sábado, 5 de setembro de 2015

63 – Urubus sem penas – J. R. Rybeiro


Julio Ramon Rybeiro (1928-994 ), escritor peruano, é um dos maiores contistas latino-americanos, muito embora seja relativamente desconhecido no Brasil. Seus contos – e “Urubu sem penas” é um dos melhores exemplos – tem a mesma força e dimensão social dos melhores textos de Graciliano Ramos. Recomendo muito sua leitura. Ele descreve homens e meninos que vivem em meio ao lixo, tão distantes – e tão iguais a nós – como os refugiados sírios.  
Urubus sem penas
Julio Ramón Ribeyro

Às seis da manhã a cidade se levanta na ponta dos pés e começa a dar os primeiros passos. Uma fina névoa dissolve o perfil dos objetos e cria como que uma atmosfera encantada. As pessoas que percorrem a cidade a essa hora parecem ser feitas de outra substância, parecem pertencer a um tipo de vida fantasmagórica. As beatas arrastam-se penosamente até desaparecer nos pórticos das igrejas. Os notívagos, macerados pela noite, voltam para casa envoltos em cachecóis e melancolia. Os lixeiros iniciam seu passeio sinistro pela avenida Pardo, armados de vassouras e carrinhos. A essa hora também se veem operários caminhando para o bonde, policiais encostados nas árvores, bocejando, jornaleiros roxos de frio, empregadas tirando as latas de lixo. Por fim, como que atendendo a um misterioso chamado, surgem os urubus sem penas.
Então o velho sr. Santos coloca a perna de pau e, sentando-se no colchão, começa aberrar:
- Vamos levantar! Efraín, Enrique! Esta na hora!
Os dois rapazes correm para o córrego do quintal esfregando os olhos remelentos. Na tranquilidade da noite, a água aquietou-se e no fundo transparente se veem ervas crescendo e ágeis larvinhas que flutuam. Depois de enxaguar o rosto, cada um pega sua lata e se manda para a rua. Seu Santos, enquanto isso, se aproxima do chiqueiro e com uma longa vara golpeia o lombo do porco que se espoja em meio aos detritos.
- Ainda falta um pouco, seu desgraçado! Mas pode esperar, que a sua vez já vai chegar.
Efraín e Enrique se demoram no caminho, trepando nas árvores para apanhar amoras ou catando pedras, daquelas afiadas que cortam o ar e ferem pelas costas. Ainda de madrugada chegam a seu domínio, uma longa rua adornada de casas elegantes que desemboca no cais.
Eles não são os únicos. Em outros quintais, em outros subúrbios, alguém deu o sinal de alarme e muitos se levantaram. Uns levam latas, outros caixas de papelão, às vezes um jornal velho é suficiente. Sem se conhecerem formam uma espécie de organização clandestina espalhada por toda a cidade. Alguns deles vão bisbilhotar nos edifícios públicos; outros escolheram os parques ou as lixeiras. Até os cachorros adquiriram seus hábitos, seus itinerários, sabiamente arregimentados pela miséria.
Efraín e Enrique, após um breve descanso, começam o trabalho. Cada um escolhe uma calçada da rua. As lixeiras estão alinhadas diante das portas. É preciso esvaziá-las integralmente e aí começar a exploração. Uma lixeira é sempre uma caixa de surpresas. Encontram-se latas de sardinhas, sapatos velhos, pedaços de pão, ratazanas mortas, algodoes imundos. A eles só interessam os restos de comida. No fundo do chiqueiro Pascual recebe qualquer coisa, e tem predileção pelas verduras ligeiramente decompostas. A latinha de cada um vai se enchendo de tomates podres, pedaços de banha, estranhos molhos que não figuram em nenhum manual de cozinha. No entanto, não é raro um achado valioso. Um dia Efraín encontrou uns suspensórios com os quais fabricou um estilingue. Outra vez, uma pera quase boa que devorou no ato. Enrique, em compensação, tem sorte com caixinhas de remédios, frascos brilhantes, escovas de dentes usadas e outras coisas semelhantes que coleciona com avidez.
Após uma rigorosa seleção, devolvem o lixo ao latão e se lançam sobre o próximo. Não convém demorar demais, pois o inimigo está sempre à espreita. As vezes são surpreendidos pelas empregadas e tem que fugir, deixando sua presa espalhada. Mas com maior frequência, é o caminhão do Serviço Sanitário que aparece, e então a jornada esta perdida.
