava, para
cima ou para baixo, naquele ribeiro silencioso. O homem prosseguiu determinado.
Ele não era muito dado a pensar, e particularmente naquela ocasião não tinha
nada em que pensar a não ser em que iria almoçar na bifurcação e que às seis
horas estaria no acampamento com os rapazes. Não havia ninguém com quem falar;
e, se houvesse, teria sido impossível falar por causa da mordaça de gelo que
lhe cobria a boca. Assim, continuou monotonamente a mascar tabaco e a fazer
crescer a sua barba de âmbar.
De vez em quando vinha-lhe à ideia o
terrível frio que fazia, e que nunca sentira tal frio. À medida que caminhava
ia esfregando a cara e o nariz com as costas da mão enluvada. Fazia isto
mecanicamente, mudando de mão de quando em vez. Mas por muito que esfregasse,
assim que deixava de o fazer os malares ficavam logo dormentes e depois também
a ponta do nariz. A cara ia certamente ficar gelada; ele sabia isso, e era com
grande angústia que se arrependia de não ter arranjado uma proteção para o
nariz do género da que o Bud usava durante as vagas de frio. Essas proteções
passavam também pela cara e protegiam-na. Mas, afinal, também não importava
muito. Qual era o problema de ter a cara gelada? Um pouco doloroso, só isso;
nunca era coisa muito grave.
Vazia de ideias como a sua cabeça era, o
homem era, porém, muito observador, e reparou nas mudanças do ribeiro, as
lombas, as curvas e os ramos de árvore, e tinha sempre o cuidado de ver onde
punha os pés. Uma vez, depois de uma curva, recuou abruptamente, como um cavalo
assustado, desviou-se do sítio por onde tinha vindo a caminhar e retrocedeu
alguns passos no trilho. O ribeiro sabia ele que estava gelado até ao fundo —
nenhum ribeiro podia ter água naquele inverno polar — mas também sabia que
havia nascentes que borbulhavam nas encostas dos montes e cuja água corria
encosta abaixo sob a neve e por cima do gelo do ribeiro. Ele sabia que mesmo as
mais rigorosas vagas de frio nunca conseguiam congelar estas nascentes, e
conhecia igualmente o seu perigo. Eram armadilhas. Escondiam poças de água, debaixo
da neve, que podiam ter um centímetro ou um metro de profundidade. Às vezes
estavam cobertos por uma fina camada de gelo de três centímetros, que, por sua
vez, estava coberta de neve. Outras vezes, havia camadas alternadas de água e
gelo, de modo que, quando uma se quebrava, as outras começavam a quebrar-se por
ali abaixo e a pessoa podia ficar metida na água até à cintura.
Esta a razão por que ele recuara tão
assustado. Tinha sentido o gelo a ceder sob os seus pés e ouviu o estalido da
camada de gelo escondida sob a neve. E molhar os pés com tal temperatura
significava perigo e problemas iminentes. Significava na melhor das hipóteses
um atraso, porque seria obrigado a parar para acender uma fogueira cujo calor
lhe permitisse ficar descalço enquanto secava as botas e as meias. Ficou a
estudar o ribeiro e as margens e concluiu que a água vinha da direita.
Reflectiu por momentos, esfregando a cara e o nariz, depois desviou-se para a
esquerda, a caminhar cautelosamente e a experimentar a firmeza do piso passo a
passo. Passado o perigo, meteu na boca mais um bocado de tabaco para mascar e
lá prosseguiu no seu ritmo de quatro milhas por hora.
No decurso das duas horas seguintes, deparou com
várias destas armadilhas. Geralmente a neve que escondia as poças tinha um
aspecto cavado, de açúcar cristalizado, que anunciava o perigo. E mais uma vez
escapou por um triz; e uma das vezes, desconfiando do perigo, obrigou o cão a
ir na frente. O cão não queria ir. Foi ficando para trás até que o homem o
enxotou para a frente, e depois atravessou rapidamente a superfície branca.
Subitamente o gelo quebrou e o cão debateu-se por momentos, desequilibrado para
um dos lados, mas depois conseguiu sair para piso mais firme. Tinha molhado as
patas e pernas da frente, e quase imediatamente a água que ficara agarrada ao
pelo transformou-se em gelo. Fez rápidos esforços para o remover lambendo as
pernas e depois sentou-se na neve começando a morder o gelo que se tinha
formado entre os dedos para o tirar também. Fez isto apenas por instinto.
