O Nariz
de Nikolai Gogol (1809-1852), escritor russo mais conhecido entre nós por ter
escrito uma das grandes peças de teatro de todos os tempos: O Inspetor Geral,
descreve as desventuras do auxiliar de magistratura Kovaliov depois de olhar ao
espelho e descobrir que seu nariz tinha desaparecido. escreveu este conto com
extrema criatividade e bom humor. Gogol
em sua obra retrata em detalhes a imagem do burocrata russo do século dezenove e
outro conto dele que merece destaque é “O Capote”, não tão bem humorado, mas
igualmente genial.
O nariz
Nikolai Gogol
Tradução de Arlete
Cavaliere
I
No dia 25
de março aconteceu em Petersburgo um fato extraordinariamente estranho. O
barbeiro Ivan Iakovlievitch, residente na avenida Vosnesenski (o seu sobrenome
perdera-se, e até mesmo em sua placa — onde se viam um senhor com a bochecha
ensaboada e a seguinte inscrição: "Faz- se também sangria" — não
aparecia nada mais), o barbeiro Ivan Iakovlievitch acordou bastante cedo e
sentiu o cheiro de pão quente. Soerguendo-se um pouco da cama, viu que sua
esposa, uma senhora bastante respeitável e que gostava muito de tomar café,
acabava de tirar os pães recém-assados do forno.
"Hoje,
Prascovia Ossipovna, eu não tomarei café", disse Ivan Iakovlievitch.
"Em lugar disso, gostaria de comer pão quente com cebola. (Quer dizer,
Ivan Iakovlievitch queria um e outro, mas sabia que era absolutamente
impossível exigir duas coisas ao mesmo tempo, já que Prascovia Ossipovna não
gostava nada, nada daqueles caprichos.)
"Que
coma o pão, o bobão; melhor pra mim", pensou consigo mesma a esposa,
"vai sobrar uma porção a mais de café", e jogou um pão sobre a mesa.
Ivan
Iakovlievitch, conforme mandava o bom-tom, vestiu fraque sobre o camisolão e,
sentando-se a mesa, pôs o sal, preparou duas cabeças de cebola, pegou a faca na
mão e, fazendo um gesto expressivo, pôs-se a cortar o pão. Cortando o pão em
duas metades, deu uma olhada no meio e, para sua grande surpresa, viu algo
esbranquiçado. Ivan Iakovlievitch remexeu cautelosamente com a faca e tocou com
o dedo:
"Duro?",
disse para si mesmo. "Que será isso?"
Meteu os
dedos e tirou... um nariz... Ivan Iakovlievitch deixou cair os braços, começou
a esfregar os olhos e a palpar: um nariz, realmente, um nariz! E ainda por cima
pareceu-lhe não de todo estranho. O horror se refletiu no rosto de Ivan
Iakovlievitch. Mas esse horror não foi nada, comparado com a indignação que se
apoderou de sua esposa.
"Animal,
de onde você cortou esse nariz?", gritou furiosa. "Vigarista! Bêbado!
Eu mesma vou denunciar você a policia. Que bandido! Eu já ouvi três pessoas
dizerem que quando você faz a barba puxa tanto os narizes que eles mal se aguentam."
A essa altura, Ivan Iakovlievitch estava mais morto do que vivo. Reconheceu que
aquele nariz só podia ser do auxiliar de magistratura Kovaliov, de quem fazia a
barba todas as quartas e domingos.
"Espera,
Prascovia Ossipovna! Vou coloca-lo num cantinho embrulhado num trapo: deixa ele
ficar lá um pouquinho; depois eu tiro."
"Não
quero nem ouvir! Acha que vou permitir que um nariz cortado fique no meu
quarto? Seu torrada queimada! Só sabe e passar a navalha na correia, mas daqui
a pouco não estará em condições nem mesmo de cumprir com seu dever, seu
canalha, mulherengo! Acha que vou responder por você na policia?... Ah! Sujo,
burro como uma porta. Fora daqui! Leve-o para onde quiser! Não quero sentir nem
o cheiro dele!"
Ivan
Iakovlievitch ficou completamente abatido. Pensava, pensava, mas não sabia o
que pensar.
"Só
o diabo sabe como e que isso aconteceu", disse finalmente coçando atrás da
orelha. "Teria eu voltado bêbado ontem, ou não? Já não sei ao certo, não.
Mas, de qualquer maneira, tudo indica que é um acontecimento fora do comum;
pois o pão e uma coisa assada, e o nariz não é nada disso. Não entendo mais
nada!" Ivan Iakovlievitch calou-se. A ideia de que a policia descobriria o
nariz em sua casa e o culparia deixou-o completamente atordoado. Parecia que já
estava até vendo a gola vermelha com bordados bonitos em prata, a espada... e
ele tremia no corpo todo. Por fim, achou sua roupa de baixo e as botas, vestiu
todos esses trapos e, acompanhado pelas duras invectivas de Prascovia
Ossipovna, embrulhou o nariz em um trapo e saiu para a rua.
Queria
enfia-lo em qualquer canto: ou num frade-de-pedra ao lado de algum portão, ou
deixa-lo escapar da mão como que acidentalmente e ao virar logo numa esquina.
Mas, para sua desgraça, estava sempre topando com algum conhecido que lhe
perguntava de chofre:
"Para
onde você esta indo?" ou "De quem vai fazer a barba tão cedo?"
Dessa
maneira, Ivan Iakovlievitch não conseguia achar um minuto sequer de
tranquilidade. Numa das vezes ele já tinha até deixado o nariz cair, quando uma
sentinela de longe lhe fez sinais com a alabarda, dizendo:
"Ei!
Pega lá! Você deixou cair alguma coisa!", e Ivan Iakovlievitch teve de
pegar de novo o nariz e esconde-lo no bolso.
O
desespero tomou conta dele, principalmente quando viu que o número de pessoas
aumentava na rua a medida que começavam a abrir lojas e bazares.
Decidiu
ir em direção a ponte Issakievski: será que não daria jeito de atira-lo no
Nieva?... Mas sinto-me um tanto culpado por não ter falado até agora sobre Ivan
Iakovlievitch, homem de respeito, sob muitos aspectos.
Ivan
Iakovlievitch, como todo artesão russo honrado, era um tremendo beberrão. E
embora barbeasse o queixo dos outros todos os dias, o seu próprio estava
eternamente sem barbear. O fraque de Ivan Iakovlievitch (Ivan Iakovlievitch
nunca usava sobrecasaca) era malhado; quer dizer, era preto, mas estava todo
coberto de manchas cinza e de um marrom amarelado; a gola brilhava e no lugar
dos três botões só estavam penduradas as linhas. Ivan Iakovlievitch era um
grande cínico e quando, na hora de barbear, o auxiliar de magistratura Kovaliov
lhe dizia: "Suas mãos, Ivan Iakovlievitch, sempre fedem!", então Ivan
Iakovlievitch respondia com a seguinte pergunta: "E por que será que elas
fedem?". "Não sei, irmãozinho. Só sei que fedem", dizia o auxiliar.
E Ivan Iakovlievitch, em represália, depois de cheirar o rapé, o ensaboava nas
bochechas, debaixo do nariz, atrás da orelha e debaixo da barba, quer dizer,
onde lhe dava na telha.
Esse cidadão
respeitável já se encontrava na ponte Issakievski. Antes de mais nada, olhou
atentamente para todos os lados, depois inclinou-se sobre o parapeito como se
quisesse ver se eram muitos os peixes que nadavam sob a ponte, e ali jogou bem
devagarinho o trapo com o nariz. Sentiu-se como se lhe tivessem tirado de cima
dez libras de uma só vez: Ivan Iakovlievitch até sorriu. E em vez de ir barbear
o queixo dos burocratas, dirigiu-se a um estabelecimento que tinha o letreiro
"Comida e Chá" para pedir um copo de ponche. Mas, de repente, notou
na extremidade da ponte o inspetor do bairro, de aspecto imponente, costeletas
compridas, chapéu triangular e espada. Ficou petrificado. Entrementes, o inspetor,
fazendo-lhe um sinal com o dedo, lhe disse:
"Venha
cá, meu caro!"
