Sherwood Anderson
(1876-1941), escritor norte americano nascido em Ohio. Viveu na mesma época que
Stefan Zweig – autor destacado por esta pagina na última semana – mas ao
contrario do escritor austríaco que viveu em uma Europa que dramaticamente se
transformava na primeira metade do século XX, Sherwood vivem em uma América do
Norte politicamente estável e pode concentrar sua atenção no tema central deste
conto: a compreensão do sonho americano.
O ovo
Sherwood Anderson
Tradução de Mário Zeidler Filho
Meu pai foi, estou certo, naturalmente feito
para ser um homem alegre e gentil. Até os trinta e quatro anos de idade ele
trabalhou como granjeiro para um homem chamado Thomas Butterworth, cuja fazenda
ficava perto da cidade de Bidwell, Ohio. Na época ele tinha um cavalo só dele,
e nas noites de sábado ia até a cidade para passar algumas horas se divertindo
com outros granjeiros. Na cidade ele bebia um monte de cerveja e ficava à toa
no Ben Head’s Saloon – abarrotado nas noites de sábado com granjeiros das
redondezas. Canções eram cantadas e copos batiam no balcão. Às dez da noite meu
pai voltava pra casa por uma solitária estrada vicinal, desarreava seu cavalo e
ia ele mesmo para a cama, bastante feliz com sua posição no mundo. Naquela
época ele não tinha nenhuma ideia de tentar subir na vida.
Foi na primavera de seu trigésimo quinto ano que
meu pai se casou com minha mãe, então uma professora do interior, e na
primavera seguinte eu vim chorando e me contorcendo ao mundo. Alguma coisa
aconteceu com os dois. Eles ficaram ambiciosos. A paixão americana por subir na
vida se apossou deles.
Pode ser que minha mãe tenha sido a responsável.
Sendo professora ela sem dúvida havia lido livros e revistas. Ela devia, eu
presumo, ter lido sobre como Garfield, Lincoln e outros americanos saltaram da
pobreza para a fama e a grandeza, e enquanto eu permanecia ao seu lado – nos
seus dias de resguardo – ela deve ter sonhado que um dia eu governaria homens e
cidades. De alguma forma ela convenceu meu pai a abandonar seu posto como granjeiro,
vender seu cavalo e embarcar em seu próprio negocio, independente. Ela era uma
mulher alta e calada, com um longo nariz e aflitos olhos cinzentos. Para ela
mesma não queria nada. Por meu pai e por mim, era incuravelmente ambiciosa.
O primeiro negócio em que os dois se meteram
acabou mal. Eles alugaram dez acres de terra ruim e pedregosa na estrada de
Griggs, a oito milhas de Bidwell, e se lançaram na criação de galinhas. Passei
a meninice naquele lugar e foi dali que tirei minhas primeiras impressões sobre
a vida. Desde o começo foram impressões desastrosas, e se de minha parte me
tornei um homem sombrio, inclinado a ver sempre o lado mais escuro da vida,
atribuo isto ao fato de que aqueles que deveriam ter sido os meus alegres e
prazenteiros dias de infância se passaram numa granja de galinhas.