Deixar ficar o gelo significaria pés em ferida e ele não sabia isso. Apenas
obedeceu à misteriosa indicação vinda das profundezas ocultas do seu ser. Mas o
homem compreendeu-o, depois de avaliar a questão, e tirou a luva da mão direita
e ajudou-o a remover as partículas de gelo. Não expôs os dedos ao ar mais do
que um minuto, e ficou espantado com a rapidez com que o entorpecimento os
atingiu. Estava realmente muito frio. Calçou rapidamente a luva e começou a
bater ferozmente com a mão no peito.
Às doze horas o dia atingia a sua
claridade máxima. Mas o sol andava tão para sul na sua viagem invernal que não
conseguia clarear o horizonte. O bojo da terra interpunha-se entre ele e o
Henderson Creek, onde o homem caminhava sob um céu limpo, ao meio dia, sem projetar
qualquer sombra. Ao meio-dia e meia, pontualmente, chegava ele à bifurcação do
ribeiro. Estava satisfeito com o andamento que conseguira. Se o conseguisse
manter estaria certamente com os rapazes pelas seis horas. Desabotoou o casaco
e a camisa e tirou o almoço para fora. Esta tarefa não lhe demorou mais de um
quarto de minuto, mas esse curto espaço de tempo foi suficiente para que os
dedos expostos ao ar lhe ficassem dormentes. Não calçou a luva, em vez disso
começou a bater repetidamente com os dedos nas pernas. Depois sentou-se num
tronco coberto de neve para comer. O formigueiro nos dedos, depois de ter
batido com eles nas pernas, cessou tão depressa que ele ficou sobressaltado.
Não tinha tido qualquer possibilidade de dar uma única dentada nas bolachas.
Bateu com os dedos repetidamente e calçou a luva, descalçando a outra mão para
comer. Tentou uma dentada de boca cheia, mas a mordaça de gelo impediu-o.
Esquecera-se de fazer uma fogueira para derreter o gelo. Riu-se da sua
insensatez, e enquanto ria começou a notar a dormência a subir-lhe pelos dedos
nus acima. E notou também que o formigueiro que começara a sentir nos dedos dos
pés quando se sentara já estava a passar. Não sabia bem se os dedos dos pés
estavam quentes ou dormentes. Mexeu-os dentro das botas e concluiu que estavam
dormentes.
Calçou a luva rapidamente e pôs-se de
pé. Começava a ficar um tanto assustado. Começou a bater com os pés até o
formigueiro voltar. Só pensava que estava realmente muito frio. Aquele homem de
Sulphur Creek tinha razão quando lhe falou do muito frio que às vezes se fazia
sentir na região. E ele nessa altura rira-se do homem! Isto mostrava que não
devemos ter tanta certeza das coisas. Não havia qualquer dúvida sobre isso,
estava mesmo frio. Começou a andar energicamente de um lado para o outro,
batendo com os pés e sacudindo os braços até conseguir que aquecessem. Depois
pegou nos fósforos e começou a fazer uma fogueira. Nas moitas, onde a água da
primavera anterior tinha deixado um monte de galhos secos, arranjou ele a
lenha. Começando cuidadosamente de um pequeno lume, depressa conseguiu chamas
grandes a crepitar, sobre as quais derreteu o gelo da cara e ao calor das quais
comeu as suas bolachas. Por enquanto o ar frio estava vencido. O cão aproveitou
bem a fogueira, estendendo-se suficientemente perto para receber o calor
e suficientemente longe para não ficar chamuscado.
Depois de acabar de comer, o homem
encheu o cachimbo e ficou a fumá-lo confortavelmente. Depois calçou as luvas,
apertou bem os lobos de orelhas e tomou o trilho esquerdo da bifurcação. O cão
ficou desapontado e olhava, nostálgico, para a fogueira. Este homem não
conhecia o frio. Possivelmente nenhuma geração dos seus antepassados conheceu o
frio, o verdadeiro frio, o frio de cento e sete graus abaixo do ponto de
congelação. Mas o cão conhecia-o; todos os seus antepassados o conheceram, e
ele herdara esse conhecimento. E sabia que não era bom andar por fora com
aquele frio terrível. O tempo estava bom era para se estar metido num buraco da
neve, bem aconchegado, e esperar que uma cortina de nuvens se viesse descerrar
sobre o espaço exterior donde vinha aquele frio. Por outro lado, também não
havia grande intimidade entre o cão e o homem. O primeiro era escravo do
segundo, e as únicas carícias que alguma vez recebia eram as do chicote e dos
sons guturais que eram já uma ameaça de chicote. E por isso o cão não fez
qualquer esforço para dar a conhecer ao homem a sua apreensão. Ele não estava
preocupado com o bem estar do homem; era apenas por ele próprio que ele sentia
aquela nostalgia da fogueira. E o homem assobiou e falou-lhe em tom de chicote,
e o cão lá seguiu na sua peugada.
