“O Contrabandista” um dos Contos Gauchescos de João Simões Lopes Neto, escritor gaúcho (1865-1916).
Sua obra literária não foi extensa, mas traz a força da linguagem regional, que
infelizmente o tempo e a modernidade gradativamente nos fazem esquecer.
Contrabandista
João Simões Lopes Neto
— Batia nos noventa anos o corpo magro mas sempre teso do Jango Jorge,
um que foi capitão duma maloca de contrabandistas que fez cancha nos banhados
do Ibirocaí.
Esse gaúcho desabotinado levou a existência inteira a cruzar os campos
da fronteira: à luz do sol, no desmaiado da lua, na escuridão das noites, na
cerração das madrugadas...; ainda que chovesse reiunos acolherados ou que
ventasse como por alma de padre, nunca errou vau, nunca perdeu atalho, nunca
desandou cruzada!...
Conhecia as querências, pelo faro: aqui era o cheiro do açouta-cavalo
florescido, lá́ o dos trevais, o das guabirobas rasteiras, do capim-limão; pelo
ouvido: aqui, cancha de graxains, lá os pastos que ensurdecem ou estalam no
casco do cavalo; adiante, o chape-chape, noutro ponto, o areão. Até pelo gosto
ele dizia a parada, porque sabia onde estavam águas salobres e águas leves, com
sabor de barro ou sabendo a limo.
Tinha vindo das guerras do outro tempo; foi um dos que peleou na batalha
de Ituzaingo; foi do esquadrão do general José de Abreu. E sempre que falava
no Anjo da Vitória ainda tirava o chapéu, numa braçada larga, como se
cumprimentasse alguém de muito respeito, numa distância muito longe.
Foi sempre um gaúcho quebralhão, e despilchado sempre, por ser muito de mãos
abertas.
Se numa mesa de primeira ganhava uma ponchada de balastracas, reunia a
gurizada da casa, fazia — pi! pi! pi! pi! — como pra galinhas e semeava as
moedas, rindo-se do formigueiro que a miuçalha formava, catando as pratas no
terreiro.
Gostava de sentar um laçaço num cachorro, mas desses laçaços de apanhar
da paleta à virilha, e puxado a valer, tanto, que o bicho que o tomava,
ficando entupido de dor, e lombeando-se, depois de disparar um pouco é que
gritava, num — caim! caim! caim! — de desespero.
Outras vezes dava-me para armar uma jantarola, e sobre o fim do festo,
quando já estava tudo meio entropigaitado, puxava por uma ponta da toalha e lá
vinha, de tirão seco, toda a traquitanda dos pratos e copos e garrafas e restos
de comidas e caldas dos doces!...
Depois garganteava a chuspa e largava as onças pras unhas do bolicheiro,
que aproveitava o vento e le echaba cuentas de gran capitán...
Era um pagodista!
Aqui há poucos anos — coitado! — pousei no arranchamento dele. Casado
ou doutro jeito, estava afamilhado. Não nos víamos desde muito tempo.
A dona da casa era uma mulher mocetona ainda, bem parecida e mui
prazenteira; de filhos, uns três matalotes já emplumados e uma mocinha — pro
caso, uma moça —, que era o — santo- antoninho-onde-te-porei! — daquela gente
toda.
E era mesmo uma formosura; e prendada, mui habilidosa; tinha andado na
escola e sabia botar os vestidos esquisitos das cidadãs da vila.
E noiva, casadeira, já era.
E deu o caso, que quando eu pousei, foi justo pelas vésperas do
casamento; estavam esperando o noivo e o resto do enxoval dela.
O noivo chegou no outro dia; grande alegria; começaram os aprontamentos,
e como me convidaram com gosto, fiquei pro festo.
O Jango Jorge saiu na madrugada seguinte, para ir buscar o tal enxoval
da filha.
Aonde, não sei; parecia-me que aquilo devia ser feito em casa, à moda
antiga, mas, como cada um manda no que é seu...
Fiquei verdeando, à espera, e fui dando um ajutório na matança dos leitões
e no tiramento dos assados com couro.
Nesta terra do Rio Grande sempre se contrabandeou, desde em antes da
tomada das Missões.
