Julio Ramon Rybeiro (1928-994 ), escritor peruano, é um
dos maiores contistas latino-americanos, muito embora seja relativamente
desconhecido no Brasil. Seus contos – e “Urubu sem penas” é um dos melhores
exemplos – tem a mesma força e dimensão social dos melhores textos de
Graciliano Ramos. Recomendo muito sua leitura. Ele descreve homens e meninos
que vivem em meio ao lixo, tão distantes – e tão iguais a nós – como os
refugiados sírios.
Urubus sem penas
Julio Ramón
Ribeyro
Às seis da manhã a
cidade se levanta na ponta dos pés e começa a dar os primeiros passos. Uma fina
névoa dissolve o perfil dos objetos e cria como que uma atmosfera encantada. As
pessoas que percorrem a cidade a essa hora parecem ser feitas de outra substância,
parecem pertencer a um tipo de vida fantasmagórica. As beatas arrastam-se
penosamente até desaparecer nos pórticos das igrejas. Os notívagos, macerados
pela noite, voltam para casa envoltos em cachecóis e melancolia. Os lixeiros
iniciam seu passeio sinistro pela avenida Pardo, armados de vassouras e
carrinhos. A essa hora também se veem operários caminhando para o bonde,
policiais encostados nas árvores, bocejando, jornaleiros roxos de frio, empregadas
tirando as latas de lixo. Por fim, como que atendendo a um misterioso chamado,
surgem os urubus sem penas.
Então o velho sr.
Santos coloca a perna de pau e, sentando-se no colchão, começa aberrar:
- Vamos levantar!
Efraín, Enrique! Esta na hora!
Os dois rapazes
correm para o córrego do quintal esfregando os olhos remelentos. Na tranquilidade
da noite, a água aquietou-se
e no fundo transparente se veem ervas crescendo e ágeis larvinhas que flutuam.
Depois de enxaguar o rosto, cada um pega sua lata e se manda para a rua. Seu
Santos, enquanto isso, se aproxima do chiqueiro e com uma longa vara golpeia o
lombo do porco que se espoja em meio aos detritos.
- Ainda falta um
pouco, seu desgraçado! Mas pode esperar, que a sua vez já vai chegar.
Efraín e Enrique se
demoram no caminho, trepando nas árvores para apanhar amoras ou catando pedras,
daquelas afiadas que cortam o ar e ferem pelas costas. Ainda de madrugada
chegam a seu domínio, uma longa rua adornada de casas elegantes que desemboca
no cais.
Eles não são os únicos.
Em outros quintais, em outros subúrbios, alguém deu o sinal de alarme e muitos
se levantaram. Uns levam latas, outros caixas de papelão, às vezes um jornal
velho é suficiente. Sem se conhecerem formam uma espécie de organização
clandestina espalhada por toda a cidade. Alguns deles vão bisbilhotar nos edifícios
públicos; outros escolheram os parques ou as lixeiras. Até os cachorros
adquiriram seus hábitos, seus itinerários, sabiamente arregimentados pela miséria.
Efraín e Enrique,
após um breve descanso, começam o trabalho. Cada um escolhe uma calçada da rua.
As lixeiras estão alinhadas diante das portas. É preciso esvaziá-las
integralmente e aí começar a exploração. Uma lixeira é sempre uma caixa de
surpresas. Encontram-se latas de sardinhas, sapatos velhos, pedaços de pão,
ratazanas mortas, algodoes imundos. A eles só interessam os restos de comida.
No fundo do chiqueiro Pascual recebe qualquer coisa, e tem predileção pelas
verduras ligeiramente decompostas. A latinha de cada um vai se enchendo de
tomates podres, pedaços de banha, estranhos molhos que não figuram em nenhum
manual de cozinha. No entanto, não é raro um achado valioso. Um dia Efraín
encontrou uns suspensórios com os quais fabricou um estilingue. Outra vez, uma
pera quase boa que devorou no ato. Enrique, em compensação, tem sorte com
caixinhas de remédios, frascos brilhantes, escovas de dentes usadas e outras
coisas semelhantes que coleciona com avidez.
Após uma rigorosa seleção,
devolvem o lixo ao latão e se lançam sobre o próximo. Não convém demorar
demais, pois o inimigo está sempre à espreita. As vezes são surpreendidos pelas
empregadas e tem que fugir, deixando sua presa espalhada. Mas com maior frequência,
é o caminhão do Serviço Sanitário que aparece, e então a jornada esta perdida.
