A nova Califórnia, um conto clássico de um dos maiores escritores brasileiros, o carioca Lima Barreto
(1881-1922) – autor de “O triste fim de Policarpo Quaresma”. Uma excelente leitura neste imenso pais do carnaval. Este conto deu origem ao filme Osso, amor e papagaios filmado em 1957,
uma das grandes comedias dos estúdios da Vera Cruz
A nova Califórnia
Lima Barreto
I
Ninguém sabia donde viera aquele homem. O
agente do correio pudera
a penas informar que acudia ao nome de Raimundo
Flamel, pois assim
era subscrita a correspondência que recebia. E era grande.
Quase diariamente, o carteiro lá ia a um dos extremos da cidade, onde morava
o
desconhecido, sopesando um maço alentado de cartas vindas do mundo inteiro,
grossas revistas em línguas arrevesadas, livros, pacotes...
Quando Fabrício, o pedreiro, voltou de um
serviço em casa do novo
habitante, todos na venda perguntaram-lhe que trabalho
lhe tinha sido determinado.
– Vou fazer um forno, disse o preto, na sala
de jantar.
Imaginem o espanto da pequena cidade de
Tubiacanga, ao saber de tão extravagante construção: um forno na sala de jantar!
E, pelos dias seguintes, Fabrício pôde
contar que vira balões de vidros, facas sem corte, copos como
os da farmácia -
um rol de coisas esquisitas a se mostrarem pelas mesas e prateleiras como
utensílios de uma bateria de cozinha em que o próprio diabo cozinhasse.
O alarme se fez na vila. Para uns, os mais
adiantados, era um fabricante
de moeda falsa; para outros, os crentes e
simples, um tipo que tinha parte
com o tinhoso.
Chico da Tirana, o carreiro, quando passava
em frente da casa do
homem misterioso, ao lado do carro a chiar, e olhava a
chaminé da sala de jantar a fumegar, não deixava de persignar-se e rezar um
"credo" em voz
baixa; e, não fora a intervenção do farmacêutico, o
subdelegado teria ido dar um cerco à casa daquele indivíduo suspeito, que
inquietava a imaginação de toda uma população.
Tomando em consideração as informações de
Fabrício, o boticário
Bastos concluíra que o desconhecido devia ser um sábio,
um grande químico, refugiado ali para mais sossegadamente levar avante os seus
trabalhos científicos.
Homem formado e respeitado na cidade,
vereador, médico também,
porque o doutor Jerônimo não gostava de receitar e se
fizera sócio da farmácia para mais em paz viver, a opinião de Bastos levou
tranquilidade a todas as consciências e fez com que a população cercasse de uma
silenciosa admiração a pessoa do grande químico, que viera habitar a cidade.
De tarde, se o viam a passear pela margem do
Tubiacanga, sentando-se
aqui e ali, olhando perdidamente as águas claras do
riacho, cismando diante
da penetrante melancolia do crepúsculo, todos se
descobriam e não era raro que às "boas noites" acrescentassem
"doutor". E tocava muito o coração daquela gente a profunda simpatia
com que ele tratava as crianças, a maneira pela qual as contemplava, parecendo apiedar-se de que elas tivessem
nascido para sofrer e morrer.
Na verdade, era de ver-se, sob a doçura
suave da tarde, a bondade de
Messias com que ele afagava aquelas crianças
pretas, tão lisas de pele e tão tristes de modos, mergulhadas no seu cativeiro
moral, e também as brancas,
de pele baça, gretada e áspera, vivendo amparadas
na necessária caquexia dos trópicos.
Por vezes, vinha-lhe vontade de pensar qual
a razão de ter Bernardin
de Saint-Pierre gasto toda a sua ternura com Paulo e
Virgínia e esquecer-se
dos escravos que os cercavam...
Em poucos dias a admiração pelo sábio era
quase geral, e, não o era,
unicamente porque havia alguém que não tinha em
grande conta os méritos
do novo habitante.
Capitão Pelino, mestre-escola e
redator da Gazeta de Tubiacanga, órgão
local e filiado ao partido
situacionista, embirrava com o sábio. "Vocês hão
de ver, dizia ele, quem é
esse tipo... Um caloteiro, um aventureiro ou talvez
um ladrão fugido do
Rio."