Alguém pouco versado em tais assuntos pode não ter
noção das muitas e trágicas coisas que podem acontecer a um frango. Ele nasce
de um ovo, vive algumas semanas como uma coisinha fofa tal qual se vê estampada
nos cartões de páscoa, e então se transforma numa coisa horrivelmente pelada,
come porções de milho e ração compradas com o suor do rosto do teu pai, pega
doenças chamadas de gôgo, cólera e outros nomes, fica parado olhando com olhos
estúpidos para o sol, adoece e morre. Algumas galinhas, e de vez em quando um
galo, feitos para servir aos misteriosos desígnios de Deus, lutam até à
maturidade. As galinhas botam ovos dos quais saem outros frangos e o ciclo
tenebroso assim se completa. É tudo inacreditavelmente complexo. A maioria dos
filósofos deve ter crescido em granjas de galinha. Espera-se tanto de uma
galinha e se acaba tão horrivelmente desiludido. Franguinhos, apenas começando
a jornada da vida, parecem tão brilhantes e alertas e são na verdade tão horrivelmente
estúpidos. Eles se parecem tanto com pessoas que acabam nos confundindo em
nossos julgamentos sobre a vida. Se a doença não os mata, eles esperam até que
suas expectativas estejam satisfatoriamente elevadas e então passam por baixo
das rodas de uma carroça – voltando arrebentados e mortos para as mãos do
Criador. Vermes infestam sua juventude, e fortunas têm que ser gastas em talcos
curativos. Na vida adulta eu percebi como toda uma literatura foi construída
sobre o assunto, sobre como fortunas podem ser feitas com a criação de
galinhas. Ela é feita para ser lida pelos deuses que acabaram de comer o fruto
da árvore da ciência do bem e do mal. É uma literatura esperançosa e declara
que muito pode ser feito por pessoas simples e ambiciosas que possuam algumas
galinhas. Não se deixe enganar por ela. Isto não foi escrito para você. Vá à
procura de ouro nas montanhas congeladas do Alasca, deposite sua fé na
honestidade de um político, acredite se quiser que o mundo está melhor a cada
dia e que o bem triunfará sobre o mal, mas não leia nem acredite na literatura
que é escrita a respeito da galinha. Não foi escrita para você.
Mas, contudo, divago. Minha história não se
relaciona primariamente à galinha. Se contada corretamente, deverá se centrar
no ovo. Por dez anos meu pai e minha mãe lutaram para fazer nossa granja
lucrar, e então desistiram desta luta e começaram outra. Eles se mudaram para a
cidade de Bidwell, Ohio, e embarcaram no negócio de restaurantes. Após dez anos
de preocupação com chocadeiras que não chocavam, e com pequenas – e a seu
próprio modo amáveis – bolinhas de penugem, que então passavam à seminua
franguescência e daí para uma falecida galinescência, jogamos tudo para o alto
e, juntando nossos pertences numa carroça, descemos pela estrada de Griggs até
Bidwell, uma pequena caravana de esperança à procura de um novo lugar para
começarmos nossa jornada de ascensão pela vida.
Devíamos ser um bando bem triste de se ver, não
muito diferentes, eu imagino, de refugiados escapando de um campo de batalha.
Minha mãe e eu andávamos pela estrada. A carroça que levava nossas coisas fora
emprestada por um dia pelo Sr. Albert Griggs, um vizinho. Pelos lados saiam
pernas de cadeiras baratas e no fundo da pilha de camas, mesas e caixas cheias
de utensílios de cozinha, estava um caixote de galinhas vivas, e no topo de
tudo o carrinho de bebê no qual me carregavam na minha infância. Por que
ficamos com o carrinho de bebê eu não sei. Era improvável o nascimento de outra
criança, e as rodas estavam quebradas. Pessoas de poucas posses se agarram
fortemente àquelas que têm. Este é um dos fatos que fazem a vida tão
desalentadora.
Meu pai ia em cima da carroça. Era então um
homem careca de quarenta e cinco anos, um pouco gordo e, pela longa associação
com minha mãe e com as galinhas, havia se tornado habitualmente silencioso e
desanimado. Durante todos os dez anos na granja ele havia trabalhado como
ajudante nas fazendas vizinhas, e a maior parte do dinheiro que ganhou foi
gasta em remédios para curar as doenças das galinhas, na Maravilha Branca de
Wilmer Contra a Cólera ou no Produtor de Ovos do Professor Bidlow ou em outros
preparados que minha mãe via anunciados nas revistas de avicultura. Havia dois
pequenos retalhos de cabelo na cabeça de meu pai, logo acima das orelhas. Eu me
lembro que quando criança costumava ficar sentado, olhando para ele, enquanto
ele dormia numa cadeira em frente ao fogão, nas tardes de domingo no inverno.
Naquele tempo eu já tinha começado a ler uns livros e a ter minhas próprias
ideias, e a faixa calva que subia até o topo de sua cabeça era, eu imaginava,
como que uma larga estrada, uma estrada como as que Cesar deve ter construído,
pela qual levava suas legiões de Roma até as maravilhas de um mundo
desconhecido. Os tufos de cabelo que cresciam sobre as suas orelhas eram, eu
pensava, como florestas. Eu ficava meio adormecido, meio acordado, sonhando que
era uma coisinha pequena andando pela estrada até um belo e longínquo lugar
onde não existiam granjas e onde a vida era um assunto alegre e sem ovos.