Naqueles tempos o que se fazia era sem malícia, e mais por divertir e
acoquinar as guardas do inimigo: uma partida de guascas montava a cavalo,
entrava na Banda Oriental e arrebanhava uma ponta grande de eguariços, abanava
o poncho e vinha a meia rédea; apartava-se a potrada e largava-se o resto; os
de lá faziam conosco a mesma cousa; depois era com gados, que se tocava a trote
e galope, abandonando os assoleados.
Isto se fazia por despique dos espanhóis e eles se pagavam
desquitando-se do mesmo jeito.
Só se cuidava de negacear as guardas do Cerro Largo, em Santa Tecla, do
Haedo... O mais, era várzea!
Depois veio a guerra das Missões; o governo começou a dar sesmarias e
uns quantíssimos pesados foram-se arranchando por essas campanhas desertas. E
cada um tinha que ser um rei pequeno... e aguentar-se com as balas, as lunares
e os chifarotes que tinha em casa!...
Foi o tempo do manda-quem-pode!... E foi o tempo que o gaúcho, o seu
cavalo e o seu facão, sozinhos, conquistaram e defenderam estes pagos!.
Quem governava aqui o continente era um chefe que se chamava o capitão-general;
ele dava as sesmarias mas não garantia o pelego dos sesmeiros...
Vancê tome tenência e vá vendo como as cousas, por si mesmas, se
explicam.
Naquela era, a pólvora era do el-rei nosso senhor e só por sua licença
é que algum particular graúdo podia ter em casa um polvarim...
Também só na vila de Porto Alegre é que havia baralho de jogar, que
eram feitos só na fábrica do rei nosso senhor, e havia fiscal, sim senhor, das
cartas de jogar, e ninguém podia comprar senão dessas!
Por esses tempos antigos também o tal rei nosso senhor mandou botar pra
fora os ourives da vila do Rio Grande e acabar com os lavrantes e prendistas
dos outros lugares desta terra, só pra dar flux aos reinóis...
Agora imagine vancê se a gente lá de dentro podia andar com tantas
etiquetas e pedindo louvado pra se defender, pra se divertir e pra luxar!... O
tal rei nosso senhor, não se enxergava, mesmo!...
E logo com quem!... Com a gauchada!...
Vai então, os estancieiros iam em pessoa ou mandavam ao outro lado, nos espanhóis,
buscar pólvora e balas, pras pederneiras, cartas de jogo e prendas de ouro pras
mulheres e preparos de prata pros arreios... e ninguém pagava dízimos dessas
cousas.
Às vezes lá voava pelos ares um cargueiro, com cangalhas e tudo, numa explosão
da pólvora; doutras uma partida de milicianos saia de atravessado e tomava
conta de tudo, a couce d’arma: isto foi ensinando a escaramuçar com os
golas-de-couro.
Nesse serviço foram-se aficionando alguns gaúchos: recebiam as encomendas
e pra aproveitar a monção e não ir com os cargueiros debalde, levavam baeta,
que vinha do reino, e fumo em corda, que vinha da Baía, e algum porrão de
canha. E faziam trocas, de elas por elas, quase.
Os paisanos das duas terras brigavam, mas os mercadores sempre se
entendiam...
Isto veio mais ou menos assim até a guerra dos Farrapos; depois vieram
as califórnias do Chico Pedro; depois a guerra do Rosas.
Aí inundou-se a fronteira da província de espanhóis e gringos
emigrados.
A cousa então mudou de figura. A estrangeirada era mitrada, na regra, e
foi quem ensinou a gente de cá a mergulhar e ficar de cabeça enxuta...; entrou
nos homens a sedução de ganhar barato: bastava ser campeiro e destorcido.
Depois, andava-se empandilhado, bem armado; podia-se às vezes dar um vareio nos
milicos, ajustar contas com algum devedor de desaforos, aporrear algum
subdelegado abelhudo...
Não se lidava com papéis nem contas de cousas: era só levantar os
volumes, encangalhar, tocar e entregar!...
Quanta gauchagem leviana aparecia, encostava-se.
Rompeu a guerra do Paraguai.
O dinheiro do Brasil ficou muito caro: uma onça de ouro, que corria por
trinta e dois, chegou a valer quarenta e seis mil réis!... Imagine o que a
estrangeirada bolou nas contas!...