Quando o sol desponta sobre as colinas, a madrugada chega ao fim. A névoa se dissolveu, as beatas estão submersas no êxtase, os notívagos dormem, os jornaleiros distribuíram os jornais, os operários sobem nos andaimes. A luz desvanece o mundo mágico da aurora. Os urubus sem penas regressaram ao ninho.
*
Seu Santos esperava-os com o café preparado.
– Vamos ver, o que trouxeram para mim?
Farejava entre as latas, e se a provisão fosse boa, fazia sempre o mesmo comentário:
– Hoje o Pascual vai ter um banquete.
Mas na maioria das vezes estourava:
– Idiotas! O que fizeram hoje? Com certeza ficaram brincando! O Pascual vai morrer de fome!
Eles fugiam para a parreira, com as orelhas ardendo dos beliscões, enquanto o velho se arrastava até o chiqueiro. Do fundo de seu reduto, o porco começava a grunhir. Seu Santos atirava-lhe a comida.
– Meu pobre Pascual! Hoje vai passar fome por culpa des­ses bocós. Eles não te paparicam como eu. Só aprendem com uma boa surra!
*
– Quando o inverno começou, o porco tinha se transformado numa espécie de monstro insaciável. Tudo lhe parecia pouco, e seu Santos descontava nos netos a fome do bicho. Obrigava-os a se levantar mais cedo e invadir terrenos alheios em busca de mais restos de comida. Por fim, forçou-os a se dirigir até o lixão que ficava à beira-mar.
– La, vocês vão achar mais coisas. Vai ser mais fácil, até porque está tudo junto.
Um domingo, Efraín e Enrique chegaram até o barranco. Os caminhões do Serviço Sanitário, seguindo um rastro na terra, descarregavam o lixo numa encosta de pedras. Visto da beira do cais, o lixão formava uma espécie de escarpa escura e fumegante, onde os urubus e cachorros se mexiam feito formigas. De longe, os meninos atiraram pedras para espantar os inimigos. Um cachorro saiu ganindo. Quando chegaram perto, sentiram um cheiro nauseabundo que penetrou até seus pulmões. Os pés afundavam num monte de penas, excrementos, matérias decompostas ou queimadas. Enfiando as mãos, começaram a exploração. Às vezes, sob um jornal amarelado, descobriam uma carniça meio devorada. Nas escarpas próximas, os urubus espiavam, impacientes, e alguns se aproximavam, pulando de pedra em pedra, como se quisessem deixa-los encurralados. Efraím gritava para assustá-los, e os gritos ressoavam no desfiladeiro, fazendo pedregulhos se soltarem e rolarem até o mar. Depois de uma hora de trabalho, voltaram ao quintal com as latas cheias.
– Bravo! – exclamou seu Santos. –  Vamos ter que repetir isto duas ou três vezes por semana.
Desde então, as quartas-feiras e aos domingos, Efraín e Enrique faziam o percurso até o lixão. Logo passaram a fazer parte da estranha fauna desses lugares, e os urubus, acostumados com a presença deles, trabalhavam a seu lado, grasnando, batendo as asas, cavoucando com seus bicos amarelos, como que ajudando a descobrir a pista da preciosa sujeira
Foi voltando de uma dessas excursões que Efraín sentiu uma dor na planta do pé Um caco de vidro lhe causara uma pequena ferida. No dia seguinte estava com o pé inchado; apesar disso, prosseguiu em seu trabalho. Quando voltaram, quase não conseguia andar, mas seu Santos não percebeu, pois estava com visitas. Acompanhado de um homem gordo, com as mãos manchadas de sangue, ele observava o chiqueiro.
– Voltarei dentro de vinte ou trinta dias – dizia o homem. – Acho que ele poderá estar no ponto por volta dessa data.
Quando ele foi embora, seu Santos soltava fogo pelos olhos.
– Vamos trabalhar! Vamos trabalhar! De agora em diante teremos que aumentar a ração do Pascual! O negócio está nos trilhos.
Na manhã seguinte, porém, quando seu Santos acordou os netos, Efraín não conseguiu se levantar.
– Tem uma ferida no pé – explicou Enrique. – Ele se cortou ontem, com um caco de vidro.
Seu Santos examinou o pé do neto. A infecção tinha começado.
– Isso é conversa fiada! Vai lavar o pé no córrego e enrola num trapo.
– Mas esta doendo! – interveio Enrique. – Ele não consegue andar direito.