O homem meteu mais uma porção de tabaco
na boca e iniciou a construção de uma nova barba âmbar. E o seu bafo húmido
depressa lhe pulverizou de branco o bigode, as sobrancelhas e as pestanas.
Neste trilho esquerdo da bifurcação do Henderson, parecia não haver tantas
nascentes, e durante meia hora o homem não viu vestígios de nenhuma. Mas depois
aconteceu. Num sítio onde não havia quaisquer sinais, onde a neve macia e
ininterrupta parecia indiciar alguma solidez por baixo, o piso cedeu. Não
parecia muito fundo. O homem molhou-se até meio dos tornozelos antes de, a
debater-se, conseguir saltar para terra firme.
Ficou irritado e amaldiçoou a sua pouca
sorte em voz alta. Tivera a esperança de chegar ao acampamento onde estavam os
rapazes pelas seis horas, e isto ia atrasá-lo uma hora, porque ia ter de
acender uma fogueira para secar as botas, as meias e os pés. Com aquela
temperatura, isto tornava-se imperativo — até aí sabia ele; e dirigiu-se para a
margem, que começou a trepar. Lá em cima, emaranhado na vegetação rasteira à
volta dos troncos de pequenos abetos, estava um monte de lenha, deixado pela
subida da água — principalmente paus e galhos, mas também grandes pedaços de
ramos secos e boas canas secas do ano anterior. Atirou vários destes últimos
para baixo, para cima da neve. Isto era para servir de base e evitar que as
primeiras chamas se afogassem na neve, que de outra maneira se derreteria. O
lume conseguiu-o ele friccionando um fósforo num bocado de casca de vidoeiro
que tirou do bolso. Isto ardia ainda melhor do que o papel. Pô-lo sobre a base
e foi alimentando o fogo com tufos de erva seca e com os galhos mais finos.
Trabalhava devagar, com muito cuidado e
muito atento ao perigo em que estava. Pouco a pouco, à medida que as chamas
cresciam, ia aumentando o tamanho dos ramos com que as estava a alimentar.
Agachou-se na neve, a desemaranhar os ramos e ia-os atirando diretamente para a
fogueira. Ele sabia que não podia falhar. Quando a temperatura está a setenta e
cinco graus abaixo de zero, um homem não pode falhar na primeira tentativa para
acender uma fogueira — quer dizer, se tiver os pés molhados. Se tiver os pés secos
e falhar pode correr meia milha pelo trilho fora para restabelecer a
circulação. Mas a circulação nos pés molhados e gelados não se pode
restabelecer correndo, quando estão setenta e cinco graus abaixo de zero. Por
mais depressa que corra, os pés molhados gelarão cada vez mais.
Tudo isto o homem sabia. Aquele veterano
em Sulphur Creek tinha falado nisto no outro outono e agora é que ele estava a
dar valor ao conselho. Já não sentia os pés. Para fazer a fogueira tinha sido
obrigado a descalçar as luvas, e os dedos ficaram logo dormentes. O seu
andamento de quatro milhas por hora tinha-lhe mantido o coração a bombear
sangue para toda a superfície do corpo e para todas as extremidades. Mas no
momento em que ele parou, a ação da bomba, abrandou. O frio do espaço atacou a
ponta desprotegida do planeta, e estando ele nessa ponta desprotegida, recebeu
o golpe em toda a sua força. O sangue do corpo retraiu-se perante o ataque. O
sangue estava vivo, como o cão, e tal como o cão, queria recolher-se e
proteger-se daquele frio terrível. Enquanto andasse a quatro milhas por hora, o
coração, quisesse ou não, bombeava esse sangue para a superfície; mas agora o
sangue refluiu e alojou-se-lhe nos recessos do corpo. As extremidades foram as
primeiras a sentir a sua ausência. Os pés molhados eram os que gelavam mais
depressa, e os dedos nus eram os que adormeciam mais depressa, embora ainda não
tivessem começado a gelar. O nariz e a cara já estavam a começar a gelar,
enquanto a pele por todo o seu corpo arrefecia com a perda do sangue.