Alguém poderia escrever um livro sobre nossa
fuga da granja para a cidade. Minha mãe e eu andamos todas as oito milhas – ela
para se certificar de que nada cairia da carroça, e eu para ver as maravilhas
do mundo. No assento da carroça, ao lado do meu pai, estava seu maior tesouro.
Vou te contar o que era.
Numa granja de galinhas, onde centenas e até
milhares de galinhas saem de ovos, coisas surpreendentes às vezes acontecem.
Aberrações nascem dos ovos como nascem das pessoas. Este acidente não acontece
com frequência – talvez em um de cada mil nascimentos. Nasce uma galinha, veja
você, com quatro pernas, dois pares de asas, duas cabeças ou qualquer coisa do
tipo. Estas coisas não vivem. Elas voltam rapidamente para as mãos
momentaneamente trêmulas de seu Criador. O fato de que as pobres coisinhas não
conseguiam sobreviver era uma das tragédias da vida para meu pai. Ele tinha a
ideia de que, se conseguisse trazer à galinescência ou à galescência uma
galinha de cinco pernas ou um galo de duas cabeças, estaria feita a sua
fortuna. Ele sonhava em levar a maravilha pelas feiras rurais e ficar rico
exibindo aquilo para outros granjeiros.
De alguma forma ele salvou todas as pequenas
monstruosidades nascidas em nossa granja. Elas eram preservadas em álcool e colocadas
cada uma em seu frasco de vidro. Estes frascos ele havia colocado
cuidadosamente numa caixa, e em nossa jornada até a cidade ele a carregou ao
seu lado no banco da carroça. Ele guiava os cavalos com uma mão e com a
outra se agarrava à caixa. Quando chegamos ao nosso destino, a caixa foi
imediatamente descida e os frascos guardados. Durante todos os nossos dias como
donos de um restaurante na cidade de Bidwell, Ohio, as aberrações em seus
pequenos frascos de vidro ficaram numa prateleira atrás do balcão. Minha mãe às
vezes protestava, mas meu pai era uma rocha quando o assunto era aquele seu
tesouro. As aberrações, ele declarava, eram valiosas. As pessoas, ele dizia,
gostavam de ver coisas estranhas e maravilhosas.
Cheguei a dizer que embarcamos no negócio de
restaurantes na cidade de Bidwell, Ohio? Eu exagerei um pouco. A cidade
propriamente ficava ao pé de uma colina baixa e à margem de um rio pequeno. A
ferrovia não passava pela cidade e a estação ficava a uma milha para o norte
num lugar chamado Pickleville. Havia ali um engenho de cidra e uma fábrica de
picles perto da estação, mas antes da época em que viemos os dois já haviam
falido. De manhã e à noite ônibus desciam até a estação por uma ladeira chamada
Turner’s Pike, vindos do hotel na rua principal de Bidwell. Nossa ida para este
lugar fora de mão para embarcar no negócio de restaurantes foi ideia da minha
mãe. Ela falou sobre isso por um ano e então um dia foi lá e alugou um armazém
vazio em frente à estação ferroviária. A ideia de que o restaurante seria
lucrativo era dela. Os viajantes, ela dizia, estariam sempre por ali esperando
os trens que partiam da cidade, e as pessoas da cidade desceriam até a estação
para esperar pelos trens que chegavam. Eles viriam ao restaurante para comprar
pedaços de torta e tomar café. Agora que estou mais velho eu sei que ela tinha
outro motivo para nossa mudança. Ela tinha ambições para mim. Ela queria que eu
subisse na vida, que eu entrasse numa escola da cidade e me tornasse um homem
cosmopolita.