Seu Santos pensou por um momento. Do chiqueiro vinham os grunhidos de Pascual.
– E eu? – perguntou, dando uma palmada na perna de pau. Por acaso minha perna não dói? E eu tenho setenta anos e continuo trabalhando... Vamos parar com essa manhã!
Efraín saiu para a rua com sua lata, apoiado no ombro do irmão. Meia hora depois, voltaram com as latas vazias.
– Não conseguia mais! - disse Enrique ao avô. - O Efraín está meio manco.
Seu Santos observou os netos como se tramasse uma sentença.
– Está bem, está bem – disse, coçando a barba rala e, pegando Efraín pelo pescoço, arrastou-o para o quarto. – Doentes, para a cama! Até apodrecer no colchão! E você vai fazer a tarefa do seu irmão. Vai para o lixão agora mesmo!
*
Perto do meio-dia, Enrique voltou com as latas repletas. Seguia-o um estranho visitante: um cachorro esquálido e meio sarnento.
– Encontrei no lixão – explicou Enrique – e ele veio me seguindo.
– Seu Santos pegou a vara.
– Mais uma boca no quintal!
Enrique ergueu o cachorro contra o peito e fugiu na direção da porta.
– Não faz nada com ele, vovô! Eu vou dar da minha comida pra ele.
Seu Santos aproximou-se, afundando a perna de pau na lama.
– Nada de cachorros aqui! Já bastam vocês!
Enrique abriu a porta da rua.
– Se ele for embora, eu também vou.
O avô se deteve. Enrique aproveitou para insistir:
– Ele não come quase nada..., olha como esta magro. Além disso, ja que o Efraín está doente, ele pode me ajudar. Conhece bem o lixão e tem bom faro para o lixo.
Seu Santos refletiu, olhando para o céu, onde a garoa se condensava. Sem dizer nada, soltou a vara, apanhou as latas e saiu mancando até o chiqueiro.
Enrique sorriu de alegria e, com o amigo apertado contra o coração, correu para onde estava o irmão.
– Pascual, Pascual!... Pascualito! – cantava o avô.
Você vai se chamar Pedro – disse Enrique, acariciando a cabeça do cachorro, e voltou para perto de Efraín.
Sua alegria desapareceu: empapado de suor, Efraín se retorcia de dor sobre o colchão. Tinha o pé inchado, como se fosse de borracha e estivesse cheio de ar. Os dedos tinham quase perdido a forma.
– Trouxe um presente para você, olha – disse a ele, mostrando o cachorro. – O nome dele é Pedro, é para você, para te fazer companhia... Quando eu for no deposito, vou deixar ele com você, e vocês dois vão poder brincar o dia inteiro. Você vai ensinar ele a trazer pedras na boca.
– E o vovô? – perguntou Efraín, estendendo a mão para o animal.
– O vovô não disse nada – suspirou Enrique.
Os dois olharam para a porta. A garoa tinha começado a cair. A voz do avó chegava:
Pascual, Pascual... Pascualito!
*
Aquela noite era de lua cheia. Ambos os netos se inquietaram, porque em época de lua cheia o avô ficava intratável. Desde o entardecer viram-no rondando o quintal, falando sozinho, dando varadas na parreira. Às vezes se aproximava do quarto, dava uma olhada no interior, e ao ver os netos em silêncio, lançava uma cusparada carregada de rancor. Pedro tinha medo dele, e cada vez que o via, ficava encolhido e imóvel feito uma pedra.
– Porcaria, só porcaria! – repetiu o avô a noite toda, olhando para a lua.
Na manha seguinte, Enrique amanheceu resfriado. O velho, que o escutou espirrar de madrugada, não disse nada. No fundo, porém, pressentia uma catástrofe. Se Enrique adoecesse, quem cuidaria de Pascual? A voracidade do porco crescia com a gordura. Grunhia de tarde com o focinho enterrado na lama. Vieram reclamar lá do quintal do Nemesio, que morava a um quarteirão.
No segundo dia aconteceu o inevitável: Enrique não conseguiu se levantar. Tinha tossido a noite toda, e a manha o surpreendeu trêmulo, ardendo em febre.
– Você também? - perguntou o avô.
Enrique mostrou o peito, que chiava. O avô saiu do quarto, furioso. Cinco minutos depois, voltou.
