“A Causa
Secreta” do escritor brasileiro Machado de Assis (1838 – 1904) é um conto tecnicamente perfeito, certamente
inspirado na obra de E. A. Poe. Nele, nosso grande autor exibe o melhor de sua maestria
técnica e criatividade. O sadismo macabro de Fortunato vai aos poucos se
revelando e o parágrafo final é uma obra prima que apenas um autor genial poderia
ter escrito.
A Causa Secreta
Machado de Assis:
Garcia em pé, mirava e estalava as unhas;
Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da
janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles
dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, — de Catumbi, onde
morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará.
Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo
é de contar a história sem rebuço.
Tinham falado também de outra cousa, além daquelas
três, cousa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do
dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito foi
constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao
passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é
habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-lo
entender é preciso remontar à origem da situação.
Garcia tinha-se formado em medicina, no ano
anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com
Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro
saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não
fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manoel. Uma
de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto,
entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de
quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele
recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e
sentou-se ao pé dele.
A peça era um dramalhão, cosido a facadas,
ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular
interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam
avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou
haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma
farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele.
Fortunato foi pelo beco do Cotovelo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia
devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que
dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No largo da Carioca entrou num
tílburi, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para
casa sem saber mais nada.
Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove
horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do
sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de
guerra. Era este que alguns homens conduziam, escada acima, ensanguentado. O
preto que o servia acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram
confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso
chamar um médico.
— Já aí vem um, acudiu alguém.
Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa
e do teatro. Imaginou que seria parente ou amigo do ferido; mas rejeitou a
suposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família ou pessoa
próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele assumiu a direção do serviço, pediu
às pessoas estranhas que se retirassem, pagou aos carregadores, e deu as
primeiras ordens. Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina
pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em seguida contou o que se
passara.
— Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do
quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito
grande, e logo depois um ajuntamento. Parece que eles feriram também a um
sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este
senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por
ele, meteu-lhe o punhal. Não caiu logo; disse onde morava e, como era a dois
passos, achei melhor trazê-lo.
— Conhecia-o antes? perguntou Garcia.
— Não, nunca o vi. Quem é?
— É um bom homem, empregado no arsenal de
guerra. Chama-se Gouvêa.
— Não sei quem é.
Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se
o curativo, e tomaram- se as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato
Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador em Catumbi. A ferida foi
reconhecida grave. Durante o curativo ajudado pelo estudante, Fortunato serviu
de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando
friamente para o ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente
com o médico, acompanhou-o até o patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a
declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dois saíram,
ele e o estudante ficaram no quarto.
Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o
sentar-se tranquilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das
calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo,
moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida;
uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra,
curta, ruiva e rara. Teria quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para
o estudante, e perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas
tornava logo a
olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante
recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que
estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como
parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios.
Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou
nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa, e, antes de concluída,
desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as
indicações do nome, rua e número.
— Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo
que possa sair, disse o convalescente.
Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato
recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe
uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho.
Gouvêa, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos,
levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim
de dez minutos, pediu licença para sair, e saiu.
— Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da
casa, rindo-se.
O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a
custo o desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no
coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O
ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de tal
modo que o desgraçado não teve mais que trepar à cabeça e refugiar-se ali como
uma simples ideia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o
sentimento da ingratidão.
Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía,
em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha
o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas
camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. Picado de curiosidade,
lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera dele
o oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não
achou nenhum.
Tempos depois, estando já formado e morando na
rua de Matacavalos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola,
encontrou-o ainda outras vezes, e a frequência trouxe a familiaridade. Um dia
Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi.
— Sabe que estou casado?
— Não sabia.
— Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro
dias. Vá jantar conosco domingo.
— Domingo?
— Não esteja forjando desculpas; não admito
desculpas. Vá domingo.
Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom
jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora, que era
interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de
estanho, duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes.
Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e
não era pouco. Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era
esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia
não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre
eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral,
e da parte da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e
confinavam na resignação e no temor. Um dia, estando os três juntos, perguntou
Garcia a Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera
o marido.
— Não, respondeu a moça.
— Vai ouvir uma ação bonita.
— Não vale a pena, interrompeu Fortunato.
— A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o
médico.
Contou o caso da rua de D. Manoel. A moça
ouviu-o espantada. Insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido,
risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato
sacudia os ombros, mas não ouvia com indiferença. No fim contou ele próprio a
visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das
palavras atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la.
Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e
oblíqua; o riso dele era jovial
e franco.
" Singular homem!" pensou Garcia.
Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do
marido; mas o médico restituiu-lhe a satisfação anterior, voltando a referir a
dedicação deste e as suas raras qualidades de enfermeiro; tão bom enfermeiro,
concluiu ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo.
— Valeu? perguntou Fortunato.
— Valeu o quê?
— Vamos fundar uma casa de saúde?
— Não valeu nada; estou brincando.
— Podia-se fazer alguma cousa; e para o senhor,
que começa a clínica, acho que seria bem bom. Tenho justamente uma casa que vai
vagar, e serve.
Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a ideia
tinha-se metido na cabeça ao outro, e não foi possível recuar mais. Na verdade,
era uma boa estreia para ele, e podia vir a ser um bom negócio para ambos.
Aceitou finalmente, daí a dias, e foi uma desilusão para Maria Luísa. Criatura
nervosa e frágil, padecia só com a ideia de que o marido tivesse de viver em
contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça.
O plano fez-se e cumpriu-se depressa. Verdade é que Fortunato não curou de mais
nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi ele o próprio administrador e
chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e
contas.
Garcia pôde então observar que a dedicação ao
ferido da rua D. Manoel não era um caso fortuito, mas assentava na própria
natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante
de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto
para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia.
Fortunato estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava os
cáusticos.
— Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele.
A comunhão dos interesses apertou os laços da
intimidade. Garcia tornou- se familiar na casa; ali jantava quase todos os
dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era
evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir
que alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando
trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas
tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu
por ele, quis
expeli-lo para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da
amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as
coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada.
No começo de outubro deu-se um incidente que
desvendou ainda mais aos olhos do médico a situação da moça. Fortunato
metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em
rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animais atordoavam os
doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de
os sofrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe
que, como cousa sua, alcançasse do marido a
cessação de tais experiências.
— Mas a senhora mesma...
Maria Luísa acudiu, sorrindo:
— Ele naturalmente achará que sou criança. O que
eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e
creia que faz...
Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse
com tais estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser
que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que
não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se
tinha alguma coisa, ela respondeu que nada.
— Deixe ver o pulso.
— Não tenho nada.
Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou
apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era
preciso observá-la e avisar o marido em tempo.
Dois dias depois, — exatamente o dia em que os
vemos agora, — Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava
no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que
Maria Luísa saía aflita.
— Que é? perguntou-lhe.
— O rato! O rato! exclamou a moça sufocada e
afastando-se.
Garcia lembrou-se que na véspera ouvira ao
Fortunado queixar-se de um rato, que lhe levara um papel importante; mas estava
longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro
do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido
flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de
cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No
momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em
seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a
fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou
horrorizado.
— Mate-o logo! disse-lhe.
— Já vai.
E com um sorriso único, reflexo de alma
satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas,
Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo
movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensanguentado,
chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os
novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não
chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha
medo, com toda aquela serenidade
radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito
devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando
para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda
mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida.
Garcia, defronte, conseguia dominar a
repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio;
tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de
uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a
pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o
inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo
mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda
um resíduo de
vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela
última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e
arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue.
Ao levantar-se deu com o médico e teve um
sobressalto. Então, mostrou- se enraivecido contra o animal, que lhe comera o
papel; mas a cólera evidentemente era fingida.
"Castiga sem raiva", pensou o médico,
"pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe
pode dar: é o segredo deste homem".
Fortunato encareceu a importância do
papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora
era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito.
Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos.
Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis,
uma redução de Calígula.
Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a
pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe
mansamente:
— Fracalhona!
E voltando-se para o médico:
— Há de crer que quase desmaiou?
Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era
nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os
dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de
lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os
três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas.
Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e
tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a
algum
excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a
possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar.
Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo
que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que
chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a notícia
como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela,
custava- lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os
recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal.
Nos últimos dias, em presença dos tormentos
supremos da moça, a índole do marido subjugou qualquer outra afeição. Não a
deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da
vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente,
devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações,
não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhes pagou com uma só lágrima,
pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a
si, viu que estava outra vez só.
De noite, indo repousar uma parenta de Maria
Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o
cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico
disse-lhe que repousasse um pouco.
— Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou
duas: eu irei depois. Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua,
e adormeceu logo.
Vinte minutos depois acordou, quis dormir outra
vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava
nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à
porta, estacou assombrado.
Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o
lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a
morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento
que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da
amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note- se;
a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe
vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento.
Olhou assombrado, mordendo os beiços.
Entretanto,
Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde
mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas,
que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero.
Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral
que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.
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