Quando o sol
desponta sobre as colinas, a madrugada chega ao fim. A névoa se dissolveu, as
beatas estão submersas no êxtase, os notívagos dormem, os jornaleiros distribuíram
os jornais, os operários sobem nos andaimes. A luz desvanece o mundo mágico da
aurora. Os urubus sem penas regressaram ao ninho.
*
Seu Santos
esperava-os com o café preparado.
– Vamos ver, o que
trouxeram para mim?
Farejava entre as
latas, e se a provisão fosse boa, fazia sempre o mesmo comentário:
– Hoje o Pascual vai
ter um banquete.
Mas na maioria das
vezes estourava:
– Idiotas! O que
fizeram hoje? Com certeza ficaram brincando! O Pascual vai morrer de fome!
Eles fugiam para a
parreira, com as orelhas ardendo dos beliscões, enquanto o velho se arrastava
até o chiqueiro. Do fundo de seu reduto, o porco começava a grunhir. Seu Santos
atirava-lhe a comida.
– Meu pobre Pascual!
Hoje vai passar fome por culpa desses bocós. Eles não te paparicam como eu. Só
aprendem com uma boa surra!
*
– Quando o inverno
começou, o porco tinha se transformado numa espécie de monstro insaciável. Tudo
lhe parecia pouco, e seu Santos descontava nos netos a fome do bicho. Obrigava-os
a se levantar mais cedo e invadir terrenos alheios em busca de mais restos de
comida. Por fim, forçou-os a se dirigir até o lixão que ficava à beira-mar.
– La, vocês vão
achar mais coisas. Vai ser mais fácil, até porque está tudo junto.
Um domingo, Efraín e
Enrique chegaram até o barranco. Os caminhões do Serviço Sanitário, seguindo um
rastro na terra, descarregavam o lixo numa encosta de pedras. Visto da beira do
cais, o lixão formava uma espécie de escarpa escura e fumegante, onde os urubus
e cachorros se mexiam feito formigas. De longe, os meninos atiraram pedras para
espantar os inimigos. Um cachorro saiu ganindo. Quando chegaram perto, sentiram
um cheiro nauseabundo que penetrou até seus pulmões. Os pés afundavam num monte
de penas, excrementos, matérias decompostas ou queimadas. Enfiando as mãos, começaram
a exploração. Às vezes, sob um jornal amarelado, descobriam uma carniça meio
devorada. Nas escarpas próximas, os urubus espiavam, impacientes, e alguns se
aproximavam, pulando de pedra em pedra, como se quisessem deixa-los
encurralados. Efraím gritava para assustá-los, e os gritos ressoavam no
desfiladeiro, fazendo pedregulhos se soltarem e rolarem até o mar. Depois de
uma hora de trabalho, voltaram ao quintal com as latas cheias.
– Bravo! – exclamou
seu Santos. – Vamos ter que repetir isto
duas ou três vezes por semana.
Desde então, as
quartas-feiras e aos domingos, Efraín e Enrique faziam o percurso até o lixão.
Logo passaram a fazer parte da estranha fauna desses lugares, e os urubus,
acostumados com a presença deles, trabalhavam a seu lado, grasnando, batendo as
asas, cavoucando com seus bicos amarelos, como que ajudando a descobrir a pista
da preciosa sujeira
Foi voltando de uma
dessas excursões que Efraín sentiu uma dor na planta do pé Um caco de vidro lhe
causara uma pequena ferida. No dia seguinte estava com o pé inchado; apesar
disso, prosseguiu em seu trabalho. Quando voltaram, quase não conseguia andar,
mas seu Santos não percebeu, pois estava com visitas. Acompanhado de um homem
gordo, com as mãos manchadas de sangue, ele observava o chiqueiro.
– Voltarei dentro de
vinte ou trinta dias – dizia o homem. – Acho que ele poderá estar no ponto por
volta dessa data.
Quando ele foi
embora, seu Santos soltava fogo pelos olhos.
– Vamos trabalhar!
Vamos trabalhar! De agora em diante teremos que aumentar a ração do Pascual! O
negócio está nos trilhos.
Na manhã seguinte,
porém, quando seu Santos acordou os netos, Efraín não conseguiu se levantar.
– Tem uma ferida no pé
– explicou Enrique. – Ele se cortou ontem, com um caco de vidro.
Seu Santos examinou
o pé do neto. A infecção tinha começado.
– Isso é conversa
fiada! Vai lavar o pé no córrego e enrola num trapo.
– Mas esta doendo! –
interveio Enrique. – Ele não consegue andar direito.