Ivan
Iakovlievitch, reconhecendo o uniforme, tirou ainda de longe o boné e,
aproximando-se com prontidão, disse: "Tenha um bom dia, Excelência."
"Não,
não, irmãozinho, nada de Excelência; mas, diga-me, o que você estava fazendo de
pé ali na ponte?"
"Por
Deus, senhor, eu fui fazer barbas e só dei uma olhada para ver se o rio corria
bem."
"Esta
mentindo! Mentindo! Não e assim que vai se livrar, não. Faça o favor de
responder."
"Eu
posso fazer a barba de Vossa Excelência duas ou até três vezes por semana sem a
mínima objeção", respondeu Ivan Iakovlievitch.
"Não,
amigo, deixe de bobagem! Três barbeiros já me fazem a barba e consideram isso
uma grande honra. Agora faça-me o favor de dizer o que estava fazendo
ali."
Ivan
Iakovlievitch empalideceu... Mas aqui o acontecimento fica completamente
encoberto por uma nevoa e não se sabe absolutamente nada do que se passou
depois.
II
O auxiliar
de magistratura Kovaliov acordou bastante cedo e fez brr... com os lábios,
coisa que sempre fazia ao despertar, embora ele mesmo não soubesse explicar por
qual motivo. Kovaliov espreguiçou-se e ordenou que lhe trouxessem um pequeno
espelho que estava sobre a mesa. Só queria dar uma olhada na pequena espinha
que tinha aparecido em seu nariz na noite anterior; mas, para sua imensa
surpresa, viu que em vez de nariz havia uma superfície completamente lisa.
Assustado, Kovaliov pediu agua e esfregou os olhos com uma toalha: de fato, o
nariz não estava lá! Começou a apalpar com a mão para se certificar de que não
estava dormindo: não, não estava. O auxiliar de magistratura Kovaliov pulou da
cama e estremeceu: nada de nariz!... Ordenou que o vestissem imediatamente e
saiu voando direto para a chefatura de policia.
Enquanto
isso é indispensável dizer alguma coisa sobre Kovaliov, para que o leitor possa
saber de que espécie era esse auxiliar de magistratura.
Não se
pode comparar de nenhuma maneira os auxiliares de magistratura que recebem esse
titulo por meio de certificados acadêmicos com aqueles auxiliares de magistratura
que se fazem no Cáucaso. São duas espécies completamente diferentes. Os auxiliares
de magistratura acadêmicos... Ah! Mas a Rússia e uma terra tão maravilhosa que,
se você falar de um auxiliar de magistratura, todos os auxiliares de magistratura,
de Riga até Kamtchatka, imediatamente se sentirão atingidos. O mesmo se diga de
todos os outros cargos e graus.
Kovaliov
era um auxiliar de magistratura caucasiano. Estava nesse cargo havia apenas
dois anos e nem por um minuto podia se esquecer disso, e, para se atribuir
ainda mais nobreza e peso, ele nunca se referia a si próprio como auxiliar de magistratura,
mas como major. "Escute, pombinha", dizia habitualmente ao encontrar
uma mulher vendendo roupas na rua: "Va a minha casa; meu apartamento e na
Sadovaia; pergunte apenas se mora ali o major Kovaliov e qualquer um vai lhe
mostrar". Caso ele encontrasse alguma jeitosa, dava-lhe um bilhete secreto
que dizia: "Você pergunta, benzinho, pelo apartamento do major Kovaliov".
E é por isso mesmo que de agora em diante vamos chamar de major a esse auxiliar
de magistratura.
O major
Kovaliov tinha o habito de perambular todos os dias pela avenida Nievski. O
colarinho de sua camisa estava sempre extremamente limpo e engomado. Suas
costeletas eram daquele tipo que ainda se pode ver nos agrimensores da província,
nos arquitetos (mas só se forem russos), e também nos diferentes policiais,
cumpridores de seu dever e, em geral, em todos aqueles machões que tem
bochechas cheias e coradas e sabem jogar cartas muito bem: essas costeletas
passam exatamente pelo centro das bochechas e vão diretamente até o nariz. O
major Kovaliov levava uma grande quantidade de sinetes de cornalina com frases
e com inscrições: quarta-feira, quinta-feira, segunda-feira etc. O major
Kovaliov chegou a Petersburgo por necessidade, ou melhor, para procurar um
posto mais condizente com seu cargo: se tivesse sorte, quem sabe, até de
vice-governador, ou, pelo menos, de administrador de algum departamento de
renome. O major Kovaliov não teria nada contra o casamento, desde que
acontecesse de a noiva ter uma fortuna de 200 mil rublos. E, assim, o leitor pode
avaliar agora em que situação se viu esse major quando percebeu que, em vez do
seu nariz, certinho e nada feio, havia esse estupido espaço, plano e liso.
Para sua
desgraça, não aparecia na rua nenhum cocheiro, e ele teve de ir a pé, envolto
em sua capa, cobrindo o rosto com um lenço, fingindo que estava sangrando.
"Quem sabe é apenas impressão minha, não pode ser que um nariz desapareça
assim, de bobeira." Entrou numa confeitaria com o proposito de olhar-se no
espelho. Por sorte, não havia ninguém lá; uns rapazinhos varriam as salas e
colocavam as cadeiras; alguns deles, de olhos sonolentos, retiravam nas
bandejas os pasteizinhos quentes; nas mesas e cadeiras estavam jogados os
jornais da véspera manchados de café. "Bom, gramas a Deus que não ha ninguém",
falou. "Agora posso olhar." Aproximou-se timidamente do espelho e deu
uma olhada. "Com os diabos, que droga!", disse cuspindo...
"Ainda se tivesse alguma coisa no lugar do nariz, mas nada!..."
Mordendo
os lábios de ódio, saiu da confeitaria e decidiu, contrariando seu costume, não
olhar nem sorrir para ninguém. De repente, ficou petrificado junto a porta de
uma casa; diante de seus próprios olhos, ocorreu um fenômeno inexplicável: em
frente a entrada uma carruagem parou; as portinholas se abriram e,
inclinando-se um pouco, saltou um senhor de uniforme e subiu correndo a escada.
E qual não foi o espanto e ao mesmo tempo a surpresa de Kovaliov quando
reconheceu o seu próprio nariz! Diante desse espetáculo extraordinário
pareceu-lhe que tudo girava diante de seus olhos; sentiu que mal podia se
manter em pé Mas, de qualquer modo, tremendo como que de febre, resolveu esperar
que voltasse a carruagem. E, com efeito, ao cabo de dois minutos o nariz saiu.
Usava um uniforme bordado em ouro, com uma gola alta, calças de camurça e uma
espada do lado. Pelo chapéu de plumas podia-se concluir que ele se considerava
um conselheiro de Estado. Tudo indicava que ia para algum lugar fazer visita.
Deu uma olhada para ambos os lados e gritou ao cocheiro "Vamos!".
Sentou-se e partiu.
O pobre
Kovaliov quase perdeu o juízo. Não sabia o que pensar desse acontecimento tão
estranho. Com efeito, como era possível um nariz que no dia anterior estava em
seu rosto e que não podia correr nem andar, estar agora metido num uniforme! Pôs-se
a correr atrás da carruagem que, por sorte, não tinha ido muito longe e havia
parado bem em frente da catedral de Kazan.