Em Pickleville meu pai e minha mãe trabalharam
tão duro quanto sempre tinham feito. No começo havia a necessidade de fazer o
lugar ficar parecido com um restaurante. Isso levou um mês. Meu pai fez uma
prateleira na qual colocou latas de legumes. Ele pintou uma placa na qual
colocou seu nome em grandes letras vermelhas. Embaixo do nome estava a áspera
ordem – “COMA AQUI” – que era tão raramente obedecida. Uma vitrine foi comprada
e enchida com charutos e tabaco. Minha mãe esfregou o chão e as paredes do
salão. Eu fui para a escola municipal e estava feliz de estar longe da
granja e da presença desanimada daquelas galinhas de triste figura. Mesmo assim
eu não era muito alegre. No fim da tarde eu caminhava da escola até em casa
pela Turner’s Pike e me lembrava das crianças que eu via brincando no pátio da
escola municipal. Uma tropa de garotinhas saiu pulando e cantando. Eu tentei
aquilo. Descendo a estrada congelada eu ia pulando solenemente sobre uma perna
só. “Pulando Faceiro até o Barbeiro”, eu cantava estridente. Então parei e
olhei desconfiado ao redor. Eu tinha medo ser visto naquela alegria toda. Devia
me parecer que eu estava fazendo alguma coisa que não devia ser feita por
alguém que, como eu, foi criado numa granja de galinhas que a morte visitava
diariamente.
Minha mãe decidiu que nosso restaurante deveria
ficar aberto à noite. Às dez da noite um trem de passageiros passava por nossa
porta indo para o norte, seguido por um trem de cargas local. A turma do
cargueiro tinha que fazer baldeação em Pickleville e quando o trabalho acabava
eles vinham até nosso restaurante procurando por café quente e comida. De vez
em quando um deles pedia um ovo frito. Às quatro da manhã eles retornavam pelo
norte e nos visitavam de novo. Uma pequena troca começou a acontecer.
Minha mãe dormia de noite e durante o dia cuidava do restaurante e alimentava
nossos fregueses enquanto meu pai dormia. Ele dormia na mesma cama que minha
mãe havia ocupado durante a noite e eu saía para ir à escola na cidade de
Bidwell. Durante as longas noites, enquanto minha mãe e eu dormíamos, meu pai
cozinhava as carnes que iam nos sanduíches que nossos fregueses levavam nas
marmitas. E então uma ideia a respeito de subir na vida lhe veio à cabeça. O
espírito americano tomou conta dele. Ele também ficou ambicioso.
Nas longas noites, quando havia pouco o que
fazer, meu pai tinha tempo para pensar. Isso foi sua ruína. Ele decidiu que
havia sido um homem malsucedido no passado porque não havia sido
suficientemente alegre e que no futuro ele adotaria uma aparência alegre na
vida. No começo da manhã ele subiu as escadas e se deitou na cama com minha
mãe. Ela acordou e os dois conversaram. Da minha cama no canto eu escutei.
A ideia do meu pai era que ele e minha mãe
deviam tentar entreter as pessoas que vinham comer em nosso restaurante. Agora
não consigo lembrar suas palavras, mas ele dava a impressão de alguém que
estivesse para se transformar, de algum jeito obscuro, num comediante. Quando
as pessoas, principalmente gente jovem da cidade de Bidwell, vinham ao nosso
estabelecimento, como acontecia em ocasiões muito raras, conversas
brilhantemente divertidas seriam entabuladas. Pelo que meu pai falava,
deduzi que alguma coisa como o efeito da familiaridade de um alegre
estalajadeiro era o seu objetivo. Minha mãe deve ter duvidado desde o começo,
mas não disse nada que pudesse desencorajá-lo. A ideia do meu pai era que o
gosto pela companhia dele e da minha mãe simplesmente brotaria do peito das
pessoas mais jovens da cidade de Bidwell. Ao anoitecer, grupos alegres e
luminosos desceriam cantando a Turner’s Pike. Eles invadiriam o estabelecimento
com gritos de alegria e risadas. Haveriam canções e festividade. Não quero dar
a impressão de que meu pai falava tão elaboradamente do assunto. Ele era, como
eu disse, um homem pouco comunicativo. “Eles querem algum lugar para ir. Estou
falando, eles querem algum lugar para ir”, ele dizia, de novo e de novo. Só
chegava até aí. Minha própria imaginação preencheu as lacunas.