Seu Santos pensou por
um momento. Do chiqueiro vinham os grunhidos de Pascual.
– E eu? – perguntou,
dando uma palmada na perna de pau. Por acaso minha perna não dói? E eu tenho
setenta anos e continuo trabalhando... Vamos parar com essa manhã!
Efraín saiu para a
rua com sua lata, apoiado no ombro do irmão. Meia hora depois, voltaram com as
latas vazias.
– Não conseguia
mais! - disse Enrique ao avô. - O Efraín está meio manco.
Seu Santos observou os netos
como se tramasse uma sentença.
– Está bem, está bem – disse,
coçando a barba rala e, pegando Efraín pelo pescoço, arrastou-o para o quarto.
– Doentes, para a cama! Até apodrecer no colchão! E você vai fazer a tarefa do
seu irmão. Vai para o lixão agora mesmo!
*
Perto do meio-dia,
Enrique voltou com as latas repletas. Seguia-o um estranho visitante: um
cachorro esquálido e meio sarnento.
– Encontrei no lixão
– explicou Enrique – e ele veio me seguindo.
– Seu Santos pegou a
vara.
– Mais uma boca no
quintal!
Enrique ergueu o
cachorro contra o peito e fugiu na direção da porta.
– Não faz nada com
ele, vovô! Eu vou dar da minha comida pra ele.
Seu Santos
aproximou-se, afundando a perna de pau na lama.
– Nada de cachorros
aqui! Já bastam vocês!
Enrique abriu a
porta da rua.
– Se ele for embora,
eu também vou.
O avô se deteve.
Enrique aproveitou para insistir:
– Ele não come quase
nada..., olha como esta magro. Além disso, ja que o Efraín está doente, ele
pode me ajudar. Conhece bem o lixão e tem bom faro para o lixo.
Seu Santos refletiu,
olhando para o céu, onde a garoa se condensava. Sem dizer nada, soltou a vara,
apanhou as latas e saiu mancando até o chiqueiro.
Enrique sorriu de
alegria e, com o amigo apertado contra o coração, correu para onde estava o irmão.
– Pascual,
Pascual!... Pascualito! – cantava o avô.
Você vai se chamar
Pedro – disse Enrique, acariciando a cabeça do cachorro, e voltou para perto de
Efraín.
Sua alegria desapareceu:
empapado de suor, Efraín se retorcia de dor sobre o colchão. Tinha o pé
inchado, como se fosse de borracha e estivesse cheio de ar. Os dedos tinham
quase perdido a forma.
– Trouxe um presente
para você, olha – disse a ele, mostrando o cachorro. – O nome dele é Pedro, é
para você, para te fazer companhia... Quando eu for no deposito, vou deixar ele
com você, e vocês dois vão poder brincar o dia inteiro. Você vai ensinar ele a
trazer pedras na boca.
– E o vovô? –
perguntou Efraín, estendendo a mão para o animal.
– O vovô não disse
nada – suspirou Enrique.
Os dois olharam para
a porta. A garoa tinha começado a cair. A voz do avó chegava:
Pascual, Pascual...
Pascualito!
*
Aquela noite era de
lua cheia. Ambos os netos se inquietaram, porque em época de lua cheia o avô
ficava intratável. Desde o entardecer viram-no rondando o quintal, falando
sozinho, dando varadas na parreira. Às vezes se aproximava do quarto, dava uma
olhada no interior, e ao ver os netos em silêncio, lançava uma cusparada
carregada de rancor. Pedro tinha medo dele, e cada vez que o via, ficava
encolhido e imóvel feito uma pedra.
– Porcaria, só
porcaria! – repetiu o avô a noite toda, olhando para a lua.
Na manha seguinte,
Enrique amanheceu resfriado. O velho, que o escutou espirrar de madrugada, não
disse nada. No fundo, porém, pressentia uma catástrofe. Se Enrique adoecesse,
quem cuidaria de Pascual? A voracidade do porco crescia com a gordura. Grunhia
de tarde com o focinho enterrado na lama. Vieram reclamar lá do quintal do
Nemesio, que morava a um quarteirão.
No segundo dia
aconteceu o inevitável: Enrique não conseguiu se levantar. Tinha tossido a noite
toda, e a manha o surpreendeu trêmulo, ardendo em febre.
– Você também? -
perguntou o avô.
Enrique mostrou o
peito, que chiava. O avô saiu do quarto, furioso. Cinco minutos depois, voltou.
– É muito feio me
enganar desse jeito! – queixava-se. – Vocês abusam de mim porque não posso
andar. Sabem muito bem que sou velho e manco. Se não fosse isso, mandaria os
dois para o diabo e cuidaria sozinho do Pascual!