Mas estava salvo. Os dedos dos pés, o
nariz e a cara só seriam ligeiramente afectados pela congelação, porque a
fogueira estava a começar a arder bem. Ele estava a alimentá-la com ramos da
espessura de um dedo. Mais um instante e poderia começar a alimentá-la com
ramos da espessura do pulso, e então já poderia descalçar-se e, enquanto secava
as botas e as meias, poderia manter os pés descalços quentes à fogueira,
esfregando-os primeiro, claro, com neve. A fogueira foi um sucesso. Estava salvo.
Lembrou-se do conselho do veterano em Sulphur Creek e sorriu. O veterano tinha
falado muito a sério quando lhe ditou a regra segundo a qual ninguém deve
viajar sozinho no Klondike com temperaturas abaixo dos cinquenta graus. E ali
estava ele; tinha tido aquele acidente; estava sozinho e tinha-se salvo.
Aqueles velhos veteranos eram muito maricas, alguns deles, pensou. O que era
preciso era não perder a cabeça, e assim as coisas correriam bem. Qualquer
homem que seja homem pode viajar sozinho. Mas era espantosa a rapidez com que a
cara e o nariz estavam a gelar. E nunca imaginara que os dedos pudessem ficar
sem vida em tão pouco tempo. E estavam de facto, sem vida, porque ele mal os
podia mexer para agarrar um ramo, e parecia-lhe que estavam afastados do corpo
e dele próprio. Quando tocava num ramo, tinha de olhar para ver se o estava a
agarrar ou não. As comunicações entre ele e as pontas dos dedos estavam
bastante fracas.
Mas nada disto contava muito. Estava ali
a fogueira a estalar e a crepitar, uma promessa de vida a dançar em cada
labareda. Começou a desapertar as botas. Estavam cobertas de gelo; as grossas
meias alemãs pareciam bainhas de ferro até meio da perna; e os atacadores das
botas pareciam varetas de aço, todas torcidas e cheias de nós como em resultado
de uma explosão. Durante um bocado ainda tentou puxá-los com a mão, mas depois,
percebendo o disparate que estava a fazer pegou na navalha.
Mas antes de poder cortar os atacadores,
aconteceu aquilo. A culpa, ou melhor, o erro foi seu. Não devia ter feito a
fogueira por baixo do abeto. Devia tê-la feito numa clareira. Mas assim tinha
sido mais fácil puxar os ramos e pô-los diretamente sobre o fogo. Ora, a árvore
sob a qual ele a fizera tinha uma grande carga de neve sobre os ramos. Há
semanas que não corria vento nenhum, e todos os ramos estavam carregadinhos de
neve. Enquanto estivera a fazer a fogueira, de cada vez que puxava um ramo transmitia
uma ligeira agitação à árvore — uma agitação imperceptível para ele, mas a
bastante para provocar o desastre. Um ramo no topo da árvore cedeu e deixou
cair a neve sobre os ramos que lhe ficavam por baixo, os quais, por sua vez,
cederam também. Este processo continuou, estendendo-se a toda a árvore. A neve
cresceu como uma avalanche e acabou por cair sobre o homem e sobre a fogueira e
o fogo apagou-se! No sítio da fogueira estava agora apenas um monte de neve
fresca.
O homem ficou abalado. Era como se
acabasse de ouvir a sua própria sentença de morte. Ficou sentado por momentos a
olhar para o sítio onde ainda há pouco ardia a fogueira. Depois ficou muito
calmo. Talvez o velho veterano de Sulphur Creek tivesse razão. Se tivesse ali
consigo um companheiro, não estaria agora em perigo. O companheiro podia fazer
a fogueira. Mas assim era ele que tinha de fazer a fogueira de novo, e desta
vez não podia falhar. Mesmo que conseguisse, ia certamente ficar sem alguns
dedos dos pés. Os pés deviam estar agora gravemente congelados e a segunda
fogueira ainda ia demorar a fazer.