Dirigiu-se
apressado para a catedral, abriu caminho por entre uma fila de pobres velhinhas
que tinham os rostos tão cobertos que só havia duas aberturas para os olhos, e
das quais antes costumava rir tanto, e entrou na igreja. Eram poucos os fieis lá
dentro e estavam todos apinhados na entrada, junto a porta. Kovaliov sentia-se tão
desolado que não teve absolutamente formas para rezar e procurou com os olhos
aquele senhor por todos os cantos. Por fim, viu-o de pé ao lado. O nariz
escondera completamente o rosto numa gola grande e alta, e rezava com uma expressão
de profunda devoção.
"Como
me aproximar dele?", pensou Kovaliov. "Pelo uniforme, pelo chapéu por
tudo, parece que e um conselheiro de Estado. Com o diabo, como fazer?!"
Começou a
tossir perto dele, mas o nariz nem por um minuto abandonou sua atitude devota e
as reverencias que continuava fazendo.
"Excelentíssimo
senhor...", disse Kovaliov, esforçando-se por se mostrar mais animado.
"Excelentíssimo senhor..."
"O
que deseja?", respondeu o nariz, virando-se.
"E
estranho, excelentíssimo senhor... me parece... o senhor deveria saber o seu
lugar. E de repente o encontro justamente onde? Na igreja. O senhor ha de
convir..."
"Queira
desculpar, mas não entendo o que o senhor esta tentando me dizer. Explique-se."
"Como
lhe explicar?!", pensou Kovaliov, e, recobrando o animo, recomeçou.
"Bem, é claro, eu... alias, eu sou major. O senhor ha de convir que e
inconveniente que eu ande sem nariz. Qualquer vendedora de laranjas descascadas
na ponte Voskresenski pode ficar ali sentada sem nariz, mas um rosto que aspira
ao cargo de governador, sem duvida alguma... imagine o senhor mesmo... não sei,
excelentíssimo senhor... (então o major Kovaliov encolheu os ombros)... me
desculpe... mas se considerar isto de acordo com as regras do dever e da
honra... o senhor mesmo poderá compreender..."
"Não
estou entendendo absolutamente nada", respondeu o nariz. "Explique-se
de forma mais conveniente."
"Excelentíssimo
senhor...", disse Kovaliov com um sentimento de amor- próprio, "não
sei como entender suas palavras... Aqui, tudo me parece muito claro... Ou, se o
senhor quiser..., o senhor e o meu próprio nariz!"
O nariz
olhou para o major, e suas sobrancelhas franziram-se um pouco. "O senhor
esta enganado, cavalheiro. Eu sou eu mesmo. Além do mais, entre nos não pode
haver nenhuma relação Intima. A julgar pelos botões de seu uniforme, o senhor
deve pertencer ao Senado ou, quando muito, a Justiça; já eu, sou do
Departamento de Instrução." Dizendo isso, o nariz deu as costas e continuo
rezando.
Kovaliov
sentia-se completamente desconcertado, sem saber o que fazer e nem mesmo em que
pensar. Nesse momento, ouviu-se um ruído agradável de um vestido de mulher;
aproximou-se uma senhora de certa idade toda envolta em rendas, acompanhada de
uma jovem muito delicada, num vestido branco que desenhava com muita graça seu
talhe esbelto, e com um chapéu cor de palha leve como um biscoito. Atrás delas
parou e abriu uma tabaqueira um senhor alto, com grandes costeletas e uma dúzia
inteira de golas.
Kovaliov
se aproximou mais um pouco, pôs a mostra a gola de cambraia do peitilho,
arrumou seus sinetes que pendiam da corrente de ouro e, sorrindo para os lados,
concentrou sua atenção na frágil mulher que, como uma flor de primavera, se
inclinava suavemente e levava a testa sua mãozinha branca de dedos diáfanos. O
sorriso no rosto de Kovaliov abriu-se ainda mais quando viu sob o chapéu o
queixo redondinho de uma brancura radiante e uma parte de sua face coberta pela
cor da primeira rosa da primavera. Mas, de repente, deu um salto para trás como
se tivesse se queimado. Lembrou-se de que onde deveria haver um nariz não havia
absolutamente nada, e as lagrimas brotaram em seus olhos. Virou-se rapidamente
com o objetivo de dizer, sem rodeios, aquele senhor de uniforme que estava
fingindo ser um conselheiro de Estado, que ele era um patife, um canalha e que
era nada mais, nada menos de que seu próprio nariz... Mas o nariz já não estava
lá: tinha tido tempo suficiente de escapulir, provavelmente para fazer alguma outra
visita.
Isso
levou Kovaliov ao desespero. Andou para trás e se deteve por um minuto diante
da coluna, olhando minuciosamente para todos os lados para ver se encontrava o
nariz em algum lugar. Lembrava-se perfeitamente de que o chapéu dele tinha
plumas e o uniforme era bordado em ouro; mas não reparara nem no capote, nem na
cor da carruagem, nem nos cavalos, tampouco se havia atrás dela algum lacaio e
que libre vestia. De mais a mais, havia tantas carruagens correndo de um lado
para outro e com tanta velocidade que se tornava difícil até mesmo
distingui-las. E ainda que conseguisse identificar alguma delas, não teria
meios para faze-la parar.
O dia
estava maravilhoso e ensolarado. Na avenida Nievski havia uma multidão de
gente. Uma verdadeira cascata florida de damas derramava-se por toda a calçada
desde a ponte da policia até Anitchikov. Lá estava um conselheiro da corte,
conhecido seu, a quem chamava de tenente-coronel, especialmente se isso
acontecia na presença de estranhos. La estava também Iarichkin, chefe de
despacho no Senado, grande amigo seu que sempre dobrava o lance quando jogava.
E eis também um outro major que obteve esse grau no Cáucaso e que acenava para
que ele fosse lá...
"Mas
que diabo!", disse Kovaliov. "Ei, cocheiro, direto ao comissário de polícia!"
Kovaliov
sentou-se na carruagem e gritou ao cocheiro: "Vai a todo o vapor!".
"Esta ai o comissário de polícia?", perguntou já no saguão.
"Não,
senhor", respondeu o porteiro, "acaba de sair."
"Só
faltava essa!"
"Pois
", acrescentou o porteiro, "não faz muito tempo que saiu. Se chegasse
um minutinho antes, talvez ainda o encontrasse em casa."
Kovaliov,
sem tirar o lenço do rosto, jogou-se para o lado do cocheiro e gritou com uma
voz desesperada: "Vamos."
"Para
onde?", perguntou o cocheiro.
"Vamos
em frente!"
"Como,
em frente? Aqui uma curva: para a
direita ou para a esquerda?" Essa pergunta fez Kovaliov parar e o obrigou
novamente a pensar. Na sua situação, antes de tudo, era preciso recorrer a
Delegacia de Ordem Publica, não apenas porque o caso tinha relação direta com a
polícia, mas também porque suas disposições poderiam ser muito mais rápidas do
que em outros lugares. Procurar então satisfação com o chefe da repartição da
qual o nariz se dizia funcionário seria insensato, pois, pelas próprias
respostas do nariz, já se podia perceber que para esse homem nada era sagrado.
Poderia inclusive mentir nesse caso, como já tinha mentido, assegurando-lhe que
nunca o tinha visto antes.
E, assim,
Kovaliov já estava prestes a ordenar que o levassem para a Delegacia de Ordem
Publica quando de novo lhe ocorreu a ideia de que aquele patife e trapaceiro,
que já no primeiro encontro tinha se portado de maneira tão desonesta, poderia tranquilamente
ter-se aproveitado desse tempo todo para fugir da cidade. E, então, toda a
busca seria vã ou poderia se estender, que Deus o livrasse, por um mês inteiro.
