Horacio Quiroga (1878-1937), escritor Uruguaio nascido
em Salto (quarenta anos depois de Machado de Assis) e um dos precursores da
grande literatura latino-americana. Sua vida trágica certamente mereceria um
romance e seus trabalhos foram fortemente influenciados por E. A. Poe e G. de
Maupassant. O travesseiro de penas é parte de seu livro Contos de amor, de
loucura e de morte, onde também estão “A galinha degolada” e “A deriva” (que
provavelmente influenciou nosso Guimarães Rosa ao escrever “A terceira margem
do Rio”) Outro conto recomendado de H. Quiroga é “Os imigrantes”
O
travesseiro de Penas
Horacio
Quiroga
tradução
Sergio Faraco
Sua lua-de-mel foi um longo
calafrio. Loura, angelical e tímida, o temperamento sisudo do marido lhe gelou
as sonhadas fantasias de noiva. E no entanto ela o amava muito, às vezes com um
ligeiro estremecimento quando, à noite, voltando juntos para casa, dava uma
furtiva olhadela à alta estatura de Jordan, que na última hora não pronunciara
uma só palavra. Ele também a amava muito, profundamente, mas sobre isso não
dizia nada.
Durante os três meses –
casaram-se em abril – viveram uma felicidade peculiar. Certamente ela teria
desejado menos sobriedade nesse rígido céu de amor, uma ternura mais expansiva
e menos controlada. Mas o impassível semblante do marido sempre a refreava.
A casa onde moravam também
contribuía para seus calafrios. A brancura do pátio silencioso – frisos,
colunas, estátuas de mármore – produzia a outonal impressão de uma palácio
encantado. Dentro, o brilho glacial do estuque, sem uma única e superficial
fissura nas altas paredes, corroborava a desconfortável sensação de frio. Na
passagem de uma peça para outra, os passos ecoavam por toda a casa, como se um
longo abandono lhe tivesse aguçado a ressonância.
Nesse singular ninho de amor, Alicia
passou todo o outono. Lançara um véu sobre os antigos sonhos e vivia como adormecida
na casa hostil, sem querer pensar em nada até a hora em que chegasse o marido.
Não surpreendia que emagrecesse.
Teve um ligeiro ataque de influenza que acabou se arrastando, insidiosamente,
por dias e dias. Não melhorava nunca. Num fim de tarde pôde ir ao jardim,
apoiada no braço do marido. Olhava para um lado e outro, indiferente. Jordan,
com ternura passou-lhe a mão na cabeça, e Alicia pôs-se a chorar, pendurada em
seu pescoço. Chorou longamente todo seu espanto calado, redobrando o pranto à
mínima carícia. Depois os soluços foram diminuindo e ela continuou abraçada
nele, sem mover-se e sem nada dizer.
Foi esse o último dia em que Alicia
se levantou. No dia seguinte amanheceu prostrada. O médico de Jordan veio vê-la
e recomendou repouso absoluto.
- Não sei o que ela tem – disse
a Jordan em voz baixa, já na porta da rua. – É uma fraqueza que não entendo.
Sem vômitos, sem nada… Se amanhã despertar como hoje, manda me chamar.
No outro dia Alicia estava pior.
Veio o médico e constatou uma anemia em progresso acelerado, completamente
inexplicável.
Alicia não teve mais desmaios,
mas era visível que caminhava para o fim. Durante o dia todo o quarto
permanecia com a luz acesa e em silêncio. Corriam as horas sem que se ouvisse o
menor ruído. Ela dormitava.
Jordan passava o dia na sala,
também com todas as luzes acesas. Andava sem cessar de um lado para outro, com
incansável obstinação, o carpete abafando-lhe os passos. De vez em quando
entrava no quarto e continuava em seu mudo vaivém ao longo da cama, detendo-se
um instante em cada extremo a olhar para a mulher.
Em seguida Alicia começou a ter
alucinações. A princípio eram confusas, variadas, depois se fixaram no chão do
quarto. Com os olhos desmesuradamente abertos, não fazia outra coisa senão
fitar o tapete dos dois lados da cabeceira da cama. Uma noite, com o olhar
fixo, abriu a boca para gritar, com as narinas e os lábios perlando suor.