Era isto que ele estava a pensar, mas
não se deixou ficar parado. Esteve sempre em atividade enquanto estes
pensamentos lhe ocorriam. Construiu uma nova base para a fogueira, desta vez
numa clareira, onde nenhuma árvore traiçoeira a poderia apagar. A seguir,
juntou ervas secas e alguns galhos do monte deixado pela subida das águas. Não
conseguia apertar os dedos para os puxar, mas conseguiu juntá-los às mãos
cheias. Mas desta maneira arrastou também muitos galhos podres e bocados de
musgo indesejáveis, mas era o melhor que conseguia fazer. Trabalhava
metodicamente, juntando mesmo um braçado de ramos maiores que serviriam mais
tarde quando o fogo já estivesse mais forte. E enquanto isto, o cão estava
sentado a observá-lo com uma certa ansiedade nostálgica no olhar, porque o
estava a ver como o fazedor de fogueiras, e a fogueira tardava.
Quando já estava tudo pronto, o homem
procurou no bolso uma segunda casca de vidoeiro. Ele sabia que a casca lá
estava e, embora não a pudesse sentir com os dedos, ouvia o seu ruge-ruge
enquanto tentava desajeitadamente agarrá-la. Por muito que tentasse, não
conseguia agarrá-la. E durante todo o tempo, ele sabia, bem no fundo do seu
consciente, que os pés lhe estavam a congelar momento a momento. Esta ideia
inclinava-o para o pânico, mas lutou contra isso e manteve a calma. Com os
dentes, calçou as luvas e começou a balançar os braços para a frente e para
trás batendo com as mãos nas pernas com toda a sua força. Estava a fazer isto
sentado e depois levantou-se; e durante este tempo, o cão continuava sentado na
neve, com a cauda de lobo enroscada à volta das patas anteriores, as orelhas
pontiagudas de lobo viradas intencionalmente para a frente enquanto observava o
homem. E o homem, enquanto balançava os braços e batia com as mãos, foi
invadido por um enorme sentimento de inveja ao ver aquela criatura que estava
quente e segura na sua proteção natural.
Algum tempo depois começou a sentir os
primeiros sinais muito longínquos de sensibilidade nos dedos. O ligeiro
formigueiro aumentou até se transformar em picadas muito dolorosas, mas que o
homem abençoou com satisfação. Tirou a luva da mão direita e meteu-a no bolso a
buscar a casca de vidoeiro. Os dedos expostos ao ar começaram logo a adormecer
outra vez. A seguir tirou um punhado de fósforos. Mas aquele frio tremendo já
arrancara a vida aos dedos outra vez. No seu esforço para separar um fósforo
dos outros, caíram-lhe todos na neve. Tentou apanhá-los mas não conseguiu. Os
dedos mortos não lhes conseguiam tocar nem agarrá-los. Ele agia com muito
cuidado. Afastou do pensamento a ideia da cara e dos pés e do nariz que estavam
a gelar, devotando toda a sua alma aos fósforos. Ficou a observar, usando o
sentido da visão em vez do tacto, e quando viu os dedos um de cada lado do maço
de fósforos apertou-os — ou melhor, quis apertá-los, porque as comunicações
estavam cortadas e os dedos não obedeciam. Calçou a luva da mão direita e bateu
com ela violentamente contra o joelho. Depois, com ambas as mãos enluvadas
servindo como que de colher apanhou o punhado dos fósforos juntamente com muita
neve e depositou tudo sobre o colo. Contudo as coisas não melhoraram muito.
Depois de alguma manipulação, conseguiu
agarrar o maço de fósforos juntando as palmas das mãos enluvadas e desta
maneira levou-o até à boca. O gelo estalou e partiu-se quando num violento
esforço ele abriu a boca. Recolheu o maxilar inferior e enrolou o lábio
superior para abrir espaço e esgadanhou o molho com os dentes de cima para
separar um fósforo. Conseguiu apanhar um, que deixou cair no colo. Mas mesmo
assim as coisas não melhoraram. Não conseguia agarrá-lo. Então pensou numa
maneira. Pegou-lhe com os dentes e friccionou-o na perna. Vinte foram as vezes
que ele repetiu o movimento até conseguir acendê-lo. Quando isso aconteceu,
levou-o, sempre nos dentes, até à casca de vidoeiro. Mas o enxofre foi-lhe para
as narinas e para os pulmões e fê-lo tossir convulsivamente. O fósforo caiu na
neve e apagou-se.
