"O barril de Amontillado"(The
Cask of Amontillado) de E. A. Poe escritor americano que viveu entre 1809 e
1849, é considerado por muitos como o precursor do conto moderno. Um daqueles
contos inesquecíveis que quando terminamos, temos vontade de ler outra vez para
tentar descobrir algo mais, como por exemplo os motivos que levaram Montresor a
emparedar Fortunato. Este conto é um exemplo perfeito da ideia de contos de
E.A. Poe; um conto curto, que pode ser lido em uma arrancada, onde cada frase
contribui para o impacto final da historia (sem digressões, redundâncias ou
frases desnecessárias.) Reparem também na ironia e no sadismo dos comentários
de Montresor enquanto leva Fortunato para o seu destino final. O conto pode
ser encontrado em inglês: http://archive.org/stream/thecaskofamontil01063gut/1063.txt.
Em português: http://leianatela.blogspot.com.br/2012/10/o-barril-de-amontillado-edgar-allan-poe.html.E
em espanhol: http://www.ciudadseva.com/textos/cuentos/ing/poe/el_barril_de_amontillado.htm
O Barril de Amontillado
Edgar Allan Poe
Suportei o melhor que pude as
injúrias de Fortunato; mas, quando ousou insultar-me, jurei vingança. Vós, que
tão bem conheceis a natureza de meu caráter, não havereis de supor, no entanto,
que eu tenha proferido qualquer ameaça. No fim, eu seria vingado. Este era um
ponto definitivamente assentado, mas a própria decisão com que eu assim
decidira excluía qualquer ideia de perigo. Assim devia apenas castigar, mas
castigar impunemente. Uma injúria permanece irreparada, quando o castigo alcança
aquele que se vinga. Permanece, igualmente, sem reparado, quando o vingador
deixa de fazer com que aquele que o ofendeu compreenda que e ele quem se vinga.
É preciso que se saiba que, nem
por meio de palavras, nem de qualquer ato, dei a Fortunato motivo para que
duvidasse de minha boa vontade. Continuei, como de costume, a sorrir em sua
presença, e ele não percebia que o meu sorriso, agora, tinha como origem a ideia
da sua imolação.
Esse tal Fortunato tinha um ponto
fraco, embora, sob outros aspectos, fosse um homem digno de ser respeitado e,
até mesmo, temido. Vangloriava-se sempre de ser entendido em vinhos. Poucos
italianos possuem verdadeiro talento para isso. Na maioria das vezes, seu
entusiasmo se adapta aquilo que a ocasião e a oportunidade exigem, tendo em
vista enganar os milionários ingleses e austríacos. Em pintura e pedras
preciosas, Fortunado, como todos os seus compatriotas, era um intrujão; mas,
com respeito a vinhos antigos, era sincero. Sob este aspecto, não havia grande
diferença entre nós – pois que eu também era hábil conhecedor de vinhos
italianos, comprando-os sempre em grande quantidade, sempre que podia. Uma
tarde, quase ao anoitecer, em plena loucura do carnaval, encontrei o meu amigo.
Acolheu-me com excessiva cordialidade, pois que havia bebido muito. Usava um
traje de truão, muito justo e listrado, tendo à cabeça um chapéu cônico,
guarnecido de gizos.
Fiquei tão contente de
encontrá-lo, que julguei que jamais estreitaria a sua mão como naquele momento.
- Meu caro Fortunato – disse-lhe
eu -, foi uma sorte encontrá-lo. Mas, que bom aspecto tem você hoje! Recebi um
barril como sendo de Amontillado, mas tenho minhas duvidas.
- Como? – disse ele. –
Amontillado? Um barril? Impossível! E em pleno carnaval!
- Tenho minhas dúvidas – repeti – e
seria tolo que o pagasse como sendo de Amontillado antes de consultá-lo sobre o
assunto. Não conseguia encontrá-lo em parte alguma, e receava perder um bom
negócio.
- Amontillado!
- Tenho minhas dúvidas.
- Amontillado!
- E preciso efetuar o pagamento.
- Amontillado!