- Jordan! Jordan! – clamou, por
fim, rígida de espanto e sem deixar de vigiar o tapete.
Jordan acudiu e Alicia, ao
vê-lo, deu um grito.
- Sou eu, Alicia, sou eu!
Ela olhou como perdida, logo
para o tapete, tornou a olhar para o marido e, depois de um momento de atônita
confrontação, acalmou-se. Sorriu e, tomando entre as suas a mão de Jordan,
acariciou-a por uma longa meia hora, sempre tremendo.
Entre suas alucinações mais
pertinazes, houve uma que era a de um antropoide no tapete, erguendo-se na
ponta dos dedos e com o olhar cravado nela.
Os médicos voltaram a
examiná-la, sempre em vão. Era uma vida que se acabava, dia a dia se dessangrando,
hora a hora, sem que soubessem como e por que aquilo acontecia. Na última
consulta, Alicia jazia em estupor enquanto lhe verificavam o pulso, um passando
ao outro aquele braço inerte. Demoradamente a observaram em silêncio e depois
passaram à sala.
- É um caso gravíssimo – e o
médico de Jordan balançou a cabeça, desalentado. – Pouco ou nada se pode fazer.
- Era só o que faltava –
desabafou Jordan, dedos tamborilando na mesa com violência.
Alicia se esvaía em subdelírios
de anemia. Nas primeiras horas da tarde seu mal se atenuava, agravando-se com a
chegada da noite. A doença parecia não avançar durante o dia, mas no dia
seguinte ela amanhecia lívida, quase em síncope. Parecia mesmo que que tão-só
durante a noite sua vida escorria em novas vagas de sangue. Ao despertar, tinha
a sensação de estar esmagada na cama por um milhão de quilos. Desde o terceiro
dia essa prostração não mais a abandonara. Mal podia mover a cabeça e não quis
que trocassem os lençóis e a fronha. Seus terrores crepusculares avançavam
agora sob a forma de monstros que se arrastavam até a cama e subiam
laboriosamente pela colcha.
Perdeu a consciência. Nos dois
dias finais delirou sem cessar à meia voz. As luzes continuavam funebremente
acesas no quarto e na sala. No silêncio agônico da casa, ouviam-se apenas o
delírio monótono que vinha da cama e os surdos passos de Jordan.
Alicia morreu por fim. A criada,
entrando mais tarde no quarto para arrumar a cama vazia, olhou intrigada para o
travesseiro.
- Senhor – chamou em voz baixa.
– No travesseiro há manchas que parecem de sangue.
Jordan aproximou-se rapidamente.
De fato, na fronha, em ambos os lados da concavidade deixada pela cabeça de
Alicia, viam-se manchas escuras.
- Parecem picadas – murmurou a
criada, depois de um instante de atenta observação.
- Traz a lâmpada para cá.
A criada levantou o travesseiro
e logo o deixou cair, pálida, trêmula. Sem saber por quê, Jordan sentiu que
seus cabelos se eriçavam.
- O que houve? – perguntou,
rouco.
- Pesa muito – gaguejou a
criada, sem deixar de tremer.
Jordan o ergueu. Pesava demais.
Levaram-no para a mesa da sala e ali Jordan cortou a fronha e o envoltório
interno. As penas à superfície voaram, e a criada, com a boca escancarada, deu
um grito de pavor, levando as mãos crispadas a coifa. No fundo, entre as penas,
movendo lentamente as patas peludas, havia um animal monstruoso vivente e
viscosa. Estava tão inchado que quase não se distinguia sua boca.
Noite a noite, desde que Alicia
ficara acamada, aplicara aquela boca – aquela tromba, melhor dito – às têmporas
dela, para sugar-lhe o sangue. A picada era quase imperceptível. A mudança
diária da fronha havia impedido, a princípio, seu desenvolvimento, mas desde
que a moça não pudera mais mover-se, a sucção fora vertiginosa. Em cinco dias e
cinco noites ele esvaziara Alicia.
Esses
parasitas das aves, diminuto no meio habitual, chegam a adquirir proporções
enormes em certas condições. O sangue humano parece lhes ser especialmente
favorável e não é raro que sejam encontrados em travesseiros de penas.
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