Por duas ou três semanas esta ideia do meu pai
invadiu nossa casa. Nós não falávamos muito, mas em nossas atividades diárias
tentamos honestamente fazer com que sorrisos tomassem o lugar dos olhares
sombrios. Minha mãe sorria para os fregueses e eu, pegando a infecção, sorria
para o nosso gato. Meu pai se tornou um tanto febril em sua ansiedade por
agradar. Havia, sem dúvida, escondido em algum lugar dentro dele, o toque de um
espírito performático. Ele não gastava muita munição com os ferroviários que
ele servia à noite, mas parecia esperar pela chegada de algum rapaz ou alguma
moça de Bidwell para mostrar o que podia fazer. No caixa do restaurante havia
uma cesta de arame que estava sempre cheia de ovos, e aquilo devia estar bem
ali na sua frente quando a ideia de ser divertido nasceu em seu cérebro. Havia
algo de pré-natal quanto à forma em que os ovos se mantinham sempre ligados ao
desenvolvimento da sua ideia. De algum jeito, um ovo arruinou seu novo impulso
na vida. Uma noite, tarde da noite, fui despertado por um rugido de raiva vindo
da garganta do meu pai. Minha mãe e eu nos erguemos rapidamente em nossas
camas. Com mãos trêmulas ela acendeu uma lâmpada que ficava numa mesa perto da
cabeceira. Lá embaixo a porta da frente do nosso restaurante bateu
estrondosamente e em poucos minutos meu pai subiu tropeçando pela escada. Ele
tinha um ovo na mão e sua mão tremia como se ele estivesse tendo um calafrio.
Havia uma luz meio louca em seus olhos. Enquanto ele ficava ali nos encarando,
eu tinha certeza de que ele atiraria o ovo em minha mãe ou em mim. Mas então ele
colocou o ovo mansamente na mesa ao lado da lâmpada e caiu de joelhos ao lado
da cama da minha mãe. Ele começou a chorar como um garotinho, e eu, carregado
por sua aflição, chorei com ele. Nós dois enchemos a pequena sobreloja com
nossas vozes lamuriosas. É ridículo, mas da cena que fazíamos eu consigo me
lembrar apenas do fato de que a mão de minha mãe batia continuamente na faixa
calva que passava pelo topo da cabeça dele. Eu me esqueci do que foi que minha
mãe disse e de como ela o convenceu a contar o que havia acontecido lá embaixo.
Sua explicação também agora me escapa. Eu me lembro apenas da minha aflição e
medo e da faixa brilhosa sobre a cabeça do meu pai refletindo a luz da lâmpada
enquanto ele se ajoelhava junto à cama.
Quanto ao que aconteceu lá embaixo. Por alguma
razão inexplicável, eu sabia a história tão bem como se tivesse testemunhado a
descompostura do meu pai. Com o tempo se chega a saber muitas coisas
inexplicáveis. Naquela noite o jovem Joe Kane, filho de um comerciante de
Bidwell, veio a Pickleville encontrar seu pai, que era esperado no trem das dez
vindo do sul. O trem estava três horas atrasado, e Joe entrou no restaurante
para reclamar e esperar por sua chegada. O cargueiro local entrou na estação e
os carregadores comeram. Joe ficou sozinho no restaurante com meu pai.
Desde o momento em que entrou em nosso
estabelecimento, o jovem de Bidwell deve ter ficado estupefato com o
comportamento do meu pai. A ideia dele era que meu pai estava irritado por ele
ficar ali à toa. Ele notou que o dono do restaurante estava aparentemente
incomodado com sua presença e pensou em sair. Contudo, começou a chover e ele
não arriscou uma longa caminhada de volta para a cidade. Comprou um charuto
barato e pediu uma xícara de café. Ele tinha um jornal no bolso, que tirou e
começou a ler. “Estou esperando o trem da noite. Está atrasado”, ele disse se
desculpando.
Por um longo tempo meu pai, a quem Joe Kane
nunca tinha visto antes, permaneceu calado, olhando o visitante. Ele sem dúvida
estava sofrendo um ataque de medo de palco. Como acontece tantas vezes na vida,
ele havia pensado tanto e tão frequentemente na situação que agora o
confrontava que ficou um tanto nervoso em sua presença.
Por um lado, não sabia o que fazer com as mãos.
Ele enfiou uma delas nervosamente por cima do balcão e cumprimentou Joe Kane.