Por fim,
pareceu-lhe ter recebido uma iluminação celeste. Decidiu ir direto a sede do
jornal e publicar, o quanto antes, uma descrição pormenorizada de todas as suas
características, para que aquele que o encontrasse pudesse entrega-lo na mesma
hora, ou, pelo menos, informar do seu paradeiro. E então, tomada esse decisão,
ordenou ao cocheiro que fosse a sede do jornal e durante todo o percurso não
deixou de bater com os punhos nas costas do cocheiro, repetindo:
"Mais
depressa, idiota! Mais rápido, patife!"
"Ai,
senhor!", dizia o cocheiro, sacudindo a cabeça e açoitando o cavalo cujo
pelo era comprido como o de um cachorro maltes.
A carruagem
finalmente parou e Kovaliov, ofegante, entrou correndo numa salinha de recepção
onde um funcionário de cabelos grisalhos, de óculos e com fraque surrado,
estava sentado atrás de uma mesa, segurando a pena com os dentes e contando
moedas de cobre.
"Quem
é que recebe anúncios aqui?", gritou Kovaliov. "Ah, bom dia!"
"Meus
cumprimentos", disse o funcionário grisalho, levantando os olhos por um
minuto e baixando-os novamente para as pilhas de dinheiro já separadas.
"Eu
gostaria de publicar..."
"Com
licença, por favor, queira aguardar um pouco", disse o funcionário
escrevendo um numero num papel com uma mão e mudando duas contas no ábaco com a
outra. Um lacaio com galões e aspecto de quem servia em uma casa aristocrática,
de pé junto a mesa, com um bilhete nas mãos, achou conveniente dar mostras de
sua sociabilidade: "Creia-me, senhor, esta cachorrinha não vale nem oito
griveniques, e eu não daria por ela nem oito groches; mas a condessa gosta
tanto dela, santo Deus, como gosta, e dá cem rublos para quem a encontrar.
Agora, cá entre nos, posso dizer, com todo o respeito, que os gostos das
pessoas são completamente diferentes: se fosse um perdigueiro ou um poodle, não
teria pena de dar quinhentos ou até mil rublos, mas ai já se trataria ao menos
de um bom cachorro".
O respeitável
funcionário escutava com ar bastante expressivo e ao mesmo tempo fazia o
calculo de quantas letras havia no bilhete. Dos lados estavam muitas velhas
comerciantes e porteiros, todos eles com bilhetes nas mãos. Num dizia-se que um
cocheiro de conduta irrepreensível oferecia seus serviços; um outro anunciava
uma caleça de pouco uso, trazida de Paris em 1814; num outro dispensava-se uma
jovem criada de dezenove anos treinada para serviço de lavanderia, estando apta
também para outros trabalhos. Além disso, uma carruagem muito resistente, só
que sem um amortecedor; um novo e fogoso cavalo malhado de dezessete anos;
sementes de nabo e rabanete recém-chegadas de Londres; uma casa de campo com
todas as benfeitorias: duas estrebarias para cavalos e um lugar para cultivar
maravilhosas bétulas ou um bosque de pinheiros; e ainda havia um aviso para que
aqueles que quisessem comprar solas velhas comparecessem todos os dias das 8 as
15 horas no mercadinho de trocas. A sala onde se encontrava toda essa gente era
pequena e o ar ali estava excessivamente carregado, mas o auxiliar de magistratura
Kovaliov não podia sentir o cheiro, pois se cobria com um lenço e o seu nariz
se encontrava Deus sabe onde.
"Excelentíssimo
senhor, permita-me lhe pedir... Realmente estou precisando", disse finalmente
com impaciência.
"Já,
já! Dois rublos e quarenta e três copeques! Neste mesmo instante! Um rublo e
sessenta e quatro copeques!", disse o funcionário grisalho, atirando os
bilhetes na cara das velhas e dos porteiros.
"E o
senhor, o que deseja?", disse finalmente dirigindo-se a Kovaliov.
"Eu
lhe peço...", disse
Kovaliov, "... aconteceu uma fraude ou uma patifaria, até agora não
consigo entender direito. Pego-lhe apenas que publique que aquele que me
entregar esse canalha recebera uma razoável gratificação."
"Permita-me
saber, qual o seu sobrenome?"
"Nada
disso, para que sobrenome? Não posso dizer. Tenho muitos conhecidos: a mulher
do conselheiro de Estado Tchertariov, Palagueia Grigorievna Podtotchina, mulher
do oficial do Estado-Maior... Dá de elas ficarem sabendo, Deus me guarde! O
senhor pode escrever simplesmente: o auxiliar de magistratura ou, ainda melhor,
portador do grau de major."
"E o
foragido, era seu criado?"
"Que
criado o que! Isso ainda não seria uma patifaria tão grande! Fugiu de mim... o
nariz..."
"Hum!
Que sobrenome esquisito! E esse senhor Narizis lhe roubou uma quantia muito
grande?"
"Nariz,
isto é... não e bem isso que o senhor esta pensando! O nariz, meu próprio
nariz, desapareceu não se sabe para onde. O diabo quis se divertir a minha
custa!"
"Esta
bem, mas de que maneira desapareceu? Eu sinceramente não consigo entender muito
bem."
"E não
consigo lhe explicar como, mas o fato e que ele agora deve estar circulando
pela cidade e se autodenomina conselheiro de Estado. E por isso lhe peço que
ponha um anuncio para que aquele que o encontrar o traga de volta o mais rápido
possível. O senhor pode imaginar o que é ficar sem uma parte do corpo tão visível?
Isso não é o mesmo que qualquer mindinho do pé que dentro do sapato ninguém vai
ver se ele existe ou não. Todas as quintas-feiras frequento a casa da esposa do
conselheiro de Estado Tchertariov; a de Podtotchina, Palagueia Grigorievna,
esposa do oficial do Estado-Maior, que tem uma filha muito bonita e são também
boas conhecidas minhas, e o senhor pode avaliar por si só como posso então... Não
posso aparecer por lá agora."
O funcionário
ficou pensativo, o que se notou por seus lábios fortemente comprimidos.
"Não,
não posso colocar um anuncio desses no jornal", disse finalmente depois de
uma longa pausa.
"Como?
Por que?"
"Bem.
O jornal pode perder a sua boa reputação. Se todo mundo começar a publicar que
seu nariz fugiu, então... Assim mesmo, já dizem que estão sendo publicados
muitos absurdos e falsos rumores."
"E o
que ha de absurdo nesse assunto? Não acho nada de absurdo nisso."
"Ao
senhor pode parecer que não. Pois veja, na semana passada ocorreu um fato
semelhante. Veio um funcionário e, do mesmo modo que o senhor, trouxe um
bilhete e pelas contas ficou em dois rublos e setenta e três copeques, e o
anuncio todo consistia simplesmente em que fugira um poodle de pelo preto.
Aparentemente, o que ha demais nisso? Mas saiu um pasquim: o tal poodle era o
tesoureiro não me lembro de qual estabelecimento."
"Mas
eu não estou colocando um anuncio sobre um poodle, e sim sobre o meu próprio
nariz: e como se eu falasse de mim mesmo."
"Não,
não posso de modo algum colocar um anuncio desses."
"Mas
como, se o meu nariz realmente sumiu?"
"Se
sumiu, então o caso e com o medico. Dizem que ha gente por ai que pode
reimplantar qualquer tipo de nariz. Eu, cá para mim, estou notando que o senhor
deve ter um temperamento alegre e gosta de brincar com todo mundo."
"Juro
por tudo que é sagrado! Já que chegamos a este ponto, vou mostrar ao
senhor."