O velho veterano de Sulphur Creek tinha
razão, pensou ele durante aqueles momentos de desespero controlado que se
seguiram: abaixo dos cinquenta negativos um homem deve viajar sempre
acompanhado de um parceiro. Bateu com as mãos, mas não conseguiu provocar nelas
qualquer sensação. Subitamente descalçou as luvas, puxando-as com os dentes.
Pegou no molho todo com a parte posterior das palmas das mãos juntas. Os
músculos dos braços não estavam gelados, o que lhe permitia apertar as mãos
contra os fósforos. Depois friccionou todo o molho na perna. Os setenta
fósforos acenderam-se todos! Não havia vento para os apagar. Virou a cabeça
para o lado para evitar os gases sufocantes e pôs os fósforos acesos junto da
casca de vidoeiro. Enquanto assim fazia, começou a sentir a mão. Estava a
queimá-la. Sentia-lhe bem o cheiro. Bem lá no fundo, abaixo da superfície, ele
sentia-a. A sensação transformou-se em dor aguda. Mas aguentou, mantendo a
chama dos fósforos desajeitadamente junto da casca que só não pegou logo porque
as mãos se interpunham absorvendo a maior parte da chama.
Por fim, quando já não aguentava mais,
sacudiu as mãos. Os fósforos acesos caíram, a crepitar, na neve, mas a casca
ficou a arder. Começou a pôr canas secas e os galhos mais finos sobre a chama.
Não os podia escolher, porque tinha de pegar neles entre as mãos. Alguns
pequenos pedaços de ramos podres e de musgo verde vinham agarrados aos galhos e
ele arrancou-os o melhor que pôde com os dentes. Tratou da fogueira
desajeitadamente, mas com muito cuidado. Aquele fogo significava vida, não
podia morrer. Agora a retração do sangue da superfície do corpo fê-lo começar a
tremer e ele ficou ainda mais desajeitado. Um grande bocado de musgo verde caiu
mesmo em cima da pequena fogueira. Tentou empurrá-lo com os dedos, mas as
tremuras fizeram com que o seu movimento fosse fundo demais e ele acabou por
desfazer o núcleo da pequena fogueira, e as canas e os pequenos galhos a arder
separaram-se e espalharam-se. Tentou juntá-los de novo, mas apesar da tensão do
esforço, as tremuras dominavam-no e os galhos ficaram irremediavelmente
espalhados. Os galhos deitaram uma fumaça e apagaram-se. O fazedor de fogueiras
falhara. Ao olhar apático à sua volta, deu casualmente com os olhos no cão
sentado na neve à sua frente, do outro lado dos restos da fogueira, fazendo
movimentos impacientes com o corpo, erguendo ligeiramente ora uma ora outra das
patas dianteiras e mudando o peso do corpo de uma para a outra numa ansiedade
melancólica.
Ao ver o cão, ocorreu-lhe uma ideia
louca. Lembrou-se daquela história do homem que, apanhado numa tempestade de
neve, matou um boi e depois se arrastou para dentro da carcaça do animal, assim
se salvando. Matava o cão e enfiava as mãos no corpo quente do animal até a dormência
passar. Depois já podia fazer outra fogueira. Falou para o cão, chamando-o; mas
a voz saiu-lhe com um estranho tom de medo que assustou o animal, que nunca
ouvira o homem a falar-lhe daquela maneira. Alguma coisa se passava, e a sua
natureza desconfiada pressentiu perigo — não sabia exatamente que perigo, mas
algures no seu cérebro havia uma certa apreensão em relação ao homem. Ao ouvir
o homem, achatou as orelhas e os movimentos impacientes do corpo e das patas
acentuaram-se; mas não se chegou a ele. O homem pôs-se de joelhos e, apoiado
nas mãos, gatinhou em direção ao cão. Esta sua invulgar posição também levantou
suspeitas e o animal, a andar de lado, começou a afastar-se.
O homem sentou-se, por momentos, na neve
a procurar acalmar-se. Depois calçou as luvas com os dentes e pôs-se de pé.