“Como é que vamos”, ele disse. Joe Kane largou seu jornal e o encarou. Os olhos
de meu pai se iluminaram por sobre a cesta de ovos em cima do caixa e ele
começou a falar. “Bem,” ele disse hesitantemente, “bem, você já ouviu falar no
Cristóvão Colombo, hã?” Ele parecia estar irritado. “Esse Cristóvão Colombo era
um trapaceiro”, ele declarou enfaticamente. “Ele falava em fazer um ovo ficar
em pé. Ele falava isso, sim, e aí ele foi e quebrou o fundo do ovo.”
Parecia ao visitante que meu pai estava fora de
si quanto à duplicidade de Cristóvão Colombo. Ele resmungava e xingava. Ele
declarou que era errado ensinar às crianças que Cristóvão Colombo era um grande
homem quando, afinal, ele havia trapaceado no momento crítico. Ele declarava
que faria um ovo ficar em pé, e então, quando aceitaram o blefe, ele fez um
truque. Enquanto resmungava sobre Colombo, meu pai pegou um ovo da cesta no
caixa e começou a andar pra cima e pra baixo. Ele rolava o ovo entre as palmas
das mãos. Sorria genialmente. Começou a murmurar palavras a respeito dos
efeitos produzidos sobre um ovo pela eletricidade transmitida pelo corpo
humano. Ele declarou que, sem quebrar sua casca, e por força apenas de rolá-lo
continuamente entre as mãos, ele conseguiria fazer o ovo ficar parado em pé.
Ele explicou que com o calor das mãos e o lento movimento de rolagem ele dava
ao ovo um novo centro de gravidade, e Joe Kane ficou levemente interessado. “Eu
já manuseei milhares de ovos,” meu pai disse. “Ninguém sabe mais sobre ovos do
que eu.”
Ele colocou o ovo no balcão e o ovo caiu
deitado. Ele tentou o truque de novo e de novo, sempre rolando o ovo entre as
palmas das mãos e falando sobre as maravilhas da eletricidade e as leis
da gravidade. Quando, depois de meia hora tentando, ele conseguiu fazer o ovo
ficar de pé por um momento, percebeu que o visitante não estava mais olhando.
Quando conseguiu chamar a atenção de Joe Kane para o sucesso dos seus esforços,
o ovo já havia caído de novo e rolado para o lado.
Aceso com sua vontade performática e ao mesmo
tempo bastante desconcertado com o fracasso de sua primeira tentativa, meu pai
então tirou os frascos com as monstruosidades avícolas da prateleira e começou
a mostrá-las ao visitante. “O que você acharia de ter sete pernas e duas
cabeças como esse camaradinha aqui?”, ele perguntou, exibindo o mais notável
dos seus tesouros. Um sorriso alegre apareceu em seu rosto. Ele passou o braço
pelo o balcão e tentou dar um tapa no ombro de Joe Kane, como ele havia visto
os homens fazerem no Ben Head’s Saloon, quando era um jovem granjeiro e
ia até a cidade nas noites de sábado. O visitante ficara um tanto enojado com a
visão daquela ave terrivelmente deformada boiando no álcool do frasco, e se
levantou para sair. Dando a volta por detrás do balcão, meu pai segurou o braço
do jovem e o devolveu a seu assento. Ele ficou um pouco nervoso e por um
momento teve que virar o rosto e forçar um sorriso. Então colocou os frascos de
volta na prateleira. Numa demonstração de generosidade, ele bondosamente
compeliu Joe Kane a aceitar outro charuto e uma xícara de café novo por conta
da casa. Aí pegou uma panela e encheu de vinagre, que guardava num garrafão
embaixo do balcão, e declarou que faria um outro truque. “Vou esquentar este
ovo nesta panela de vinagre”, ele disse. “E aí vou passar o ovo pelo gargalo de
uma garrafa sem quebrar a casca. Quando o ovo estiver dentro da garrafa ele vai
voltar à sua forma normal e a casca vai endurecer de novo. Então vou te dar a
garrafa com o ovo dentro. Você pode leva-la com você pra qualquer lugar. As
pessoas vão querer saber como você colocou o ovo na garrafa. Não diga nada pra
elas. Deixe que elas imaginem. É assim que você se diverte com esse truque.”