- Mas, como você esta ocupado,
irei à procura de Luchesi. Se existe alguém que conheça o assunto, esse alguém
é ele. Ele me dirá …
- Luchesi é incapaz de distinguir
entre um Amontillado e um Xerez.
- Não obstante, há alguns imbecis
que acham que o paladar de Luchesi pode competir com o seu.
-Vamos, vamos embora.
- Para onde?
- Para as suas adegas.
- Não, meu amigo. Não quero abusar
de sua bondade. Penso que você deve ter algum compromisso. Luchesi…
- Não tenho compromisso algum.
Vamos.
- Não, meu amigo. Embora você não
tenha compromisso algum, vejo que esta com muito frio. E as adegas são
insuportavelmente úmidas. Estão recobertas de salitre.
- Apesar de tudo, vamos. Não
importa o frio. Amontillado! Você foi enganado. Quanto a Luchesi, não sabe
distinguir entre Xerez e Amontillado.
Assim falando, Fortunato tomou-me
pelo braço. Pus uma máscara de seda negra e, envolvendo-me bem em meu
roquelaire, deixei-me conduzir ao meu palazzo.
Não havia nenhum criado em casa,
pois que todos haviam saído para celebrar o carnaval. Eu lhes dissera que não
regressaria antes da manhã seguinte, e lhes dera ordens estritas para que não
arredassem pé da casa. Essas ordens eram suficientes, eu bem o sabia, para
assegurai o seu desaparecimento imediato, tão logo eu lhes voltasse as costas.
Tomei duas velas de seus candelabros e, dando uma a Fortunato, conduzi-o,
curvado, através de uma sequência de compartimentos, à passagem abobadada que
levava à adega.
Chegamos, por fim, aos últimos
degraus e detivemo-nos sobre o solo úmido das catacumbas dos Montresor.
O andar de meu amigo era vacilante
e os guizos de seu gorro retiniam a cada um de seus passos.
- E o barril? – perguntou.
- Está mais adiante – respondi. –
Mas observe as brancas teias de aranha que brilham nas paredes dessas cavernas.
Voltou-se para mim e olhou-me com
suas nubladas pupilas, que destilavam as lágrimas da embriaguez.
- Salitre? – perguntou, por fim.
- Salitre – respondi. – Há quanto
tempo você tem essa tosse?
Meu pobre amigo pôs-se a tossir
sem cessar e, durante muitos minutos, não lhe foi possível responder.
- Não é nada – disse afinal.
- Vamos – disse-lhe com decisão. –
Vamos voltar. Sua saúde é preciosa. Você é rico, respeitado, admirado, amado;
você é feliz, como eu também o era. Você é um homem cuja falta será sentida.
Quanto a mim, não importa. Vamos embora. Você ficará doente, e não quero arcar
com essa responsabilidade. Além disso, posso procurar Luchesi . . .
- Basta – exclamou ele. – Esta
tosse não tem importância; não me matará. Não morrerei por causa de uma simples
tosse.
-É verdade, é verdade – respondi.
– E eu, de fato, não tenho intenção alguma de alarmá-lo sem motivo. Mas você
deve tomar precauções. Um gole deste Medoc nos defenderá da umidade.
E, dizendo isto, parti o gargalo
de uma garrafa que se achava numa longa
fila de muitas outras iguais,
sobre o chão úmido.
- Beba – disse, oferecendo-lhe o
vinho.
Levou a garrafa aos lábios,
olhando-me de soslaio. Fez uma pausa e saudou-me com familiaridade, enquanto
seus guizos soavam.
- Bebo – disse ele – à saúde dos
que repousam enterrados, em torno de nós.
- E eu para que você tenha vida
longa. Tomou-me de novo o braço e prosseguimos. – Estas cavernas – disse-me –
são extensas.
- Os Montresor – respondi –
formavam uma família grande e numerosa.
- Esqueci qual o seu brasão.
- Um grande pé de ouro, em campo
azul. O pé esmaga uma serpente ameaçadora, cujas presas se acham cravadas no
salto.
- E a divisa?
- Nemo me impune lacessit.
- Muito bem! – exclamou.
O vinho brilhava em seus olhos e
os guizos retiniam. Minha própria imaginação se animou, devido ao Medoc.