A sua opinião em nada se baseava, ou antes,
baseava-se no seu oculto
despeito vendo na terra um rival para a fama de sábio
de que gozava. Não que
Pelino fosse químico, longe disso; mas era sábio, era
gramático. Ninguém
escrevia em Tubiacanga que não levasse bordoada do Capitão
Pelino, e mesmo
quando se falava em algum homem notável lá no Rio, ele não
deixava de
dizer: "Não há dúvida! O homem tem talento, mas escreve: um
outro', 'de
resto ..." E contraía os lábios como se tivesse engolido
alguma cousa amarga.
Toda a vila de Tubiacanga acostumou-se a
respeitar o solene Pelino,
que corrigia e emendava as maiores glórias
nacionais. Um sábio...
Ao entardecer, depois de ler um pouco o
Sotero, o Cândido de Figueiredo ou o Castro Lopes e de ter passado mais uma vez
a tintura nos
cabelos, o velho mestre-escola saía vagarosamente de casa, muito
abotoado
no seu paletó de brim mineiro, e encaminhava-se para a botica do
Bastos a
dar dois dedos de prosa. Conversar é um modo de dizer, porque era
Pelino
avaro de palavras, limitando-se tão-somente a ouvir. Quando, porém,
dos
lábios de alguém escapava a menor incorreção de linguagem, intervinha
e
emendava. "Eu asseguro, dizia o agente do Correio, que..." Por aí,
o
mestre-escola intervinha com mansuetude evangélica: "Não diga
'asseguro',
Senhor Bernardes; em português é 'garanto.
E a conversa continuava
depois da emenda, para ser de novo interrompida por
uma outra.
Por essas e outras, houve muitos
palestradores que
se afastaram, mas Pelino, indiferente, seguro dos seus
deveres, continuava
o
seu apostolado de vernaculismo. A chegada do sábio veio
distraí-lo um pouco
da sua missão. Todo o seu esforço voltava-se agora para
combater aquele
rival, que surgia tão inopinadamente.
Foram vãs as suas
palavras e a sua eloquência: não só Raimundo Flamel
pagava em dia as suas
contas, como era generoso - pai da pobreza - e o
farmacêutico vira numa revista
de específicos seu nome citado como químico
de valor.
II
Havia já anos que o químico vivia em
Tubiacanga, quando, uma bela
manhã, Bastos o viu entrar pela botica adentro. O
prazer do farmacêutico
foi imenso. O sábio não se dignara até aí visitar fosse
quem fosse, e, certo
dia, quando o sacristão Orestes ousou penetrar em sua
casa, pedindo-lhe uma esmola para a futura festa de Nossa Senhora da Conceição,
foi com visível enfado que ele o recebeu e atendeu.
Vendo-o, Bastos saiu de detrás do balcão,
correu a recebê-lo com a mais perfeita demonstração de quem sabia com quem
tratava e foi quase em uma exclamação que disse:
– Doutor, seja bem-vindo.
O sábio pareceu não se surpreender nem com a
demonstração de
respeito do farmacêutico, nem com o tratamento universitário.
Docemente
olhou um instante a armação cheia de medicamentos e respondeu:
– Desejava falar-lhe em particular, Senhor
Bastos.
O espanto do farmacêutico foi grande. Em que
poderia ele ser útil ao
homem, cujo nome corria mundo e de quem os jornais
falavam com tão
acendrado respeito. Seria dinheiro? Talvez... Um atraso no
pagamento das
rendas, quem sabe? E foi conduzindo o químico para o interior da
casa, sob
o olhar espantado do aprendiz, que, por um momento, deixou a
"mão"
descansar no gral, onde macerava uma tisana qualquer.
Por fim, achou aos fundos, bem no fundo, o
quartinho que lhe servia
para exames médicos mais detidos ou para as pequenas
operações, porque
Bastos também operava. Sentaram-se e Flamel não tardou a
expor:
– Como o senhor deve saber, dedico-me à
química, tenho mesmo um
nome respeitado no mundo sábio...
– Sei perfeitamente, doutor, mesmo tenho
disso informado, aqui, aos
meus amigos.
– Obrigado. Pois bem: fiz uma grande
descoberta, extraordinária...
Envergonhado com o seu entusiasmo, o sábio
fez uma pausa e depois
continuou:
– Uma descoberta... Mas não me convém, por
ora, comunicar ao
mundo sábio, compreende?
– Perfeitamente.
– Por isso precisava de três pessoas
conceituadas que fossem testemunhas de uma experiência dela e me dessem um
atestado em forma, para
resguardar a prioridade da minha invenção... O senhor
sabe: há acontecimentos
imprevistos e...