– É muito feio me enganar desse jeito! – queixava-se. – Vocês abusam de mim porque não posso andar. Sabem muito bem que sou velho e manco. Se não fosse isso, mandaria os dois para o diabo e cuidaria sozinho do Pascual!
Efraín acordou reclamando e Enrique começou a tossir.
– Mas não importa! Eu vou me encarregar dele. Vocês são lixo, não passam de lixo! Uns coitados de uns urubus sem penas! Já vão ver como faço melhor que vocês. Este avô ainda está forte. Só que hoje não vai ter comida para vocês! Não vai ter comida até que consigam levantar e trabalhar!
Através da porta, viram-no levantar as latas cambaleando e se virar para a rua. Voltou meia hora depois, arrasado. Sem a agilidade dos netos, tinha sido alcançado pelo caminhão da vigilância sanitária. Além disso, os cachorros quiseram morde-lo.
– Pedaços de porcaria! Já sabem, vão ficar sem comida até que trabalhem!
No dia seguinte tentou repetir a operação, mas teve que renunciar. Sua perna de pau tinha perdido o costume das pistas de asfalto, das calçadas duras, e cada passo que dava era como uma fisgada na virilha. No amanhecer do terceiro dia, ficou jogado no colchão, sem animo para nada, a não ser para o xingamento.
– Se ele morrer de fome – gritava – a culpa vai ser de vocês!
*
A partir de então, começaram dias angustiantes, intermináveis. Os três passavam as horas trancados no quarto, sem falar, padecendo um tipo de reclusão forçada. Efraín se remexia sem trégua. Enrique tossia, Pedro se levantava e, depois de dar uma volta pelo quintal, voltava com uma pedra na boca, que depositava na mão dos donos. Seu Santos, meio deitado, brincava com a perna de pau e lançava olhares ferozes na direção deles. Ao meio-dia, arrastava-se até o canto do terreno onde cresciam os legumes e preparava o almoço, que devorava em segredo. Às vezes, jogava uma ou outra alface ou cenoura crua na cama dos netos, com o proposito de excitar o apetite deles e tornar o castigo mais requintado.
Efraín já não tinha forças nem para reclamar. Só Enrique sentia crescer no coração um medo estranho, e quando olhava nos olhos do avô, parecia desconhecê-los, como se tivessem perdido a expressão humana. À noite, quando a lua subia, pegava Pedro nos braços e o apertava meigamente, até faze-lo gemer. Nessa hora, o porco começava a grunhir, e o avô se queixava como se estivesse sendo enforcado. Às vezes ajustava a perna de pau e saía para o quintal. À luz do luar, Enrique o observava ir dez vezes do chiqueiro até a horta, erguendo os punhos, atropelando o que achasse pelo caminho. Por fim, entrava de novo no quarto e ficava olhando fixo para eles, como se quisesse responsabiliza-los pela fome de Pascual.
*
Na ultima noite de lua cheia ninguém conseguiu dormir. Pas­cual soltava verdadeiros rugidos. Enrique tinha ouvido dizer que os porcos, quando tinham fome, enlouqueciam feito os homens. O avô permaneceu em claro, sem desligar sequer o lampião. Desta vez não saiu para o quintal nem amaldiçoou entredentes. Submerso no colchão, fitava a porta. Parecia remoer dentro de si uma cólera muito antiga, brincar com ela, preparando-a para o disparo. Quando o céu começou a desbotar sobre as colinas, abriu a boca, manteve a escura cavidade voltada para os netos e lançou um rugido
De pé, de pé, de pé! – começaram a chover golpes –  Levantem, vagabundos! Até quando vamos ficar assim? Acabou! De pé!...
Efraín desandou a chorar. Enrique se levantou, segurando-se na parede. Os olhos do avô pareciam fascina-lo a ponto de torna-lo insensível aos golpes. Olhava a vara se erguer e se abater sobre sua cabeça como se fosse uma vara de papelão. Por fim conseguiu reagir.
– Não Efraín não! A culpa não e dele! Me deixe sozinho, eu vou sair, vou até o lixão!
O avô se conteve, arfante. Demorou muito a recuperar o fôlego.
– Agora mesmo... para o lixão... leva duas latas, quatro latas...
Enrique afastou-se, pegou as latas e foi embora correndo.
A fadiga da fome e da convalescença faziam-no cambalear. Quando abriu o portão do quintal, Pedro quis segui-lo.
– Você, não. Fica aqui, cuidando do Efraín.