Começou-se a cargueirear de um tudo: panos, águas de cheiro, armas,
minigâncias, remédios, o diabo a quatro!... Era só pedir por boca!
Apareceram também os mascates de campanha, com baús encangalhados e
canastras, que passavam pra lá vazios e voltavam cheios, desovar aqui...
Polícia pouca, fronteira aberta, direitos de levar couro e cabelo e nas
coletarias umas papeladas cheias de benzeduras e rabioscas...
Ora... ora!... Passar bem, paisano!... A semente grelou e está a árvore
ramalhuda, que vancê sabe, do contrabando de hoje.
O Jango Jorge foi maioral nesses estropícios. Desde moço. Até a hora da
morte. Eu vi.
Como disse, na madrugada véspera do casamento o Jango Jorge saiu para ir
buscar o enxoval da filha.
Passou o dia; passou a noite.
No outro dia, que era o do casamento, até de tarde, nada.
Havia na casa uma gentama convidada; da vila, vizinhos, os padrinhos,
autoridades, moçada. Havia de se dançar três dias!... Corria o amargo e
copinhos de licor de butiá.
Roncavam cordeonas no fogão, violas na ramada, uma caixa de música na
sala.
Quase ao entrar do sol a mesa estava posta, vergando ao peso dos pratos
enfeitados.
A dona da casa, por certo traquejada nessas bolandinas do marido, estava
sossegada, ao menos ao parecer.
Às vezes mandava um dos filhos ver se o pai aparecia, na volta da estrada,
encoberta por uma restinga fechada de arvoredo.
Surgiu dum quarto o noivo, todo no trinque, de colarinho duro e casaco
de rabo. Houve caçoadas, ditérios, elogios.
Só faltava a noiva; mas essa não podia aparecer, por falta do seu
vestido branco, dos seus sapatos brancos, do seu véu branco, das suas flores de
laranjeira, que o pai fora buscar e ainda não trouxera.
As moças riam-se; as senhoras velhas cochichavam.
Entardeceu.
Nisto correu voz que a noiva estava chorando: fizemos uma algazarra e ela
— tão boazinha! — veio à porta do quarto, bem penteada, ainda num vestidinho
de chita de andar em casa, e pôs-se a rir pra nós, pra mostrar que estava
contente.
A rir, sim, rindo na boca, mas também a chorar lágrimas grandes, que
rolavam devagar dos olhos pestanudos...
E rindo e chorando estava, sem saber porque... sem saber porquê, rindo
e chorando, quando alguém gritou do terreiro:
— Aí vem o Jango Jorge, com mais gente!...
Foi um vozerio geral; a moça porém ficou, como estava, no quadro da porta,
rindo e chorando, cada vez menos sem saber porquê... pois o pai estava
chegando e o seu vestido branco, o seu véu, as suas flores de noiva...
Era já lusco-fusco. Pegaram a acender as luzes.
E nesse mesmo tempo parava no terreiro a comitiva; mas num silêncio,
tudo.
E o mesmo silêncio foi fechando todas as bocas e abrindo todos os olhos.
Então vimos os da comitiva descerem de um cavalo o corpo entregue de um
homem, ainda de pala enfiado...
Ninguém perguntou nada, ninguém informou de nada; todos entenderam
tudo...; que a festa estava acabada e a tristeza começada...
Levou-se o corpo pra sala da mesa, para o sofá enjeitado, que ia ser o
trono dos noivos. Então um dos chegados disse:
— A guarda nos deu em cima... tomou os cargueiros... E mataram o capitão,
porque ele avançou sozinho pra mula ponteira e suspendeu um pacote que vinha
solto... e ainda o amarrou no corpo... Aí foi que o crivaram de bala....
parado... Os ordinários!... Tivemos que brigar, pra tomar o corpo!
A sia-dona mãe da noiva levantou o balandrau do Jango Jorge e desamarrou
o embrulho; e abriu-o.
Era o vestido branco da filha, os sapatos brancos, o véu branco, as
flores de laranjeira...
Tudo numa plastada de sangue... tudo manchado de vermelho, toda a alvura
daquelas cousas bonitas como que bordada de cobrado, num padrão esquisito, de
feitios estrambólicos... como flores de cardo solferim esmagadas a casco de
bagual!...
Então rompeu o choro na casa toda.
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