– Certamente! Não há dúvida!
– Imagine o senhor que se trata de fazer
ouro...
Como? O quê? fez Bastos arregalando os
olhos.
– Sim! Ouro! disse com firmeza Flamel.
–Como?
– O senhor saberá, disse o químico
secamente. A questão do momento
são as pessoas que devem assistir à experiência,
não acha?
– Com certeza, é preciso que os seus
direitos fiquem resguardados,
porquanto...
– Uma delas, interrompeu o sábio, é o
senhor; as outras duas o Senhor
Bastos fará o favor de indicar-me.
O boticário esteve um instante a pensar,
passando em revista os seus
conhecimentos e, ao fim de uns três minutos,
perguntou:
– O Coronel Bentes lhe serve? Conhece?
– Não. O senhor sabe que não me dou com
ninguém aqui.
– Posso garantir-lhe que é homem sério, rico
e muito discreto.
– É religioso? Faço-lhe esta pergunta,
acrescentou Flamel logo, porque
temos que lidar com ossos de defunto e só estes
servem...
– Qual! É quase ateu...
– Bem! aceito. E o outro?
Bastos voltou a pensar e dessa vez
demorou-se um pouco mais consultando a sua memória... Por fim falou:
– Será o Tenente Carvalhais, o coletor, conhece?
– Como já lhe disse...
– É verdade. É homem de confiança, sério,
mas...
– Que é que tem?
– É maçom.
– Melhor.
– E quando é?
– Domingo. Domingo, os três irão lá em casa
assistir à experiência e
espero que não me recusarão as suas firmas para
autenticar a minha descoberta.
– Está tratado.
Domingo, conforme
prometeram, as três pessoas respeitáveis de Tubiacanga foram à casa de Flamel,
e, dias depois, misteriosamente, ele desaparecia sem deixar vestígio ou
explicação para o seu desaparecimento.
III
Tubiacanga era uma pequena cidade de três ou
quatro mil habitantes,
muito pacífica, em cuja estação, de onde em onde, os
expressos davam a
honra de parar. Há cinco anos não se registrava nela um furto
ou roubo. As
portas e janelas só eram usadas... porque o Rio as usava.
O último crime notado em seu pobre cadastro
fora um assassinato por
ocasião das eleições municipais; mas, atendendo que o
assassino era do
partido do governo, e a vítima da oposição, o acontecimento em
nada alterou
os hábitos da cidade, continuando ela a exportar o seu café e a
mirar as suas
casas baixas e acanhadas nas escassas águas do pequeno rio que a
batizara.
Mas, qual não foi a surpresa dos seus
habitantes quando se veio a
verificar nela um dos mais repugnantes crimes de
que se tem memória! Não
se tratava de um esquartejamento ou parricídio; não era
o assassinato de uma
família inteira ou um assalto à coletoria; era cousa pior,
sacrílega aos olhos
de todas as religiões e consciências; violavam-se as
sepulturas do "Sossego",
do seu cemitério, do seu campo-santo.
Em começo, o coveiro julgou que fossem cães,
mas, revistando bem o muro, não encontrou senão pequenos buracos. Fechou-os;
foi inútil. No dia
seguinte, um jazigo perpétuo arrombado e os ossos saqueados;
no outro, um
carneiro e uma sepultura rasa. Era gente ou demônio. O coveiro não
quis
mais continuar as pesquisas por sua conta, foi ao subdelegado e a notícia
espalhou-se
pela cidade.
A indignação na cidade tomou todas as
feições e todas as vontades.
A religião da morte precede todas e certamente
será a última a morrer nas
consciências. Contra a profanação, clamaram os seis
presbiterianos do lugar
- os bíblias, como lhes chama o povo; clamava o
Agrimensor Nicolau,
antigo cadete, e positivista do rito Teixeira Mendes;
clamava o Major
Camanho, presidente da Loja Nova Esperança; clamavam o turco
Miguel
Abudala, negociante de armarinho, e o céptico Belmiro, antigo estudante,
que
vivia ao deus-dará, bebericando parati nas tavernas.
A própria filha do
engenheiro residente da
estrada de ferro, que vivia desdenhando aquele
lugarejo, sem notar sequer os
suspiros dos apaixonados locais, sempre
esperando que o expresso trouxesse um
príncipe a desposá-la - a linda e
desdenhosa Cora não pôde deixar de
compartilhar da indignação e do horror
que tal ato provocara em todos do
lugarejo. Que tinha ela com o túmulo de
antigos escravos e humildes roceiros?