Através de paredes de ossos empilhados, entremeados de barris e tonéis,
penetramos nos recintos mais profundos das catacumbas. Detive-me de novo e, essa
vez, me atrevi a segurar Fortunato pelo braço, acima do cotovelo.
- O salitre! – exclamei. – Veja
como aumenta. Prende-se, como musgo, nas abóbadas. Estamos sob o leito do rio.
As gotas de umidade filtram-se por entre os ossos. Vamos. Voltemos, antes que
seja tarde demais. Sua tosse…
- Não é nada – respondeu ele. –
Prossigamos. Mas, antes, tomemos outro gole do Medoc.
Parti o gargalo de uma garrafa de
vinho De Grâve a dei-a a Fortunato. Ele a esvaziou de um trago. Seus olhos
cintilaram com brilho ardente. Pôs-se a rir e atirou a garrafa para o ar, com
gesticulação que não compreendi.
Olhei-o, surpreso. Repetiu o
movimento, um movimento grotesco.
- Você não compreende? –
perguntou.
- Não, não compreendo – respondi.
- Então é porque você não pertence
à irmandade.
- Como?
- Não pertence à maçonaria.
- Sim, sim. Pertenço.
- Você? Impossível! Um maçom?
- Um maçom – respondi.
- Prove-o – disse ele.
- Eis aqui – respondi, tirando de
debaixo das dobras de meu roquelaire uma colher de pedreiro.
- Você está gracejando! – exclamou
recuando alguns passos. – Mas prossigamos: vamos ao Amontillado.
- Está bem – disse eu, guardando
outra vez a ferramenta debaixo da capa e oferecendo-lhe o braço. Apoiou-se
pesadamente em mim. Continuamos nosso caminho, em busca do Amontillado.
Passamos através de uma série de baixas abóbadas, descemos, avançamos ainda,
tornamos a descer e chegamos, afinal, a uma profunda cripta, cujo ar,
rarefeito, fazia com que nossas velas bruxuleassem, ao invés de arder
normalmente.
Na extremidade mais distante da
cripta aparecia uma outra, menos espaçosa. Despojos humanos empilhavam-se ao
longo de seus muros, até o alto das abóbadas, à maneira das grandes catacumbas
de Paris. Três dos lados dessa cripta eram ainda adornados dessa maneira. Do quarto,
os ossos haviam sido retirados e jaziam espalhados pelo chão, formando, num dos
cantos, um monte de certa altura. Dentro da parede, que, com a remoção dos
ossos, ficara exposta, via-se ainda outra cripta ou recinto interior, de uns
quatro pés de profundidade, três de largura e seis ou sete de altura. Não
parecia haver sido construída para qualquer uso determinado, mas constituir
apenas um intervalo entre os dois enormes pilares que sustinham a cúpula das
catacumbas, tendo por fundo uma das paredes circundantes de sólido granito.
Foi em vão que Fortunato, erguendo
sua vela bruxuleante, procurou divisar a profundidade daquele recinto. A luz,
fraca, não nos permitia ver o fundo.
- Continue – disse-lhe eu. – O
Amontillado está aí dentro. Quanto a Luchesi. . .
- É um ignorante – interrompeu o
meu amigo, enquanto avançava com passo vacilante, seguido imediatamente por
mim.
Num momento, chegou ao fundo do
nicho e, vendo o caminho interrompido pela rocha, deteve-se, estupidamente
perplexo. Um momento após, eu já o havia acorrentado ao granito, pois que, em
sua superfície, havia duas argolas de ferro, separadas uma da outra,
horizontalmente, por um espaço de cerca de dois pés. De uma delas pendia uma
corrente; da outra, um cadeado. Lançar a corrente em torno de sua cintura, para
prendê-lo, foi coisa de segundos. Ele estava demasiado atônito para oferecer
qualquer resistência.
Retirando a chave, recuei alguns
passos.
- Passe a mão pela parede –
disse-lhe eu. – Não poderá deixar de sentir o salitre. Está, com efeito, muito
úmida. Permita-me, ainda uma vez, que lhe implore para voltar. Não? Então,
positivamente, tenho de deixá-lo. Mas, primeiro, devo prestar-lhe todos os
pequenos obséquios ao meu alcance.