"Para
que se incomodar!", prosseguiu o funcionário e cheirou o rapé. "Bem
mas se não lhe for incomodo", acrescentou com curiosidade, "então
gostaria de dar uma olhada."
O auxiliar
de magistratura tirou o lenço do rosto.
"Realmente,
muito estranho!", disse o funcionário. "O lugar esta completamente plano
como uma panqueca recém-assada. Sim, incrivelmente plano."
"E então?
Ainda vai discutir? O senhor mesmo está vendo que é impossível não publicar. Eu
lhe serei imensamente grato e fico muito contente de que este incidente tenha me
proporcionado o prazer de conhece-lo..." O major, pelo visto, decidira-se
dessa vez a ser um tanto falso.
"Publicar,
e claro, não seria grande problema", disse o funcionário, "apenas não
vejo nenhuma vantagem para o senhor. Se o senhor preferir, entregue isto a alguém
que seja hábil na pena e que saiba descrever o assunto como um fenômeno raro na
natureza e publique um artiguinho no Abelha do Norte (ai cheirou mais uma vez o
rapé) em benefício da juventude (ai enxugou o nariz), ou simplesmente para
curiosidade de todos."
O auxiliar
de magistratura sentiu-se completamente desesperançado. Fixou os olhos no pé da
pagina do jornal em que se anunciavam espetáculos; seu rosto já estava pronto
para sorrir ao encontrar o nome de uma atriz muito engraçadinha, e a mao chegou
a segurar o bolso para se certificar de que havia nele uma "boa
nota", pois os oficiais superiores, segundo Kovaliov, deveriam sentar nas
poltronas, quando a lembrança do nariz estragou tudo.
O próprio
funcionário parecia estar comovido com a situação embaraçosa de Kovaliov.
Procurando atenuar um pouco sua desgraça, julgou conveniente expressar o seu
interesse com algumas palavras:
"Eu
realmente lamento muito ter lhe acontecido tal percalço. O senhor não gostaria
de cheirar um pouco de rape? Acaba com dores de cabeça e mau humor; e bom até
para hemorroidas." Dizendo isso, o funcionário ofereceu a caixa de rapé a
Kovaliov dobrando habilmente a tampa que exibia o retrato de uma mulher de chapéu.
Esta atitude involuntária fez Kovaliov perder a paciência:
"Não
posso entender como o senhor ainda tem coragem de brincar", disse, muito
sentido. "Por acaso não percebe que me falta justamente o indispensável
para poder cheirar? Que o diabo carregue o seu rapé! Não posso agora olhar para
ele, e não apenas para o seu horroroso Beresinski, nem que me oferecessem o
mais legitimo rape." Dito isso, saiu do jornal profundamente magoado e se
dirigiu ao comissário de polícia.
Kovaliov
entrou no exato momento em que o comissário se espreguiçava soltando um
grasnido, dizia: Ah! Vou tirar uma soneca de duas horinhas!". E por al se
pode prever quanto a chegada do auxiliar de magistratura fora absolutamente
inoportuna. O comissário era um grande admirador de todas as artes e
manufaturas, mas preferia um bom dinheirinho a tudo o mais. "Isto aqui,
sim", dizia sempre, "não ha nada melhor do que isto: não pede comida,
ocupa pouco espaço, sempre cabe no bolso, se cair, não quebra."
O comissário
recebeu Kovaliov com bastante frieza e lhe disse que depois do almoço não era
hora de fazer investigações e que a própria natureza determina que depois de
comer bem e necessário descansar um pouco (por ai o auxiliar de magistratura
podia ver que ao comissário de polícia não eram desconhecidas as máximas dos
antigos sábios), e que de um homem honrado não iriam arrancar o nariz, e que o
mundo estava cheio de majores que não tinham sequer as roupas de baixo em bom
estado e que frequentavam os lugares mais suspeitos.
Isto é,
acertou em cheio! É necessário notar que Kovaliov era uma pessoa excessivamente
suscetível. Era capaz de perdoar tudo o que dissessem a seu respeito, mas nunca
desculparia se isso se referisse ao seu grau ou ao seu cargo. Chegava a achar
que nas peças de teatro se podia deixar passar tudo o que se referisse aos
oficiais subalternos, mas jamais deveriam atacar os oficiais superiores. A recepção
do comissário deixou-o ato confuso que, sacudindo a cabeça e abrindo um pouco
as mãos, exclamou, cônscio de sua dignidade: "Confesso que depois de observações
tão ofensivas de sua parte, não me resta mais nada a acrescentar...", e
saiu.
Voltou
para casa, mal sentindo as pernas. Anoitecia. Sua casa pareceu-lhe triste e
terrivelmente repugnante depois de todas essas buscas inúteis. Ao entrar no vestíbulo,
viu seu criado Ivan deitado de costas no sofá de couro sujo, cuspindo para o
teto com tanta precisão que acertava sempre num único e mesmo lugar. Tamanha indiferença
enfureceu-o; bateu-lhe com o chapéu na testa, dizendo: Você, seu porco, sempre
ocupado com besteiras!".
Ivan
pulou imediatamente do lugar e precipitou-se para tirar a capa de Kovaliov.
O major
entrou em seu quarto cansado e deprimido, atirou-se numa poltrona e, depois de
alguns suspiros, disse:
"Meu
Deus! Meu Deus! Por que toda essa desgraça? Se tivesse ficado sem um braço ou
sem uma perna, ainda podia ser; sem as orelhas seria horrível, mas até isso
seria suportável; mas sem nariz, um homem... só o diabo sabe o que é: um pássaro
que não é pássaro, um cidadão que não é cidadão... simplesmente de se pegar e
jogar pela janela! Ainda se tivesse sido cortado numa guerra ou num duelo, ou
se fosse eu mesmo o motivo... mas desapareceu assim, sem mais nem menos,
desapareceu de graça, a troco de nada! Mas não, não pode ser", acrescentou
ele depois de pensar um pouco. "É inacreditável que o nariz tenha
desaparecido; e completamente inacreditável. Isto, provavelmente, ou se passa
em sonho, ou é simples alucinação; pode ser que, por engano, em vez de beber
agua, eu tenha bebido a vodca que costumo passar apos a barba. O besta do Ivan não
pegou e com certeza a peguei." E para certificar-se de que realmente não
estava bêbado, o major se beliscou com tamanha força que chegou a gritar. A dor
deixou-o absolutamente convencido de que estava vivendo em plena realidade.
Aproximou-se
com cautela do espelho e, a princípio, semicerrou os olhos na esperança de que
talvez o nariz aparecesse no seu devido lugar; mas na mesma hora deu um salto
para trás, dizendo: "Que coisa infame!".
Isso era
completamente incompreensível. Se tivesse desaparecido um botão, uma colher de
prata, um relógio, ou qualquer coisa do gênero; mas desaparecer,
desaparecer-lhe justamente o que? E, além do mais, na própria casa!... O major
Kovaliov, considerando todas as circunstancias, supôs quase com certeza que a
culpada de tudo isso não podia ser outra senão a mulher do oficial do
Estado-Maior Podtotchin, que desejava casa-lo com a filha. Ele até que gostava
de corteja-la, mas evitava o desenlace definitivo. E quando a esposa do oficial
do Estado-Maior lhe anunciou, sem rodeios, que queria entregar sua filha a ele,
muito habilmente esquivou-se com suas amabilidades, dizendo que ainda era jovem
e que precisava servir mais uns cinco aninhos para que estivesse exatamente com
quarenta e dois. E por isso a dita-cuja, provavelmente por vingança, decidiu
arrasa-lo e, para isso, contratou algumas bruxas, pois de nenhuma forma se
poderia admitir que o nariz fora cortado: ninguém havia entrado em seu quarto,
o barbeiro Ivan Iakovlievitch fizera-lhe a barba ainda quarta-feira, e durante
toda a quarta-feira e até mesmo durante toda a quinta- feira o nariz estivera
inteiro, disso ele se lembrava e sabia-o muito bem; além do mais, deveria ter
sentido alguma dor e, sem duvida, a ferida não poderia ter cicatrizado tão
depressa e ter se tornado chata como uma panqueca Arquitetava planos, em sua cabeça:
chamar a mulher do oficial ao Tribunal através de uma intimação formal ou
aparecer ele próprio em sua casa para surpreende-la. Suas reflexões foram
interrompidas por uma luz que brilhou através de todas as frestas da porta, o
que indicava que a vela no vestíbulo ja tinha sido acesa por Ivan. E logo
depois apareceu o próprio Ivan trazendo-a diante de si e iluminando vivamente
todo o quarto. O primeiro movimento de Kovaliov foi agarrar o lenço e cobrir o
lugar onde, na véspera, ainda havia o nariz, para que o estupido homem não
ficasse de boca aberta ao ver aquela coisa estranha no seu senhor.