Em que podia interessar aos seus lindos
olhos pardos o destino de tão humildes
ossos? Porventura o furto deles
perturbaria o seu sonho de fazer radiar a
beleza de sua boca, dos seus olhos
e do seu busto nas calçadas do Rio?
Decerto,
não; mas era a Morte, a Morte implacável e omnipotente, de
quem ela também se
sentia escrava, e que não deixaria um dia de levar a sua
linda caveirinha para
a paz eterna do cemitério. Aí Cora queria os seus ossos
sossegados, quietos e
comodamente descansando num caixão bem feito e num túmulo seguro, depois de ter
sido a sua carne encanto e prazer dos vermes...
O mais indignado, porém, era Pelino. O
professor deitara artigo de
fundo, imprecando, bramindo, gritando: "Na
história do crime, dizia ele, já bastante rica de fatos repugnantes, como
sejam: o esquartejamento de Maria de Macedo, o estrangulamento dos irmãos
Fuoco, não se registra um que o seja tanto como o saque às sepulturas do
'Sossego'."
E a vila vivia em sobressalto. Nas faces não
se lia mais paz; os negócios estavam paralisados; os namoros suspensos. Dias e
dias por sobre as casas pairavam nuvens negras e, à noite, todos ouviam ruídos,
gemidos, barulhos sobrenaturais... parecia que os mortos pediam vingança...
O saque, porém, continuava. Toda noite eram
duas, três sepulturas
abertas e esvaziadas de seu fúnebre conteúdo. Toda a
população resolveu ir
em massa guardar os ossos dos seus maiores. Foram cedo,
mas, em breve, cedendo à fadiga e ao sono, retirou-se um, depois outro e, pela
madrugada,
já não havia nenhum vigilante. Ainda nesse dia o coveiro verificou
que duas sepulturas tinham sido abertas e os ossos levados para destino
misterioso.
Organizaram então uma guarda. Dez homens
decididos juraram perante o subdelegado vigiar durante a noite a mansão dos
mortos.
Nada houve de anormal na primeira noite, na
segunda e na terceira;
mas, na quarta, quando os vigias já se dispunham a
cochilar, um deles julgou lobrigar um vulto esgueirando-se por entre a quadra
dos carneiros. Correram
e conseguiram apanhar dois dos vampiros. A raiva e a
indignação até aí sopitadas no ânimo deles, não se contiveram mais e deram
tanta bordoada
nos macabros ladrões, que os deixaram estendidos como mortos.
A notícia correu logo de casa em casa e,
quando, de manhã se tratou
de estabelecer a identidade dos dois malfeitores, foi
diante da população
inteira que foram neles reconhecidos o Coletor Carvalhais e
o coronel Bentes,
rico fazendeiro e presidente da Câmara. Este último ainda
vivia e, a perguntas repetidas que lhe fizeram, pôde dizer que juntava os ossos
para fazer ouro
e o companheiro que fugira era o farmacêutico.
Houve espanto e houve esperanças. Como fazer
ouro com ossos? Seria possível? Mas aquele homem rico, respeitado, como
desceria ao papel de
ladrão de mortos se a cousa não fosse verdade!
Se fosse possível fazer, se daqueles míseros
despojos fúnebres se pudesse
fazer alguns contos de réis, como não seria bom
para todos eles!
O carteiro, cujo velho sonho era a formatura
do filho, viu logo ali meios
de consegui-la. Castrioto, o escrivão do juiz de
paz, que o ano passado
conseguiu comprar uma casa, mas ainda não a pudera
cercar, pensou no muro, que lhe devia proteger a horta e a criação. Pelos olhos
do sitiante Marques,
que andava desde anos atrapalhado para arranjar um pasto,
passou logo o
prado verde do Costa, onde os seus bois engordariam e ganhariam
forças...
As necessidades de cada um, aqueles ossos
que eram ouro, viriam
atender, satisfazer e felicitá-los; e aqueles dois ou
três milhares de pessoas, homens, crianças, mulheres, moços e velhos, como se
fossem uma só pessoa, correram à casa do farmacêutico.
A custo, o subdelegado pôde impedir que
varejassem a botica e conseguir que ficassem na praça à espera do homem, que
tinha o segredo de todo
um Potosí.