- O Amontillado! – exclamou o meu
amigo, que ainda não se refizera de seu assombro.
- É verdade – respondi -, o
Amontillado.
E, dizendo essas palavras, pus-me
a trabalhar entre a pilha de ossos a que já me referi. Jogando-os para o lado,
deparei logo com uma certa quantidade de pedras de construção e argamassa. Com
este material e com a ajuda de minha colher de pedreiro, comecei ativamente a
tapar a entrada do nicho.
Mal assentara a primeira fileira
de minha obra de pedreiro, quando descobri que a embriaguez de Fortunato havia,
em grande parte, se dissipado. O primeiro indício que tive disso foi um
lamentoso grito, vindo do fundo do nicho. Não era o grito de um homem
embriagado. Depois, houve um longo e obstinado silêncio. Coloquei a segunda, a
terceira e a quarta fileiras. Ouvi, então, as furiosas sacudidas da corrente. O
ruído prolongou-se por alguns minutos, durante os quais, para deleitar-me com
ele, interrompi o meu trabalho e sentei-me sobre os ossos. Quando, por fim, o
ruído cessou, apanhei de novo a colher de pedreiro e acabei de colocar, sem
interrupção, a quinta, a sexta e a sétima fileiras. A parede me chegava, agora,
até a altura do peito. Fiz uma nova pausa e, segurando a vela por cima da obra
que havia executado, dirigi a fraca luz sobre a figura que se achava no
interior.
Uma sucessão de gritos altos e
agudos irrompeu, de repente, da garganta do vulto acorrentado, e pareceu
impelir-me violentamente para trás. Durante breve instante, hesitei… tremi.
Saquei de minha espada e pus-me a desferir golpes no interior do nicho; mas um
momento de reflexão bastou para tranquilizar-me. Coloquei a mão sobre a parede
maciça da catacumba e senti-me satisfeito. Tornei a aproximar-me da parede e
respondi aos gritos daquele que clamava. Repeti-os, acompanhei-os e os venci em
volume e em força. Fiz isso, e o que gritava acabou por silenciar.
Já era meia-noite, a minha tarefa
chegava ao fim. Completara a oitava, a nona e a décima fileiras. Havia
terminado quase toda a décima primeira – e restava apenas uma pedra a ser
colocada e rebocada em seu lugar. Ergui-a com grande esforço, pois que pesava
muito, e coloquei-a, em parte, na posição a que se destinava. Mas, então, saiu
do nicho um riso abafado que me pôs os cabelos em pé. Seguiu-se-lhe uma voz
triste, que tive dificuldade em reconhecer como sendo a do nobre Fortunato. A
voz dizia:
- Ah! ah! ah! . . . eh! eh! eh! .
. . Esta é uma boa piada… uma excelente piada! Vamos rir muito no palazzo por
causa disso . . . ah! ah! ah! . . . por causa do nosso vinho… ah! ah! ah!
- O Amontillado! – disse eu.
- Ah! ah! ah! . . . sim, sim . . .
o Amontillado. Mas não está ficando tarde? Não estarão nos esperando no
palácio. . . a Sra. Fortunato e os outros? Vamos embora.
- Sim – respondi -, vamos embora.
- Pelo amor de Deus, Montresor!
- Sim – respondi -, pelo amor de
Deus!
Mas esperei em vão qualquer
resposta a estas palavras. Impacientei-me.
Gritei, alto:
- Fortunato!
Nenhuma resposta.
Tornei a gritar:
- Fortunato!
Ainda agora, nenhuma resposta.
Introduzi uma vela pelo orifício que restava e deixei-a cair dentro do nicho.
Chegou até mim, como resposta, apenas um tilintar de guizos. Senti o coração
opresso, sem dúvida devido à umidade das catacumbas. Apressei-me para terminar
o meu trabalho. Com esforço, coloquei em seu lugar a última pedra – e cobri-a
com argamassa. De encontro à nova parede, tornei a erguer a antiga muralha de
ossos. Durante meio século, mortal algum os perturbou.
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