E se mandou para a rua, respirando a plenos pulmões o ar da manhã. Pelo caminho comeu ervas, esteve a ponto de mastigar terra. Via tudo através de uma névoa magica. A fraqueza tornava-o leve, etéreo: quase voava como um pássaro. No aterro, sentiu-se mais um urubu entre os urubus. Quando as latas começaram a transbordar, empreendeu a volta. As beatas, os notívagos, os jornaleiros descalços, todas as secreções da madrugada começavam a se dispersar pela cidade. Enri­que, devolvido a seu mundo, caminhava feliz entre eles, em meio aos cachorros e fantasmas, tocado pela hora do dia
Ao entrar no quintal, sentiu um ar opressivo, resistente, que o obrigou a parar. Era como se ali, na soleira da porta, terminasse um mundo e começasse outro, fabricado de lama, rugidos, absurdas penitências. O surpreendente, porém, era que desta vez reinava no quintal uma calma carregada de maus presságios, como se toda a violência estivesse em equilíbrio, a ponto de desabar. O avô, de pé na beira do chiqueiro, olhava para o fundo. Parecia uma arvore crescendo a partir da perna de pau. Enrique fez barulho, mas o avô não se mexeu.
– Aqui estão as latas!
Seu Santos deu as costas e ficou imóvel. Enrique soltou as latas e correu intrigado até o quarto. Assim que o viu, Efraín começou a gemer:
– O Pedro... O Pedro...
– Que foi?
– Pedro mordeu o vovô... o vovô pegou a vara... depois percebi que ele estava uivando.
Enrique saiu do quarto.
– Pedro, vem cá! Cadê você, Pedro?
Ninguém respondeu. O avô continuava imóvel, com o olhar na parede. Enrique teve um mau pressentimento. Num pulo, chegou perto do velho.
– Cadê o Pedro?
O olhar dele desceu até o chiqueiro. Pascual devorava algo na lama. Ainda restavam as pernas e o rabo do cachorro.
– Não! – gritou Enrique, tapando os olhos. – Não, não! – e através das lágrimas procurou o olhar do avô. Este o evitou girando desajeitado sobre a perna de pau. Enrique começou a dançar em volta do avô, agarrando a camisa dele, gritando, esperneando, tentando olhar nos olhos dele, encontrar uma resposta.
– Por que você fez isso? Por quê?
O avô não respondia. Por fim, impaciente, deu um empurrão no neto que o fez rolar por terra. De lá, Enrique observou o velho que, erguido como um gigante, observava com obstinação o festim de Pascual. Estendeu a mão e encontrou a vara com a ponta manchada de sangue. Com ela, levantou-se na ponta dos pés e se aproximou do velho.
– Vira pra cá! - gritou. - Vira!
Quando seu Santos se virou, viu a vara cortando o ar e estalando contra sua bochecha.
– Toma! – berrou Enrique, e levantou novamente a mão. Mas de súbito se deteve, temeroso do que fazia e, jogando a vara para o lado, olhou para o avô, quase arrependido. O velho, segurando o rosto, recuou um passo, a perna de pau tocou em terra úmida, ele escorregou e, aos gritos, precipitou- se de costas no chiqueiro.
Enrique recuou uns passos. Primeiro apurou os ouvidos, mas não ouvia barulho algum. Aos poucos foi chegando perto. Estava com a boca aberta e seus olhos procuravam Pascual, que havia se refugiado num canto e fuçava no lodo de maneira suspeita.
Enrique foi se afastando, com o mesmo sigilo com que se aproximara. Provavelmente o avô chegou a divisá-lo, pois enquanto corria para o quarto, pareceu-lhe que o chamava pelo nome, num tom de ternura que nunca havia escutado.
– Aqui, Enrique, aqui!...
– Rápido! – exclamou Enrique, precipitando-se sobre o irmão. – Rápido, Efraín! O velho caiu no chiqueiro! Temos que ir embora!
– Pra onde? - perguntou Efraín.
– Pra onde for, para o lixão, onde a gente possa comer alguma coisa, onde estão os urubus!
– Não consigo ficar de pé!
Enrique pegou o irmão com as duas mãos, estreitando-o contra o peito. Abraçados até formar uma única pessoa, atravessaram lentamente o quintal. Quando abriram o portão da rua perceberam que a madrugada terminara e que a cidade, acordada e viva, abria sua gigantesca mandíbula diante deles.
Do chiqueiro vinha o rumor de uma batalha.
Paris, 1954

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