Primeiro olhou para baixo para ver se de facto estava de pé, porque a falta de
sensibilidade nos pés deixava-o desligado do solo. Esta sua posição fez com que
as suspeitas do cão se começassem a desvanecer; e quando ele falou em tom
peremptório, com aquele som de chicote na voz, o cão retomou a sua habitual
postura de lealdade e encaminhou-se para ele. Quando chegou perto, o homem
perdeu o controle. Estendeu os braços para o cão e teve uma verdadeira surpresa
quando verificou que as mãos não conseguiam agarrar, que os dedos não se
dobravam e não sentiam. Esquecera-se por momentos de que tinha as mãos geladas
e que continuavam a gelar cada vez mais. Tudo isto aconteceu muito depressa e
antes que o animal pudesse fugir, ele rodeou-lhe o corpo com os braços.
Sentou-se no chão e segurou assim o cão, que entretanto rosnava, gania e se
debatia.
Mas o homem não podia fazer mais nada,
apenas podia mantê-lo seguro, abraçando-lhe o corpo, e continuar sentado.
Compreendeu que não conseguiria matar o cão. Não tinha maneira de o fazer. Com
as mãos naquele estado não conseguia pegar na navalha nem segurá-la na mão, e
também não conseguia estrangular o animal. Soltou-o e ele afastou-se
furiosamente com um salto, rabo entre as pernas e sempre a rosnar. Parou uns
dez metros mais à frente e olhou o homem intrigado, de orelhas espetadas. O
homem olhou para as mãos para as localizar e viu-as pendentes dos braços. E
achou esquisita a sensação de ter de olhar para ver onde estavam as próprias
mãos. Começou a balançar os braços para um lado e para o outro batendo com as
mãos enluvadas nas pernas. Esteve a fazer isto durante cinco minutos,
violentamente, e o coração bombeou para a superfície do corpo sangue suficiente
para ele deixar de tremer. Mas a sensibilidade das mãos não voltava. Sentia as
mãos como se fossem pesos pendurados na extremidades dos braços, mas quando
tentou que essa impressão descesse, não a encontrou.
Um certo medo da morte, opressivo e
entorpecedor, começou a apossar-se dele. Este medo depressa se tornou pungente
quando ele se apercebeu de que a questão já não era só o facto de as mãos e os
dedos dos pés estarem a gelar ou de vir a ficar sem eles, mas uma questão de
vida ou de morte e de que as hipóteses estavam todas contra ele. Isto deixou-o
em pânico e voltou-se e começou a correr pelo leito do ribeiro seguindo o velho
trilho já meio apagado. O cão seguiu-o. Correu cegamente, sem destino, acossado
por um medo que nunca sentira na vida. Gradualmente, à medida que ia sulcando a
neve aos tropeções, começou a ver as coisas outra vez — as margens do ribeiro,
os velhos montes de ramos, os choupos despidos de folhas e o céu. A corrida
fê-lo sentir-se melhor. Já não tremia. Se continuasse a correr, quem sabe,
talvez os pés descongelassem; e em qualquer dos casos, se corresse bastante
chegaria ao acampamento onde estavam os rapazes. Ia ficar sem alguns dedos das
mãos e dos pés e uma parte da cara; mas os rapazes iam tratar dele e salvar o
que dele restasse quando lá chegasse. Mas ao mesmo tempo tinha na cabeça um
outro pensamento que lhe dizia que nunca chegaria ao acampamento dos rapazes;
que o acampamento ficava a muitas milhas de distância e que a congelação tinha
um grande avanço sobre ele e em breve estaria hirto e morto. Esta ideia estava
em fundo e ele recusava-se a considerá-la. Às vezes ela vinha à tona e exigia a
sua atenção, mas ele empurrava-a de novo para baixo para pensar noutras coisas.
Ficou muito admirado de ainda poder
correr, com os pés assim tão gelados que nem os sentia quando eles tocavam o
chão e suportavam o peso do corpo. Tinha visto uma vez, algures, um Mercúrio
alado, e perguntava-se se o Mercúrio se sentiria como ele, assim a planar sobre
a terra.