Meu pai sorriu e piscou para o visitante. Joe
Kane decidiu que o homem a sua frente era meio louco, mas inofensivo. Ele tomou
a xícara de café que havia ganho e começou novamente a ler seu jornal. Quando o
ovo já estava quente no vinagre, meu pai o levou numa colher até o balcão e
buscou uma garrafa vazia no quarto dos fundos. Ele estava irritado porque o
visitante não o olhava fazendo seu truque desde o começo, mas mesmo assim
continuou alegremente com o serviço. Por um longo tempo ele lutou, tentando
fazer o ovo passar pelo gargalo da garrafa. Ele colocou a panela de
vinagre de volta no fogão, pensando em reaquecer o ovo, mas queimou os dedos
quando o pegou. Depois de um segundo banho em vinagre quente, a casca do ovo
amoleceu um pouco, mas não o suficiente para cumprir seu propósito. Ele tentou
e tentou, e um espírito de determinação desesperada tomou posse dele.
Quando ele pensou que afinal o truque se consumaria, o trem atrasado
entrou na estação e Joe Kane começou tranquilamente a andar até a porta. Meu
pai fez uma última tentativa desesperada de vencer o ovo e fazer com que
acontecesse aquilo que estabeleceria sua reputação como alguém que sabia
divertir os clientes que viessem ao seu restaurante. Ele intimidou o ovo. Ele
tentou ser algo rude com ele. Ele xingava e o suor começou a surgir em sua
testa. O ovo quebrou em sua mão. Quando o interior estourou em suas roupas, Joe
Kane, que havia parado na porta, virou as costas e saiu rindo.
Um rugido de raiva subiu da garganta de meu pai.
Ele sapateou e gritou um cordel de palavras inarticuladas. Pegando outro ovo na
cesta do caixa, ele o atirou, errando por pouco a cabeça do jovem, que se
desviou pela porta e escapou.
Meu pai subiu as escadas até minha mãe e eu, com
um ovo na mão. Eu não sei o que ele pretendia fazer. Imagino que ele tivesse
alguma ideia de destruí-lo, de destruir todos os ovos, e que queria que eu e
minha mãe o víssemos começar. Entretanto, quando se viu na presença de minha
mãe, alguma coisa aconteceu com ele. Ele deixou o ovo gentilmente na mesa e
caiu de joelhos perto da cama como eu já tinha explicado. Depois ele decidiu
fechar o restaurante pela noite e vir para cima e ir para a cama. Depois que
fez isso, ele apagou a luz e depois de muita conversa resmungada tanto ele
quanto minha mãe foram dormir. Suponho que eu tenha ido dormir também, mas meu
sono foi intranquilo. Eu acordei de madrugada e por um longo tempo eu olhei
para o ovo em cima da mesa. Eu imaginava por que os ovos tinham que existir e
por que do ovo saía a galinha que novamente botava o ovo. A coisa entrou no meu
sangue. E ficou lá. Eu imagino, porque sou o filho do meu pai. De alguma forma,
o problema continua irresolvido em minha cabeça. E isto, concluo, é apenas mais
uma evidência do completo e definitivo triunfo do ovo – pelo menos até onde
isto diz respeito à minha família.
Sherwood Anderson (1876-1941), contista e romancista norte-americano, foi um dos
precursores da chamada “Geração Perdida”. Amigo e leitor de Gertrude Stein, com
quem manteve extensa correspondência, foi responsável pela publicação dos primeiros
trabalhos de Hemingway e Faulkner, influenciando também escritores como Norman
Mailer e J. D. Salinger. O Triunfo do Ovo foi publicado originalmente em
1920 pela revista The Dial, que no ano seguinte concedeu ao autor seu
primeiro prêmio literário – seguido, em 1922, por T. S. Eliot. Em 1923, foi
republicado sob o título The Egg [O Ovo], no volume The
Triumph of the Egg: A Book of Impressions from American Life in Tales and Poems.
Como lembra Irving Howe no prefácio a Winesburg, Ohio (único livro
de S. Anderson publicado no Brasil), O Triunfo do Ovo é “o maior de seus
contos isolados (…) conseguindo unir uma superfície de farsa a uma insinuação
de tragédia”, sendo uma “obra-prima americana”.
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