Mai Ivan
tivera tempo de ir para o seu quartinho, quando se ouviu no vestíbulo uma voz
desconhecida pronunciando: "E aqui que mora o auxiliar de magistratura
Kovaliov?".
"Pode
entrar, o major Kovaliov está aqui", disse Kovaliov levantando-se
apressado e abrindo a porta.
Entrou um
funcionário da polícia de boa aparência, com umas sulfas nem claras nem
escuras, as bochechas bem cheias; e aquele mesmo que no início da historia
estava parado no fim da ponte Issakievski.
"O
senhor por acaso perdeu o seu nariz?"
"Exatamente."
"Ele
já foi achado."
"O
que e que o senhor esta dizendo?", gritou o major Kovaliov. A alegria
paralisou sua língua. Olhava estatelado para o oficial que se achava a sua
frente e em cujos lábios cheios e em cujas bochechas refletia brilhante a luz
tremula da vela. "De que modo?"
"Por
um estranho acaso; foi interceptado, já a caminho. Estava sentado numa diligencia
e queria ir para Riga. E o passaporte, havia tempo, fora expedido em nome de um
funcionário. E o mais estranho de tudo e que eu mesmo, a principio, o tomei por
um senhor. Mas, por sorte, estava com meus óculos e logo percebi que era um
nariz. Sabe, sou míope, e se o senhor ficar na minha frente, só consigo ver que
o senhor tem um rosto, mas não vou distinguir nem o nariz, nem a barba, nada.
Minha sogra, quer dizer, a mãe de minha mulher, também não enxerga nada."
Kovaliov
estava fora de si. "Mas onde esta ele? Onde? Vou já, correndo."
"Não
se preocupe. Sabendo, quanto lhe era necessário, trouxe-o comigo. E o mais
curioso e que o principal culpado nesta questão e o vigarista do barbeiro da
rua Vosnessenski que já esta preso na delegacia. Ha muito tempo eu já o tinha
como suspeito de bebedeira e roubo, e faz três dias ele roubou numa lojinha um
monte de botões. O seu nariz esta exatamente como era."
Nisso, o
policial enfiou a mão no bolso e tirou dali o nariz embrulhado num papel.
"É
ele!", gritou Kovaliov. "É ele mesmo! Tome hoje comigo uma xícara de chá."
"Consideraria
um grande prazer, mas não posso, em absoluto. Daqui preciso passar ainda na
cadeia... Subiu muito o custo de todos os mantimentos... E ainda mora comigo
minha sogra, quer dizer, a mãe de minha mulher e os meus filhos; o mais velho,
especialmente, me dá muitas esperanças: e um garoto muito inteligente, pena que
não tenhamos meios para educa-lo."
Kovaliov
entendeu, e enfiou na mão do policial um dinheirinho que ele apanhou de cima da
mesa. O policial fez uma profunda reverencia e saiu. E quase ao mesmo tempo
Kovaliov ouviu sua voz na rua xingando um mujique estupido que lhe deu um esbarrão
com sua carroça bem naquela hora.
O auxiliar
de magistratura, apos a salda do policial, ficou por alguns minutos num estado
indefinido, e só depois de alguns minutos voltou-lhe a capacidade de ver e de
sentir, tamanho desvanecimento diante da alegria inesperada. Segurou com
cuidado o nariz encontrado, com ambas as mãos, formando uma concha, e mais uma
vez examinou-o com muita atenção.
"É
ele, é ele mesmo!", dizia o major Kovaliov. "Olha aqui a pequena
espinha do lado esquerdo que tinha aparecido ontem." O major quase se pôs
a gargalhar de alegria. Mas no mundo não ha nada eterno; e, por isso, também a
alegria no minuto que se seguiu ao primeiro já não era tão viva; no terceiro
minuto ela se tornou mais fraca ainda e, por fim, imperceptivelmente se fundiu
com o estado de alma habitual, como o circulo que se forma na agua com a queda
de uma pedra e que acaba se fundindo com a superfície lisa. Kovaliov começou a
refletir e chegou a conclusão de que o caso não estava encerrado: o nariz havia
sido encontrado, mas ainda era preciso coloca-lo, recoloca-lo no seu devido
lugar.
"E
se ele não pegar?"
Diante de
tal pergunta feita a si mesmo, o major empalideceu. Tornado por um sentimento
de terror inexplicável, lançou-se a mesa, aproximou o espelho para não colocar
o nariz torto. Suas mãos tremiam. Com muito cuidado e atenção, recolocou-o no
antigo lugar. Oh!, que horror! O nariz não aderia!... Levou-o junto a boca,
esquentou-o um pouco com sua respiração e tornou a aproxima-lo da superfície
situada entre as duas bochechas; mas o nariz não se firmava de jeito nenhum.
"Vai,
anda, seu bobo, fica al!", dizia para ele. Mas o nariz parecia ser de
madeira e cala sobre a mesa com um barulho tão estranho como se fosse uma
rolha. O rosto do major contraiu-se, convulso. "Será que ele não vai
aderir?", dizia, assustado. Mas, por mais que tentasse leva-lo ao seu próprio
lugar, os esforços eram sempre em vão.
Chamou
Ivan e mandou-o atrás do médico que ocupava, naquela mesma casa, o melhor
apartamento do andar superior. Esse médico era um homem de boa aparência, tinha
lindas suíças cor de piche e uma mulher viçosa e saudável; logo cedo comia magas
frescas e mantinha a boca extraordinariamente limpa, enxaguando-a todas as
manhas durante quase três quartos de hora e polindo os dentes com cinco tipos
de escovinhas diferentes.
O médico
apareceu num minuto. Depois de perguntar havia quanto tempo acontecera a
desgraça, ergueu o major pelo queixo e, com o polegar, justamente onde antes
estava o nariz, deu-lhe um piparote tão forte que o major teve de jogar a cabeça
para trás com tamanha força que bateu a nuca na parede. O medico disse que isso
não era nada e, aconselhando-o a desencostar-se um pouco da parede, mandou
inclinar a cabeça onde antes estava o nariz, e disse: "Hum!", Em
seguida mandou-o inclinar a cabeça para o lado esquerdo e disse:
"Hum!". E, para terminar, deu-lhe de novo um piparote com o polegar
de tal modo que o major Kovaliov deu um puxão com a cabeça como um cavalo
quando lhe examinam os dentes. Feita essa prova, o medico balançou a cabeça e
disse:
"Não,
não é possível. E melhor o senhor ficar assim mesmo porque senão poderá ser
pior ainda. E claro que seria possível recoloca-lo; eu poderia até coloca-lo
agora mesmo, mas lhe asseguro que isso seria pior para o senhor."