Efraín acordou
reclamando e Enrique começou a tossir.
– Mas não importa!
Eu vou me encarregar dele. Vocês são lixo, não passam de lixo! Uns coitados de
uns urubus sem penas! Já vão ver como faço melhor que vocês. Este avô ainda
está forte. Só que hoje não vai ter comida para vocês! Não vai ter comida até
que consigam levantar e trabalhar!
Através da porta,
viram-no levantar as latas cambaleando e se virar para a rua. Voltou meia hora
depois, arrasado. Sem a agilidade dos netos, tinha sido alcançado pelo caminhão
da vigilância sanitária. Além disso, os cachorros quiseram morde-lo.
– Pedaços de porcaria!
Já sabem, vão ficar sem comida até que trabalhem!
No dia seguinte
tentou repetir a operação, mas teve que renunciar. Sua perna de pau tinha
perdido o costume das pistas de asfalto, das calçadas duras, e cada passo que
dava era como uma fisgada na virilha. No amanhecer do terceiro dia, ficou
jogado no colchão, sem animo para nada, a não ser para o xingamento.
– Se ele morrer de
fome – gritava – a culpa vai ser de vocês!
*
A partir de então,
começaram dias angustiantes, intermináveis. Os três passavam as horas trancados
no quarto, sem falar, padecendo um tipo de reclusão forçada. Efraín se remexia
sem trégua. Enrique tossia, Pedro se levantava e, depois de dar uma volta pelo
quintal, voltava com uma pedra na boca, que depositava na mão dos donos. Seu
Santos, meio deitado, brincava com a perna de pau e lançava olhares ferozes na
direção deles. Ao meio-dia, arrastava-se até o canto do terreno onde cresciam
os legumes e preparava o almoço, que devorava em segredo. Às vezes, jogava uma
ou outra alface ou cenoura crua na cama dos netos, com o proposito de excitar o
apetite deles e tornar o castigo mais requintado.
Efraín já não tinha forças
nem para reclamar. Só Enrique sentia crescer no coração um medo estranho, e
quando olhava nos olhos do avô, parecia desconhecê-los, como se tivessem
perdido a expressão humana. À noite, quando a lua subia, pegava Pedro nos
braços e o apertava meigamente, até faze-lo gemer. Nessa hora, o porco começava
a grunhir, e o avô se queixava como se estivesse sendo enforcado. Às vezes
ajustava a perna de pau e saía para o quintal. À luz do luar, Enrique o observava
ir dez vezes do chiqueiro até a horta, erguendo os punhos, atropelando o que
achasse pelo caminho. Por fim, entrava de novo no quarto e ficava olhando fixo
para eles, como se quisesse responsabiliza-los pela fome de Pascual.
*
Na ultima noite de
lua cheia ninguém conseguiu dormir. Pascual soltava verdadeiros rugidos.
Enrique tinha ouvido dizer que os porcos, quando tinham fome, enlouqueciam
feito os homens. O avô permaneceu em claro, sem desligar sequer o lampião.
Desta vez não saiu para o quintal nem amaldiçoou entredentes. Submerso no colchão,
fitava a porta. Parecia remoer dentro de si uma cólera muito antiga, brincar
com ela, preparando-a para o disparo. Quando o céu começou a desbotar sobre as
colinas, abriu a boca, manteve a escura cavidade voltada para os netos e lançou
um rugido
De pé, de pé, de pé!
– começaram a chover golpes – Levantem,
vagabundos! Até quando vamos ficar assim? Acabou! De pé!...
Efraín desandou a
chorar. Enrique se levantou, segurando-se na parede. Os olhos do avô pareciam
fascina-lo a ponto de torna-lo insensível aos golpes. Olhava a vara se erguer e
se abater sobre sua cabeça como se fosse uma vara de papelão. Por fim conseguiu
reagir.
– Não Efraín não! A
culpa não e dele! Me deixe sozinho, eu vou sair, vou até o lixão!
O avô se conteve,
arfante. Demorou muito a recuperar o fôlego.
– Agora mesmo...
para o lixão... leva duas latas, quatro latas...
Enrique afastou-se,
pegou as latas e foi embora correndo.
A fadiga da fome e
da convalescença faziam-no cambalear. Quando abriu o portão do quintal, Pedro
quis segui-lo.
– Você, não. Fica
aqui, cuidando do Efraín.