A sua ideia de ir a
correr até ao acampamento tinha um senão: faltava-lhe a resistência. Tropeçou
várias vezes e por fim cambaleou, não resistiu e acabou por cair. Quando tentou
levantar-se, não conseguiu. Resolveu sentar-se a descansar e depois caminhar simplesmente
e manter o andamento. Depois de se sentar e de ter recuperado o fôlego, notou
que se estava a sentir quente e bem disposto. Não estava a tremer, e até lhe
parecia sentir uma réstia de calor a penetrar-lhe o peito e o tronco. Mas
quando tocava no nariz ou na cara não sentia nada. A corrida não lhes provocava
o degelo. Nem às mãos ou aos pés. E então pensou que a congelação do corpo
devia estar a alastrar. Tentou afastar este pensamento, esquecê-lo, pensar
noutra coisa qualquer; tinha plena consciência do pânico que aquela ideia lhe
provocava, e ele receava o pânico. Mas aquele pensamento instalou-se e
persistiu até lhe produzir uma imagem do corpo completamente gelado. Isto era
demais, e encetou uma nova corrida desenfreada pelo trilho fora. Abrandou uma
vez para voltar a andar a passo, mas aquela ideia da congelação a avançar fê-lo
começar a correr outra vez.
E o cão sempre atrás dele, na sua
peugada. Quando caiu uma segunda vez, o animal enrolou a cauda sobre as patas
dianteiras e sentou-se à sua frente, virado para ele, curiosamente ansioso e
atento. O calor e a segurança do animal encolerizaram-no, e começou a
amaldiçoá-lo até que o animal, apaziguador, achatou as orelhas. Desta vez as
tremuras voltaram mais depressa. Estava a perder a sua luta contra o gelo. A
congelação, vinda de todos os lados, avançava-lhe pelo corpo. Esta ideia fê-lo
continuar, mas não correu mais do que trinta metros e logo vacilou e se
estatelou ao comprido. Era o seu derradeiro pânico. Quando recobrou o fôlego e
o controle, sentou-se e começou a elaborar no seu espírito a ideia de encontrar
a morte com dignidade. Contudo, esta concepção não lhe ocorreu nestes termos. A
sua ideia era que tinha andado a fazer papel de parvo ao lançar-se naquela
correria, qual galinha sem cabeça — foi esta a imagem que lhe veio à ideia.
Bem, como, de qualquer maneira, estava condenado a ficar todo gelado, podia ao
menos aceitar o facto com alguma decência. Com esta paz de espírito recém
descoberta chegaram também os primeiros sinais de sonolência. Uma boa ideia,
pensou ele, dormir até morrer. Era como tomar um anestésico. Gelar não era
afinal tão mau como se pensava. Havia muitas maneiras de morrer bastante
piores.
Imaginou os rapazes a encontrarem o
corpo no dia seguinte. E subitamente viu-se a si próprio a ir com eles pelo
trilho à sua procura. E, ainda com eles, depois de uma curva, deparou com o
próprio corpo deitado na neve. Já não era parte de si mesmo, porque mesmo nessa
altura ele estava fora de si próprio, ali com os rapazes à procura de si
próprio. Estava realmente muito frio, foi o que pensou. Quando voltasse para os
Estados Unidos, já podia dizer aos amigos o que era o verdadeiro frio. Passou
desta imagem para uma visão do velho veterano de Sulphur Creek. Via-o
distintamente, muito confortável e quente, a fumar cachimbo.
— Tinhas razão, velho amigo, tinhas toda
a razão — sussurrou para o velho veterano de Sulphur Creek.
Depois o homem caiu naquilo que lhe
pareceu ser o mais confortável e restaurador dos sonos que jamais
experimentara. O cão continuava sentado a olhar para ele, à espera. O curto dia
aproximava-se do fim num crepúsculo longo e lento. Não havia sinais de que se
fosse fazer qualquer fogueira, e além disso, nunca na sua experiência o cão
conhecera homem nenhum que ficasse sentado na neve sem fazer uma fogueira. À
medida que o crepúsculo avançava, o seu desejo por uma fogueira aumentava, e,
mexendo-se muito e trocando constantemente a posição das patas dianteiras,
começou a ganir baixinho e depois achatou as orelhas, a antecipar os ralhos do
homem. Mas o homem continuava calado. Depois o cão começou a ganir alto, e a
seguir rastejou até junto do homem, mas cheirou-lhe a morte. Isto fê-lo
eriçar-se e recuar. Ficou ainda um pouco a uivar sob as estrelas, que
saltitavam e dançavam brilhantes no céu frio. Depois voltou-se e começou a
trotar pelo trilho adiante em direção ao acampamento que ele conhecia e onde
estavam os outros alimentadores e fazedores de fogueiras.
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