"Essa
é muito boa! E como e que eu vou ficar sem nariz?", disse Kovaliov.
"Pior do que esta não pode ficar. Mas que diabo! Onde vou poder aparecer
com tamanha infâmia? Tenho um bom relacionamento: veja, hoje mesmo precisaria
comparecer ao sarau em duas casas. Tenho muitos conhecidos: a esposa do
conselheiro de Estado Tchechtarev, a senhora Podtotchin, esposa de um oficial de
Estado-Maior... apesar de que, depois de seu recente comportamento, não tenho
mais nada com ela, a não ser por meio da polícia. Faça-me uma caridade",
falou Kovaliov com voz suplicante, "não haveria algum meio, ou algum modo
de colocar?, mesmo que não ficasse muito bom, mas contanto que se firmasse; eu
poderia até mesmo ampara-lo de leve com a mão nos casos de perigo. E, além do
mais, eu nem danço, de modo que não terei possibilidade de prejudica-lo com
nenhum movimento descuidado. E no que se refere ao agradecimento por sua
visita, pode estar certo de que farei tudo o que os meus meios
permitirem..."
"Acredite
o senhor", disse o médico com uma voz nem muito alta, nem muito baixa, mas
extremamente persuasiva e magnética, "nunca atendo por interesse. Isso vai
contra meus princípios e minha arte. É bem verdade que cobro as visitas, mas é
simplesmente para não causar ofensa com minha recusa. É claro que eu poderia
recolocar o seu nariz, mas juro pela minha honra, se é que não acredita na
minha palavra, que isso será muito pior. E melhor deixar por obra da própria
natureza. Lave com mais frequência com agua fria e asseguro-o que sem nariz o
senhor será tão saudável quanto se o tivesse. Quanto ao nariz, eu o aconselho a
coloca-lo num frasco com álcool, ou, melhor ainda, ponha duas colheres de vodca
e vinagre quente... e assim poderá conseguir um bom dinheiro por ele. Até eu
poderia compra-lo, se é que o senhor não vai pedir muito caro."
"Não,
não! Não o vendo por nada!", gritou desesperado o major Kovaliov.
"Melhor que pereça!"
"Queira
desculpar!", disse o médico despedindo-se. "Eu só quis ser-lhe útil...
Mas, que fazer! Ao menos, o senhor viu o meu esforço." Dito isso, o médico
saiu do quarto com ar magnânimo. Kovaliov nem sequer reparara em seu rosto e,
numa profunda impassibilidade, vira apenas os punhos da camisa branca e limpa
como a neve que despontava das mangas de seu fraque negro.
Ele
decidiu no dia seguinte, antes de apresentar queixa, escrever a esposa do
oficial do Estado-Maior, para ver se não concordaria em devolver, sem briga, o
que lhe era devido. A carta tinha o seguinte teor:
Prezada senhora Aleksandra Grigorievna
Não posso compreender a estranha atitude
por parte da senhora. Esteja certa de que, procedendo de tal forma, não ganhara
absolutamente nada nem me obrigara a casar com sua filha. Acredite que a historia
a respeito do meu nariz me é totalmente conhecida, bem como sei que as senhoras
são as principais cumplices, e ninguém mais. O súbito desprendimento de seu
lugar, a fuga, o disfarce ora sob o aspecto de um funcionário, ora, por fim, no
seu aspecto próprio, não pode ser outra coisa senão o resultado de bruxarias
executadas pelas senhoras ou por aqueles que, a vossa semelhança, praticam ações
tão nobres. Eu, de minha parte, considero meu dever preveni-la de que se o
citado nariz não estiver hoje mesmo no seu lugar, serei obrigado a recorrer a
defesa e a proteção das leis. Sem mais, com alta estima, tenho a honra de ser
seu humilde servidor.
Platon Kovaliov
Prezado senhor Platon Kuzrnitch
Sua carta deixou-me completamente pasma.
Confesso-lhe com toda a franqueza que jamais esperei tal coisa de sua parte,
tanto mais acusações tão injustas. Previno-o de que o funcionário a quem se
refere nunca foi recebido em minha casa, nem disfarçado nem no seu aspecto
normal. É verdade que esteve em minha casa Filipe Ivanovitch Potantchikov. E
embora ele realmente pretendesse a mão de minha filha e fosse de conduta digna
e sóbria e de grande cultura, nunca lhe dei nenhuma esperança. O senhor ainda
se refere a um nariz. Se entender por isso que eu pretendia deixa-lo com um
palmo de nariz, isto e, dar-lhe uma recusa formal, então me surpreende que o
senhor mesmo esteja falando nisso, uma vez que eu, como é do seu conhecimento,
sou de opinião totalmente contraria, e se o senhor ainda quiser pedir a mão de
minha filha oficialmente, estou pronta desde já a satisfaze-lo, pois esse
sempre foi o meu mais vivo desejo. Nessa esperança, fico sempre a sua inteira disposição.
Aleksandra Podtotchina
"Não",
dizia Kovaliov, depois de ler a carta. "Ela, realmente, não é a culpada. Não
pode ser! A carta esta escrita de tal modo que não pode ser de uma pessoa
culpada de crime." O auxiliar de magistratura era entendido nessas coisas,
pois, muitas vezes, fora enviado a região do Cáucaso para investigações.
"De que modo e por que cargas-d ‘agua isso aconteceu? Só o diabo
sabe!", disse finalmente, deixando cair os bravos.
Enquanto
isso, os rumores acerca desse extraordinário acontecimento haviam se espalhado
por toda a capital e, como é comum, não sem acréscimos especiais. Naquele
tempo, as mentes de todos estavam completamente predispostas para o inusitado:
ultimamente experiências ocupavam-se do efeito do magnetismo. Além do mais, a
historia das cadeiras dançantes na rua Kaniuchenaia era ainda muito recente e,
por isso, não era de estranhar que logo começassem a falar que o nariz do auxiliar
de magistratura Kovaliov, as três horas em ponto perambulava pela avenida
Nievski. Uma multidão de curiosos afluía todos os dias. Alguém disse que o nariz
poderia estar na loja Junker: e formou-se tamanha multidão em volta da Junker e
um corre-corre que até a policia teve de intervir. Um especulador de aparência respeitável,
de suíças, e que vendia diversos tipos de pasteizinhos doces a entrada do teatro,
fez especialmente uns bancos de madeira, sólidos e bonitos, e convidava os
curiosos a subirem neles por oitenta copeques cada um. Um emérito coronel saiu,
com este proposito, mais cedo de sua casa e com muita dificuldade conseguiu
abrir caminho entre a multidão. Mas, para sua grande indignação, viu na vitrine
da loja, em vez de um nariz, uma camiseta de lã comum e uma litografia com a
imagem de uma jovem arrumando sua meia e um janota de colete aberto e de
barbicha que olhava para ela de trás de uma arvore: um quadro que já estava
havia mais de dez anos pendurado sempre no mesmo lugar. Afastando-se, disse com
desdém: "Como é possível confundir o povo com rumores tão tolos e inverossímeis?".
Depois correu o rumor de que não era na avenida Nievski que o nariz do major
Kovaliov perambulava, mas sim no jardim Tavrltcheski, e, segundo parecia,
estava lá já havia muito tempo e até mesmo quando ali ainda vivia
Khosrov-Mirza, e este admirava muito aquele estranho capricho da natureza.
