José Cândido de
Carvalho, escritor carioca,
(1914 -1989), é na minha opinião o maior mini-contista do Brasil. Seu romance,
“O Coronel e o Lobisomem”, merece destaque entre os grandes romances da
literatura brasileira mas seus dois livros de mini contos “Por que Lulu
Bergantim não atravessou o Rubicom” e o “Ninho de Mafagafes”, onde ele escreve
sobre os "contados, astuciados, sucedidos e acontecidos do povinho do
Brasil" são duas perolas que deveriam estar em qualquer estante, como o
melhor entre os antídotos ao mal humor. Aqui segue o mini-conto que dá titulo
ao primeiro livro.
Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon
José Cândido de
Carvalho
Lulu Bergantim veio de longe, fez dois
discursos, explicou por que não
atravessou o Rubicon, coisa que ninguém
entendeu, expediu dois socos na
Tomada da Bastilha, o que também ninguém
entendeu, entrou na política e foi eleito na ponta dos votos de Curralzinho
Novo. No dia da posse, depois dos
dobrados da Banda Carlos Gomes e dos versos
atirados no rosto de Lulu
Bergantim pela professora Andrelina Tupinambá, o novo
prefeito de Curralzinho
sacou do paletó na vista de todo mundo, arregaçou as
mangas e disse:
“Já falaram, já comeram biscoitinhos de
araruta e licor de jenipapo.
Agora é trabalhar!”
E sem mais aquela, atravessou
a sala da posse, ganhou a porta e caiu de
enxada nos matos que infestavam a Rua
do Cais. O povo, de boca aberta,
não lembrava em cem anos de ter acontecido um
prefeito desse porte. Cajuca
Viana, presidente da Câmara de Vereadores, para
não ficar por baixo, pegou
também no instrumento e foi concorrer com Lulu
Bergantim nos trabalhos
de limpeza. Com pouco mais, toda a cidade de
Curralzinho estava no pau
da enxada. Era um enxadar de possessos! Até a
professora Andrelina Tupinambá,
de óculos, entrou no serviço de faxina. E
assim, de limpeza em
limpeza, as ruas de Curralzinho ficaram novinhas em folha,
saltando na
ponta das pedras. E uma tarde, de brocha na mão, Lulu caiu em
trabalho de
caiação. Era assobiando "O teu-cabelo-não-nega,
mulata,
porque-és-mulata-na-cor" que o ilustre sujeito público comandava
as brochas
de sua
jurisdição. Lambuzada de cal, Curralzinho pulava nos sapatos,
branquinha mais que asa de anjo. E
de melhoria em melhoria, a cidade foi andando na frente dos safanões de Lulu
Bergantim. Às vezes, na sacada do casarão da prefeitura, Lulu ameaçava:
“Ou vai ou racha!”
E uma noite, trepado no coreto da Praça das
Acácias, gritou:
“Agora a gente vai fazer serviço de tatu!”
O povo todo, uma picareta só, começou a
esburacar ruas e becos de modo
a deixar passar encanamento de água. Em um
quarto de ano Curralzinho já gozava, como dizia cheio de vírgulas e crases o
Sentinela Municipal do "salutar benefício do chamado precioso
líquido". Por força de uma proposta de Cazuza Militão, dentista prático e
grão-mestre da Loja Maçônica José Bonifácio,
fizeram
correr o pires da subscrição
de modo a montar Lulu Bergantim em forma de estátua, na Praça das Acácias. E
andava o bronze no meio do trabalho de fundição,
quando Lulu Bergantim, de
repente, resolveu deixar o ofício de prefeito. Correu todo mundo com pedidos e
apelações. O promotor público Belinho Santos fez discurso. E discurso fez, com
a faixa de provedor-mor da Santa Casa no peito, o
Major Penelão de Aguiar. E
Lulu firme:
“Não abro mão! Vou embora para Ponte Nova.
Já remeti telegrama
avisativo de minha chegada.”
Em verdade Lulu Bergantim não foi por conta
própria. Vieram buscar
Lulu em viagem especial, uma vez que era fugido do
Hospício Santa Isabel
de Inhangapi de Lavras. Na despedida de Lulu Bergantim
pingava tristeza
dos olhos e dos telhados de Curralzinho Novo. E ao dobrar a última
rua da cidade, estendeu o braço e afirmou:
“Por essas e por outras é que não atravessei
o Rubicon!”
Lulu foi embora embarcado em nunca-mais.
Sua estátua ficou no
melhor pedestal da Praça das Acácias. Lulu em mangas de
camisa, de enxada na mão. Para sempre, Lulu Bergantim!
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