E se mandou para a
rua, respirando a plenos pulmões o ar da manhã. Pelo caminho comeu ervas,
esteve a ponto de mastigar terra. Via tudo através de uma névoa magica. A fraqueza
tornava-o leve, etéreo: quase voava como um pássaro. No aterro, sentiu-se mais
um urubu entre os urubus. Quando as latas começaram a transbordar, empreendeu a
volta. As beatas, os notívagos, os jornaleiros descalços, todas as secreções da
madrugada começavam a se dispersar pela cidade. Enrique, devolvido a seu
mundo, caminhava feliz entre eles, em meio aos cachorros e fantasmas, tocado
pela hora do dia
Ao entrar no
quintal, sentiu um ar opressivo, resistente, que o obrigou a parar. Era como se
ali, na soleira da porta, terminasse um mundo e começasse outro, fabricado de
lama, rugidos, absurdas penitências. O surpreendente, porém, era que desta vez reinava
no quintal uma calma carregada de maus presságios, como se toda a violência
estivesse em equilíbrio, a ponto de desabar. O avô, de pé na beira do
chiqueiro, olhava para o fundo. Parecia uma arvore crescendo a partir da perna
de pau. Enrique fez barulho, mas o avô não se mexeu.
– Aqui estão as
latas!
Seu Santos deu as
costas e ficou imóvel. Enrique soltou as latas e correu intrigado até o quarto.
Assim que o viu, Efraín começou a gemer:
– O Pedro... O
Pedro...
– Que foi?
– Pedro mordeu o
vovô... o vovô pegou a vara... depois percebi que ele estava uivando.
Enrique saiu do
quarto.
– Pedro, vem cá! Cadê
você, Pedro?
Ninguém respondeu. O
avô continuava imóvel, com o olhar na parede. Enrique teve um mau
pressentimento. Num pulo, chegou perto do velho.
– Cadê o Pedro?
O olhar dele desceu
até o chiqueiro. Pascual devorava algo na lama. Ainda restavam as pernas e o
rabo do cachorro.
– Não! – gritou
Enrique, tapando os olhos. – Não, não! – e através das lágrimas procurou o
olhar do avô. Este o evitou girando desajeitado sobre a perna de pau. Enrique começou
a dançar em volta do avô, agarrando a camisa dele, gritando, esperneando,
tentando olhar nos olhos dele, encontrar uma resposta.
– Por que você fez
isso? Por quê?
O avô não respondia.
Por fim, impaciente, deu um empurrão no neto que o fez rolar por terra. De lá,
Enrique observou o velho que, erguido como um gigante, observava com obstinação
o festim de Pascual. Estendeu a mão e encontrou a vara com a ponta manchada de
sangue. Com ela, levantou-se na ponta dos pés e se aproximou do velho.
– Vira pra cá! -
gritou. - Vira!
Quando seu Santos se
virou, viu a vara cortando o ar e estalando contra sua bochecha.
– Toma! – berrou
Enrique, e levantou novamente a mão. Mas de súbito se deteve, temeroso do que
fazia e, jogando a vara para o lado, olhou para o avô, quase arrependido. O
velho, segurando o rosto, recuou um passo, a perna de pau tocou em terra úmida,
ele escorregou e, aos gritos, precipitou- se de costas no chiqueiro.
Enrique recuou uns
passos. Primeiro apurou os ouvidos, mas não ouvia barulho algum. Aos poucos foi
chegando perto. Estava com a boca aberta e seus olhos procuravam Pascual, que
havia se refugiado num canto e fuçava no lodo de maneira suspeita.
Enrique foi se afastando,
com o mesmo sigilo com que se aproximara. Provavelmente o avô chegou a divisá-lo,
pois enquanto corria para o quarto, pareceu-lhe que o chamava pelo nome, num
tom de ternura que nunca havia escutado.
– Aqui, Enrique,
aqui!...
– Rápido! – exclamou
Enrique, precipitando-se sobre o irmão. – Rápido, Efraín! O velho caiu no
chiqueiro! Temos que ir embora!
– Pra onde? -
perguntou Efraín.
– Pra onde for, para
o lixão, onde a gente possa comer alguma coisa, onde estão os urubus!
– Não consigo ficar
de pé!
Enrique pegou o irmão
com as duas mãos, estreitando-o contra o peito. Abraçados até formar uma única
pessoa, atravessaram lentamente o quintal. Quando abriram o portão da rua
perceberam que a madrugada terminara e que a cidade, acordada e viva, abria sua
gigantesca mandíbula diante deles.
Do chiqueiro vinha o
rumor de uma batalha.
Paris, 1954
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