Alguns estudantes da Academia de Cirurgia dirigiram-se para lá. Uma ilustre e respeitável
senhora pediu, por meio de uma carta especial ao supervisor do jardim, que
mostrasse aos seus filhos aquele raro fenômeno e, se possível, com uma explicação
edificante e instrutiva para os jovens. Com todos esses acontecimentos, todos
aqueles mundanos, frequentadores obrigatórios dos saraus, que gostavam de fazer
rir as damas e cujo repertorio de piadas, naquela ocasião, estava completamente
esgotado, sentiram-se particularmente contentes. Uma pequena minoria de gente respeitável
e bem-intencionada estava extremamente descontente. Um senhor dizia, com indignação,
não entender como no atual século esclarecido se propalavam inverdades tão
absurdas, e admirava-se de que o governo não tomasse providencias. Esse senhor,
pelo visto, pertencia aquela categoria de pessoas que gostariam de envolver o
governo em tudo, até mesmo nas suas brigas diárias com a mulher. Depois
disso... mas aqui novamente todo o acontecimento se encobre por uma nevoa e na
o se sabe absolutamente o que aconteceu depois.
III
Cada uma
que acontece neste mundo! As vezes sem nenhuma verossimilhança: de repente,
aquele mesmo nariz que circulava como conselheiro de Estado, e que causara
tanto barulho na cidade, viu-se, como se nada tivesse acontecido, no seu próprio
lugar, ou seja, entre as duas bochechas do major Kovaliov. Isso ocorreu no dia
7 de abril. Tendo acordado e olhado por acaso no espelho, ele viu: o nariz! Pôs
a mão — com efeito, o nariz! "Arre!", diz Kovaliov, e, de alegria, por
pouco não sai em disparada descalço pelo quarto dançando o tropak mas Ivan, que entrava naquele instante, atrapalhou-o.
Disse-lhe que queria lavar-se imediatamente e, enquanto se lavava, deu mais uma
olhada no espelho: o nariz. Enxugando-se com a toalha, novamente olhou para o
espelho: o nariz.
"De
uma olhada, Ivan, parece que tenho uma pequena espinha no nariz", disse
ele, no entanto pensando: "Que desgraça se Ivan disser: qual nada, meu
senhor, não tem espinha e tampouco nariz!".
Porem
Ivan disse: "Não tem nenhuma espinha, não; o nariz esta limpinho!".
"Esta
bem, que diabo!", disse o major a si mesmo e estalou os dedos. Nesse
momento espiou pela porta o barbeiro Ivan Iakovlievitch, mas tão tímido como
uma gata que acabou de apanhar por ter roubado toucinho.
"Diga
primeiro: as mãos estao limpas?", gritava-lhe Kovaliov ainda de longe.
"Estão
limpas."
"Mente!"
"Juro
por Deus, estão limpas, meu senhor."
"Bem,
veja lá!"
Kovaliov
sentou-se, Ivan Iakovlievitch cobriu-o com um guardanapo e, num instante, com o
auxílio do pincel, transformou toda a sua barba e parte das bochechas num creme
semelhante ao que e servido nas festas de aniversario dos comerciantes.
"Ora veja!", disse consigo mesmo Ivan Iakovlievitch ao ver o nariz e
depois virou a cabeça para o outro lado e o olhou de lado: "Ora!, quem
diria" continuou, e ficou olhando para o nariz um bom tempo. Por fim, com
muita suavidade e com um cuidado que não se pode nem imaginar, ergueu dois
dedos com a intenção de apanha-lo pela ponta. Era esse o sistema de Ivan Iakovlievitch.
"Opa,
opa! Olha al!", gritou Kovaliov. Ivan Iakovlievitch até deixou cair os braços
e ficou perplexo e confuso como jamais ficara. Por fim, com cautela, começou a
roçar a barba com a navalha, muito embora não lhe fosse nem um pouco cômodo e até
difícil barbear sem segurar o órgão do olfato. Todavia, mal apoiando seu áspero
polegar na bochecha e na mandíbula, finalmente venceu todos os obstáculos e
conseguiu barbear.
Quando
tudo estava pronto, Kovaliov na mesma hora correu a vestir-se, pegou um fiacre e foi direto a uma confeitaria.
Ao entrar, gritou já de longe: "Rapaz! Uma xicara de chocolate!". E,
no mesmo instante, uma espiadela no espelho: o nariz estava. Virou-se para trás
alegremente e, com uma expressão satírica, semicerrando um pouco os olhos,
olhou para dois militares, um dos quais tinha um nariz não maior do que um botão
de colete. Depois disso, dirigiu- se ao escritório do Departamento, onde
pleiteava o posto de vice-governador, ou, em caso de insucesso, o de executor.
Ao passar pela recepção, deu uma olhada no espelho: o nariz estava lá. Em
seguida, foi visitar um outro auxiliar de magistratura ou major, grande
gozador, a cujas observações provocativas ele frequentemente respondia:
"Ah, você, conheço bem, você é espeto!". Pelo caminho pensou: "E
se também o major não se arrebentar de rir ao ver-me, então é um sinal evidente
de que tudo, tudo está em seu devido lugar". Mas o auxiliar de magistratura
não disse nada. "Muito bom, muito bom, com os diabos!", pensou
consigo mesmo Kovaliov. No caminho encontrou a esposa do oficial do Estado-
Maior Podtotchin com a filha; cumprimentou-a e foi acolhido com exclamações de
alegria. Então estava tudo bem, não havia nele nenhum defeito. Ficou falando
com elas um bom tempo e, de proposito, tirando a tabaqueira, ficou diante delas
mais outro tempo enchendo ambos os orifícios do nariz com rapé e dizendo para
si mesmo: "Olhem aqui para vocês, suas bobas, suas galinhas! E com a
filha, não casarei mesmo. Agora assim, par
amour — as ordens!". E desde então o major Kovaliov deu de andar pela
avenida Nievski como se nada tivesse acontecido, e também pelos teatros e por
toda parte. E também o nariz, como se nada tivesse acontecido, estava firme em
seu rosto, sem demonstrar nem sequer ter se ausentado dali. E depois de tudo
aquilo, o major Kovaliov era sempre visto de bom humor, sorridente, perseguindo
decididamente todas as mulheres bonitas. Foi até visto certa vez em frente a
uma lojinha, no Pátio do Comercio, comprando uma fita qualquer de condecoração,
não se sabe bem para que finalidade, pois não era cavaleiro de nenhuma ordem.
Vejam só
que historia foi acontecer na capital setentrional de nosso vasto império! Só
agora, refletindo bem sobre tudo, vemos que ha nela muito de inverossímil! Sem
falar que é realmente estranho o desprendimento sobrenatural do nariz e o seu
aparecimento em diversos lugares, sob a forma de conselheiro de Estado... Como
Kovaliov não se deu conta de que era impossível anunciar no jornal a respeito
de um nariz? Não quero dizer com isso que o anuncio tenha me parecido muito
caro: seria um absurdo e não sou em absoluto uma pessoa avarenta. Mas é
indecoroso, incomodo, indecente! Além do mais, como é que o nariz foi parar no pão
assado e como é que o próprio Ivan Iakovlievitch...? Não, não entendo isso de
jeito nenhum, decididamente não entendo! Mas o que e mais estranho, ainda mais incompreensível
do que tudo, e como os autores podem escolher semelhantes assuntos. Confesso
que isso é absolutamente inconcebível, parece que... não, não, não entendo em
absoluto. Em primeiro lugar, não traz benefício nenhum para a pátria; em
segundo... bem, em segundo lugar também não há benefício algum. Eu simplesmente
não sei o que e isso...
Mas,
apesar de tudo, muito embora se possa, sem duvida, admitir isso, aquilo, e mais
aquilo, pode ser até... bem, e onde é que não existem absurdos? Não obstante,
se refletirmos bem sobre tudo isso, na verdade, há algo. Digam o que disserem,
tais fatos ocorrem no mundo; e raro, mas ocorrem.
Que conto é esse?!
ResponderExcluirGogol é foda mesmo. A literatura russa é foda.