Ele não tardou a aparecer. Trepado a uma
cadeira, tendo na mão
uma pequena barra de ouro que reluzia ao forte sol da
manhã, Bastos pediu graça, prometendo que ensinaria o segredo, se lhe poupassem
a vida. "Queremos já sabê-lo", gritaram. Ele então explicou que era
preciso redigir a receita,
indicar a marcha do processo, os reativos - trabalho
longo que só poderia
ser entregue impresso no dia seguinte. Houve um murmúrio,
alguns chegaram a gritar, mas o subdelegado falou e responsabilizou-se pelo
resultado.
Docilmente, com aquela doçura particular às
multidões furiosas, cada
qual se encaminhou para casa, tendo na cabeça um único
pensamento:
arranjar imediatamente a maior porção de ossos de defunto que
pudesse.
O sucesso chegou à casa do engenheiro
residente da estrada de ferro.
Ao jantar, não se falou em outra cousa. O doutor
concatenou o que ainda
sabia do seu curso, e afirmou que era impossível. Isto
era alquimia, cousa
morta: ouro é ouro, corpo simples, e osso é osso, um
composto, fosfato de
cal. Pensar que se podia fazer de uma cousa outra era
"besteira". Cora
aproveitou o caso para rir-se petropolimente da
crueldade daqueles botocudos;
mas sua mãe, Dona Emília, tinha fé que a cousa
era possível.
À noite, porém, o doutor percebendo que a mulher dormia, saltou
a
janela e correu em direitura ao cemitério; Cora, de pés nus, com as
chinelas
nas mãos, procurou a criada para irem juntas à colheita de ossos. Não
a
encontrou, foi sozinha; e Dona Emília, vendo-se só, adivinhou o passeio e
lá
foi também.
E assim aconteceu na cidade inteira. O pai,
sem dizer nada
ao filho, saía; a mulher, julgando enganar o marido, saía; os
filhos, as filhas,
os criados - toda a população, sob a luz das estrelas
assombradas, correu ao
satânico rendez-vous no "Sossego". E ninguém
faltou. O mais rico e o mais
pobre lá estavam. Era o turco Miguel, era o
professor Pelino, o doutor
Jerônimo, o Major Camanho, Cora, a linda e
deslumbrante Cora, com os
seus lindos dedos de alabastro, revolvia a sânie das
sepulturas, arrancava
as
carnes ainda podres agarradas tenazmente aos ossos e
deles enchia o seu
regaço até ali inútil. Era o dote que colhia e as suas
narinas, que se abriam
em asas rosadas e quase transparentes, não sentiam o
fétido dos tecidos
apodrecidos em lama fedorenta...
A desinteligência não tardou a surgir; os
mortos eram poucos e não
bastavam para satisfazer a fome dos vivos. Houve
facadas, tiros, cachações.
Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur e
mesmo entre as famílias
questões surgiram. Unicamente, o carteiro e o filho não
brigaram. Andaram
juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno, uma esperta
criança de
onze anos, até aconselhou ao pai: "Papai, vamos onde está
mamãe; ela era tão gorda..."
De manhã, o cemitério tinha mais mortos do
que aqueles que recebera
em trinta anos de existência. Uma única pessoa lá não
estivera, não matara
nem profanara sepulturas: fora o bêbedo Belmiro.
Entrando numa venda,
meio aberta, e nela não encontrando ninguém,
enchera uma garrafa de parati e se
deixara ficar a beber sentado na margem
do Tubiacanga, vendo escorrer
mansamente as suas águas sobre o áspero leito
de granito - ambos, ele e o rio,
indiferentes ao que já viram, ao que viam,
mesmo à fuga do farmacêutico, com o
seu Potosi e o seu segredo, sob o dossel
eterno das estrelas.
Este conto provavelmente foi inspirado pela peça A Mandrágora de teatro escrita em 1518 por Nicolau Maquiavel.
ResponderExcluirConta a história do jovem Calímaco, que conhece e passa a desejar intensamente uma mulher casada que não consegue ter filhos com seu marido. Para conquistá-la ele finge ser médico e receita um tratamento a base de mandrágora, uma planta afrodisíaca. Ele conta com a ajuda de um frei sem escrúpulos e da mãe da recatada esposa.
Maquiavel constrói um texto onde a conquista amorosa, com suas conveniências e conivência de toda uma cidade, servem como pretexto para desenvolver um tratado prático e saboroso sobre estratégia política, sobre a arte de envolver, manipular, convencer e, por fim, conquistar um objetivo.